P/1 – Acho que seria legal você se apresentar primeiro, qual o seu nome, seu dia de nascimento e o local onde você nasceu.
R – Eu sou Maristela Bencici Feldman, nasci no dia 30 de abril de 1965. Nasci aqui mesmo na cidade de São Paulo, numa maternidade no Brás, eu não me lembro o nome.
P/1 – E qual o nome dos seus pais e a origem deles, Maristela?
R – A minha mãe é Edna Bencici Castro. Ela nasceu no interior de São Paulo e o meu pai Francisco Castro. A minha mãe ainda é viva, meu pai é falecido há muitos anos. O meu pai vem de uma família espanhola que chegou aqui no Brasil no começo do século XX e também se estabeleceu no interior de São Paulo, por isso eles se conheceram, casaram e vieram pra São Paulo pra trabalhar, que aqui tinha um mercado mais aquecido e por isso eu e a minha irmã nascemos aqui. Eu tive só uma irmã, ela era um ano e cinco meses mais velha do que eu, mas ela já é falecida.
P/1 – Que década que foi que seu pai chegou aqui no Brasil?
R – Em 60, eu acredito. Eles se casaram em 1958 e vieram na década de 60.
P/1 – Em que cidade do interior que eles se estabeleceram?
R – Eles se casaram em Garça, que é no oeste paulista, mas eles nasceram em Lins e em Garça.
P/1 – E você nasceu em São Paulo.
R – Eu nasci em São Paulo, já estavam aqui.
P/1 – Você já falou um pouco da sua irmã, sua irmã mais velha, que faleceu. E seus avós, Maristela, o que você lembra deles? Quais memórias vocês têm dos seus avós? Você chegou a conviver bastante?
R – Não convivemos muito. Os meus avós paternos têm uma história interessante, eles se separaram. E o meu avô veio morar em São Paulo e a minha avó permaneceu sozinha lá em Garça, então a gente ficou muitos anos fazendo visitas esporádicas, então o contato era mínimo. Já os meus avós maternos eu não conheci o meu avô, ele já era falecido quando eu nasci. E a minha avó...
Continuar leituraP/1 – Acho que seria legal você se apresentar primeiro, qual o seu nome, seu dia de nascimento e o local onde você nasceu.
R – Eu sou Maristela Bencici Feldman, nasci no dia 30 de abril de 1965. Nasci aqui mesmo na cidade de São Paulo, numa maternidade no Brás, eu não me lembro o nome.
P/1 – E qual o nome dos seus pais e a origem deles, Maristela?
R – A minha mãe é Edna Bencici Castro. Ela nasceu no interior de São Paulo e o meu pai Francisco Castro. A minha mãe ainda é viva, meu pai é falecido há muitos anos. O meu pai vem de uma família espanhola que chegou aqui no Brasil no começo do século XX e também se estabeleceu no interior de São Paulo, por isso eles se conheceram, casaram e vieram pra São Paulo pra trabalhar, que aqui tinha um mercado mais aquecido e por isso eu e a minha irmã nascemos aqui. Eu tive só uma irmã, ela era um ano e cinco meses mais velha do que eu, mas ela já é falecida.
P/1 – Que década que foi que seu pai chegou aqui no Brasil?
R – Em 60, eu acredito. Eles se casaram em 1958 e vieram na década de 60.
P/1 – Em que cidade do interior que eles se estabeleceram?
R – Eles se casaram em Garça, que é no oeste paulista, mas eles nasceram em Lins e em Garça.
P/1 – E você nasceu em São Paulo.
R – Eu nasci em São Paulo, já estavam aqui.
P/1 – Você já falou um pouco da sua irmã, sua irmã mais velha, que faleceu. E seus avós, Maristela, o que você lembra deles? Quais memórias vocês têm dos seus avós? Você chegou a conviver bastante?
R – Não convivemos muito. Os meus avós paternos têm uma história interessante, eles se separaram. E o meu avô veio morar em São Paulo e a minha avó permaneceu sozinha lá em Garça, então a gente ficou muitos anos fazendo visitas esporádicas, então o contato era mínimo. Já os meus avós maternos eu não conheci o meu avô, ele já era falecido quando eu nasci. E a minha avó veio pra São Paulo também, então com ela eu convivi bastante, toda família do lado materno eu convivi mais do que o paterno, porque só o meu pai veio pra São Paulo.
P/1 – Por que você classificou como interessante essa questão dos avós paternos terem se separado?
R – Porque eu acho que na época os casamentos não se desfaziam, eles prosseguiam, pelo menos é o entendimento que eu tenho, que os casamentos prosseguiam ainda que de maneira morna, esfriada, mas eles romperam realmente. Isso eu acho uma história muito curiosa (risos), então eu acho a gente já começa bem falando até do meu avô paterno. Ele era espanhol, como eu já mencionei, ele chegou aqui no Brasil com a família. Ele próprio me contou que ele passou uma viagem muito difícil pra chegar aqui, em condições bastante precárias, mas aportaram aqui no Brasil e se estabeleceram no interior de São Paulo. Lá ele se casou, não sei como conheceu minha avó, não sei os detalhes como eles se conheceram, as famílias não falavam muito disso, era meio distanciado o relacionamento, pra você ter acesso aos avós não era tão fácil assim, mesmo porque as famílias eram maiores. Então pra você ter um espaço pra sentar com o avô era meio disputado. Mas enfim, em que situação que meu avô relatou a história dele? Ele contou um pouquinho pra mim que, enfim, que ele teve esse problema da viagem da Espanha pra cá não ter sido muito confortável, foi precária e tal. Mas voltando à separação dos meus avós. Eu não participei disso, mas eu fiquei sabendo. Quando eu me entendi por gente os meus avós já eram separados, meu avô já morava aqui em São Paulo e a minha avó morava no interior. Ele veio pra São Paulo, segundo eu soube, então eu estou relatando, essa parte não foi ele que relatou, foi meu pai, então eu estou contando uma história aqui que eu não sei se ela é 100% desse jeito. Mas enfim, o meu avô também trabalhou na construção civil e ele veio em busca de trabalho aqui pra São Paulo. E a minha avó paterna era uma pessoa muito simples, muito religiosa e muito cumpridora dos preceitos religiosos que ela acreditava. Então ela vivia uma vida muito cristã, muito humilde, com o absolutamente necessário. O exemplo que meus pais davam de humildade da parte dela é que ela morava num bairro que quando eles compraram aquele lugar para viver, ela e meu avô, o bairro era central porque tinha a estação de trem que era o ponto central da cidade, movimento, partidas e chegas, então era bem central. Mas a estação foi deslocada, ela mudou pra outro lugar, então com isso o bairro perdeu aquela força econômica e passou a ser um bairro distante. E pra ela comprar as coisas que ela necessitava pro dia a dia dela ela teria que caminhar bastante ou tomar um transporte que não era muito fácil na época, tal. E se ela precisasse de uma pedra de sabão pra lavar as roupas ela ia e traçava todo aquele caminho e comprava uma única pedra de sabão. Ela não comprava duas pra deixar uma de reserva porque ela pensava: eu preciso de uma pedra de sabão, não duas, não três. Então ela ia, fazia todo aquele caminho e comprava só o absolutamente necessário. Essa história os meus pais contavam pra ilustrar o quão humilde, o quão simples ela era e como ela tinha aquilo como opção de vida. Dentro desse perfil que eu entendo que ela tinha, é fácil entender que o meu avô tinha uma determinada ambição e que ela não compartilhava essa ambição e ele veio em busca de melhores condições, de mais trabalho. Ele veio e eles se separaram. E foi só uma separação, como era muito comum, não havia divórcio e não foi feita uma separação oficial. Eu lembro que quando eu era bem pequena eu escutava nem separar, é largar, né? Ele largou a família, ela foi largada pelo marido. O termo era esse, né, meio pejorativo até, uma carga negativa com quase sinônimo de fracasso, era mais ou menos assim. Então ela ficou e ele veio pra cá. E ele conheceu uma outra pessoa aqui e ele fez aquele trabalho que ele quis fazer aqui, ele construiu o patrimônio que ele veio em busca de construir. E ele não teve novos filhos com essa pessoa que ele passou a viver aqui em São Paulo, mas esta pessoa já tinha filhos. Então ele se inseriu numa nova família, eles formaram uma nova família, apesar de não terem filhos em comum. E assim eles viveram por 27 anos, separados. E quando eu estive uma vez visitando a minha avó, ela não era alfabetizada. E estava tendo o projeto Mobral, de alfabetização de adultos e eu estava sendo alfabetizada na época, eu tinha uns seis, sete anos. E eu lembro de olhar o caderninho dela e as coisinhas que estavam escritas ali eram absolutamente ingênuas até. Ele chamava Frederico e ela escrevia: “Volta Frederico, volta”. E ele voltou. Ela escreveu lá que ele tinha saído como quem sai pra comprar alguma coisa. E o que ela escrevia lá para treinar a caligrafia parecia que ela tinha também entendido assim, ele foi ali e já volta, só que demorou um pouco. Mas ela continuou acreditando nisso. Os meus pais também relatavam que os filhos tinham uma certa mágoa dessa situação, dos pais serem separados e do meu avô ter começado uma nova família. Mas eles falavam que ela não permitia que se falasse isso, que foi uma escolha dele e que ele um dia iria voltar. E de fato me parece que da mesma forma que ele saiu ele voltou. Um dia ele tomou a decisão de voltar e ele voltou. Vinte e sete anos depois. Então isso pra mim é muito curioso. Vinte e sete anos depois ele voltou. E aí eles voltaram a viver juntos e ele passou por um processo que se nós levássemos isso hoje para os psicólogos renderia muita coisa porque ele teve que reexperimentar tudo o que ele abandonou lá atrás. Quando ele a deixou eles moravam numa casa que eles chamam de alvenaria, já de tijolos e tal, mas ainda era muito comum na cidade lá, casas de madeira. E eles tinham um grande terreno com árvores, árvores frutíferas e tal, duas casinhas de madeira e uma casa de alvenaria feita por ele. E eles moravam lá. E quando ele saiu da cidade pra vir pra São Paulo e eles se separaram ela ficou nessa casa, mas os filhos cresceram, saíram de casa e ela alugou essa casa e voltou pra casinha de madeira, a primeira que eles tinham, eu acho, vivido, que era muito pequenininha. Até para uma pessoa que não era alfabetizada, que vivia num círculo muito fechadinho ela fez uma decisão até que inteligente porque ela soube avaliar, eu não sei se a decisão foi dela, se teve participação dos meus tios, opinião se meu pai palpitou, não sei. Mas como eu vi na época pra falar, eu era criança e assisti isso, vi isso e achei uma decisão inteligente. Claro, deixou a casa maior, alugou, o que proporcionou um rendimento maior e foi viver com menos, ela não precisava de muita coisa mesmo. Então quando ele retornou, ele teve que voltar praquela casinha, bem pequenininha. E foi muito interessante a gente assistir tudo isso porque os dois tiveram que se readaptar. Ele teve que, de certa forma, eu vou usar regredir mas não é no sentido, ele teve que dar uns passos pra trás, retomar eu acho que é a melhor palavra, ele teve que retomar um estágio da vida que ele tinha optado por abandonar, de simplicidade, de poucas coisas, de viver só com o básico, uma vida básica. E ela teve que avançar porque ele mostrou pra ela que viver numa casa de alvenaria era mais confortável, era melhor, então aos poucos eles foram transformando aquela casinha em alvenaria, então eles retomaram o casamento de um ponto que talvez tivesse de ter sido o inicial do casamento, penso eu. E foi muito bacana porque logo que ele chegou, eles devem ter tido uma conversa que obviamente eu não participei e não sei, e a família do meu pai era muito discreta, ninguém perguntava nada, ninguém comentava nada, a gente só assistia, só observava. Mas ele chegou e logo ele começou a fazer, na primeira semana ele já comprou materiais pra fazer uma ampliação da casa, uma modernização daquela pequena casinha. E ele construiu os andaimes pra poder levantar as paredes e na primeira semana ele caiu dos andaimes e ficou imobilizado por mais de seis meses. Então eu fiquei imaginando isso, um casal pautado por uma religião católica, restritiva até no tocante à intimidades, vamos dizer assim, ela ter que dar banho nele depois de 27 anos. Um homem que optou pela independência, teve um outro casamento modernete porque ele não casou, foi morar junto, talvez uma amizade colorida com uma outra pessoa, não sei naquela época, ele viveu uma coisa muito mais liberal e voltar pra um contexto pautado por uma religião, básico, foi muito interessante. Eu acho essa história interessante. Aí ele ficou lá passando por toda essa experiência, os dois passaram por essa experiência, a casinha foi sendo ampliada. No fim ela continuou pequenininha, mas toda de parede de alvenaria, pintadinha, bem bonitinha, até com florzinha na janela, ficou bem bacana. E eles viveram até que ela falecesse.
P/1 – Ela faleceu primeiro?
R – Primeiro. Aí ele ficou sozinho.
P/1 – E quando eles voltaram eles tinham mais ou menos quantos anos, você sabe?
R – Eu não sei, eu poderia pesquisar, mas os casamentos aconteciam com pessoas mais jovens, eu calculo que uns 50 e poucos talvez. Não sei, estou arriscando aqui, não sei te dizer.
P/1 – E mesmo vocês morando em São Paulo, vocês iam visitá-los lá no interior, o que você lembra dessa?
R – O período que ela ficou sozinha a gente visitou muito pouco, isso era até uma coisa que pesava pro meu pai, ele ficou sete anos sem ver a mãe, então ele se culpava disso, né? Porque ela era uma mulher sozinha. Mas ele tinha dois irmãos na cidade, eles eram quatro filhos, três homens e uma mulher, então a minha tia ficou e um tio, eles tinham suas famílias, seus filhos, seus companheiros. Um outro tio foi viver numa outra cidade do interior e só meu pai estava em São Paulo. Então meu pai sentia uma saudade e se culpava por estar distanciado, não tinha telefone, tinha que escrever carta, ela não era alfabetizada, então o contato era bem mínimo mesmo. Ele se culpou bastante desse período, mas depois quando eu e minha irmã já estávamos maiores a gente começou a viajar mais e a visitar mais. E aí foi quando um pouco depois ele já voltou, esses 27 anos já tinham passado, que na verdade eu já estava sendo alfabetizada e depois crescendo, mas quando meu avô saiu de casa o meu pai tinha só 13 anos na época, eu acho. E aí ele já tinha crescido, já tinha casado e já tinha a filha com sete, oito anos.
P/1 – E quando você e sua irmã iam lá visitar os avós agora de novo juntos, o que você lembra dessa época? Quantos anos você tinha mais ou menos? O que vocês conversavam?
R – Eu lembro bem que ele ficou sete anos sem visitar a mãe porque chegaram os filhos pra ele, e quando chegam os filhos complica um pouco essa história de você sair, de visitar. Então eu lembro, acho que a minha irmã tinha sete anos. Se ela tinha sete anos eu tinha seis. Então foi a partir dos meus seis anos que eu fui fazer visitas pros meus avós. Mas eu não lembro quantos anos depois que a gente começou a fazer essas visitas que o meu avô voltou, aí eu teria que ter fuçado um pouco pra saber.
P/1 – E dos seus avós maternos, que memória você tem aqui em São Paulo?
R – O meu avô paterno eu não conheci. Mas também tem uma história interessante do lado materno porque a minha avó materna eu convivi bastante porque ela vivia aqui em São Paulo e ela também tem uma coisa que eu gosto de contar, ela teve 18 gravidezes. Dezoito. É. As mulheres tinham mais filhos, mas 18 é uma conta enorme (risos). Ela teve 18 gravidezes, mas ela teve 15 filhos, três filhos ela perdeu. Então ela poderia escrever uma história: “Meus 18 filhos”. Mas foram 15 e depois teve uma epidemia de tifo, eu acho que na época da Segunda Guerra Mundial, e ela perdeu três filhos, que já estavam crescidos, então foram 12 irmãos. Desses 12 irmãos, um é a minha mãe. Então eram seis mulheres e seis homens e eles gostavam de contar também isso, seis de olhos azuis e seis de olhos escuros. Olhos claros, não necessariamente azuis. São seis de olhos claros, três verdes e três azuis (risos). Seis olhos escuros, três mel e três castanhos mais escuros. Então assim, era uma família mais aberta, mais divertida, mais carinhosa, mais participativa. Quando eu era criança eu apreciava muito isso, hoje, adulta, eu já não penso bem assim, eu penso que a família do meu pai talvez fosse mais reservada, mais respeitosa, talvez, menos invasiva. Na época eu achava mais alegre, hoje eu já respeito mais as características diferenciadas de uma família e de outra família. Mas a casa da minha avó materna aqui em São Paulo era uma casa sempre cheia, muito divertida, com muitos primos. Imagina, da parte da minha mãe eu tive uns 40 primos. Várias faixas etárias, então é gostoso, eu sou da faixa do meio, tem alguns bem mais velhos, alguns bem mais novos. Eu tenho primo que tinha idade dos meus tios porque minha avó continuou tendo filho e os filhos mais velhos já estavam tendo filhos. Então é uma coisa que não é atípica, eu sei que tem outras famílias com essas características. A minha avó veio da Itália, então as famílias italianas são assim, são grandes, são alegres. E foi gostoso ter essa convivência. Eu gosto muito de família, então eu gostaria de ter convivido mais com a família o meu pai, de ter feito mais perguntas, de ter conhecido melhor as histórias. O meu pai era um pouco mais curioso, mas a minha mãe não tem curiosidade nenhuma, se eu perguntar pra ela, ela não sabe falar da família dela, eu tenho que perguntar pros meus tios, ela sabe pouco.
P/1 – Vocês moravam próximos aqui em São Paulo?
R – Não.
P/1 – Não? Que bairros que eram, você lembra?
R – Os meus tios vieram pra Mooca e os meus pais vieram para um bairro da zona norte que chama Vila Maria. Por que meu pai optou por uma região diferente dos irmãos da minha mãe? Porque meu pai veio a trabalho, ele foi chamado por um colega que trabalhava com ele lá no interior, o colega veio primeiro pra São Paulo, surgiu uma outra vaga e ele chamou meu pai. Então meu pai, por comodidade eu acredito, já veio com tudo: “Então arruma uma casa aí”, o colega arrumou uma casa no mesmo bairro e ele acabou ficando, era próximo mas não tão próximos. Os meus primos moravam muito mais próximos, bem próximos uns dos outros, e a gente morava nesse outro bairro, que não é distante, mas também não éramos vizinhos.
P/1 – E o seu pai fazia o quê? E sua mãe?
R – A minha mãe sempre foi do lar. O meu pai era gráfico e a família da minha mãe também era, os irmãos eram gráficos. Por isso também eles se conheceram, porque o meu pai era o amigo do irmão, então a minha mãe conheceu através dos irmãos e eles se casaram. Então todo mundo era gráfico. Só que meu pai tomou um rumo diferente dos meus tios, dentro desse tipo de trabalho. Os meus tios vieram pra São Paulo e montaram uma gráfica própria, o meu pai veio acompanhando esse colega e foi trabalhar num jornal. Então ele diferenciou um pouco. Depois quando, mais pra frente o meu pai já não arrumava mais emprego na faixa dos 40 e pouco, ele perdeu o emprego dele e não arrumava mais, ele foi trabalhar com meus tios na gráfica própria da família da minha mãe.
P/1 – E você dessa época, você era criança, você ia lá visitar esse local de trabalho do seu pai?
R – Sim! Nossa, é uma delícia! Gráfica é uma delícia. O barulho das máquinas é muito legal e o trabalho, o meu pai até falava a especialidade dele: “Eu sou gráfico minervista”. Minerva era um modelo de máquina. O fabricante chamava Minerva e era uma máquina de operação totalmente manual, ele tinha que fazer tudo, então ele punha e tirava o papel, então tinha que ter uma coordenação motora bem legal. E eu adorava assistir isso sim, era muito interessante. Mas na gráfica do meu tio já tinha outros equipamentos mais modernos, com um braço automatizado que já fazia esse serviço. O serviço que o meu pai fazia com essa máquina Minerva era um serviço hoje considerado vintage, porque ele fazia convites de casamento que requeriam algo mais artesanal, mais caprichado, mais customizado. Essas outras máquinas que são mais automatizadas, elas são mais pra essa linha de produção sequencial, grandes volumes, papéis, entra e sai, entra e sai, entra e sai. E ele trabalhava essa coisa mais artesanal, por isso ele falava com orgulho: “Eu sou um gráfico minervista”. Porque tinha essa especialidade. Era um tanto antiquado porque os equipamentos estavam sendo modernizados, mas ele ainda tinha esse apego e se orgulhava disso. E a gráfica era muito interessante, pra criança é um barato.
P/1 – Parque de diversão.
R – A gente até trabalhava, né? Porque as notas fiscais tinham várias vias, cada via de uma cor. A primeira branca, que é a do consumidor e depois tinha a segunda, terceira, cores diferentes. Então eles imprimiam todas as brancas, todas as cor-de-rosa, todas as verdes, todas as amarelas. E às vezes a gente ia lá trabalhar pra intercalar essas folhas, isso é interessante também. A branca, verde, rosa e azul. A branca, verde, a rosa e azul e ajeita ali do lado. A branca, a verde, a rosa e azul e põe ali do lado. Era muito legal (risos). Então pra criança esse barulhinho das gráficas, o papel entrando e saindo, às vezes vinha aquele braço automatizado assim, pegando o papel também. Um pouco assustador, mas o pai estava ali, então estava tudo seguro. Era muito interessante. Então gostava sim. E visitei também as gráficas da Folha de São Paulo porque meu pai veio trabalhar no jornal, o jornal que era A Última Hora, não lembro bem o tipo de material que era feito nesse jornal. Mas esse jornal foi comprado pela Folha de São Paulo. Aí eu já estava maiorzinha e ele me levou na Folha de São Paulo. Aí era assim, multiplicado por mil aquela gráfica da família da minha mãe, pequenininha, e depois aquele parque gráfico da Folha de São Paulo na Barão de Limeira. Era muito interessante também. Ele não era editor, ele não era um intelectual, ele era um operacional, mas é bacana.
