P/1 – Eu vou começar a entrevista perguntando seu nome, local e data de nascimento.
R – Meu nome − registrado pelo meu pai −, José Osair Sales, tem uma etnia que chama Siã Huni Kuin, o nome que a gente tem aí pra se dizer.
P/1 – E qual foi o lugar que você nasceu, o nome da aldeia?
R – Eu nasci no seringal Fortaleza, Alto Jordão, no Município de Jordão.
P/1 – E você sabe o ano exato?
R – Eu nasci em 64.
P/1 – Você pode me dizer assim, o nome do seu pai e da sua mãe?
R – Meu pai é Alfredo Sueiro Sales e minha mãe é Maria Rita Monteiro __________.
P/1 – Eles também eram dos Huni Kuin? Qual a história deles que você conhece? Como eles terminaram no Seringal, de onde eles vieram?
R – Eles são Huni Kuin. Meu pai, acho que o pai dele veio do… O Chico Curumim, teve ali uns seis, cinco filhos também, ele é um deles, virou chefe também. Minha mãe também veio de lá, dessas famílias Monteiro. Nós somos um clã _____________ que é hindu, também uma etnia que a gente transforma dessa geração da gente pra gente. Acho que o meu pai ainda teve sorte de casar com ____________, que está por lá.
P/1 – Mas por quê? Você pode explicar isso melhor?
R – Porque tem que ter dois clãs. Tem dois clãs, que é o __________ e o _________. É o primo dele __________. E é a mesma coisa com o clã da mulher, Banu e Inani. O _________ não pode casar com Banu porque são primos, aí fica ruim pra você casar com a própria família, o nascimento pode dar errado, menino colorido, menino diferente um do outro. E também você não pode seguir, assim, continuar trabalhando na firmeza, você começa a errar, “está ruim”, então por isso que temos essas duas classificações Inani e Banu.
P/1 – Inani e?
R – Banu. Como nós somos Duai, temos que casar com Inani.
P/2 – Que é uma animal, né, Duai…
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Continuar leituraP/1 – Eu vou começar a entrevista perguntando seu nome, local e data de nascimento.
R – Meu nome − registrado pelo meu pai −, José Osair Sales, tem uma etnia que chama Siã Huni Kuin, o nome que a gente tem aí pra se dizer.
P/1 – E qual foi o lugar que você nasceu, o nome da aldeia?
R – Eu nasci no seringal Fortaleza, Alto Jordão, no Município de Jordão.
P/1 – E você sabe o ano exato?
R – Eu nasci em 64.
P/1 – Você pode me dizer assim, o nome do seu pai e da sua mãe?
R – Meu pai é Alfredo Sueiro Sales e minha mãe é Maria Rita Monteiro __________.
P/1 – Eles também eram dos Huni Kuin? Qual a história deles que você conhece? Como eles terminaram no Seringal, de onde eles vieram?
R – Eles são Huni Kuin. Meu pai, acho que o pai dele veio do… O Chico Curumim, teve ali uns seis, cinco filhos também, ele é um deles, virou chefe também. Minha mãe também veio de lá, dessas famílias Monteiro. Nós somos um clã _____________ que é hindu, também uma etnia que a gente transforma dessa geração da gente pra gente. Acho que o meu pai ainda teve sorte de casar com ____________, que está por lá.
P/1 – Mas por quê? Você pode explicar isso melhor?
R – Porque tem que ter dois clãs. Tem dois clãs, que é o __________ e o _________. É o primo dele __________. E é a mesma coisa com o clã da mulher, Banu e Inani. O _________ não pode casar com Banu porque são primos, aí fica ruim pra você casar com a própria família, o nascimento pode dar errado, menino colorido, menino diferente um do outro. E também você não pode seguir, assim, continuar trabalhando na firmeza, você começa a errar, “está ruim”, então por isso que temos essas duas classificações Inani e Banu.
P/1 – Inani e?
R – Banu. Como nós somos Duai, temos que casar com Inani.
P/2 – Que é uma animal, né, Duai…
R – Duai tem que casar com Inani e Hinu tem que casar com Banu, né?
P/1 – Então isso é uma regra?
R – É uma regra que fica legal, primos mais distantes, que dá certo quando você vai dar nome para os meninos, para as meninas que nascem. Se você casar com o mesmo clã fica difícil, porque você é o próprio parente, não tem como, muito você na responsabilidade.
P/1 – Então por exemplo, os dois, vamos dizer, clãs, moram no mesmo lugar ou são aldeias distintas?
R – Depende, né? Você tem que achar o par, você não pode casar com o mesmo clã que você já… Em respeito à direção, mesmo, da história da gente.
P/1 – E aí, o clã fica marcado pelo sobrenome?
R – Fica marcado quando nasce, com o Siã se for corretamente, você descobre ele, se é misturado, é essa coisa que misturou, você não pode reconhecer, fica pequenininho, fica torto, fica louro, né, fica tipo assim.
P/1 – Então, o seu pai casou certo com a…
R – Achou minha mãe lá, que é Inani, deu essa geração pra nós.
P/1 – E ele cresceu dentro da aldeia ou ele trabalhava no seringal?