P/1 – E você tinha mais ou menos uns 15 anos?
R – Não, não, quando eu fui eu também era pequena, eu tinha uns sete, oito anos na Folha.
P/1 – E essa empresa existe ainda, da tua família? Esse ramo de negócios, a sua família ainda, alguns tios, talvez.
R – Sim, eu tenho primos que herdaram essa profissão dos pais e que trabalham com isso e tenho um tio que ainda tem uma gráfica com o filho dele. Mas o serviço com a informática reduziu muito pra esse tipo de trabalho que é artesanal, ainda é artesanal apesar de ter passado por toda essa automação que eu mencionei aqui. Mas eu tenho sim um tio que tem uma gráfica, então ainda está lá, persiste ainda.
P/2 – Maristela, você falou bastante sobre essa coisa sua, criança na gráfica, o trabalho do seu pai. Mas e a Maristela criança? Do que a Maristela brincava, do que a Maristela gostava? O bairro, os amiguinhos, pode falar um pouco disso pra gente?
R – Tá, posso, claro. Eu tinha uma irmã de idade muito próxima, então eu brincava com minha irmã. E meus pais eram um pouco rígidos. Rígidos no sentido das relações com as outras famílias. Eles não gostavam muito que a gente fosse brincar na casa dos outros, eles achavam que poderia estar incomodando, então eu e a minha irmã, a gente brincava muito bem, a gente brincava muito dentro de casa. A interação com os vizinhos é que os vizinhos eram mais próximos do que são hoje porque não eram apartamentos, eram casas, então você olhava do outro lado do muro e tinha um vizinho que tinha criança e a gente brincava também. Mas a gente tinha muito horário, a minha mãe permitia que brincasse um pouquinho e não dentro da casa das pessoas, no quintal. Ela gostava sempre de monitorar um pouco se estava tudo, porque acho que ela sabia, né, criança dentro de casa pode fazer grandes estragos. Então ela não gostava muito que fosse dentro da casa das pessoas, mas a gente brincava com os vizinhos. Então como eu mencionei, era um bairro da zona norte chamado Vila Maria, que é um bairro tradicionalmente de portugueses. Então todos os nossos vizinhos eram portugueses, menos nós. Eles eram todos, eles se comunicavam muito bem, eles tinham famílias em Portugal, às vezes nas mesmas cidades e tal e a gente não tinha, então a gente meio não participava muito dessas coisas. Mas eu aprendi a apreciar a cultura portuguesa por meio dos colegas. Porque pode parecer incrível, sou brasileira 100%, meus pais brasileiros, mas a gente não tem portugueses na família.
P/1 – E o que você lembra dessa tua casa da infância?
R – Essa primeira casa? Que ela também era minúscula. Olha só.
P/1 – Mas tinha quintal.
R – Quintal era enorme. Muito bom, era muito bom de brincar, então era melhor brincar do que ficar dentro de casa (risos). Tem uma vantagem a casa muito pequenininha, como eram duas meninas a minha mãe ensinou o serviço de casa, então limpar a casa era rapidinho porque era bem pequenininha (risos). Então isso é muito legal que rapidamente você dá um jeito. Mas era desconfortável viver numa casa muito pequena. Eu e a minha irmã já tínhamos mais necessidades do que meus pais, a gente já queria adquirir mais coisas, estava começando essa história de consumo. Então a gente achava pequeno. O meu pai que vinha dessa mãe que vivia com o básico achava absolutamente adequado. A minha mãe gostaria de ter um pouco mais de conforto e eu e a minha irmã falava: “Como pode viver num lugar tão pequeno, eu preciso de espaço!”, a minha irmã principalmente: “Eu quero meu espaço, eu quero meu espelho” (risos). E tinha que dividir tudo. Mas a parte mais engraçada de viver num lugar pequeno é que o meu pai achava normal, achava que era o básico, você não precisa mais do que isso. Mas como eu e minha irmã fomos crescendo, e duas meninas, ai o espaço dele foi diminuindo num lugar que já era pequeno. Então eu lembro do meu pai pedindo: “Eu posso dormir? Eu posso ir no banheiro, alguém vai tomar banho agora? Eu posso tomar banho? Eu posso me barbear?”. Então tudo ele tinha que pedir licença, ele tinha três mulheres na casa. Ele era o último. Então era muito engraçado. E minha mãe não gostava dos travesseiros na cama. Ela fazia a cama esticadinha sem travesseiros, então quando meu pai ia dormir ele tinha que pedir permissão: “Posso dormir? Alguém pode pegar meu travesseiro, por favor?”, porque ele não queria abrir o armário que lá tinha as nossas roupas, de três mulheres, e o travesseiro ficava guardado lá, então ele ficava inibido até de abrir o armário. A gente abria o armário e trazia o travesseiro pra ele: “Agora o senhor pode dormir, papai” (risos). Muito engraçado. Ele ficou tão reduzido, coitado! Homem sofre com muita mulher em volta, né? Então apesar de todo esse desconforto, toda essa falta de, esse falta tudo, essa falta de espaço, falta de luxo, não tinha nenhum, ele ainda conseguiu reduzir, ele teve que reduzir. Isso é mérito dele. Não reclamava.
P/1 – E você morou nessa casa até quantos anos?
R – Até que eu mesma comecei a ganhar meu dinheiro, achei que o espaço estava muito pequeno e eu tratei da mudança.
P/1 – Tem essa questão da sua infância e também a escola, claro. A escola era perto da sua casa, o que você lembra da sua primeira escola, dessa fase da alfabetização como até você começou a falar.
R – A minha alfabetização foi por, eu posso até dizer, por osmose. Porque como a minha irmã era mais velha e naquela época não era comum fazer pré-escola, algumas famílias matriculavam as crianças na pré-escola. Os meus pais tentaram, tinha uma pré-escola ali perto e eu ainda lembro desse dia que meu pai sugeriu que minha mãe levasse, fosse fazer uma visita nessa escola e ver a pré-escola. A minha mãe era uma pessoa, e ainda é uma pessoa muito simples, então ela pensa: “Eu preciso dessa vaga da pré-escola? Eu não trabalho, estou em casa, eu posso cuidar das minhas filhas. Tem mães que trabalham. Meu Deus, e vou lá pedir uma vaga nessa escola?”. Mas meu pai recomendou, vê lá a pré-escola, e minha mãe foi. Que não era bem uma pré-escola, era um programa da prefeitura, não sei como chama, ou se era do governo do estado, mas era o que eles chamavam de parque, parquinho, uma herança dos kindergartens. Mas enfim, era uma forma de pré-escola. E aí minha mãe foi visitar a pré-escola, visitamos a pré-escola e quando a gente voltou, e no final do dia ela teve que dar o relatório para o meu pai: “Gostaram da pré-escola?” “Sim, elas gostaram”. Mas eu e a minha irmã nos recusamos a ir e não quiseram que a minha mãe matriculasse. A minha mãe acho também que não queria muito por essa questão que eu expliquei: “Ah, eu vou ocupar duas vagas de uma mãe que pode necessitar pra ela ir ao trabalho”. Mas eu e a minha irmã também tivemos voz, o nosso voto foi que nós não gostamos do uniforme (risos). Foi muito engraçado. E não era exatamente um uniforme, era um shortinho vermelho, uma camiseta branca e eles levavam as malinhas, não tinha tanto mala, era um saquinho de tecido vermelho. A gente: “Saquinho? Saquinho não dá”. Nós éramos pequenas e a gente achou que saquinho não dava, então a gente falou que não queria ir pra escola. Isso eu acho que é uma das minhas memórias mais antigas porque a gente era bem pequenininha quando aconteceu isso, eu lembro direitinho disso, de eu ter me recusado a ir junto com a minha irmã, foi um complô que nós fizemos, que aquele saquinho não dava, aquilo era demais, não dá pra aceitar isso. Então a gente não foi pra pré-escola. Aí ficamos em casa com a minha mãe até que a minha irmã foi para o antigo primeiro ano, com sete anos, e eu tinha seis. E tudo o que minha irmã aprendeu eu aprendi, então quando eu entrei no primeiro ano eu ja estava alfabetizada através da minha irmã. Então foi praticamente por osmose. E isso, eu uso essa minha experiência, como prova de que uma criança com seis anos já está preparada pra realmente ser alfabetizada, até antes, não precisava esperar a criança completar sete anos. Então essa decisão, eu não tenho conhecimento nenhum dessa área, mas a minha experiência é prova de que realmente com seis anos a criança está preparada e pode ser alfabetizada. Hoje já pode ser alfabetizada até antes disso, mas eles acrescentaram um ano da pré-escola, hoje faz parte e eu não fiz esse um ano, mas eu estava preparada, aprendi em casa.
P/1 – Indo um pouquinho lá pra frente, mas depois a gente volta aí, você acha que esse seu primeiro contato com, digamos, com as letras, com as palavras, influenciou na sua escolha do curso superior depois de uns anos?
R – Acho que não. Eu nunca fiz essa relação, só se eu começar a pensar agora, a partir da sua pergunta. Acho que não. Como a casa era muito modesta a minha irmã fazia as lições não era na mesa, era sobra uma cômoda, um gaveteiro que tinha. A minha mãe colocava uma cadeira de um lado e uma cadeira do outro lado porque a frente eram as gavetas, que eventualmente teriam de ser abertas. Então minha irmã sentava de um lado com as pernas de lado assim porque não tinha como por as pernas pra baixo e eu sentava do outro lado. E a minha irmã fazia as lições dela lá, aí ela falava: “A”. E a minha irmã tinha os cadernos pra fazer e eu não tinha, porque não tinha tanta coisa, então muitas vezes eu não tinha o papel, às vezes eu tinha o papel e minha mãe dava um só. Aí eu escrevia um “a”, eu virava e escrevia um “a” na parede. “B”, eu escrevia “b” aqui e um “b” na parede. A parede ficou toda escrita, então o meu lado estava todo escrito. A minha irmã escrevia nos cadernos e eu escrevia numa folhinha ou na própria madeira da parede. E minha mãe ficou furiosa com essa parede. A parede ficou toda decorada, suja mesmo, com as letrinhas lá. Ficou por um tempão porque também pintar a casa era uma coisa que não era tão fácil, hoje custa caro.
P/1 – E você não tem foto da parede.
R – Não tenho foto da parede, não tenho (risos). Mas eu lembro muito bem, levei altas broncas por causa da parede. Escrevia aqui, escrevia ali. Meu pai ficava orgulhoso, né? “Olha, já sabe escrever”. Porque lá em casa também tinha isso, a minha irmã era a bonita e eu era a inteligente. Eles foram pais privilegiados, né? Que filhas maravilhosas (risos), a linda e a inteligente. Meu pai me julgava inteligente por causa desse aprendizado meio precoce. Sujou a parede, mas provou a inteligência, então tá bom. Foi assim. Mas não prova mais nada, só prova que uma criança de seis anos está 100% preparada pra ser alfabetizada.
P/1 – Falando um pouco mais dessa fase da escola. Além de estudar você fazia alguma outra coisa, brincava com os amigos, saía muito de casa pra passear? O que você lembra? Você ia passear onde com seus pais?
R – Passeávamos muito pouco. Primeiro que São Paulo não era a São Paulo de hoje, não tinha tantos passeios. Segundo que não tinha tantos carros, tantas linhas de ônibus, não tinha nem metrô. Então assim, o deslocamento era muito mais complicado do que é hoje, apesar de hoje a gente ter trânsito, ter correria, não sei o quê, mas os bairros pareciam mais distantes porque a pessoa tinha que tomar uma linha de ônibus. As informações sobre os ônibus não era tão bem divulgada, a pessoa tinha que ir descobrindo: “Ah, tem um ônibus que passa, que vai levar até lá”. E a minha mãe não era uma pessoa que explorasse muito isso. O meu pai explorava um pouco mais, mas meu pai era de uma geração que não era esse pai participativo que a gente tem hoje. A mãe deveria pensar nessas programações e consultar o pai: “Podemos levar as crianças neste final de semana para um passeio?" Isso não funcionava muito. Primeiro porque meus pais eram humildes, eles não tinham tanto dinheiro reservado pra diversão, essa diversão que custa dinheiro. A diversão que não custa dinheiro a gente tinha bastante, não tenho o que reclamar da minha vida, foi uma infância bem agradável, gostei dos meus vizinhos, bastante crianças ao redor, muitos primos. Então assim, eu brinquei muito, brinquei muito, disso não posso me queixar. Cinema eu lembro quando foi a primeira vez que eu fui ao cinema, não tinha essas redes, tinha o Cine Universo na Avenida Celso Garcia, que também é um bairro lá, é o Belém eu acho, na zona leste. E na Vila Maria tinha tido um cinema. A construção do cinema ainda estava lá, mas o cinema não funcionava mais. Meus pais tinham ido lá, eles tinham frequentado aquele cinema, mas eu e a minha irmã, quando nós pudemos ir ao cinema já não tinha mais o cinema em funcionamento. Aí ficou um tempo lá e depois foi inaugurada uma grande loja, um grande magazine, dessas lojas de departamentos que vendem bastante coisa. Então os mais antigos lamentavam: “Ah, aqui era o cinema”. E os cinemas ficaram mais pras regiões centrais. Então eu lembro que meus pais levaram nesse Cine Universo na Avenida Celso Garcia, que essa parte a gente pode cortar porque não é um cinema bonito, não é nada disso (risos). Mas enfim, essa diversão cultural, mais elaborada, ela era mais complicada pros pais organizarem. Meu pai não tinha carro, então tinha que descobrir as linhas de ônibus, isso tudo. Mas não tenho queixa nenhuma. Eu brinquei muito, a minha irmã era uma parceira de brincadeiras e a gente se entendia muito bem. Tínhamos um quintal bem grande que favorecia vários tipos de brincadeiras. Tínhamos uma parte com jardim, uma parte só com terra, uma parte com cimento. Então podia brincar de tudo, de tudo. Tinha até crianças da rua que queriam brincar na nossa casa porque a gente tinha espaço. Porque tem essas modas, agora está todo mundo brincando de empinar pipa, agora está todo mundo brincando de bolinha de gude. E a gente tinha um platô assim e terra que dava pra fazer aqueles boxes da bolinha de gude, então os meninos adoravam ir lá em casa. E a casa não tinha grade na frente e terrenão ficava ali. Então os meninos adoravam. Minha mãe ficava um pouco brava: “Saiam daí, essa molecada aqui!”. Tinha um pouco isso. Ainda na linha de que minha mãe era uma pessoa preocupada se os filhos dela estão ou não incomodando as outras pessoas, a minha mãe controlava um pouco, ela gostava mais que a gente brincasse ali próximo dela. E a minha mãe sempre fala isso, se fosse ela aqui dando essa entrevista ela iria falar que ela ia comprar o pão de manhã e ela já via criança brincando na rua, a dela, não, né? As dela faziam as atividades em casa, iam pra escola e só brincavam depois da lição de casa, imagina essas crianças que brigam o dia inteiro na rua! A minha mãe até se orgulhava que ela era um pouco mais rígida com esses hábitos e costumes. E ela falava: “Eu sou uma mãe que não sou querida pelos coleguinhas aqui porque eles vêm chamar minhas filhas pra brincar e a resposta é não se for não e sim só se eles vierem naquele horário que a gente já estabeleceu, que é depois de todas essas atividades cumpridas”. E brinca um pouquinho e volta. Então a minha mãe era brava, ela tinha fama de brava. Mas minha mãe não é brava, mas parece, pras crianças ela tinha fama de brava porque ela não liberava muito. E uma outra coisa que é importante mencionar das brincadeiras é que os vizinhos não tinham muros altos, os muros eram baixos. Então a nossa casa era quase a casa dos outros também. Então tinha vizinho que tinha cachorro, aí cachorro já ficava aqui na nossa casa, então a gente não tinha cachorro, mas brincava com cachorro. Assim, eu acho que eu tive de tudo, só não tive essas coisas que o dinheiro comprava, que na época eram menos acessíveis, só os filhos de famílias mais ricas que tinham, isso a gente não tinha, mas eu acho que não fazia falta. Acho que fui bem.
P/1 – E os anos foram passando, a Maristela foi crescendo. O que você lembra dessa transição da infância pro início da adolescência, juventude? Vocês continuaram morando no mesmo bairro, na mesma casa?
R – É, um pouco a gente morou por ali ainda porque eu trabalhava ali no mesmo bairro, então a gente continuou, mesmo eu tendo meu próprio rendimento a gente ficou por ali por causa do meu trabalho. Mas, respondendo a sua pergunta da transição foi um pouco abrupta. Porque eu comecei a trabalhar muito cedo, então eu já tive que abandonar aquela rotina que eu tive durante anos, uma zona de conforto pra já cair numa realidade muito mais acelerada e de muito mais responsabilidade, muito mais pesada para uma, eu me considero, uma criança naquela época. Eu era muito criança, eu tinha... eu sempre fui certinha, responsável, mas eu ainda não tinha maturidade suficiente pra assumir tanta responsabilidade. Mas as famílias não pensavam nisso: “Ah, será que”. Hoje a gente considera tudo, discute tudo, mas na época era natural você ir avançando. Foi um pouco abrupto, eu senti dessa forma, mas eu encarei, fui bem.
P/1 – Com quantos anos você começou a trabalhar?
R – Eu comecei a trabalhar com 14 anos.
P/1 – Aonde?
R – Eu fui trabalhar numa empresa familiar também, lá naquele bairro mesmo. Eu fui através de uma agência de empregos. Eu não estava muito procurando, eu queria protelar um pouco, mas a minha irmã já trabalhava. Minha mãe: “Agora você já terminou, tem que trabalhar, tem que ajudar aqui no orçamento familiar”, porque as coisas estavam ficando mais difíceis, o rendimento do meu pai, acho que ele já tinha saído do jornal e já estava trabalhando na gráfica da família e era um pouco diferente, estava ficando mais difícil, meu pai estava ficando mais velho, estava ficando cansado também e precisava ajudar no orçamento, resumindo. A minha irmã já tinha saído pra trabalhar e aí era a minha vez. Eu não queria muito (risos), mas acabou aparecendo, acabou dando certo e eu acabei gostando de trabalhar. Gostei muito do lugar que eu trabalhei, gostei das pessoas, gostei do tipo de trabalho, do serviço. Então acabou, foi um pouco abrupto, mas eu me adaptei bem. Foi pior pra mim começar a estudar à noite do que encarar o trabalho. O trabalho foi legal, agora estudar à noite, a diferença da escola que eu estudava com a escola, eu fui pra escola pública. Apesar dos meus pais serem muito humildes, eu não estudava numa escola pública, eu estudava numa boa escola. Eu era bolsista. Então a gente estudava com pessoas de outro poder aquisitivo. Mas também foi bem, não teve problema. Estudei numa escola católica e essas escolas têm um programa de inserção, não é o dinheiro que te deixa de fora, você tem que se adaptar ao projeto, tal. E isso tudo funcionou direitinho, a minha família estava de acordo ali com as coisas, cumprimos bem o nosso papel, fizemos, cursamos tudo direitinho. Então quando eu tive que começar a trabalhar, a grande perda foi ter de deixar de estudar naquela escola. E isso pra mim pesou bastante porque fui estudar à noite. Eu estudava só com meninas e eu fui estudar com meninos, era totalmente novo pra mim, eu não estava acostumada com a presença masculina na sala de aula, o desprendimento, o jeito que eles se dirigiam aos professores era tudo muito novo pra mim. Eu me lembro que no primeiro ano que era chamado primeiro colegial eu anotava, em vez de anotar o que a professora estava falando eu anotava as intervenções dos meninos. Porque eu queria contar pra minha irmã, contar em casa o que eles falavam: “Olha, ele falou isto para a professora”. Eu ficava anotando essas coisas em vez de anota ra matéria. Eu ficava assim o tempo inteiro, o cara falava e eu... o tempo inteiro. Porque era totalmente novo pra mim, totalmente novo, outro comportamento, outra postura, outra conduta dos professores, outro funcionamento da escola, bem diferente do que eu estava acostumada. Então isso foi mais chocante do que o trabalho em si. O trabalho estava mais alinhado, era trabalho mas estava mais alinhado com o modelo que eu tinha na minha família, que eu tinha na escola. A escola pública foi um pouco mais chocante (risos).
P/1 – Aí você tinha uns 14, 15 anos, mais ou menos.
R – É, 14, fiz 15.
P/1 – Mas o papel dessa primeira escola, que foi uma escola católica, religiosa, foi importante pra você durante esse período da sua vida?
R – Sim, super.
P/1 – Foi uma consequência a questão familiar, pelo que você falou dos pais, da sua mãe, dos seus avós. Depois teve essa ruptura.
R – Sim, foi uma consequência. Os meus pais não buscaram o ensino religioso porque eles vinham de uma tradição católica. O meu pai buscou a melhor católica que ele poderia oferecer ali das redondezas, então, foi uma questão geográfica e uma questão da qualidade de ensino, meu pai estava definitivamente preocupado com a qualidade do ensino. O meu pai já não achou que as escolas públicas da região poderiam oferecer um ensino que ele gostaria de oferecer pras filhas. Como minha irmã é mais velha ela passou por isso, ela foi matriculada numa escola pública e no último minuto meu pai falou: “Não, não vai”. Ela chegou a ir no primeiro dia e não foi mais e depois ele arrumou essa outra escola que para minha mãe é uma mulher mais humilde, apesar dele ter sido educado com uma mãe super humilde, ele foi humilde também, mas comparado com a minha mãe, ela era mais humilde do que ele. Então minha mãe achava: “Se não temos dinheiro pra pagar uma escola, vamos como todo mundo faz, buscar o ensino público”. O meu pai já pensava: “Vamos ver se tem uma alternativa”. E o meu pai foi atrás e descobriu que era possível conseguir uma bolsa. E aí ele teve a resposta da bolsa quando minha irmã já estava matriculada na outra escola, mas foi tudo muito rápido, foi questão de um dia e ela quase foi, mas não foi. E aí ela começou nessa escola e eu fui pra essa escola também, foi uma consequência. Então assim, não, ele não buscou o ensino religioso, ele buscou o ensino de qualidade. E eu achei perfeitamente normal, acho que ele fez bem, então não teve grandes preocupações com isso.
P/1 – E nessa época, Maristela, eu imagino que mudaram as relações também, né? Você foi para uma escola pública, você passou a ter mais contato com os meninos, você já trabalhava. Como é que foi essa mudança de relações? Teve isso? Quer dizer, você teve outros amigos, você começou a ter uma variabilidade maior de contato com...
R – Consideravalmente. E não tínhamos meninos em casa, éramos eu e minha irmã, então tinha um ambiente feminino. Eu tinha os meus primos, tudo, mas era meio separado. Tinha muitas primas também, a gente convivia mas não tanto, conviver várias horas em um ambiente fechado, longe do olhar dos pais é diferente, claro que é diferente (risos). O meu primo que eu tinha mais contato tinha os pais ali olhando e sempre controlando, está meio pautado ali. Agora foi exatamente isso que me surpreendeu na sala de aula, todo mundo livre, falando o que quer da professora (risos), os meninos fazendo piadinha, fazendo gracinha, isso era impensável pra mim. Não que a gente não brincasse, menina também brinca, mas essa ousadia, a ousaria era impressionante. O humor é diferente, né? Os meninos já faziam brincadeiras com conotação sexual, a gente fazia isso também, as colegas lá na escola que só tinha menina fazia isso também? Fazia, mas entre nós, não com a professora. Não com as madres superiores, claro que não. E ali eles faziam com a maior tranquilidade, nenhuma cerimônia, falavam as coisas. Por isso que eu anotava: “Não, eu vou esquecer disso, preciso anotar isso aqui e contar em casa porque isso é muito impressionante”. Para mim era tudo engraçado, às vezes um pouco demais, mas era muito engraçado sim. Acho que de tudo, se eu fosse chacoalhar, era muito engraçado. Tem história que eu lembro até hoje!
P/1 – Dessa fase da vida, o que te marcou mais? Que história você tem mais, simbólica, dessa fase que você lembra.
R – Eu acho que eu tenho, essa ruptura é isso, eu estranhei porque era escola pública. As instalações eram mais precárias, o tratamento, cuidado, com o aluno era diferente. Os próprios alunos tinham uma consideração diferente para com a escola, para com os professores. Tudo isso foi meio chocante, você tem que meio se situar. Mas teve esse lado engraçado, de você experimentar novas relações, novas formas de se relacionar, então isso foi muito legal, acho que estava faltando. As minhas amigas já falavam de namorado, não sei o quê e eu não tinha nem menino na sala, como que eu ia namorar alguém, gostar de alguém se na sala só tinha menina? Não dava, né? Então assim, melhorou nesse sentido. Ôpa, agora estou no ambiente. Então isso teve, mas o que mais realmente me marcou foram essas histórias, as piadinhas, as coisas que eu não estava acostumada. Era da época do avental, então tinha que ir pra escola com avental. E eu vinha de uma escola que eu usava uniforme, e o uniforme era cobrado, você tem que vir uniformizada da cabeça aos pés. Tinha anotações na agendinha, se você chegasse, tinha carimbos na época nessa escola religiosa que eu falei antes. A nossa confirmação de presença era carteirinha que você levava, era tipo uma agendinha, pequenininha assim, com a foto, nome da escola, o seu curso ali e tal. E todo o seu histórico vinha, a sua presença vinha ali, tinha uma linha que carimbava, ‘presente’ ‘presente’. Se você falou,’ausente’. Você levava dois carimbos, o dia que você foi. ‘presente’, ou ‘ausente’ que você não tinha vindo ontem. E ali tinha um campo, parecia uma carteira profissional, essa carteirinha eu tenho, acho. Tinha um campo para as anotações que hoje os filhos mandam anotação pro pai, o seu filho fez isso hoje. Nessa época tinha também. Então tinha três carimbos de advertência: tarefa não cumprida, uniforma incompleto e indisciplina. E era uma mácula no seu currículo você levar um daqueles carimbos, ninguém queria levar. Como eu também estudava com as meninas, ninguém queria levar. O meu filho hoje conta, ele quer ser o campeão das advertências. Quem leva mais advertência, ele quer gabaritar, levar anotação todo dia. Mudou completamente, isso pra nós era uma vergonha, imagina. O pai então se visse: “O que é isso? Você quer me matar de vergonha?”. Até o uniforme era cobrado diariamente. Então quando eu fui estudar à noite era o avental, o avental as pessoas dobravam ou punham ali com o caderno e só vestia na hora. E teve um dia que os meninos saíram todos. Logo no começo, nas primeiras aulas. Eu ainda estava impressionada anotando as coisas. Eles saíram todos, eu falei: “Hum, lá vem. O que será que eles vão fazer?”, fique até meio sem jeito de perguntar. Eu sou super falante e tal, mas lá eu tinha um pouco medo, já vai começar a aula, vai ficar conversando, essa baderna. Eu achava tudo muito baderna. Mas enfim, estava lá na minha carteira. E os meninos saíram. A professora entrou e falou: “Vocês não vão entrar?”, já na porta. “Eu vou fechar a porta” “Ah professora, já estamos entrando”, só escutei isso dos meninos falando. Aí eles deram uma desculpa lá pra ela, se justificaram que iam entrar depois. Ela entrou, pôs o material dela na mesa. Daqui a pouco eles batem na porta, ela: “Podem entrar, menino!”, eles entraram tudo com o avental vestido ao contrário, abotoado atrás, um abotoou do outro e entraram de costas (risos), andando de costas. Foi muito engraçado. Ela ficou meio chocada, não sabia o que fazer, aí ela falou: ”Agora vocês vão ter que sentar e assistir aula assim” (risos). Ela se vingou e foi aquela bagunça, né? Eu lembro a fila, eles entrando tudo de costas (risos). Nossa, cada ideia. Perdeu metade da aula até organizar toda essa bagunça. Então eles tinham essa criatividade, tinha esse lado descontraído. Às vezes um pouco irreverente demais, mas é legal porque eu vinha de uma coisa muito formatada, escola de meninas com uniforme e de repente liberou. Então eu estranhei um pouco, mas acabei gostando dessa descontração. A qualidade do ensino, definitivamente não. Acho que tudo o que eu aprendi na primeira escola valeu muito mais. Eu acho que todo conhecimento, a base, veio dessa escola. Esses três anos que eu passei na outra escola acho que foi mais pra cumprir tabela porque eu não me lembro de conteúdo que eu tenha adquirido nessa época, não me lembro. Posso estar sendo injusta, mas não me lembro.
P/1 – Tá. E talvez tenha sido mais ou menos nessa época, Maristela, as primeiras paqueras, primeiro namorado, não sei se você quer falar sobre isso.
R – Eu fui muito devagar nisso daí. A minha irmã já foi muito avançada, afinal ela era bonita, né? Se ela era a bonita ela tinha que arrumar o namorado primeiro. E isso ela fez muito bem (risos). A minha irmã namorou pra caramba, ela teve vários tipos de namorados e tal. Eu demorei muito, eu fui bem devagar nesse campo. Eu gostei de primeiro ir conhecendo, convivendo, fazendo amizades. Namoro mesmo demorou, eu conto nos dedos os namorados que eu tive. Paquerinha sim, mas eu fui bem mais devagar que a minha irmã, resumindo. Se você quiser saber isso aí a gente ia ter que chamar minha irmã (risos). Aliás, eu tenho uma história da minha irmã. Nós fomos uma vez viajar pro Paraná. Uma das irmãs da minha mãe se casou com um tio que foi para o Paraná. Mesmo porque essas famílias estrangeiras vieram muito pra São Paulo na área de Registro, onde foram distribuídas algumas para o interior de São Paulo e outras para o Paraná. Então tinha uma parte da família da minha mãe que foi para o Paraná, que a família da minha mãe é de austríacos, italianos e alguns poloneses e esse pessoal foi mais para o Paraná. A minha avó, especificamente veio para o interior de São Paulo, mas tinha uma parte que estava no Paraná. Então essa minha tia casou-se com um homem que foi para o Paraná e lá tinha alguns outros parentes mais distantes. Então a gente fez algumas visitas para o Paraná. E numa dessas viagens, era legal, era muito legal porque lá tinha esse ambiente de fazenda que eu não estava acostumada, a casa da minha tia era muito ampla. Era super interior, casas de madeira, mas tudo grande, com muito espaço. E eu vivia numa casa minúscula, como eu já falei. Os meus avós tinham casas minúsculas, então essa experiência do espaço na casa era legal, minha prima morava numa casa super grande, essa do Paraná, ela era filha única e a casa era enorme, então ela tinha um quarto só pra ela. Acho que ela era a única prima que tinha um quarto só pra ela. Então a gente: “Ah, você tem um quarto só pra você, como assim?”. Então tinha quarto de hóspedes, isso tudo era bem interessante. O quintal. Eu tive um quintal bem grandão, mas ela tinha pomar, ela tinha coisas ali que uma cidade do interior proporciona. Eu visitei milharal, a plantação de trigo que é muito linda. A viagem já foi muito bonita, você entrando lá pelo interior e ver aquela coisa que não estava acostumada a ver. Achei tudo muito bonito, muito colorido. Então era uma experiência legal. E a minha prima, como ela era de cidade do interior, ela tinha essas amizades de interior, que os primos aqui de São Paulo já não tínhamos tanto. Então lá, apesar dela ser uma única menina, filha única e tal, os meninos eram permitidos na casa, não precisava ser só os primos, ela tinha amizade com outros meninos e tal. O meu pai já não permitia muito. Ele tem duas meninas, se vem um cara aqui o que ele quer? Coisa boa não é. Então meu pai tesourava um pouco. Lá era interiorzão, então lá rolava. A gente foi também com os primos, já tinha aquele ambiente de festa e quando ela recebia a visita desses primos de São Paulo, que éramos nós que íamos em grupos grandes e tal, todo mundo dava festa e convidava os primos. A minha prima chama Rosana e eles falavam assim: “Rosana, vamos fazer uma festa para os seus primos”. Então cada dia era festa na casa de um. Aí ela dava o perfil, né? “Olha, esse o pai tem três fazendas e não sei o quê, não sei o que lá”. E uma casa mais legal que a outra porque eram casas bacanas, grandonas, todas bem grandonas e tal. Aí eu lembro que fomos na casa de uma família lá, meio aparentada também, eles tinham, eu não lembro quantos filhos, mas os que participaram da festa, dois meninos e uma menina, que eram mais ou menos da faixa etária. Acho que tinha outros, mas não me lembro agora, mas nessa festa eram essas três crianças. E convidaram a gente pra essa festa. Então já que você perguntou de paquera teve este. Eu lembro que eu tinha 12 anos nessa época, agora lembrei de uma história. Eu tinha 12 anos e nessa cidade da minha prima tinha uma cinema, apesar da cidade ser minúscula tinha um cinema. Então era a diversão das pessoas fazer a festinha ou ir ao cinema ou tinha lá uns eventos que eles organizavam lá, mas que não vem ao caso agora. Mas o cinema era uma coisa, no fim de semana se estava passando um filme todos os jovens iam. Então, houve esse convite: “Vai ter uma festa”. Fizeram festa aqui, festa ali, tal, a gente já foi conhecendo esse grupo de pessoas. E dessa família desses que eram fazendeiros muito ricos, com várias fazendas, tal, desses dois meninos, no cinema eu me lembro que um falou: “Eu fico com a morena e você fica com a mais clarinha”, os dois irmãos combinando. A morena era uma prima minha que meu tio é meio índio, então minha prima é morena e parece uma índia. E eu era a mais clarinha. Eles combinaram lá entre eles. Eu já não gostei, mas tudo bem, vamos ver o que vem. Aí eles sentaram e na hora de distribuir os lugares esse menino sentou atrás, o que fez a distribuição, que era o irmão mais velho e que ia ficar com a morena. Ele sentou na fileira de trás e eu sentei na fileira da frente, o irmão dele veio e sentou na fileira da frente do meu lado. A certa altura do filme ele veio e falou assim, pro irmão. O irmão mais velho dando dica pro mais novo: “Agora põe a mão na perna dela”. Pra apoiar assim. Porque acho que ele tinha apoiado na perna da minha prima e mandou apoiar na minha (risos). Eu já virei e falei: “Não vai apoiar a mão aqui na perna, coisa nenhuma!”. Aí o cara sentou lá e ficou. Bom, tudo bem, dei uma bronca nesse menino. Mas enfim, já sabia, aquele menino ia me paquerar. E eu lembro que eu tinha 12 anos. Enfim, por que eu lembro disso? Porque eu não sabia o que fazer com o menino porque eu tinha 12 anos e ele tinha 11. Eu falei: “Ele é mais novo, como eu vou fazer? Não pode ser assim”. Então eu fiquei toda confusa. E a minha prima é mais nova, então eu falei: “Tinha que ser ao contrário, tinha que ser o mais velho comigo e o mais novo com ela, aí a idade batia”. Mas o cara lá fez a distribuição e eu tinha que ficar com o mais nov. Eu falei: “Não, eu acho que não”. Mas enfim, o menininho mais novo era bem extrovertido, insistente, ele tirou de boa: “Não, eu não ia pôr a mão na sua perna, ele que está falando. Não, sou respeitoso”. Ele foi super gente boa. Ficamos ali. Continuaram tendo essas festinhas. Um dia esse menino, numa das festas que era na casa dele, ele falou assim: “Eu queria que você fosse comigo lá fora” (risos). “O que tem lá fora? A festa é aqui dentro” “Não, eu queria que você visse uma coisa”. E como menina conversa, eu falei: “Esta é a hora, né? Ele vai aplicar o golpe dele agora, vamos lá fora” (risos). Eu demorei um pouquinho, fiquei meio assim. E ele: “Não, vem tranquila, eu sei que você é brava, vem tranquila. Eu só quero te mostrar uma coisa”. A gente chegou lá fora, era a minha irmã, ele queria mostrar que a minha irmã estava com um menino lá fora, aos beijos. A minha irmã tinha 13 anos. Então eu choquei, né? Eu falei: “Ai meu Deus, esta minha irmã”. Então assim, essas histórias de namoro, se eu for contar são as dela, as minhas (risos). Já na hora eu falei: “Agora ele vai falar e eu vou ter que dizer, o que eu vou fazer, vou ter que tomar uma decisão”. Não, era para eu ver que a minha irmã já estava com, vou falar que nem meus filhos falam, pegando alguém lá fora. E isto foi uma coisa interessante que sempre aconteceu com minha irmã. Como ela de fato era muito bonita ao longo da vida foi sempre assim: “Você é irmã da Eliane? Nossa, bonitona tua irmã, ai que linda!” (risos) Aí eu fui me acostumando. Ela era alegre, ela era afim e os meninos gostavam dela, ela era bonita. Essa acho que foi a pior vez, o resto eu me acostumei com isso. Então esse foi o meu primeiro paquerinha.
P/1 – E nessa história da sua vida que é muito bacana, tudo isso que você está falando pra gente. Só pra entender, sua irmã também passou por esse processo, ela começou a trabalhar, também foi estudar à noite, vocês ficaram meio que juntas até determinado tempo.
R – Sim, ela passou. Ela foi trabalhar primeiro, então ela foi estudar à noite primeiro. Mas tem uma diferença: ela estava num ambiente mais confortável pra ela. Porque a minha irmã era uma pessoa liberal e eu me considero uma pessoa até de certa forma conservadora em algumas coisas. Então a gente já tinha essa diferença. Ela não gostava daquela escola, achava a escola religiosa muito rígida, muito restritiva. Ela já via coisas que eu não via. “Pra quê? Grades na janela? Para que os portões fechados? Deixa o portão aberto!”. E lá eles trancavam, horário de entrada tranca tudo. E ela já via essa coisa, ela já analisava: “Pra que fechar os portões?”. E eu não, eu achava perfeitamente normal, se eles fecham o portão está certo, eu não me incomodava com isso porque eu não estava ainda preparada para me preocupar com isso, se estão restringindo minha liberdade. A minha liberdade não era problema, eu estava satisfeita com o espaço que tinham designado pra mim. Ela queria mais, ela era mais aventureira, vamos colocar dessa forma. Então pra ela foi melhor ela ir para uma outra escola, pra ela trabalhar, se relacionar com pessoas mais velhas. Pra ela foi melhor. Pra mim, eu não vou usar a palavra traumático porque não foi assim, mas foi mais chocante. Mas ela não, ela curtiu bastante. Também na escola eu tinha melhores notas. Lembra, eu sou a inteligente. A minha irmã não tinha boas notas, então ela achava que, não que ela fosse menos inteligente, ela era menos dedicada, ela não se interessava tanto pelos estudos, ela dividia a capacidade dela com uma porção de coisas. Ela já tinha interesses muito diversificados enquanto eu ainda estava ali. Que nem aquele Eduardo e Mônica? Eu ainda nas aulinhas de inglês? Ela já estava Bauhaus e o Planalto Central, magia e meditação e eu ainda no esquema escola-cinema-filme-televisão. Era mais ou menos isso, então pra ela foi mais tranquilo, ela foi trabalhar, tudo, foi mais tranquilo. Ela trocou de emprego: “Esse aqui não está legal, esse aqui está chato, coisa ruim de fazer”, ela trocava. Eu não. São personalidades diferentes. Mas ela fez tudo igualzinho, a gente teve uma história bem alinhadinha.
P/1 – E esse seu primeiro emprego você ficou alguns anos lá?
R – É, era importante você ficar um ano, ter um ano de carteira. Eu fiquei. O emprego era legal, era bem familiar, eu gostei bastante e lamentei bastante quando eu perdi também. Foi uma decepção porque era um emprego legal. Quando eu arrumei esse emprego a minha irmã estava trabalhando. Não, vou voltar um pouquinho. Na verdade foi assim, quando eu arrumei esse emprego, os três lá em casa estavam desempregados. Porque como as coisas ficaram mais difíceis, a minha mãe também buscou um trabalho. A minha irmã já estava trabalhando e o meu pai trabalhava. Mas quando eu fui começar a trabalhar os três perderam o emprego. Então foi um susto assim: “Eita, agora é comigo”. Então eu fiquei um pouco com o peso nas costas. Mas o trabalho era legal, então foi bem. E também foi assim, eu arrumei um emprego no qual eu ganhava mais do que minha mãe e que a minha irmã, então era uma vitória: “Nossa, já me saí bem aqui”. Elas estavam desempregadas, só que eu tinha arrumado um emprego melhor. Então eu curti bastante e quando eu perdi foi uma decepção, fiquei muito triste. Foi uma situação lá que eram dois irmãos, eles se separaram e nessas eu perdi meu emprego. Mas depois eles chamaram de volta porque eles se reunificaram, aí eu conversei com meu pai e meu pai achou que era um bom emprego, mas ele deu liberdade, ele falou, acho que ele foi franco, apesar de eu ainda ser bem novinha, ele foi franco, ele falou: “Eu não voltaria”. Eu não voltei. Mas foi um dos empregos mais legais que eu tive, bem legal mesmo. Mas aí eu já troquei imediatamente pra outro, tive que arrumar outro. Então foi assim, esse eu fiquei só um ano e meio, mas logo eu já engatei outro e aí já foram cinco anos e foi por aí. Aí eu comecei essa trajetória de ser uma trabalhadora modelo (risos). Começou aí. Eu fiquei um pouco desapontada quando eu perdi o primeiro emprego sim, eu achei que eu estava desapontando meu pai, minha mãe. Porque meu pai tinha uma tradição de ficar no emprego, de ser a prata da casa. Eu fiquei um pouco, achei que eu fosse desapontar a família e fiquei desapontada porque eu gostava do emprego, achava que remunerava bem. O outro emprego que eu arrumei não remunerava tão bem e não era tão legal, mas era o que se apresentou ali e eu fiz. E fiquei bem mais tempo no emprego seguinte. Mas minha irmã não se importava com essas coisas, troca de um pra outro. Minha irmã era mais desprendida, ela era solta.
P/1 – E você conseguiu depois ter um segundo emprego, aí você concluiu o que na época era o colegial, hoje é ensino médio. E aí você, sei lá, 17, 18 anos, como é que estava nessa época, se é que essa é realmente a fase ou um pouco antes ou um pouco depois. Você foi fazer faculdade?
R – Na época não ia direto assim pra faculdade, era meio opcional, ou você vai ou você não vai. Como eu já estava inserida no mercado de trabalho eu fiquei pensando um pouco: “O que eu vou fazer, como assim, agora eu vou ter que escolher”. Já estava trabalhando e eu fiz umas experimentações. Fui fazer uns cursos antes de escolher um curso universitário. Hoje é diferente, todo mundo já tem que pensar numa carreira universitária ou alguma coisa assim. Eu não tinha essa pressão da família porque na minha família acho que ninguém tinha diploma universitário que eu me lembre. Então não era uma condição exigida. Então eu tive liberdade pra escolher e eu experimentei um pouquinho outros cursos, não fui direto pra faculdade. Mas eu não fui direto pra faculdade porque eu nem queria o que eu queria fazer. Também não foi traumático, foi tranquilo, foi escolha minha. Meus pais não falaram nada e tal.
P/1 – E aí você foi para o seu segundo emprego, acabou o colegial e você continuou só trabalhando, é isso Estela?
R – É, por um tempo sim. Mas eu não quero ser injusta com o ensino médio, o antigo colegial, como eu falei. A qualidade do ensino não era satisfatória comparada ao que eu já tinha experimentado, mas a experiência das relações humanas foi muito positiva. Eu fiz, por exemplo, o meu amigo mais antigo que data dessa época. Um desses que entrou de costas (risos), ele não era muito de fazer essas brincadeiras ousadas, mas quando está em grupo, né? Aí a pessoa participa. E ele era super educadinho, ele fazia essas brincadeiras só com muito incentivo dos amigos e a gente acabou se aproximando, tínhamos gostos em comum, acho que a gente tinha realmente expectativas parecidas. Não era muito essa preocupação de quantos namorados eu vou ter, ou ele quantas namoradas vai ter, mas a gente estava mais tranquilos nessa história. Ao passo que o pessoal estava mais agitado, quem fica com quem. Então tinha o pessoal que era mais de namorar e o pessoal que era mais de sair, se divertir. Eu fiquei mais com esse grupo. Então eu trago, se eu não trouxe dessa época o conhecimento formal da educação, se eu sinto que as minhas bases de formação vieram da outra escola, as bases das relações interpessoais vieram mais da escola pública. Então acho que está aí o papelda escola pública, de ser realmente pública, de ser pra todos, com todos os perfis, com a diversidade. Então eu tenho que dar esse mérito, não podia deixar de falar isso, a formação sólida, educacional mais bem formal vem da outra escola, mas as relações interpessoais vieram dessa escola. E não à toa eu tenho um amigo até hoje que veio dessa época.
P/1 – E o seu segundo trabalho também foi uma empresa? Você lembra do seu segundo.
R – Sim, claro que eu me lembro. Foi ali no bairro também, era uma empresa do Grupo Silvio Santos. Era uma empresa bem conhecida ali no bairro, tal. Como tinha uma comparação com o meu primeiro emprego, que o primeiro emprego remunerava melhor, era bem mais legal, bem mais interessante, esse emprego era mais para pagar as contas. Então eu não gostava daquele emprego, mas eu fiquei quatro anos lá. Mas eu fiquei lá sempre com a expectativa de que eu queria um outro emprego, em um outro bairro. Eu queria me aproximar mais das coisas que eu achava mais legais, eu já estava achando que o bairro estava ficando pequeno pra mim. Eu queria outras coisas. Então eu comecei a buscar um emprego mais distante. E aí quando eu arrumei esse emprego mais distante eu mudei de casa, aí que eu já saí desse bairro.
P/1 – Você tinha uns 20 anos, mais ou menos, Maristela?
R – Eu tinha 19 anos, aí eu arrumei esse emprego no Jardim Paulista, que hoje é onde é aquele Hotel Unique.
P/1 – Sim, na Brigadeiro Luís Antônio.
R – É, uma travessinha da Brigadeiro Luís Antônio, pro lado dos Jardins. Aí eu já me inseri num mercado que eu fiquei muitos anos, que é o comércio internacional, isso foi o primeiro emprego. Eu queria trabalhar numa coisa assim, diferente. Porque esse emprego no Grupo Silvio Santos, ele também era rígido, o funcionário era um número e isso já estava me incomodando, eu já não queria ser um número, eu queria ter um pouco de voz, eu já estava começando a ficar mais parecida com a minha irmã, queria um pouco mais de liberdade de espaço para eu ser aquilo que eu quisesse. Nesse emprego eles tinham que controlar muito, eram muitos funcionários, eram 400 funcionários, muita mão de obra. Mão de obra humilde, simples, de baixa escolaridade na sua maioria. Eu comecei a achar que eu podia fazer mais, que eu já estava preparada pra pegar um emprego mais sofisticaado e que pudesse ficar livre, não me controlando. Porque nesse emprego como eram 400 pessoas com baixa escolaridade, mais ou menos aquele, como eu posso dizer? Quase uma fábrica, então quase uma linha de produção, eu não queria isso. Tinha horário pra ir ao toilettes e eu falava: “Nossa, não preciso mais disso. Eu acho que eu posso ir ao toilette a hora que eu quiser”, então era muito restritivo. Então eu não gostava daquele lugar. Remunerava mal em relação ao emprego que eu já tinha tido. Aí eu já comecei a ter noção do que era o mercado de trabalho, do que eram as coisas, acho que dá para eu arrumar uma coisa melhor. E eu queria uma coisa mais interessante. Aí uma colega minha também, ela é linda, então as mulheres lindas têm ofertas de trabalho. Hoje nem tanto, mas na época tinha lugar que contratava mulher bonita para determinada função. Isso é muito chato, isso é horrível, mas acontecia bastante. E a gente percebia isso porque a gente tinha esse exemplo, ela era linda. Então quando a gente ia em agência de emprego a gente via que ela era separada do grupo, sim, o tratamento. Tinha os bancos, esses pequenos bancos, eu nem lembro o nome do banco, mas esses bancos bem pequenininhos que trabalham com clientes de altíssimo poder aquisitivo, bancos que só têm uma agência, que existia muito naquela época, as pessoas que trabalhavam lá eram lindas. Eu lembro que a gente foi em uma agência de emprego juntas e a mulher quando viu a minha amiga falou: “Ah, você pode ir para o banco”. Ela: “Não, banco eu não quero, não. Ela é mais inteligente, ela deve ir para o banco”. E a mulher: “Não, você”. E aí ela foi pro banco, a mulher insistiu tanto na agência, eu fui direcionada para outra coisa. Acabei nem arrumando emprego nessa agência, mas foi a experiência e ela foi até o banco. E ficou muito claro que era isso, que era o padrão de beleza dela que agradava ali. Ela não quis ficar no banco porque era muita responsabilidade e ela não estava preparada para trabalhar no mercado financeiro. Aí um outro colega que também a achava linda, trabalhava, na verdade ele estudava com um cara que trabalhava num emprego muito legal, aí ele ficava: “Eu tenho um amigo que trabalha num negócio super bacana, só tem gente rica, só tem gente linda, só tem gente estrangeira. Ele está precisando de uma secretária. Você é linda, Cátia, vá lá”. Ela foi desse emprego e de fato ela gostou muito do emprego, era muito legal e nós éramos muito próximas e ela começou a falar: “Realmente é interessante, abre uma série de horizontes, tal”. Ela falou: “Vamos arrumar uma vaga pra você num desses aí”. A gente começou a sondar lá e eu arrumei um parecido com o dela. Ela trabalhava numa agência marítima alemã e tinha várias agências pipocando e eu consegui em uma outra. E foi muito legal, era de fato tudo isso. Muito chique, gente muita linda, os escritórios maravilhosos. Então foi a minha entrada no comércio internacional, era uma parte do comércio, o transporte marítimo. Era bem legal, bem interessante, me agradou bastante, eu comecei a gostar bastante, foi aí que eu comecei: “Agora eu acho que eu tenho que fazer uma faculdade”. Mas aí aconteceram outras coisas na minha vida e não fui exatamente nesse momento, mas eu falei: “Não, aí precisa, não vai dar pra ficar só com isso aí”. Eu entrei nesse mercado e permaneci nele por muito tempo. Eu tinha 19 anos quando eu entrei nessa primeira agência, mas agora eu já nem lembro por que eu falei dessa agência, por que você perguntou?
P/1 – Eu tinha te perguntado dos teus trabalhos posteriores, que momento que você saiu de casa, você falou que você saiu de casa mais ou menos nessa época porque você queria ampliar um pouco seu raio?
R – Sim. E ampliou.
P/1 – E você começou nesse novo emprego, aí seu horizonte se ampliou um pouco mais, você foi trabalhar em um bairro mais distante, porque até então era tudo mais perto. Aí você talvez estava com uma remuneração melhor e tomou a decisão de sair da casa dos seus pais.
R – Não!
P/1 – Você continuou com eles?
R – Não. É que desde o primeiro emprego eu meio que assumi a família porque o meu pai começou a enfrentar uma série de problemas e a minha mãe não tem formação, então ela trabalhou uma época pra ajudar, mas era muito trabalho e pouca remuneração. Ela continuou ajudando da maneira que era possível pra ela ajudar, mas eu já estava tomando à frente, eu e minha irmã, mais ou menos assim, mas minha irmã saiu de casa cedo, ela meio casou cedo. Eu não saí, eu fiquei sempre, eu saí de casa pra casar. Então eu fiz essas mudanças, mas o meu pai faleceu quando eu tinha 20 anos eu estava nessa primeira agência marítima e aí ficamos eu e minha mãe. E a minha mãe mora perto de mim até hoje. Aí eu me casei e morei no mesmo prédio pra ficar perto porque ela só tinha praticamente a mim porque a minha irmã casou e foi morar em outro lugar, então eu sempre que fiquei mais próxima. E agora ela não mora no mesmo prédio, mas ela mora no mesmo bairro, bem próxima de mim.
P/1 – E como estava a Maristela mais ou menos nessa época, mais ou menos com 20 anos, um emprego novo que te ampliou muitos horizontes, aí a ideia de fazer faculdade? Como é que estava sua cabeça nessa época, o que você pensava, quais eram seus objetivos, o que você pensava ir daqui pra frente? Só pra gente situar um pouco suas ambições.
R – Bom, uma coisa que eu sempre tive na minha cabeça é que o negócio de pagar contas era comigo (risos). Eu sabia que isso não tinha muito jeito, que eu ia ter que pagar as contas. A minha preocupação primordial era pagar as contas. E pagar as contas, eu não sei se isso foi influência dos meus pais, já lá da minha avó que só comprava uma pedra de sabão, eu não sei, mas eu pensava, pagou as contas já está bom. Eu não tinha grandes expectativas de aumentar muito a minha remuneração. Eu sempre achei e acho que ainda sou assim, que as coisas vão acontecendo naturalmente, eu não fiquei perseguindo muito, insistindo muito. Quando eu mudei desse emprego, do primeiro emprego para o segundo eu achei que foi um retrocesso, então eu fiquei incomodada, mas eu fiquei lá quatro anos. Meus pais precisavam do meu auxílio e eu não queria arriscar porque os mais jovens não vão se lembrar, mas se consultarem a literatura, houve uma grande recessão em 1983, acho que foi a chamada... houve um grande desemprego e eu via os meus primos, as minhas amigas, todo mundo perdendo o emprego. Então eu pensava: eu estou aqui com esse meu emprego, ele é meio chatinho, mas ele é um emprego seguro. Era tudo certinho, tudo certinho, salário, plano de saúde na época, que não era muito comum, mas o Grupo Silvio Santos já tinha um sistema de plano de saúde deles que chamava Clã, que depois foi alvo de investigações, falcatruas e não sei o quê, acabou fechando. Mas foi uma ideia até inovadora, a gente não tinha muito essa história de plano de saúde, então o emprego era chato mas ele era seguro, então eu fui ficando porque eu não sou muito de arriscar. Então eu não arrisquei, eu ficava vendo meus primos procurando emprego, trocando, perdendo, eu falei: “Melhor eu ficar aqui”. Eu comecei a alimentar essa coisa que eu queria um horizonte ampliado, mas não precisava ser hoje, amanhã, não precisava arriscar tudo, a hora que aconteceu, que eu arrumei esse outro emprego eu fui. Aí mudei de casa e tudo foi acontecendo. E paralelo a isso a família está tendo seus problemas, né? Meu pai ficou doente, meu pai faleceu, então tem umas questões que estavam acontecendo também e que preocupavam a Maristela, então a gente vai administrando. Uma das coisas que eu queria era falar um segundo idioma porque eu estava nesse mercado, todo mundo falava um segundo idioma, eu falava: “Então isso acho que eu vou ter que fazer”. As pessoas pensavam mais nisso, não em fazer faculdade, mas em fazer um curso de inglês. Era mais ou menos isso. Eu também preocupava, mas também não foi: “Ai, eu preciso falar inglês e agora? Me matriculo no primeiro curso”. Não, eu sou muito tranquila. Aliás, eu não sou tranquila, acho que eu sou lenta, eu demoro, eu fico analisando. Não analisando muito, eu fico observando. Observei bastante, tal. E também achei, uma hora vai acontecer. Então eu fiquei lá no emprego, foi legal e dali eu pude ir para outro porque realmente as conexões, o networking era bem mais aquecido. Acabei trocando, fiquei nesse mercado, fui trocando e a parte de trabalho sempre, a partir daí eu fiquei muito satisfeita. Então eu diria que toda a minha trajetória o único trabalho que eu não gostei foi esse do Grupo Silvio Santos. Ele era muito seguro, tudo, mas a atividade em si não me agradava e a forma com que eu tinha que executar meu trabalho não me agradava, mas eu fiquei quatro anos. Imagina se eu tivesse gostado, né?
P/1 – E essa época, 1980 mais ou menos, São Paulo já tinha uma efervescência de possibilidades, a gente até conversou um pouco sobre isso já, né? E essa jovem saía, ia curtir a cidade? Trabalhava já e já tinha uma certa independência ou não.
R – Olha, desde sempre eu lia as revistas, não tinha muita programação de televisão. Música, por exemplo, não era tão acessível, não tinha tantas rádios, não tinha tanta coisa, mas tinha umas revistas. Um dos meus primos ouvia boa música, ele tinha muito bom gosto musical. Ele era mais velho também e apresentava os grandes roqueiros ingleses e tal pra gente e a gente: “Ó, nossa! Como ele conhece!”. Como ele começou a apresentar essas coisas pra gente eu comecei a ver umas revistas, tipo Rolling Stone só que era da época, eu não lembro nem do nome. E eu via, por exemplo, que lá na Inglaterra as coisas aconteciam, como tinha diversão, cultura, essas coisas e eu achava: “Nossa, estamos atrasados nisso”. Mas de fato, São Paulo estava começando a ter mais cinemas nessa época e eu tinha o dinheiro na mão, eu tinha meu salário e eu podia ir para um cinema, uma coisa assim, então eu comecei a fazer essas coisas. Eu lia lá que era tradição, por exemplo, na Inglaterra, no final do ano as famílias irem ao teatro. As famílias que não são de Londres, elas vão pra Londres no final do ano para levar os filhos ao teatro, parece que é uma tradição. Anos mais tarde eu trabalhei com alemães e um colega alemão reportou essa coisa dessa mesma maneir: “Ah não, porque no final do ano meu pai levava todo mundo pro teatro, eu só ia no teatro uma vez por ano”. Ele contou e se encaixou com aquela história que eu lia lá nas revistas lá atrás. E eu queria ter esse tipo de vida, esse tipo de qualidade de vida, ter uma vida cultural, ter essas oportunidades. Então eu comecei a fazer o que dava pra fazer: “Ah, dá pra ir no cinema? Dá pra ir no cinema”. Desde o meu primeiro emprego. Bom, eu já tinha o hábito de ler o jornal porque meu pai trabalhou no jornal eu tinha jornal em casa muito à vontade, os vizinhos iam lá em casa pegar jornal. Eu lia desde pequena a folhinha que tinha, tal. Eu sempre tive esse hábito. Quando eu comecei a trabalhar nesse primeiro emprego também tinha jornal à vontade. E eu pegava a Ilustrada, eu li lá o que está acontecendo na vida cultura, os filmes, o teatro e comecei a ver essas coisas. Tinha umas coisas que eu penso, o que é a precariedade, né? Tinha uns caras nas ruas que vendiam ingresso de teatro, era uma espécie de você se filiar a um clube e aí você tinha alguns ingressos de teatro disponíveis. Eu lembro que eu até me filiei. Outra coisa que eu fiz foi Clube do Livro porque também as famílias não tinham essa, só aqueles bem abastados tinham livros, bastante, em casa, os outros tinham pouquinhos livros que a escola mandava ler. E eu achava mó bacana: “Nossa, já pensou ter um monte de livro em casa?”. Então eu comecei a participar de um tal de Clube do Livro. Comprava esse Clube do Teatro na rua, mas comecei a ver que não era o tipo de coisa que eu queria ver, acho que é melhor eu fazer minha busca. Então jornal era uma ferramenta, eu fazia minha busca. O teatro dificultava pra caramba, você tinha que comprar um ingresso no dia e assistir a peça no outro, então isso já dificultava. O cinema já era bem legal, chega lá na hora, comprou, pagou, entrou, assistiu. Então eu criei o hábito de ir no cinema. Esse colega que eu mencionei tinha essa mesma sede, então a gente começou a conversar sobre isso. Ele começou a descobrir coisas e ele saiu da casa dos pais muito cedo, com 15 anos ele saiu da casa dos pais. Então ele foi morar no centro da cidade e lá ele estava mais perto, ele via as coisas. Só que ele continuava estudando comigo lá no bairro, estamos voltando um pouquinho lá na linha do tempo. Então ele começava a falar: “Olha, tem essas coisas”. Aí os ingressos: “Ah, isso aqui é um lixo, isso aqui é legal, isso aqui acho que vale a pena”. Logo de cara eu vi que essa coisa de ingresso, de filiação de teatro não era legal, que era melhor escolher esporadicamente, individualmente. O Clube do Livro eu mantive porque tinha aqueles livros, eles davam dicas de literatura. Eu li Kafka, Clube do Livro. Maquiável tinha no Clube do Livro. E assim, não é um professor falando: “Você tem que ler Kafka”. Não. “Acho que vou ler esse cara aqui. Nossa, o cara vira uma barata, como assim”. Eu não tinha nem noção do que era, mas eu já estava lendo. Então o gosto pela literatura já foi se moldando ali, tal. E o cinema já tinha bastante oferta, não tinha essas grandes redes, mas tinha filme de qualidade no centro da cidade, você procurando na Rua Augusta, já tinha umas coisas legais. Aí eu somando as informações dos roqueiros do meu primo e esse colega que ia muito no cinema e é muito cinéfilo até hoje, a gente começou a ver musicais, então tinha uns musicais bem legais assim. Eu vi Tommy. Coisas de roqueiros eu não lembro, queria lembrar um outro filme de uma mulher, vi Janis Joplin no cinema, vi filme sobre ela antes de comprar um disco. A gente começou a amadurecer esse gosto cultural, então estava indo naquela minha expectativa: “Ah, eu quero ter uma vida cultural, eu quero ir ao teatro no fim do ano” (risos). Então assim começou a acontecer, porque estava melhorando. Eu tinha um pouco de dinheiro, podia decidir o que eu fazia. Então uma coisa que eu fiz uma opção: eu nunca saía para comer. Comer é muito caro, vamos comer em casa, minha mãe cozinha bem, então eu ia no cinema, no teatro, mas eu não gastava com comida porque não dava, então tinha que fazer uma escolha ali. Então fazia e assim foi acontecendo. E o que é curioso é que esse colega, como ele já morava sozinho e ele circulava bem, ele convidou pra ir num show, ele falou: “Inaugurou um SESC na Pompeia e tem uns shows da hora lá. Fui lá, vi umas coisas de rock, aquelas coisas pesadas, coisa boa mesmo. Vamos lá?” “Então vamos”. Só que quando ele comprou os ingressos, e a gente foi, até a minha mãe foi também, era o Língua de Trapo. Eu gosto de humor, gosto de coisa engraçada, eu não gosto muuuito disso, mas foi o show que eu fui ver lá na Pompeia. Eu lembro que a minha mãe foi e a gente riu muito porque a minha irmã estava namorando meu cunhado e meu cunhado era um cara de esquerda. E tem uma música do Língua de Trapo que eles falam muito disso (risos). A minha mãe olhava pra minha cara, eu olhava pra cara dela, esse grupo cantando essas coisas. A gente riu muito da minha irmã quando a gente chegou em casa, você tinha de ver o show. Quando a gente comentou com o namorado da minha irmã ele falou: “É da hora! Esse show, esses caras!”, ele ama o Língua de Trapo até hoje. Enfim, realmente o cenário em São Paulo já começava a mudar, estava bem ampliado. Aí eu fui fazendo, fui descobrindo e fui indo.
P/1 – Eu lembro dessa época que começaram a inaugurar em São Paulo shopping centers também. Você ia nos shoppings ou continuou indo no SESC, nas unidades?
R – Assim, os shoppings eu fui também, claro que fui. Os shoppings chegaram com cinemas, o shopping Ibirapuera tinha cinema, eu lembro que a gente ia. Então, claro, que eu fui ao shopping. Eu gosto de shopping, gosto muito de shopping. Acho divertido, vitrines, acho que gostoso, confortável. Eu ia muito, mas essa opção cultural não está dentro do shopping. Se você quer realmente algo mais seletivo você tem que fuçar um pouco mais. Então é o que eu descobri lá no primeiro emprego, você tem que fazer a busca individualmente. Se você vai com as massas, o que todo mundo está falando você vai consumir isso, né? Eu selecionava um pouco mais. Por exemplo, em Nova York todo mundo fala da Broadway, mas a Broadway é 100% pra turista, o público mesmo que mora em Nova York tem o Off-Broadway e hoje tem o Off- Off-Broadway, que são produções independentes e as mais independentes. Então assim, eu fui mudando de nível porque eu fui amadurecendo meu gosto, minhas coisas. Então assim, eu não preciso do shopping. Eu gosto do shopping, mas eu não preciso do shopping. Eu sei descobrir outras coisas. E isso eu fui formando esse repertório ao longo do tempo, podendo decidir.
P/1 – E aí você viu uma necessidade que você começou a falar, de estudar línguas. Aí você foi fazer um curso de línguas ou sua opção foi fazer o curso superior nessa época?
R – O curso de línguas veio com o emprego. Era muito comum nessas empresas eles oferecerem o curso de idiomas porque era uma necessidade, era uma capacitação, né? Então o meu contato com o inglês foi com uma professora particular que ia no escritório, então era muito cômodo. Depois como eu tinha essa dúvida, o que eu vou fazer na faculdade? Eu achei que fazer Letras complementaria uma profissão, uma carreira que eu já estava inserida, então por isso. Eu fico até envergonhada de falar isso, mas Letras não foi minha paixão. Eu fiz, eu escolhi fazer, optei fazer, mas buscando uma outra coisa, não eram as letras em si. No fim é muito legal, só que a pessoa precisa estar bem amadurecida pra apreciar as letras. Eu entrei, nesse lado eu não estava amadurecida, eu entrei achando que era um curso de idiomas e não é, é muito mais do que isso.
P/1 – Você tinha quantos anos quando você entrou na faculdade?
R – Vinte e quatro.
P/1 – Já era mais “madura”.
R – Eu era muito madura pra todas as outras coisas, mas para os estudos eu acho que não, eu acho que não. Porque olha só, você achar que o curso de Letras é um curso de idiomas, que vergonha! Melhor cortar essa parte (risos).
P/1 – E você foi estudar na Universidade de São Paulo, né? Quer dizer, tem a concorrência, tem esse papel também.
R – Isso também sempre foi muito claro pra mim, se é pra fazer, faça bem feito.
P/1 – Essa coisa da efervescência polícia também, você participou um pouco disso? Como era isso? Porque a FFLCH sempre foi bastante...
R – É, mas eu não me envolvi muito não, eu estudei à noite, eu já trabalhava. Tudo bem, eu já estava ali próxima e chegava cedo na faculdade, mas eu não me envolvi muito, não, nisso não. Claro que existem momentos ali, a gente discute, mas eu não era das mais atuantes, não. Eu acho até que a minha experiência política veio através do meu cunhado que é uma pessoa até hoje politizada, ele fez um trabalho bonito de esclarecimento das pessoas, dos mais humildes, então eu acabei aprendendo muito com ele, mas eu não participei muito, não. E o que eu participei também foi quando ele convidou e eu fui em alguns comícios, em algumas manifestações com ele. Não foi a faculdade, não. Eu não me envolvi muito com esse grupo da faculdade. Isso também me surpreendeu um pouco quando eu entrei na faculdade, os grupos. Apesar da faculdade abrir a cabeça das pessoas, ela está aí pra isso, esses estudos transversais, especialmente pra gente que faz ciências humanas, de fato abriu bastante, mas tinha também essa polarização. Eu via que lá tinha os políticos, os religiosos e os que gostam de beber também, que eu também quase não bebo, então, eu meio que ia lá, fazia minhas coisas e voltava. E não era das mais apaixonadas pelo curso. Ainda bem que meus filhos não estão aqui porque na verdade o que eu diria? Eu devia ter entrado antes na faculdade, entendeu? É necessário, tem que ser mais natural. Então como eu dei uma paradinha a família não cobrou, ninguém falava nada. Essa minha colega Cátia, que eu falei, não foi fazer faculdade. Então era natural você escolher, ah, vai fazer, não vai fazer, vai trabalhar e depois eu faço. Agora não, mudou pra caramba isso, então eu nem gostaria de fazer isso pros meus filhos, mas eu perdi um pouco o timing, eu devia ter entrado antes. E devia ter ido para um curso, realmente pensar o que eu quero fazer. É cedo pra escolher com 17, 18 anos, a gente escolhe sem saber, mas tem que buscar ajuda dos pais, conversar e ver pra eles irem auxiliando pra que essa escolha seja mais tranquila. E eu não tive isso, foi acontecendo, vai fazendo. Então perdi um pouco o timing. Mas fiz direitinho, não colei nas provas (risos). Mesmo porque quem faz ciências humanas, especialmente lá na USP sabe que é mais trabalho, você tem que desenvolver alguma coisa. Então nem teria espaço pra colar mesmo, eu fiz direitinho.
PAUSA
P/1 – Então vamos lá, Maristela. A gente estava conversando sobre sua carreira profissional, que você já estava nessa atividade profissional já delineando uma carreira, que você estava fazendo curso de línguas pela própria empresa, daí você já estava na faculdade. Enfim, aí a gente está numa São Paulo no final da década de 80, mais ou menos.
R – Na faculdade era 90 já.
P/1 – E aí a Maristela com 24, 25 anos, como é que está essa moça? A questão dos relacionamentos, você tinha muitos amigos, seus namorados na época, como é isso? Essa mulher.
R – Olha, ao contrário da minha irmã, que eu considerava minha irmã avançadinha, eu segurava um pouco a onda porque eu já tinha muita clareza de que a vida adulta era mais difícil do que a vida do jovem, a vida infantil. E eu já sabia, mais ou menos, o que vinha pela frente porque eu já vislumbrava que ia ser uma vida de responsabilidades e tal. Então eu segurei pro primeiro namorado, eu fui sempre segurando (risos). Eu não tive muitos namorados, mas eles acabaram surgindo. Mesmo assim, me entender como mulher, eu deixei um pouco assim, eu não tive muito isso: “Ah, agora eu preciso ser mulher”. Eu usei maquiagem agora, recentemente, quando as rugas começaram a aparecer porque antes eu achava que estava bom daquele jeito, porque eu sou uma pessoa muito clara, eu achava que a maquiagem não me caía bem. A minha irmã já usava batom com 14 anos, eu nunca fui assim, então já daí já dá pra mais ou menos entender o meu ritmo, eu tenho um ritmo mais desacelerado pra essas coisas. Talvez por isso eu pareça mais jovem do que eu sou, não sei, mas eu sei que foi assim. Então eu não tive muita pressa de ter relacionamento longo, eu achava que aquilo de aparecer a pessoa certa quando fosse aparecer ia aparecer e ela ia ser a pessoa certa e eu ia saber reconhecer que ela era a pessoa certa. Eu achava que não podia ter muito trabalho pra fazer as coisas. Mais ou menos dessa forma que eu encaro quase tudo. Eu já achava que era duro você lutar pela sobrevivência. Eu sempre gostei dos meus trabalhos, mas chegar até eles e tudo o que você tem que fazer, enfrentar o transporte público, a remuneração que nunca é suficiente para o que a gente quer fazer. A vida do trabalhador é dureza. Então assim, eu já achava que esse lado já era suficientemente duro, fora outras coisas que a gente enfrenta na vida da gente, os problemas que a gente tem, saúde na família, outras questões. Então eu nunca pressionei muito que as coisas tivessem que acontecer. Eu escuto até hoje, até hoje, colega de trabalho hoje, 2017, falando: “Ah, eu tive que casar até os 27 anos”. Eu: “Oi?”. Hoje, 2017, a menina falar que tem que casar até os 27. “Eu estou programada que eu tenho que casar até os 27 anos”. Eu nunca fui assim, então eu acho esse meu lado desacelerado na época podia ser meio estranho para as meninas que estão com os hormônios assim, mas talvez já fosse uma vanguarda, por que não? Da mulher livre, das pessoas livres, não só mulher, o homem também pode casar com 40, com 50, pode não casar. A mesma coisa com filhos. A maternidade era uma questão pra minha irmã, eu nunca fiquei pensando se eu vou ter filho, se eu não vou ter filho. Se for pra ter filho eu vou ter filho, se não for para eu nao ter filho eu não vou ter filho. Eu não ficava pensando que isso ia determinar minha felicidade ou a minha infelicidade. Eu nunca coloquei muito peso nas coisas, eu acho que é isso, eu procuro encarar tudo mais naturalmente, então, não colecionei namorados, mas também...
P/1 – Você casou com quantos anos, Maristela?
R – Trinta e três.
P/1 – Trinta e três. Puxa vida. E aí acho que você me falou até naquelas conversas prévias, que você conheceu ele na faculdade.
R – Foi.
P/1 – Quer falar um pouquinho sobre isso?
R – Letras também! (risos). Nós temos uma história juntos que os filhos até gostam de contar. Porque se vocês me acham uma boa contadora de história vocês não conheceram meu marido, meu falecido marido. Ele era extremamente engraçado, envolvente nas coisas que ele narrava, que ele fazia, fosse escrevendo, fosse narrando mesmo. Ele tinha até um jeito cômico, imitando as vozes dos personagens da TV, de todos aqueles desenhos que ele assistiu, decorou. Eu assisti também os mesmos desenhos, mas parecia que eu estava assistindo de novo quando eu conheci porque ele imitava muito bem. Enfim, nós nos conhecemos num dia que teve um apagão na USP, acabou a luz. Eu não me lembro se foi uma brincadeira porque tinha aluno que falava que colocou bomba, aqueles telefonemas: “Bomba! Tem bomba, evacua tudo”. Mas naquele dia acabou a luz e a gente se conheceu ali através de um amigo em um lobizinho que tem lá onde ficavam as mesas daqueles rapazes que vendem livros usados, eu não sei se ainda tem isso lá na FFLCH, mas tinha isso. A gente sentou ali nos murinhos e a gente se conheceu ali através de um amigo. E deu super certo desde o começo. Não sei, apesar de eu ser uma pessoa bem mais madura, além de ser mais velha do que ele, eu já era muito mais madura. Eu já trabalhava fazia muito tempo, eu já tinha uma série de coisas estabelecidas e ele ainda era muito garotão. Mas intelectualmente ele era muito desenvolvido porque ele era muito inteligente, ele já tinha muita certeza do que ele queria das Letras, ele tinha uma visão, uma paixão pelas Letras que eu não tinha, que a hora que a gente se conheceu e fazia o mesmo curso eu fiquei até meio constrangida: “Nossa, ele gosta mesmo de Letras e eu estou só aqui”. É até meio deselegante falar, mas ali, naquela comparação, eu era aquela que queria o diploma e ele queria entender as Letras, ele queria promover as Letras, ele queria vivenciar. Ele vivia as Letras em todos os aspectos, a linguística, a literatura, a literatura e sociedade, a cultura através das Letras, todos esses estudos, ele realmente fazia imersão nos estudos. E eu estava num nível mais raso, aprendizado. Eu não sei se foi porque eu já comecei a trabalhar então achava que eu já sabia mais ou menos que ganhar dinheiro era assim, você acordar todo dia e trabalhar, não sei se era isso. Ele era bem mais apaixonado pelos estudos. Mas mesmo assim ele não me descartou, ele me classificou: “Essa moça não tem as notas, este não é um bom trabalho, mas tudo bem”. Mesmo assim deu certo.
P/1 – E ele trabalhava, não trabalhava, embora estudava à noite...
R – Ele tinha apenas os bicos ainda, ele dava as aulinhas de inglês. Porque quando nós nos conhecemos ele já tinha morado nos Estados Unidos um período. Então ele já fazia, eu falo bico mas é até deselegante da minha parte, ele dava aulas de inglês nas escolas de inglês pra poder custear alguns gastos que ele tinha. Mas ele também morava com os pais e pra ele estava bom daquele jeito. Porque ele já tinha esta mentalidade de hoje: primeiro eu tenho que ter uma formação bem sólida universitária. Eu venho de uma outra geração. Nós tínhamos cinco anos de diferença, eu era cinco anos mais velha que ele, mas a mentalidade que imperava, a minha era mais conservadora dos meus pais, apesar dos nossos pais terem as mesmas idades, mas eu vinha de uma outra tradição e ele já era mais moderno. A família dele já tinha mais gente com diplomas universitários, então eles já pensavam de uma maneira diferente. A abordagem com os estudos, a relação com o trabalho era diferente da minha família. A minha família era de obreiros e a dele era diferente, não sei nem como adjetivar aqui.
P/1 – Você se formou com quantos anos, Maristela?
R – Com 29.
P/1 – Vinte e nove. Depois de quatro anos vocês casaram, ele era cinco anos mais novo.
R – Sim, ele tinha 28.
P/1 – Vocês namoraram durante quanto tempo?
R – Dois anos e pouco.
P/1 – Dois anos. E logo casaram.
R – Sim, porque nessa idade você já sabe mais ou menos o que você quer, não está. Claro, tem que um conhecer o outro, mas a gente já sabe mais ou menos, então não tem muito. Não sei, talvez eu esteja sendo injusta. Porque esse amigo que eu mencionei que é meu amigo até hoje, ele casou bem mais velho e ele não tinha o que esperar porque ele já tinha o diploma universitário, ele já tinha um emprego sólido, ele já tinha casa própria, ele já tinha tudo, mas ele tinha um outro ritmo de vida. Então assim, não sei, pra nós foi assim. Esse meu amigo, com tudo isso a favor, demorou dez anos pra casar. Foi até super engraçado que a noiva falou que ela contou pra manicure que ia casar e a manicure falou: “Dez anos de namoro já está na hora de divorciar, vai casar agora?”, então assim, ela até ouviu uma piadinha porque eles foram levando. Então não sei, acho que eu fui injusta agora. Mas a gente não precisou de um namoro muito longo.
P/1 – E o que vocês faziam? Vocês passeavam, vocês frequentavam algum lugar? O que ele trouxe – não é uma afirmação, mas é uma hipótese – ele trouxe algum olhar diferente da cidade, das questões até culturais naquele momento da sua vida pra você? Porque ele era, não mais novo, mas porque ele tinha, talvez, uma outra circulação, não sei se você entendeu o que eu quis dizer.
R – Entendi. Pode parecer incrível, mas acho que foi um pouco ao contrário. O que ele acrescentou foi esse amor pelos estudos, a seriedade com que ele estudava, que eu estudava porque era o processo natural, você está estudando porque adquire conhecimento. Ele realmente valorizava muito mais o estudo, ele era muito mais sério nas coisas, ele ia fundo. Tanto que ele foi um PhD, ele foi até o fim, ele ia, esmiuçava o assunto até o fim. Então ele acrescentou isso, mas essa vida cultural eu acho que foi o contrário porque ele era muito garotão e ele viveu num ambiente onde os colegas também eram garotões, de mais farra do que essa vida cultural. Quando nós nos conhecemos, ambos estávamos fazendo a graduação e ele já engatou um mestrado. Ele já fazia iniciação científica e era literatura, o tema era literatura. E ele estudava literatura do holocausto, o que é um tema muito pesado. E ele era uma pessoa muito sensível. Então eu falava: “Acho que esses estudos são um pouco fortes pra você, você precisa dar um tempo porque não é fácil você estudar essas coisas, você vai mexendo, você vai descobrindo”. Ele estudava, ele ganhava o conhecimento, mas ele sofria ao mesmo tempo. Então eu cheguei a falar: “Acho que está um pouco pesado pra você”, ele fez na iniciação científica. Então quando ele se formou e quis engatar um mestrado, ele quis dar uma aliviada. Mesmo porque a gente ia casar e tal, então ele tinha outras coisas pra se dedicar também, então ele continuou nessa linha, mas ele mudou um pouco o foco, ele começou a estudar teatro, ele foi pro teatro norte-americano. E você tem que fazer um recorte e nesse recorte ele escolheu, pra poder dar continuidade aos estudos que ele já tinha, Arthur Miller, então ele começou a aproveitar os conhecimentos que ele já tinha às peças de Arthur Miller, por exemplo, pra ver se já tinha uma literatura do holocausto ali inserida na obra de Arthur Miller. Então foi esse o trabalho. E praticamente fui eu que apresentei o teatro pra ele porque ele tinha pouquíssima vivência, ele não tinha ido quase a nenhuma peça. Ele saía pra farrear, ele era esse tipo de garotão que vai assistir filmes de aventura e não sei o quê e eu já conhecia uns filmes mais artísticos, eu já tinha um outro gosto. E era muito engraçado, eu achei muito interessante nele: uma pessoa tão intelectualizada com um gosto tão (risos) simples, pra dizer assim, era meio incompatível. Nossa, não combina, um cara tão intelectual e ele vai ver Rambo? E gosta? Como é isso? Simplesmente porque ele não tinha sido apresentado. Porque a tradição dele de escolher a diversão era: “Vamos ver o que os amigos estão indo ver”. E eu já vinha de uma tradição de eu escolher aquilo que eu quero ver, eu selecionar. Eu sempre fui muito seletiva. Ele ia com a turma. Então eu acho que ele achava que a seriedade estava na academia, nessas outras coisas, que diversão era diversão. Tem diversão muito séria, que pode acrescentar muito na tua vida, então eu acho que eu apresentei isso pra ele. Ele, por outro lado, me apresentou os estudos mesmo, o conhecimento na forma mais ampla da palavra, não só aquele conteúdo que está dentro dos livros, ou que o professor te transmite, ele ia muito além, muito mais fundo. E isso era uma experiência que não tinha, tanto que terminei lá, já estou trabalhando: “Ah, vamos ver o que será que eu quero fazer na faculdade”. Nem me preocupei em escolher. E ele também teve as dificuldades dele pra escolher, ele também pensava que ele queria trabalhar, mas ele queria estudar. Tanto que ele fez um curso antes de fazer Letras, dele parar e falar pra ele mesmo: “Não, eu quero fazer Letras”. Ele foi tentar fazer uma coisa que fosse ser mais rentável e que tivesse mais oferta de trabalho, ele tentou, mas daí ele não gostou e foi pra Letras. Então acabou juntando, nós nos somamos ali, até intelectualmente.
P/1 – Em relação a esse olhar que você conseguiu agregar pra ele, onde que você buscava isso, você lembra, Maristela? Você falou que praticamente apresentou o teatro pra ele, né? Onde que você buscou um pouco esse teatro? Cinema você já falou que frequentava. Mas como foi isso, o que você lembra?
R – Então, começou lá atrás que eu falei, eu comprei primeiramente, logo que eu comecei a trabalhar, aqueles ingressos pra teatro, mas acabei não gostando. Inicialmente eu ia numas peças de teatro, esses blockbusters também, que são autores globais e famosos, mas eu não gostava muito. A minha irmã teve um namorado que ia para umas peças que ninguém estava vendo e ela acompanhava. Minha irmã não era muito assim de teatro. Eu demorei um pouco. Quando eu apresentei o teatro para Alexandre, com todo aquele intelecto, ah, ele aprendeu em dois dias, né? Ele já sabia o que era de qualidade e o que não era. Aí nós começamos a fazer juntos essa busca, então a gente descobriu tudo em São Paulo. O SESC, os teatros que são chamados aqui também de off-broadway, que tem os teatros recuperados lá no centro, umas salas, uns grupos, o grupo Folias, o grupo Companhia do Platão que eu gosto muito. A gente foi descobrindo. A orientadora dele também conhecia, ela é fomentadora de teatro popular, então a gente vai descobrindo, a gente vai indo, vai indo, vai indo e vai achando.
P/1 – E dessa época tem algum espetáculo, até mesmo em SESC, que você lembra que marcou um pouco mais, que talvez vocês tenham assistido juntos, seja um espetáculo de música ou até mesmo de teatro, alguma outra frequência numa outra, enfim, presença de vocês no SESC que talvez tenha sido mais importante ou mais bacana. Não sei, o que você lembra dessa época meio de namoro, onde vocês iam?
R – É, o que eu posso mencionar, ainda falando de teatro. Teve um ano que tinha uma comemoração do Nelson Rodrigues e os ingressos custavam um real. E todas as peças do Nelson Rodrigues foram apresentadas por um real e a gente foi em todas. Foi muito legal, essa foi uma experiência que foi sequencial, foi muito legal ver Nelson Rodrigues por um real. Eu não conhecia tudo, a gente fez essa maratona Nelson Rodrigues, isso foi especial. Mas tirando essa experiência acabou sendo uma coisa dos estudos dele, mas também a nossa diversão. E nesse sentido o SESC resolve muito bem, porque tem programação de qualidade com preço justo, então a gente começou a consultar o Guia da Folha, por exemplo, que aponta lá todos os filmes em cartaz, as peças de teatro e a gente foi escolhendo assim. Com relação especificamente ao SESC, eu acho que o SESC foi quase único quando a gente teve filhos, o teatro infantil. Aí sim a gente praticamente só foi no SESC. Porque o teatro infantil era uma coisa mais nova. Eu tenho umas sobrinhas que são mais velhas, a minha irmã casou primeiro e teve os filhos logo, então minhas sobrinhas são mais velhas que os meus filhos. Então as minhas sobrinhas tinham bem menos oferta do que os meus filhos tiveram. Mas, por exemplo, a minha primeira filha Amanda, que tem hoje 15 anos, o pai já fazia esse trabalho de mestrado, de pós-graduação com teatro e ela já frequentava a escola. E a escola levou numa peça de teatro. Ele ficou muito sentido porque ele queria ele ter levado a filha a primeira vez ao teatro. Ele falou: “Como eu não fiquei sabendo e a escola levou e eu queria ter levado”. Eu falei: “Não se prenda a isso, ela nem vai lembrar dessa peça, a gente pode resolver isso”. Aí uma vizinha trabalhava numa escola, a Humboldt, que fica lá na represa de Guarapiranga, ela é casada com um alemão e ela falou: “Ah, vai ter uma peça de teatro infantil lá no Humboldt, vocês não querem levar a Amanda?”. Eu falei: “Ah, queremos sim”. E fomos. A Amanda respondeu tão bem à peça de teatro que a gente: “Opa. Nossa, acho que é um caminho”. A Amanda quis convidar uma avó pra ver, depois ela quis convidar a outra avó e a gente viu aquela peça várias vezes. E o ingresso era muito caro (risos). O teatro é bacana, é bonito, a escola é longe, lá na represa, muito legal, muito bem localizado, mas longe. Aí eu falei: “Não, vamos ver o SESC”. Quando eu vi que as peças circulavam e que elas necessariamente passavam pelo SESC, eu pensei: “Não tem porque eu comprar ingressos mais caros se eu quero ver tudo”. E eu comecei a me afeiçoar aos grupos de teatro infantil também. E praticamente toda o currículo teatral dos meus filhos é via o SESC, eles têm uma fortuna crítica incomparável com os colegas deles nas idades deles. Pode ser que daqui pra frente isso mude, mas até hoje eles adquirem essa fortuna crítica nessas experiências. E são experiências prazerosas, não foi: “Nossa, coitada da criança, ela quer ir no parque e você está levando pro teatro”. Não, ela respondeu bem à primeira vez que ela foi, por isso a gente repetiu a experiência. E ela volta no teatro infantil até hoje, ela tem 15 anos mas ela se sente super confortável. Ela gosta de ver as peças infantis. Eles têm outro olhar agora, eles olham as técnicas, a linguagem, o discurso, a atuação. Se é teatro de boneco, se o boneco está muito humanizado ou se ele está com material reciclado, mas é isso aí, só pra ter uma noção. Teatro de sombras, teatro negro, eles conhecem tudo e eles analisam. Às vezes quando saem das peças eles fazem comentários que eu não faria. Então é super, valeu a pena e continua valendo. Então nessa parte do teatro infantil eu acho que eu só posso listar o SESC, a gente foi em outros teatros, mas o SESC faz um trabalho maravilhoso e ficou super fácil pra gente. Tanto que a gente não vai só no SESC próximo de casa, a gente começou a olhar os outros, eu conheço praticamente todos.
P/1 – Todos.
R – Praticamente. Os meus filhos conhecem todos, eu não.
P/1 – Vou voltar um pouquinho atrás do ciclo do Nelson Rodrigues. Foi no SESC esse ciclo?
R – Não. Foi no Sérgio Cardoso, que é na Brigadeiro Luís Antônio. Ele é grandão e foi uma experiência legal porque a gente via grupos de escola, jovens adolescentes da periferia que nunca tinham pisado num teatro. O ingresso era um real, aí a professora levava, né? “Vamos lá levar, tal”. As pessoas não sabiam nem como se comportar no teatro vendo aquilo. E pra nós foi uma maratona muito legal de fazer.
P/1 – E você conhece praticamente todos os SESCs da cidade de São Paulo, é isso que você falou agora há pouco.
R – Sim.
P/1 – Quase todos. E o interessante, Maristela, eu estou sempre tentando puxar a questão da cronologia da coisa. Você namorou dois anos, acabou a faculdade, se formou. Depois casou, certo?
R – Nossa, vou ter que repassar as datas na minha cabeça, pera um pouquinho que eu vou me lembrar quando eu me formei (risos).
P/1 – Não, não precisa, só pra achar o fio da questão. E você comentou comigo numa daquelas conversas informais, aquela questão muito interessante, que eu nem lembro se você já tinha filhos já, do almoço no SESC Pompeia. Lembra, da sua sogra? Não foi? Que achava que o SESC era quase uma... é bem interessante isso, você quer falar sobre isso? Até puxar da onde.
R – É, vou falar um pouquinho. Tem uma pergunta que você não fez, né? Quando foi a primeira vez que eu fui no SESC. Quando eu ainda estudava, eu estava ainda no primário, porque chamava primário, a escola fazia umas competições de quem leva mais prenda para a festa junina a tal e teve um ano que eu estava no segundo ano e a minha sala ganhou. E o passeio foi pro SESC. Que eu me lembre foi o primeiro SESC que eu fui. O meu pai já tinha falado muito disso. O meu pai não levava a gente pra passear, mas quando ele pensava no passeio ele pensava nisso, num lugar que tivesse um lago, que tivesse um pouco de natureza, que tivesse várias opções e que não necessariamente custassem dinheiro, que não fosse parques de diversões que você tivesse que pagar por cada brinquedo. Meu pai pensava uma coisa diferente. E eu praticamente não conhecia isso porque eu nasci em São Paulo numa São Paulo mais árida, hoje está bem melhor nesse sentido, mas na época era muito árida. E eu lembro que ele comentou: “Ah, tem um SESC Campestre, é meio campo, mas é na cidade, é um pouco distante, mas tem pedalinho”. Eu nunca tinha visto pedalinho. O meu pai falou tudo isso, comentou e aí aconteceu da minha sala ganhar e a gente ia. Meu pai ficou eufórico: “Nossa, ela vai conhecer o SESC Campestre, que legal!”. Nós fomos, eu fui com a escola, achei super bonito, um parque grande, gostei muito. Meu pai ficou super satisfeito de ouvir o meu relato que eu tinha feito, que eu tinha andado de pedalinho e tal, que era uma coisa que ele contava que ele tinha feito e que ele não conseguiu apresentar pras filhas, aí eu fiz isso. Então o primeiro SESC foi o SESC Campestre, lá em Interlagos, que agora mudou de nome, eu acho. Depois o SESC entrou na minha vida porque eu queria essa vida cultural com esse colega que eu falei, a gente ia em show, exposição. Muita coisa era oferecida pelo SESC a preço acessível. Tanto eu quanto ele, a gente tinha empregos que permitiam que a gente pudesse fazer algum passeio, mas a gente tinha responsabilidades com a família, não dá pra gastar tudo. Ele, por exemplo, pagava aluguel sozinho, ele e o irmão, então não sobrava muito pra diversão. Então o SESC sempre foi uma opção pra quem quer participar disso, a cultura do entretenimento, da diversão, do lazer, sem necessariamente ter que deixar parte do salário. Então se encaixou muito bem a proposta do SESC com as nossas necessidades. E quando eu já namorava o Alexandre a gente falava do SESC, dos teatros, a gente começou a ir e realmente ele falou: “A minha mãe tem um pouco de preconceito do SESC”. Eu: “Por quê?” “Porque minha mãe vem de uma tradição um pouco burguesa, uma mentalidade burguesa, famílias portuguesas, quatrocentonas”, eu falava quinhentonas agora quase, agora são quinhentos. “Ela acha que é muito popular”. Eu falei: “O meu pai, pelo contrário, ele ficou super feliz quando eu conheci o SESC Campestre”. Ele falou assim: “A minha mãe achava um horror porque ela achava que as populações periféricas invadiam as piscinas e que seria...”. Eu falei: “Não, acho que não é assim. Na piscina eu não fui, mas eu não tenho essa impressão”. Nessa época a minha irmã estava morando lá num bairro próximo de Interlagos e eu falei: “É a opção que a minha irmã tem pra levar os filhos. Ela vai e não é ruim”. Aí a minha irmã chamou a gente um dia, nós éramos namorados ainda, e nós fomos lá com as crianças da minha irmã e ele: “Nossa, mas é tudo bonito mesmo, tal”. E isso o Alexandre tinha, ele sabia olhar o que era bom e o que era de qualidade. Então ele não se deixava colocar barreiras por preconceito, ele ia lá e via com os olhos dele, então ele concordou plenamente. Mas mesmo a minha sogra não precisou de muito esforço pra mudar a opinião dela porque, à medida em que o SESC foi se aproximando dela, ela precisou fazer ginástica, tinha uma unidade ali na Rebouças, foi a opção que ela teve porque aí ela já estava economicamente inativa, ela não estava trabalhando mais, já não tinha tanto dinheiro e ela podia buscar uma academia e ela começou a aceitar: “Pra ginástica está bom”. Quando ela começou esse processo a gente levou, convidou a minha sogra algumas vezes pra ir no SESC e ela começou a experimentar um outro olhar. E aí ela ficou também muito satisfeita em saber que ia inaugurar um ali perto da nossa casa em Pinheiros. Porque aí seria grande com toda oferta. Nisso o SESC eu acho que já estava vendendo a imagem do que ele realmente é, estava tendo uma aceitação. Cresceu o público, crescendo o público cresceram as ofertas de entretenimento, lazer, cultura, tudo. Então mais pessoas começaram a apreciar, eu acho que foi mais ou menos assim. E o restaurante veio muito a calhar, minha sogra não gosta de cozinhar, então ter a comida e você não precisar se aprontar, vestir uma roupa pra ir num restaurante. Puxa, você pode casar todas as coisas, você pode assistir a uma peça de teatro. Nossa, eu acho a proposta, meu, não podia dar errado, né? Eu pensava: “Como não gosta, como não aprecia, como não vai”. Já era totalmente oposto. Então depois que o SESC se aproximou começou a ser o palco de reuniões familiares, a gente formava altas mesas. E foi super curioso que ela fez a carteirinha do SESC e não colocou o marido, meu sogro, ela nem sabia que ele poderia ter uma carteirinha dado o desinteresse. Mas não é só desinteresse também, eu acho que a gente de repente não pensava nisso porque eu mesma tive a minha mãe e a moça precisou me falar que a minha mãe poderia ser a minha dependente. Mas, enfim, a gente vai descobrindo isso com o tempo. Isso me lembra uma história do médico que foi o obstetra da minha gravidez, que eu quase não ia ao médico, então ele perguntava: “A senhora já fez isso?”. Eu estava grávida e tinha que fazer pré-natal e eu falei: “Não, não estou acostumada a ir ao médico”. Ele falou assim: “Isso deve vir da sua mãe” “É, minha mãe não vai no médico mesmo”. Ele falou: “Porque simplesmente não fazia parte da vida das pessoas procurar um médico. Não é que a pessoa seja desleixada com a saúde, mudou, isso mudou, agora as pessoas procuram médico e cuidam da saúde. Antes cuidar da saúde era não fazer nada mal pra sua própria saúde, nada contra você. Hoje é diferente, você tem que prevenir também”. Então eu acho que a cultura também foi mais ou menos um processo parecido, né? Antes a diversão tinha um modelo já formatado: “Ah, você tem que se vestir bem, você tem que estar bonito, bem arrumado”, isto é sair no sábado à noite. Isto mudou e é muito legal. Então acabou que a família foi acompanhando essa evolução dos costumes.
P/1 – Você comentou comigo também que você e seu namorado na época, vocês faziam aula no SESC que existia na Avenida Rebouças.
R – Sim, fazíamos aula. Como foi isso? Eu não gosto de ginástica, nunca gostei, parece que eu faço, mas eu não fazia. Mas eu trabalhava com uns estrangeiros e os estrangeiros têm a prática esportiva regular na vida deles. E eu fui me tornando muito próxima do meu chefe e o meu chefe falava assim: “Você não faz nenhuma prática esportiva?”. E ele jogava tênis, nadava, corria, ele fazia todos os esportes. Mergulhava. Fazia muitas coisas. E ele um dia falou: “Você precisa fazer alguma atividade física”. Quando eu fiz 30 anos eu estava no escritório e ele me presenteou e deu um cartão escrito todo em alemão. E eu precisei pedir para uma pessoa ler pra mim. Ele falou: “Não, você vai descobrir o que está escrito aí” (risos). Ele não quis traduzir, ele escreveu em alemão e eu falei com uma pessoa, como eu já tinha feito Letras e tinha alguns amigos que eram do alemão, e a pessoa leu pra mim. E ali falava que era uma nova fase na minha vida e que era para eu aproveitar. E um dos conselhos que ele dava ali era para eu introduzir uma atividade física, que a partir dos 30 anos isso se tornava necessário, na opinião dele. E ele falava: “Você vai gostar porque faz bem. Comece devagar”. Era o aconselhamento dele para essa nova fase. E aí eu falei: “Nossa, já está começando a pegar mal, acho que eu vou ter que fazer alguma coisa” (risos). Eu fui nesse SESC, tinha ginástica e o Alexandre era muito incentivador. “Se precisa de companhia eu faço junto”, então ele apoiava muito as coisas e ele foi fazer junto comigo, era super desconcertante pra ele porque só tinha mulher na aula, mas ele fazia porque ele era um companheiro de verdade. Então a gente começou no SESC Rebouças. A minha sogra foi também porque aí ela precisava fazer ginástica e assim foi crescendo o nosso convívio.
P/1 – Vocês casaram, tiveram os filhos, a... desculpa, esqueci o nome dela.
R – Amanda.
P/1 – A Amanda nasceu um pouco depois que vocês casaram.
R – É. Nós nos casamos em 98, ela é de 2002. Sem pressa.
P/1 – Então veio a Amanda, você continuou trabalhando com comércio exterior, naquelas empresas.
R – É, só que daí eu já não estava mais na navegação, aí já era o comércio mesmo.
P/1 – E o seu marido dando aula em faculdades. Ele já estava indo pro doutorado mais ou menos, né?
R – Agora eu tenho que falar um pouco do Alexandre. Quando nós nos conhecemos ele dava as aulinhas de inglês e fazia a iniciação científica. Como ele tinha pretensões mais sérias, ele queria casar, ficou meio claro que para casar tinha que arrumar um emprego, essas coisas meio básicas, pelo menos eu penso assim. Eu já tinha uma série de responsabilidades, já era relativamente madura, eu falei: “Não vou sair, tenho responsabilidade com a minha mãe, tenho conta pra pagar e essa conta também vai comigo enquanto ela viver, então não dá improvisar”. Ele começou a entender dessa maneira, a relação com o trabalho na minha família era diferente da relação da família dele com o trabalho. A minha família sempre trabalhou pela subsistência e a família dele trabalhava por realização profissional também, isso era totalmente novo pra mim, os meus pais trabalhavam pra ganhar dinheiro e pagar as contas. Era meio novidade. Eu também já estava nessa: “Ah, quero uma coisa legal pra fazer”. E gostei da primeira coisa que eu fiz, escritório, então fiquei nessas. O Alexandre não gostava de escritório, ele achava que era muito preso você ir todo dia no mesmo lugar, na mesma hora, fazer a mesma coisa. Ele gostava de circular mais, tal, então dar aula já é um pouco mais livre, dentro da sala de aula é você que determina mais ou menos, você pode ter várias escolas. Escritório não, é aquele. Então ele começou pensar diferente. Mas essas aulinhas não remuneravam bem e ele queria casar e queria assumir certas responsabilidades e tal. Aí de novo entrou a Maristela. Como eu já era mais madura nessa coisa de trabalhar pra pagar as contas e também acho, como ele não está mais aqui pra falar, pra me contestar, vai ficar aqui a minha versão. Ele, por ser uma pessoa mais sensível, ele demorava mais a resolver certas questões internas. Eu já tinha muito bem resolvido, escritório, gostei, é isso. Bom, se remunerar mais, melhor. Eu tenho que gostar do chefe porque eu vou trabalhar todo dia com essa pessoa. Então assim, as coisas eram mais fáceis pra mim, ele questionava mais, ele era mais questionador, ele pensava mais a existência. Ele estudou existencialismo, ele foi fundo no holocausto, essas coisas. Então até pra pensar o que vai te trazer realização profissional, pra ele foi mais difícil do que pra mim. Como a gente fez a mesma faculdade, cursou as mesmas coisas e ele era muito mais apaixonado pelo produto que estava ali do que eu, mas eu via com mais distanciamento e talvez com mais clareza. Aí eu falava: “Mas Letras não é só você dar aula”. Porque o que incomodava o Alexandre, ensinar ele gostava muito, mas ele não gostava, ele ficava extremamente frustrado quando o aluno não correspondia à expectativa dele, não tinha o prazer em aprender. Isso era muito frustrante pra ele e ele começou a questionar porque a aulinha de inglês era muito objetiva, a aulinha de idiomas, a pessoa está lá pra aprender a falar outro idioma, ela não quer muito mais do que aquilo. Quem quer muito mais do que aquilo vai num centro cultural, um outro tipo, outro formato de escola, diferente, não vai fazer só conversação, vai fazer cultura, um monte de coisa. Enfim, a gente começou a conversar muito sobre isso e eu praticamente, eu acho que eu fiz um coaching, eu mostrei pra ele as outras possibilidades. Aí eu falei assim: “Você já pensou que Letras tem muito mais coisa pra fazer, não é só sala de aula?”, porque eu faço Letras e não passa nem pela minha cabeça dar aula. Tudo bem, eu tenho meu emprego, é no comércio internacional, não está muito bem relacionado, mas tem redação de jornal, tem revista e tem editora. A minha prima trabalha numa editora, ela faz a contabilidade lá, mas é uma editora. É um trabalho legal, esse é um trabalho que eu faria. Aí ele despertou para uma outra oportunidade, uma outra possibilidade. Ele começou a vasculhar essa coisa e o currículo dele com todas aquelas credenciais, não foi difícil ele arrumar um emprego na editora. Quando ele arrumou o emprego na editora ele ficou muito confortável, é uma editora de livros didáticos onde o senso crítico dele tinha um valor, ele fazia a leitura crítica do material didático, que é um trabalho super importante. Então ele começou a ficar bem nesse trabalho. E o trabalho, além de satisfazê-lo, remunerava legal. Então ele ficou super contente, se estabilizou naquele emprego e a gente pôde casar. Ele continuou estudando, permitiu tudo isso, então foi muito produtivo. E eu fico feliz de eu ter ajudado nesse sentido, dele poder se realizar. Acho que agora a gente tem que parar (emocionada).
PAUSA
R – Uma das coisas que me deixaram chateada quando eu perdi o meu primeiro emprego foi porque quando eu fui buscar um outro emprego começaram a surgir ofertas de trabalho que trabalhava no sábado e eu não queria. Eu falava: “Não, trabalhar no sábado, não”. Então assim, eu me assustei um pouco, era muito novinha: “Não, já pensou se agora eu tiver que trabalhar no sábado”. Então isso foi uma coisa que eu já tinha, eu acho que eu nasci pra trabalhar no escritório porque é semana de cinco dias (risos). Eu procurei um pouco fugir. Eu me lembro que eu perdi esse primeiro emprego e a minha mãe me acompanhou num emprego que era longe, numa proposta que eu tive e que era um hospital. A ideia já me aterrorizou. Mas eu não falei pra minha mãe porque quando você tem 15 anos você não sabe direito por que aquilo te aterroriza. Bom, claro, porque eu gostava do meu emprego anterior que era muito legal, mas quando eu cheguei lá e a semana não era de cinco dias, aí essa foi a desculpa que eu falei pra minha mãe: “Eu não quero trabalhar aqui porque vai ter que trabalhar de sábado”. E a minha mãe também não gostou muito de um horário meio diferenciado, então ela acabou aceitando: “Tudo bem, vamos ver se aparece uma outra coisa”. Hoje eu sei que eu não gosto de trabalhar no final de semana e não gosto da área de Saúde, eu não me sinto preparada. Então eu não sabia isso naquela época, não sabia colocar em palavras, mas eu não queria trabalhar na área de Saúde. Então de certa forma escolher Letras pode ter parecido meio assim, mas foi acertado na medida em que é na área da Educação e não na área da Saúde ou outra que eu não tenha tanta afinidade. Então acabou sendo acertado, mesmo sem saber. Eu não sei se é isso que as pessoas chamam de feeling, que você não sabe de onde vem, mas você acha que tem que ser aquilo. E foi assim.
P/1 – Assim, a gente pode ter um monte de dúvidas sobre o que a gente quer, né, mas tem certeza sobre o que não quer (risos).
R – Verdade (risos).
P/2 – Você já nos falou da Maristela neta, filha, falou um pouco do namoro, casamento com o Alexandre. E a Maristela mãe? Você já falou bastante dos seus filhos, mas e a Maristela mãe?
R – Essa é a parte que eu mais gosto. Pelo menos é a parte mais atual. Talvez eles agora, já na adolescência, eu tenha um pouco que deixar esse mãe de lado porque já não fica tão bem, eles não vão curtir tanto essa presença constante. Mas ser mãe pra mim também era uma coisa natural, poderia acontecer ou poderia não acontecer. Não seria a realização da minha vida, eu acho que eu não seria uma mulher amarga se eu não tivesse tido filhos, mas eu fico feliz que eu tive, que deu tudo certo porque é uma maravilha. Foi muito tranquilo a decisão de ter filhos. O Alexandre também não pensava: “Eu vou casar, vai ter que ter filho”. Não. Não sei. Primeiro a gente quis casar, viver juntos. Vivemos juntos e depois: “É, e se tiver um filho, será que a gente dá conta?”, começamos a conversar sobre isso, o assunto vai surgindo. Por isso que eu acho que é natural mesmo, primeiro uma coisa e depois outra coisa. Não que a pessoa decida ter um filho sozinha seja ruim, não sei, mas pra mim teria que ter assim, eu não me via numa produção independente e nem nada, mas acabou acontecendo que hoje eu sou independente, eu estou sozinha com meus filhos, eu tenho que dar conta. Se eu estou dando bem a conta ou não, ainda não sei. Eu acho que sim, eu acho que eles são crianças legais, eu tive muita sorte, as pessoas acham que eles estão bem. Então por enquanto está tudo bem. Mas como foi a decisão? A gente conversou bastante: “Ai, um filho, como seria”. E o assunto foi desenvolvendo de boa, como falam e de repente: “É, acho que não seria ruim”, foi melhorando essa conversa, a gente foi ficando mais animado assim, aí veio a Amanda. Ela foi muito bem-vinda, foi a primeira menina, a primeira neta na família dele, então foi uma alegria muito grande pra eles. E pra minha família também foi uma alegria muito grande. A minha irmã nasceu para ser mãe, ela queria muito, isso ela falava. Quando ela era pequena ela cuidava do filho dos outros, baby sitting era um trabalho que ela queria fazer e que ela fazia. Eu já não tinha esse jeito. Eu comecei a me aproximar de criança com as minhas sobrinhas. Eu acho que eu tinha um pouco o jeito da minha mãe. A minha mãe, lembra que eu falei que a minha mãe falava: “Ah, os meus filhos vão incomodar brincando na casa dos outros. E se faz alguma coisa que desagrada?”, eu tinha um pouco essa insegurança. “Eu vou mexer no filho de outra pessoa? A criança é uma coisa sensível, frágil, como é que eu vou fazer? O que eu posso falar e o que eu não posso falar”, eu não tinha muito essa segurança. Mas como a minha irmã teve filhos, as minhas sobrinhas eram muito queridas, foi próximo. Aliás, isso é uma coisa que eu acho que eu devo mencionar porque quando a minha irmã teve o primeiro bebê que eu me toquei do milagre da vida. Quando eu cheguei em casa, a minha irmã teve o bebê e foi pra nossa casa com a minha mãe, eu vi aquele bebezinho não foi no hospital, eu vi em casa, eu vi aquilo, só eu e ela. Porque a casa tinha dois andares, a minha irmã tinha chegado do hospital e estava embaixo comendo. Eu falei: “Cadê o bebê?”, ela falou: “Está lá em cima”. Eu subi, numa cestinha, aquela criança, aquela coisinha pequenininha. Eu tenho o maior carinho pela minha sobrinha mais velha porque ela foi o primeiro bebê que eu vi e constatei o milagre da vida. Não que eu goste mais dela do que das minhas outras sobrinhas, claro que não, elas são meninas maravilhosas, eu gosto de todas elas, mas essa experiência foi a primeira que me proporcionou. E depois as outras eu já sabia e sabia até como apreciar esse milagre da vida, quando veio a segunda e quando veio a terceira. Aí a minha terceira sobrinha eu assisti a esse mesmo processo o Alexandre passando por esse mesmo processo porque ele nunca tinha tido uma criança pequenininha na família dele. E ele viu a minha irmã engravidar da terceira criança, ele viu o desenvolvimento da gestação e ele viu a criança nascer. E o Alexandre era muito grandão, um metro e 90, um homão grande. Quando ele pegou a criança assim, pequenininha, eu vi nele o que eu tinha passado com a minha primeira sobrinha, né? Então isso facilitou esse contato de filho, de o que é duas vidas gerarem uma outra vida. Então eu já estava preparada. Eu acho que tudo isso foi nos preparando. E por isso que eu acho difícil quando é uma mãe muito jovem, um pai muito jovem, porque nem viveu tudo. Eu gostaria que as pessoas tivessem filhos da maneira que eu tive, no momento que eu tive, preparada. Porque a vida é algo muito precioso e você, além de você cuidar da sua vida, e você tem que cuidar bem, você dar início a uma outra vida. E depois você levar essa outra vida adiante, eu não tenho palavras, eu não sei o que dizer, se é espetacular, se é... eu não queria usar a palavra milagre, mas é um milagre essa coisa assim. É muito bonito além de tudo. Então foi muito fácil, quando você está vivendo bem com uma pessoa chegar a isso, que queremos ter um filho juntos. Aí a Amanda veio, só trouxe alegria, ela é uma criança muito alegre. Então foi muito bom porque a gente estava tão preparado para isso que a gente, sem perceber, abdicou das outras coisas e passou a curtir coisa de criança. Tanto que as experiências culturais passaram a ser infantis porque a gente não sentia falta nenhuma: “Ah, vamos ver coisa de adulto”. Mesmo porque eu também não posso me queixar, né? Se eu precisasse ver alguma coisa de adulto eu tinha apoio pra fazer isso, mas era por opção, a gente estava curtindo mais coisa de criança do que coisa de adulto naquele momento. O segundo filho foi outra reflexão, foi totalmente diferente. A gente já tinha optado que a gente queria ter filho, já tinha um. O segundo filho foi pensando no primeiro filho. Eu tinha claro pra mim que eu não queria ter sido filha única e que eu achava que minha filha não ia querer ser filha única. Então foi muito fácil decidir. É bom ter irmão, é bom conviver com outra pessoa, dividir as experiências, ter um histórico parecido, senão, eu não sei, dos meus amigos da infância eu lembro até por acaso o nome dele não surgiu aqui antes quando vocês perguntaram com quem eu brincava, ele era um vizinho que foi um vizinho um pouco mentor. Ele era filho único, acho que era o único ali do grupo que era filho único. E ele dizia que ele queria ter um irmão. E essa prima que eu citei do Paraná também, ela é filha única e ela sempre diz que ela queria ter um irmão. E ela não teve e ele não teve. Então eu tinha já essa pesquisa já encerrada na minha vida: todo mundo que tem irmão está satisfeito por ter tido irmão. Ninguém fala: “Eu queria ter sido filho único”, ao passo que todos os filhos únicos declaram que gostariam de ter tido um irmão. Então não tem jeito, já venceu, é bom ter irmão. Então, eu não tive dúvida nenhuma que a gente queria um segundo filho. O segundo filho veio naturalmente, a gente já estava inserido naquele contexto de criança, da puericultura total na casa, tal. E é diferente porque aí você já tem um, você tem que dividir a atenção, preocupação, o trabalho, trabalho dobrado. Então é bem diferente, mas é muito bom pra gente e pra eles, então foi. E hoje eu penso: “Que bom que eu tive filhos, que bom que a vida caminhou nesse sentido, que bom que eu conheci o Alexandre, que bom que deu tudo certo”. Apesar que em algum momento vai ter uma baixa, vai acontecer alguma coisa, mas vale a pena. E isso é mais do que ter filho vale a pena, ao ter filho eu percebi que a vida vale a pena. Quando eu decidi ter filhos eu dei um voto de crédito pra humanidade porque eu ouvia as pessoas falando: “Ah, imagina, pôr filho nesse mundo”. Não, a vida vale a pena. Às vezes ela é ruim, as pessoas tornam a vida mais difícil, mas vale a pena. Então é fazer o seu melhor e eu acho que gerar outra vida é dar o seu melhor. Não pode haver nada melhor de uma pessoa querer. Eu acho que eu contribuí para a humanidade (risos).
P/1 – Agora quem vai chorar é a gente, né? (risos).
PAUSA
P/1 – E Maristela, e a diferença de idade da Amanda e do Daniel é?
R – Dois anos, 11 meses e alguns dias, que a Amanda sabe de cor e eu não fiz a conta.
P/1 – Enfim, quase três anos. Hoje ela está com 15, ele tem 12.
R – Sim.
P/1 – Tá. E vocês continuaram frequentando o SESC todos juntos.
R – Todos juntos. O Daniel se orgulha de dizer que o SESC de Pinheiros tem a idade dele. Porque ele é de 2004 e o SESC é de 2004. Então eu fui no SESC quando eu estava de licença maternidade, então ele foi junto comigo. A Amanda também estava junto. O SESC Pinheiros, mas os outros ele foi na barriga também.
P/1 – E o que eles já fizeram, o que vocês já fizeram juntos no SESC e continuam fazendo?
R – O SESC proporcionou tudo aquilo que quando pequena eu queria pra minha vida, nem se usava falar qualidade de vida, mas de certa forma eu já pensava nisso, o que eu vou fazer além de trabalhar, pagar as contas e fazer o que todo mundo faz? Eu queria ter essas experiências, diversão, entretenimento, esporte, cultura, lazer e o SESC preenche tudo isso. Para a nossa família, a gente brinca que até a nossa casa, até os amigos já sabem, é muito corrente porque a gente já fez de tudo no SESC. A Amanda aprendeu a nadar lá, o Daniel também. Eles foram curumins, agora eles fazem o Esporte Jovem. Tudo o que o SESC oferece a gente dá uma olhada pra ver se a gente pode curtir, porque a gente gosta de verdade. Ele até falou que não queria uma declaração chapa branca, eu falei: “Então não pode me convidar porque eu sou praticamente uma embaixadora do SESC”. Eu acho que todo mundo deveria conhecer o SESC, deveria frequentar. Eu fiz isso até no local em que eu trabalho porque eu sou funcionária pública federal e os funcionários públicos federais não são comerciários, não têm acesso ao SESC. Mas devido à nossa parceria, nós somos vizinhos à Unifesp, a Unifesp, universidade onde eu trabalho é vizinha a uma das unidades do SESC. E como essa unidade é provisória, do SESC, a nossa também, mas a gente está um pouquinho melhor instalados do que eles, eventualmente eles precisam de alguma coisa nossa. E nós também precisamos deles. Mas o SESC, como tem atividades variadas diariamente, eles foram os primeiros a darem uma diversificada e precisar pedir uma xícara de farinha emprestada do vizinho, né? E isso inaugurou uma parceria muito exitosa e que me dá muita satisfação. Aí eu tive a ideia de pedir pra direção, solicitar, consultar a possibilidade da gente ter a matrícula MIS lá na universidade. Porque eu descobri essa matrícula MIS, eu sabia que tinha uma outra categoria que eu nunca tinha me preocupada qual ela era porque eu sempre fui comerciária. Mas quando eu passei a ser funcionária pública, aí eu já não tinha mais isso, eu falei: “Não posso viver sem o SESC. Como eu vou fazer agora?” Isso foi uma preocupação, mas quando eu cheguei ali naquele câmpus Osasco e o SESC estava ali do lado eu falei: “Nossa, mas isso é incrível, né? Tinha que ser vizinho, só podia ser assim”. O SESC de novo no meu caminho. Eu fiquei super feliz e aí foi surgindo, a gente escreveu um ofício e deu tudo certo. E isto agradou muito aos meus colegas porque também ali tinha colegas que não conheciam o potencial do SESC e eu acabei apresentando. E isso foi tão longe que os outros campi da instituição já me consultaram como que eles podem fazer porque se nós podemos ter uma credencial por que eles não podem. A reitora consultou o SESC só que não tinha a mesma parceria, essa parceria foi estabelecida naquele município que nós estamos ali trabalhando juntos pro bem daquela comunidade, pro bem-estar social daquela comunidade específica. A gente divide ali um objetivo e isso nos faz parceiros. Então eu compreendo muito bem que não tem uma característica, tem que ser comerciário, mas eu fico feliz porque eu continuo vinculada ao SESC e posso aproveitar as coisas boas do SESC e posso continuar promovendo as coisas boas, porque tem atividades que você não precisa ser filiado ou credenciado para você aproveitar. A gente faz a divulgação da programação do SESC Osasco. Eu uso tudo e as pessoas vem me perguntar: “Ah, como é, você já fez o turismo?” “Já fiz o turismo” “Você já se hospedou fora de São Paulo?” “Já me hospedei. Sim, eu já fiz”. Então eu sempre tenho um depoimento a dar, então as pessoas gostam de me ouvir (risos). Sabe que uma pessoa até me perguntou por que eu não trabalho no SESC? (risos)
P/1 – O vínculo é tão grande, né?
R – É! Já fui perguntada: “Por que você não trabalha no SESC?”. Eu falei: “Porque trabalha de fim de semana”.
P/1 – Boa, boa. Muito boa (risos).
R – Só por isso. Se não, o trabalho me agrada, me agrada muito.
P/1 – Pra gente é super compensador escutar esse tipo de informação. Acho que a gente está nessa parceria hoje com o Museu da Pessoa e com vocês, que é realmente o nosso público, seja o vínculo qual for, seja comerciário, seja como esse tipo de vínculo que você tem agora, mas é bem gratificante pra nós escutarmos isso que você está colocando. E aí, Maristela, voltando um pouco na questão da história, então eu estou entendendo essa referência muito bacana, até da instituição do SESC na tua vida, em todos esses momentos. Inclusive talvez nos momentos não tão agradáveis, como você mesma disse, a vida tem essas rupturas, tem essas questões. E até nesses momentos você consegue identificar um pouco a importância, talvez, do SESC na tua família? Como é que você enxerga isso? Porque uma das coisas que me emocionou mesmo, eu até comentei com você, eu não sei nem se eu posso ficar me prolongando muito como o Alessandro diz, mas eu lembro que na época quando teve o acidente com o Alexandre, eu tive a informação que os seus filhos estavam no Curumim e depois de algumas semanas eles voltaram a frequentar. Acho que teve alguns dias que realmente não foram, umas semanas eu não sei o tempo, mas isso trouxe pra mim, enquanto funcionário, enquanto participante desta instituição, puxa vida, a importância que tem a instituição. Porque eu comecei a enxergar, eu pensei que eu tinha enxergado que realmente até nesses momentos o SESC pode ser também um alento, uma força, seja lá o que for, não sei se você entendeu o que eu quis dizer.
R – Entendi. E acho que...
P/1 – Não sei se eu estou certo ou não.
R – Eu posso responder. Antes de perder meu marido eu perdi minha irmã, que foi muito difícil. Eu já tinha perdido meu pai, mas o processo com o meu pai foi um pouco diferente. Ele adoeceu, ele enfrentou uns problemas e eu acho, infelizmente eu vou ter que falar isso, que parece mais natural você perder os pais do que você perder um irmão. Eu não esperava perder a minha irmã, eu nunca tinha me passado isso pela cabeça. E foi um pouco rápido demais, então foi muito ruim pra mim como pessoa. Eu fiquei muito perdida, foi muito sofrido, muito dolorido, eu tive que repensar minha vida todinha quando eu perdi minha irmã. E ela deixou três filhas, uma delas tinha 12 anos quando aconteceu. A minha irmã morava em São José dos Campos e o meu cunhado estava trabalhando em São Paulo. E na época eu tive que me apresentar lá, comparecer. E o que a minha sobrinha de 12 anos, que era a que mais precisava de cuidados naquele momento, porque as duas mais velhas já tinham saído pra fazer faculdade, foi que ela não queria mudar as coisas. Ia ficar extremamente difícil pro pai dela, trabalhando em São Paulo, voltar porque tem uma criança de 12 anos lá. Mas houve essa conversa na família e foi perguntado o que ela queria fazer, se ela queria vir pra São Paulo, ficar com os avós, o pai mais perto, família. Ela falou que não, que ela queria ficar lá, que ela queria mudar o mínimo possível na vida dela porque já tinha mudado muito não ter a mãe. Uma criança respondendo isso? E assim foi, eles ficaram lá, a minha irmã faleceu em maio, ela terminou a escola e no ano seguinte ela já se sentiu preparada pra vir pra cá. Mesmo assim foi muito sofrido pra ela ter que vir. Acabou sendo possível, ela é uma jovem saudável hoje. E coincidentemente a Amanda tinha 12 anos quando o Alexandre faleceu, exatamente a idade da minha sobrinha. E eu percebi isso nos meus filhos, que eles também queriam mudar o mínimo possível, que eles já tinham passado por muita coisa e eles não queriam deixar que essa notícia atrapalhasse nada, parece que eles queriam, eu não sei, continuar andando, continuar caminhando pra não sentir falta, pra não ter que pensar como vai ser o futuro sem o pai, como vai ser. Então eles quiseram retomar as atividades o mais rapidamente possível. Eles não gostavam nem que mencionasse que o pai morreu. As pessoas às vezes perguntam, né? O ascensorista do SESC, um dia ele perguntou: “Mas cadê o grandão que nunca mais veio?”. Aí eu falei: “Ele faleceu”. Ele não sabia, o ascensorista ficou até sem jeito porque ele não sabia, mas ele sentiu falta e perguntou. E os dois na hora, os filhos viraram de costas e não queriam abordar o assunto. Então o acolhimento do SESC foi muito precioso. Eles já faziam parte do Curumim que é um grupo que já acolhe bem as crianças com todas as suas necessidades, sejam elas quais forem e diversas, cada uma tem um histórico, uma coisa. E eles souberam lidar muito bem com isso. Eu lembro que uma atividade que o Daniel acho que não quis fazer no Curumim, o instrutor perguntou: “Você não quer fazer ou tem relação com alguma coisa”, falou muito sutilmente e o Daniel conseguiu falar: “Não, não tem relação com isso, eu não quero fazer”, e aí ele expressou por que ele não queria falar. Então eles tiveram todo cuidado, a delicadeza de abordar o assunto e de não ficar retomando que modelo de família que era e que agora está partida, uma família partida, eles souberam fazer a transição porque nós éramos citados como exemplo de família que faz tudo junto, que participa um da vida do outro e tal e ninguém falou muito desse contraste, eles lidaram naturalmente. Então eu acho que eles se sentiram seguros, apoiados. Então eles continuaram seguindo com a vidinha deles e sentindo saudades só do pai, não de outras coisas, eles conseguiram. É muito importante nessa hora que você tem uma perda você ter o seu chão pelo menos, porque tem uma hora, quando a pessoa morre, a morte, é muito chato isso, ela tira todas as esperanças. Ali acabou e não tem mais como você resolver, acabou. E isso para uma criança deve ser, se eu senti, imagina eles, acabou. Então se você ainda tirar outras coisinhas, você fazer aquela perda e ainda ser um fator de transformação tão radical na vida deles, a pessoa não tem onde se segurar, além de perder o chão, ela perde as paredes e não tem onde se segurar. Eu acho que o papel de acolhimento do SESC é mérito dos instrutores, mérito da instituição como um todo, ele preenche a vida das pessoas com coisas positivas, na hora que você enfrenta uma coisa tão negativa dessa proporção, você continuar podendo contar com uma coisa positiva, pelo menos isso está ali, é um alento. Na escola foi do mesmo jeito, quando eles chegaram lá no primeiro dia imediato, eu não lembro se foi no quarto dia, no quinto dia depois, eles também se sentiram bem acolhidos. Primeiro eles foram conversar com a diretora pedagógica e ela falou: “Vocês querem ficar na escola, vocês estão preparados pra voltar ou não?”. E eles quiseram sentir os colegas, aí eles passaram pelo corredor e se sentiram suficientemente à vontade. E uma coisa que parece que as pessoas perceberam é que eles não queriam comentar, então, a partir disso, das pessoas terem tido a sensibilidade de não comentar, eles conseguiram superar, superar não digo, mas prosseguir. Acho que foi isso. E eu vou além, porque eu acho que o SESC não foi só esse momento da perda: “Agora como é que eu faço, que eu estou sentindo esse vazio”. Vai além porque agora eu tenho crianças que não têm o exemplo do pai em casa. E como é que você lida com isso? Eu, sozinha, vou ter que dar todos os exemplos? Eles precisam de outros. E a tendência é a gente se fechar, né, porque eu não vou entrar aqui em detalhes das circunstâncias e não sei o quê, mas as perdas são sempre maiores do que aquelas que se resumem à morte. Então é assustador eu ficar com tudo pra mim, agora eu sou a responsável por tudo. Então eu fico feliz de dividir com esse mundão aí, mas um mundão que tem um SESC do lado de casa, que é um trabalho que eu confio, que eu acho que é de qualidade e que eles vão lá e eles estão acostumados, então facilitou bastante essa nossa transição pra essa nova vida, essa nova configuração, que agora a família tem três pessoas. Nem tudo voltou pro lugar ainda, tem muita coisa pra gente colocar no lugar, mas eu acho que além de entretenimento, diversão e lazer tem uma formação ali por trás. O SESC tem até alguns projetos de educação, de coisas assim, e essa presença continuou frequente e foi bom pra nós, é bom até hoje. Não sei se eu respondi a sua pergunta, mas...
P/1 – Claro que você respondeu. Acho que você foi até mais além. Eu acho que a riqueza da sua narrativa, como a gente estava comentando aqui numa das paradas é muito bacana, né, Maristela. E aí assim, dentro daquela ideia de que você se sinta à vontade pra conversar com a gente essas questões, a gente conversou também do tempo que você morou fora, né, com a família, com as crianças pequenininhas e com o Alexandre, claro, até em virtude da questão profissional dele. Você quer falar um pouquinho sobre isso? Quanto que isso foi importante na sua vida de trazer outras referências e vocês continuarem frequentando o SESC. Antes e depois eu lembro de vocês todos almoçando.
R – É, a despedida foi lá (risos).
P/1 – Então.
R – É. Essa é uma passagem que eu gosto de falar, é melhor falar da nossa experiência fora do país do que dessa ruptura ou das outras rupturas. Logo que eu conheci o Alexandre ele já estava inserido nos estudos judaicos além de ter uma experiêncai familiar da cultura judaica. Então, ele tinha já morado em Israel em duas ocasiões na infância dele, que os pais dele tinham tido experiências lá em Israel em duas ocasiões. E ele fazia esses estudos judaicos, então, sabe quando você pensa num presente que você quer dar pro namorado? Eu pensava: “Eu gostaria de dar pra ele um tempo em Israel pra ele melhorar o hebraico dele, pra ele se aprofundar nos conhecimentos porque a experiência ele tem é muito antiga, muita coisa mudou, o país se modernizou”. E o Alexandre já tinha morado nos Estados Unidos, então ele era um cara que vivia bem essas viagens, essas coisas. “Israel ia ser bom pra ele, mas Israel é um pouco mais complicado, não é como comprar uma passagem pra ir ali pra Madri, é um pouco diferente”. Aí acabou acontecendo porque ele fez o mestrado, fez o doutorado e ele precisava fazer um pós-doutorado. Por que ele precisava fazer um pós-doutorado? Porque na carreira acadêmica quando você faz tudo na mesma instituição acab ficando um pouco restrito, você precisa ir pra outra instituição. Mas ele já tinha feito tudo na USP, então qual seria essa outra instituição nessa área dele? Não tinha outras opções aqui, então ele tinha que pensar um outro lugar pra ir. Inicialmente ele começou a trabalhar com um outro autor de língua inglesa canadense, então ele pensou que ele fosse dar continuidade nos estudos dele no Canadá porque ele tinha apresentado uns trabalhos, a gente foi pro Canadá algumas vezes, então ele começou a alimentar esse desejo de poder ter uma experiência no Canadá. Começou a trabalhar esse autor, Irving Layton, poeta canadense, também judeu, e ele começou a costurar um projeto pra poder fazer um pós-doutorado. E ele se inscreveu para uma bolsa e a bolsa era nos Estados Unidos. A empresa, a fundação que fornecia essa bolsa era nos Estados Unidos e ele preencheu lá o projeto e falou Canadá e preparou a documentação para o Canadá, tudo, a gente já tinha ido várias vezes, já tinha amigos no Canadá, já estava tudo apontando para o Canadá. Quando veio o resultado da bolsa, eles diziam que ele tinha sido agraciado com aquela bolsa, mas que o dinheiro tinha que necessariamente ser gasto em Israel. Nossa, mas, tem que ser tudo em Israel? Tem que ser tudo em Israel. Então a gente falou: “Why not?”, então vamos lá. A gente redirecionou, tem que fazer toda a documentação, não sei o quê, fizemos e fomos pra Israel. Não foi tão fácil assim porque eu ainda trabalhava, eu tinha um vínculo, eu estava há 17 anos na empresa, gostava muito do meu trabalho, mas eu achei naquele momento que a gente já tinha dado voto de crédito pra humanidade e eu queria dar um voto de crédito pra ele, pro Alexandre. Então eu abandonar o meu emprego e ir para um país que eu nunca tinha pensado que eu iria pra morar, eu fiz por amor ao meu marido porque seria importante pra ele. Então eu fiz. Além de ser uma experiência única, que algumas pessoas nem vão ter, nunca vão ter, era uma prova de amor pra ele. Ele sempre foi um marido mais carinhoso, mais atencioso do que eu como mulher, eu sou mais distante, eu sou mais lenta, ele era mais sensível. Então eu achei que seria um voto de crédito pra ele porque ele ainda tinha muitas dúvidas a respeito dos estudos, até onde isso ia levar, o que isso proporcionava de satisfação. Eu estava muito bem resolvida com meu trabalho, por mais simples que fosse, mas ele queria mais, ele queria algo meaningful, como dizem em inglês. E eu pensei: “Se é isso que está faltando, faço com prazer”. E também avaliei que as crianças menores seria melhor porque tem um momento que você tem que decidir como você vai educar seus filhos, nem sempre a gente consegue fazer tudo de acordo com o planejado, mas ali era um momento que dava pra pensar tudo isso. Aí a gente teve que fazer uma série de mudanças e uma delas, pra mim, agora a parte Maristela, é que eu sempre vivi com a minha mãe, próxima da minha mãe. E essa mudança, aí sim significaria uma ruptura, né? Bem maior do que foi o casamento, eu saí de casa pra me casar, eu fiquei no mesmo prédio, tudo sempre ali perto. Mas aí eu ia abandonar todo aquele histórico, aquela Maristela que ela conhecia que vai trabalhar todo dia naquele lugar e volta e está ali acessível, eu ia pra outro país que ela nem sabe direito onde fica. E isso sim foi uma grande coisa pra mim, mas por amor ao meu marido eu fiz. Ajeitamos lá, minha mãe teve que ir morar com a minha irmã porque a minha mãe não quis ficar sozinha naquele momento. Na verdade talvez ela até quisesse, mas aí seria uma série de estruturas que a gente teria de organizar. Aí eu pensei: “Como nós vamos organizar tudo isso?”. Eu conseguia organizar até seis meses pra frente, mas começou a ficar difícil. E naquele momento eu falei: “Não, acho que eu preciso dar esse crédito pro Alexandre, vamos tratar da questão do Alexandre primeiro e a minha mãe não vai ficar desamparada, ela tem a minha irmã”. E a minha irmã morava em São José dos Campos numa casa de condomínio, com piscina, com movimento. A minha irmã não trabalhava, só ficava em casa, tinha a menina de 12 anos, as outras mais velhas saindo, uma já estava na faculdade e a outra estava prestando vestibular. Tivemos de fazer, minha mãe foi pra São José e a gente foi pra Israel. A primeira notícia: “Ah, tem que ir pra Israel”, eu já falei: “Então Tel Aviv. Praia, já vamos experimentar logo Tel Aviv”. Ele falou: “Não é, é Jerusalém. A Universidade Hebraica de Jerusalém”. Aí eu: “Jerusalém? Ai caramba. Mas lá é meio religioso demais, não é?” “É”. Aí a gente começou a ver melhor Jerusalém. Quando ele tinha morado em Israel anos atrás, na infância dele, ele tinha morado próximo de Tel Aviv. Mas claro, o país é pequeno, todo mundo vai pra Jerusalém, então não era desconhecido pra ele. Mas aí ele falou: “Não, é Jerusalém”. Aí ele mostrou: “A universidade fica aqui e aqui fica a cidade antiga, que é o ponto turístico mais forte. É uma cidade boa”. E eu: “Mas e aqueles judeus ortodoxos? Todas aquelas restrições, como é que nós vamos fazer?”. Mas no fim, quando a gente chegou, logo de chegar no aeroporto eu também já pensei: “Que sorte, é melhor Jerusalém”. E é isso mesmo. Tel Aviv é muito boa, uma cidade maravilhosa, mas é quente, super quente, moderna, pulsa igual São Paulo e quente como o Rio de Janeiro, mas as praias não são tão legais como as do Rio de Janeiro. Tem praias pagas, que é uma coisa que pra nós aqui é inconcebível talvez. As pessoas não curtem tanto a praia como a gente curte aqui, ou curtiria se a gente estivesse no Rio de Janeiro. E a gente só desembarcou em Tel Aviv e já foi pra Jerusalém. Tem uma estrada que ela vai pelo meio do deserto e eu lembro as minhas primas impressões. Primeiro de já ver o muro que separa o território palestino. Parece uma prisão, aqui não tem os muros altos nas prisões? Aí você vê aquele muro enorme e você fala: “Isso nem parece humano”. É muito chocante, no meio daquele deserto correndo um muro, você vai por aquele deserto. Aí o homem que dirigia a van apontou: “Está vendo esse caminho aqui?” Era só um trechinho de terra assim que você perdia de vista assim no horizonte. Ele falou: “Lá no fim é Ramalá”, a cidade do Yasser Arafat. Aí eu: “Nossa”, é tudo muito impressionante. Nós continuamos, chegamos em Jerusalém. Jerusalém amanhecendo, muito bonita, você já vê aqueles monumentos que você vê nos cartões postais, na TV, aquelas coisas, tudo muito impressionante. Eu já comecei a ver os judeus ortodoxos, que aqui a gente não vê, tem um pouco no Bom Retiro ou em Higienópolis, mas lá é muita gente, então é diferente, é outra sensação. Aquele monte de filho e eles acordando cedo, aquelas crianças, aquelas escadinhas de crianças. Sete, oito crianças. Aí fomos, chegamos nos apartamentos, os dormitórios onde a gente ia ficar. Eu esperava tudo antigo porque tudo é muito antigo lá, mas esse, só esse condomínio era novo. E a gente teve essa sorte de chegar no condomínio novo. Chegamos lá no condomínio, o homem da van falou: “Olha aqui o endereço que vocês deram”. A gente chegou e não tinha ninguém porque é um condomínio. A gente ficou meio perdido. Ele leu de novo os papéis e falou: “Ah, eu tenho que ir na universidade primeiro pegar a autorização, ver como vai ficar, definir essas coisas, em qual apartamento, em qual dormitório você vai ficar, definir as coisas administrativas”. Aí fomos os quatro pra universidade. A universidade não estava aberta ainda porque era muito cedo. E as crianças sofrendo de jet leg, elas estavam dormindo. Então a gente pôs as malas no chão e a Amanda dormiu em cima da mala, Daniel em cima da outra mala. O Daniel que era menorzinho abria a mala e dormia sobre as roupas, eu fiz um bercinho pra ele lá. A universidade abriu, aí foi definido o apartamento que a gente queria ficar porque era praticamente um contrato de aluguel, você tem uma bolsa de valor x e você define que imóvel você quer alugar. Muito grande? Lá não tem nada muito grande, mas, um dormitório, dois dormitórios. E aí você estipula o valor e vai ver a bolsa diminuir (risos). Paga a matrícula do curso. Porque eles fazem tudo muito costuradinho, então toda aquela bolsa que você recebe, que parece um montante grande, ele já está mais ou menos designado, você vai pagar tanto de educação, tanto de alimentação, eles já calculam. Você só trabalha um pouco com esse valor, quantos cursos você quer fazer, quanto de aluguel você quer gastar e quanto você quer que sobre pra você. A bolsa era para uma pessoa só, ele era o estudante, a gente tinha a nossa reserva, né? Então ele decidiu que ele queria um bom apartamento. Nós ocupamos o apartamento, trocamos ali no começo. E as crianças pulavam nos colchões novos lá porque aí eles acordaram e pulavam nos colchões. E ele tentando arrumar a coisa do apartamento, de repente ele reclamou e falou não. Não lembro nem porquê trocamos de apartamento. Fomos para um outro que aí de fato foi mais adequado. Era um prédio central mais baixo, todos os outros que circundavam eram prédios altos e tinham os estudantes de graduação e esse mais baixo era de pós-graduação. Então já era mais parecido porque já tinha até alguns outros estudantes que tinham família também. Filhos ninguém, só alguns israelenses que vinham de outros pontos de Israel estudar ali, os estrangeiros eram todos ou casais ou estudantes de pós-graduação que queriam um pouco mais de privacidade. Já os prédios mais altos eram cinco dormitórios por apartamento, então cinco estudantes diferentes. É legal também a distribuição que eles fazem, aquele monte de jovem que chega na mesma época, no verão chega todo mundo pra ser matriculado porque o ano letivo é diferente, começa dia primeiro de setembro, então chega muita gente no verão pra aproveitar o verão. Junho, julho. A gente chegou em junho, então tinha muita gente chegando. Eles querem curtir um pouco o país antes de começarem as aulas, fazem uma outra programação. Então a gente chegou junto com esse monte de gente, que chega o programa dos estrangeiros. E já na hora eles oferecem o (upam? _3:16:21_), que é o curso de linguas pra você aprender o hebraico. Como o Alexandre já falava o hebraico, claro, eles ofereciam pra mim e eu: “Não, obrigada. Agora não, eu tenho duas crianças” “Não tem problema, tem lugar pra deixar as crianças, tem creche aqui na universidade. Você deixa seus filhos” “Meus Deus, eu venho para outro país pra deixar os filhos na creche. Acho que não, eu quero pensar”. Eu demoro pra decidir as coisas, né? Não vai dar. Enfim, acertando essas coisinhas aí, definimos o apartamento. Aí de novo, tivemos sorte porque o apartamento do prédio central era voltado pra Cidade Velha, então da minha janela eu via aquela cúpula dourada do monte, então era um visual muito bacana, muito legal. E a gente se ajeitou, até tem todas aquelas coisas que acontecem, ele perdeu a carteira. Ele perdeu a carteira, a gente ocupou o apartamento e ele já foi ver algumas coisas na universidade de novo. Aí ele foi sozinho porque as crianças caíram pra dormir e a gente não quis levar as crianças naquele momento. Então o primeiro momento que eu fiquei sozinha, ele foi até a universidade. Ele foi até a universidade que era num morro ali do lado, tem o monte das Oliveiras e tem o monte Escopo que é do lado do monte das Oliveiras onde fica a universidade e depois era o monte que tinha os dormitórios, então é tudo mais ou menos perto. Os dois montes da universidade e dos dormitórios dava pra cobrir a pé, se você passa esse monte ainda vai pro monte das oliveiras é uma boa caminhada, mas a gente fazia. Mas tem gente que achava que era um pouco longe. Enfim, então era assim, daqui das montanhas você vê tudo lá, a cidade, é muito bonito. A universidade é maravilhosa, ela é toda de frente pra esse vale, então você vê tudo. Eles promovem a cultura judaica de uma forma que a gente não sabe fazre aqui, de você olhar pras suas belezas, de você olhar pra sua história, de você olhar pro seu povo, pra sua memória, pra sua identidade, é isso que eles trabalham muito bem. Essas questões da memória, esse trabalho que nós estamos fazendo aqui, eles fazem muito isso de registrar as experiências, cada um contando a sua história, por menorzinha que ela seja, por mais insignificante que ela pareça, mas ela tem um conteúdo judaico ali que é de valor. Então eles trabalham muito bem isso, eles são muito mais organizados do que a gente. Aqui o povo brasileiro não é tão valorizado, como pessoa comum, então acho que o trabalho desse museu também... eu fico brava comigo que eu não conhecia! Enfim, aí a gente conseguiu ter uma experiência completa porque a gente passou um ano inteiro, as crianças foram para a escola, então elas experimentaram um ano letivo, a gente passou verão, outono, inverno, primavera, verão de novo e tudo isso é legal porque é diferente daqui, as estações são mais demarcadas. Para os americanos é tudo igual, mas para um brasileiro, nossa, lá tem as estações demarcadas e aqui a gente não vê isso, vai passando e é tudo muito natural. E lá é bem demarcado. Então foi assim, uma experiência realmente única, engrandecedora. Eu fico feliz de ter sido privilegiada de ter passado por isso. Não só porque é uma experiência diferente, mas você viver uma cultura que está numa vibe tão diferente da nossa, outros valores. Viver em Jerusalém é isso, Tel Aviv é mais parecida, tem gente que vai mais pra escritório com terno, com carro bonito, com tecnologia. E lá eles têm toda a tecnologia, em Jerusalém, tudo, tudo. Mas no dia do shabat nada funciona. O dia do Yom Kippur nem cachorro late. E é verdade. Não late. Eu não sei qual é o fenômeno, mas não late. Eu nunca estive num lugar tão silencioso na minha vida como no dia do Yom Kippur. Isso é impressionante, eles fazem. Em Jerusalém é dividido o lado árabe e o lado hebraico. E os árabes, como são a parte oprimida, eles têm uma postura provocativa até, eles gostam de dizer: “Aqui é seu território, mas eu piso, eu faço”. Por exemplo, os dormitórios lá, eles estavam num terreno que deveria ter umas famílias árabes ali, aquele espaço ali deveria ser de alguma autoridade judaica, eu não sei o que aconteceu ali, mas construíram os dormitórios e ficou a casa de uma família árabe ali. Eles não saíram. E o condomínio tinha parquinhos pras crianças e os árabes grandes, ja jovens, de 18, 19 anos, eles tinham o momento em que eles iam no parquinho, sentavam nos balanços, balançavam. E olhavam assim, você está me vendo aqui? Com uma cara: “Está vendo? Estou aqui, eu vou sentar e eu vou balançar”. Eles têm uma certa postura, é compreensível, a parte mais oprimida tem um momento em que ela quer também revidar. Em muitos momentos eles fazem isso, eles percebem se você vai na parte turística que é árabe, eles percebem que você não é árabe, então eles rodeiam e meio provocam pra ver se você vai aguentar a pressão. É, você veio até aqui, então vê se você vai aguentar a pressão. Eles fazem isso, eles têm uma atitude um pouco agressiva, talvez. Já é da cultura árabe eles falarem muito próximos uns dos outros, rosto muito próximo. O brasileiro ainda pega e tal. Isso para um americano, nossa, demais, né? Imagina falar assim. E eles faziam, já é do jeito deles, dos hábitos deles e eu acho que tem um pouquinho essa postura provocativa. E eles convivem ali naquele espaço meio hostil, tem o ônibus árabe, tem o ônibus judaico. Um judeu não entra no ônibus árabe, mas os árabes entram nos ônibus dos judeus. E se eles não gostarem eles que desçam, é mais ou menos assim. Então acontece mais ou menos assim. Mas no dia do Yom Kippur não, aí eles respeitam e nem eles, nem o cachorro deles late. É muito curioso isso, como existe um certo momento que é uma reverência de uma cultura pra outra: “Ah não, isso nós vamos respeitar”. É bacana você ver essas coisas assim. E o shabat, as pessoas vão buscar flores. Jovens que estão com os hormônios pulando, mas no shabat vão comprar flores porque hoje é o dia do shabat, que a gente tem que fazer isso. É bem legal. Pessoas que estão vivendo uma outra coisa, numa outra sintonia, numa outra órbita. É muito bom você apreciar que existem outras formas de você viver. Eu gostei muito.
P/1 – Bonito isso. Só faltou o SESC ter em Jerusalém também, né? Nem precisava.
R – Eu falo, eu defendo, agora tem que ter SESC em Nova York, em Tóquio. Ah, sim! (risos)
P/1 – Não vai faltar colega interessado em trabalhar.
P/2 – O Museu da Pessoa, né?
R – O Museu da Pessoa já quase tem porque eles têm o Yad Vashem, que é o memorial, que tem várias formas de resgatar essas memórias. Então tem depoimentos muito tocantes porque quase todos falam da diáspora, do holocausto. Outros não, mas como é um memorial do holocausto muita coisa, claro, é do holocausto. Mas eles fazem um trabalho de memória bem geral, então isso até alguma coisa parecida tem. Agora sobre o SESC, essa foi uma preocupação nossa, como é que nós vamos entreter nossas crianças aqui, numa cultura tão diferente? Então tem uns _3:25:23_ centers, que é uma espécie de SESC. E a gente que tinha o padrão SESC pra comparar. As instalações são muito bonitas, mas a política de funcionamento é muito diferente. Mesmo distante do SESC a gente confirmava que a proposta do SESC é uma proposta que tem que dar certo sempre, em qualquer lugar e deveria ser copiada porque é uma forma de abraçar a todos, a diversidade, a diversidade de gênero, de gosto, de cultura. E tudo com qualidade. Como é que consegue isso? Como é que funciona e tudo a preço justo. Lá também tinha muita coisa gratuita até, mas gratuita pra mim, alguém estava patrocinando, sponsored by, né? As plaquinhas com os nomes dos doadores estão por toda a parte. Isso é uma coisa diferente, aqui no SESC você não tem essa sensação, você só acha que é um dinheiro bem empregado, bem administrado, bem cuidado. A gente sentiu saudades (risos).
P/1 – Maristela, muito bacana esse bate papo, muito emocionante até, bem interessante. Não tenho nem palavras pra descrever. Espero que a sensação esteja tão bacana pra você quanto está pra mim também.
R – Estou no céu, que é isso, estou nas nuvens!
P/1 – E como o Danilo lembrou, tem essa questão do horário, do tempo. Pra gente finalizar, Estela, daqui pra frente, nesse momento em que você está hoje com sua família, seus filhos. E daqui pra frente, o que você gostaria, o que você espera um pouco dessa existência , que como você mesmo falou, várias vezes vocês deram esse crédito pro mundo. Enfim, o que você tem a comentar pra gente finalizar esse bate papo?
R – Quando eu engravidei da Amanda, como era a primeira gravidez e que foi uma coisa que eu não pensei muito ao longo da minha vida, eu já estava grávida, agora tem que começar a pensar nas responsabilidades que vem. Então tem um pouquinho, muita alegria, um pouquinho também de insegurança com relação ao que está por vir com o peso dessa responsabilidade. Eu lembro que eu comentei isso com meu chefe porque o meu chefe virou ao longo dos anos um amigo, um conselheiro, um mentor até, né? Um homem que tinha várias experiências, uma cabeça muito boa, muito bem resolvido, então eu gostava sempre de ouvir a opinião dele. Quando eu comentei isso: “É, agora não é brincadeira, agora a coisa ficou realmente muito séria”. E eu lembro dele ter respondido assim: “Mais pessoas como você e o Alexandre deveriam ter filhos e menos como certas pessoas porque a existência é realmente uma responsabilidade, você vai colocar uma pessoa no mundo e você que vai orientar os primeiros passos”. Aí eu falei: “Mas é tudo tão caro, todo mundo fala, os custos, como é que a gente vai fazer, os imprevistos da vida”. Ele falou: “O que precisa pra você resolver essas questões eu acho que vocês dois têm, que é uma boa cabeça”, ele falou. Eu lembro que eu comentei isso porque eu tinha sonhado que eu estava cheia de crianças com o nariz escorrendo, eles descalços e eu estava sozinha. Foi um sonho que eu tive, eu não tenho esse tipo de coisa, eu nunca tenho dessa forma, as preocupações não vêm pra mim em forma de sonhos, mas esse sonho eu lembro que eu comentei. “Eu vou ter filhos que vão ter os narizes escorrendo e eu vou estar sozinha e não vou ter como alimentá-los”. Bom, neste momento eu estou um pouco assim, mas o nariz deles não está escorrendo e o que eu tenho de expectativa é que a gente consiga continuar caminhando com a cabeça feita, né? Podendo enfrentar o que a vida reservou. A gente sofreu uma perda muito grande e ela foi muito além do que a gente falou aqui, muito além de perder a esperança, que a morte acaba com ela, teve coisas que nem vieram à tona aqui, nem valem a pena ser mencionadas, mas que interferem bastante nesse caminho que está aí pela frente. Então a expectativa que eu tenho é que eles sejam pessoas de bem, que eu consiga educá-los, prover o que for necessário para eles serem pessoas de bem. Não é para eles serem ricos, para eles terem as melhores oportunidades, mas para eles serem pessoas de bem. E de novo, apesar de todo esse contexto, eu acho que eu dou sorte, por exemplo, de trabalhar numa universidade. Porque eles já se sentem muito confortáveis dentro da universidade.
PAUSA
P/1 – Você estava falando que seus filhos se sentem à vontade, por exemplo, numa universidade.
R – Sim, porque eles assistiram o pai fazendo apresentação de trabalho, conheceram os amigos dos pais que são professores. São reconhecidos. Teve a comemoração acho que de 30 anos da Companhia das Letras no SESC. Nós fomos e eles foram reconhecidos porque um dos autores era judeu. E a Companhia das Letras é de judeus. Então a comunidade judaica que conhecia o Alexandre nos reconheceu e eles ficaram felizes de nos ver e que nós estamos bem. Então eles estão acostumados com pessoas que se dedicam às coisas sérias, que fazem coisas sérias, que fazem trabalhos sérios, então eles já têm tudo isso. E têm muito lazer, muita diversão, muita coisa eu procuro proporcionar tudo isso. Então eu espero que, como eu tenho uma preocupação com a qualidade de tudo o que é feito no SESC, eu tenho preocupação de dar qualidade em tudo o que é feito pros meus filhos, não só a alimentação deles mas tudo, os exemplos que eu dou, as pessoas que eles conhecem. E tudo isso até o momento está indo muito bem. Eu espero que a gente continue nesse caminho. Hoje eles veem o meu ambiente de trabalho também, um ambiente de trabalho saudável, é uma universidade, vai lá, continua esse legado do pai, do amor ao conhecimento porque eu estou trabalhando nisso, as pessoas que estão comigo ali também têm esse mesmo objetivo. Então assim, a vida precisa voltar pro trilho. Ela ainda não voltou, mas ela não se desviou muito do trilho, ela não foi muito longe. A gente ficou ainda ali por perto, então só são mais alguns ajustes, eu espero, se não vier mais nenhuma tragédia pela frente eu acho que a gente pode se sair bem, entendeu? Acho que é isso que eu espero. Eu espero também poder colaborar, na medida que voltar pro trilho, que as coisas já têm um tempo, já deveria até ter voltado, mas são certas situações que a gente não consegue. Mas eu também vou procurar, eu tenho muita consciência de que hoje a longevidade é uma questão, a gente até falava disso, então eu sei que se tudo der certo a gente vai viver bastante, então não pode parar por aqui. Eu fiz a minha faculdade, mas eu não fiz mestrado, eu não fiz doutorado, apesar do meu falecido marido sempre falar que eu era doutora honoris causa, que eu não precisava fazer nenhum doutorado que eu já nasci com doutorado. Porque apesar dele ser muito intelectualizado, ele achava que a minha maneira de viver era mais simplificada e ajudava nas questões porque ele problematizava tudo. Porque o estudioso é assim, ele tem que problematizar pra resolver a questão. E a minha forma era mais simplificada, então ele achava que eu tinha o doutorado em uma coisa e ele em outra, né? Então era uma boa combinação. Só que eu não posso parar por aí, a gente vai viver mais, tem mais coisas para aprender, o mundo vai mudando muito rapidamente e eu espero estar apta a acompanhar essa corrente.
P/1 – Não tem dúvida que está!
P/2 – Maravilha. Muito obrigado (aplausos).
R – O que é isso? Essa foi boa! Vocês aplaudirem.
Recolher