R – Acho que ele trabalhou lá na cabeceira do rio __________, que era o Juruá. Rio Jordão também são tudo cabeceira, acho que ele nasceu ali no Jordão e foi trabalhar nessa colocação, que é lá do Juruá, cabeceira do Juruá com… Essa turma a gente chama de patrão, a gente chama desses caras que usa pra gente trabalhar, mão-de-obra barata pra trabalhar pra eles no rocado, na caçada, na pescada, não é assim, os meninos, quando a gente não tem nada, tem que caçar longe pra viver, pra ganhar, pra também trabalhar.
P/1 – Então, ele trabalhava nessa… é uma colocação?
R – É uma colocação que a cabeceira do Juruá no _________ que o pai morava lá.
P/1 – Mas a colocação, quem era o chefe da colocação?
R – O chefe de colocação deve ser esse cara, dono... Os seringalistas.
P/1 – Tá. É branco, né?
R – É branco, chama Felizardo Siqueira, que quando ele fazia as correrias para descobrir as malocas, eles trabalhavam pra ele.
P/2 – O Felizardo Siqueira estava vivo na época do seu pai?
R – Estava vivo, então domesticou aqueles braços e continuou a turma para trabalhar com ele. Ele que coordenava aquele lugar ali do Juruá, aquela cabeceira. Era o Felizardo, Pedro Beloi e o Ângelo Ferreira os caras que conheciam a faixa de fronteira, ali perto. Então fazia os seus grupos pra fazer essa parte, e acho que o pai foi lá pra trabalhar nessa colocação, e fazia parte um pouco disso aí, desse acompanhamento.
P/1 – E ele trabalhava dentro do seringal na colocação, fazendo de tudo?
R – De tudo. Depois trabalhava lá e ainda vinha visitar o pai dele, a mãe, deve ser, ajudar a roçar pra ver como é que estava. Porque o pai sempre é preocupado com a família, se está bem, está ruim. Cuidava dessa turma toda.
P/1 – E ele foi… Depois ele se tornou líder, chefe? Ele tinha uma posição de destaque dentro da aldeia?
R – Acho que depois do pai dele, né?
P/1 – O pai dele era o que?
R – Era o chefe.
P/1 – Era o cacique?
R – É, cacique, Chico Curumim.
P/2 – O pai dele era o Xicurumim, que dá o nome da aldeia hoje. Quem que é o Xicurumim?
R – É uma liderança, desse pai do meu pai que surgiu aí, que tem vários irmãos também. Então é um chefe de trás que foi feito também, porque tudo isso faz através desses comandos.
P/2 – E você sabe um pouquinho da história do Xicurumim, o que ele fez?
R – Ele viveu também no Jordão. Viveu, cuidou dos filhos dele, fez a coisa rodar, também. Depois veio o filho dele − que é o meu pai −, que cuidou também tanto de lá pra cá, na época do Jordão, e aí que conseguiu um pedaço de terra no seringal Fortaleza, que a madrinha deu de presente, como todos padrinhos e madrinhas se preocupam, para futuramente você viver com o seu povo. E lá que nós colhemos. Depois de tudo isso, o pai dele morreu também, tudo acontece. Aí o meu pai veio assumir essa colocação que ganhou que é o seringal Fortaleza.
P/1 – Ficou dele?
R – Ficou dele, deram pra ele. Ele juntou a gente lá, os seus irmãos, suas irmãs…
P/1 – Então vocês foram todos morar nessa colocação?
R – Nessa colocação que é chamada Seringal Fortaleza, que é alto Jordão, lá onde eu nasci.
P/1 – Lá é onde você nasceu? E essa colocação onde você nasceu, na época, o que vocês produziam? Me conta.
R – Ah, nós continuamos produzir o que o pai achou que... Ele conseguiu recuperar um pedaço de terra, porque ele não tinha mais direito de viver no lugar do outro, você não fica em paz. Tinha que viajar quando o dono queria, você tem que desocupar. Então, nesse tempo, ele recebeu e foi organizar. Chamou o irmão, chamou a irmã, chamou a turma pra morar. E esse seringal Fortaleza, eu me lembro, em 70 e pouco, a gente começou a se organizar, 135 pessoas.
P/1 – Que ficava nesse seringal?
R – Se juntaram. Seu irmão, seu primo, seu cunhado, sua irmã e filho…
P/1 – Vieram as mulheres e filhos? Veio todo mundo?
R – Aí começaram todas as nossas histórias.
P/1 – Então vamos começar com essas histórias e ver um pouco… Você, então, nasceu já lá. O que você lembra, assim, como é que foram as suas primeiras lembranças de ter nascido, como é que era? Você consegue lembrar e contar pra gente um pouco como era, mesmo o espaço, como eram as casas, do que eram? O que você lembra? As suas primeiras lembranças…
R – Lembro bem desse lugar mesmo, em que u nasci. Nasci já dentro dessa colocação seringal Fortaleza, e já tínhamos umas casas. Papai fazia umas casas grandes, porque tinha família grande. Era de dois andares também, dois andares de madeira.
P/1 – A casa era de alvenaria, de madeira...
R – Não, de madeira, com construção natural, mesmo. Pra chuva, de madeira. Com cipozinho amarrado, ainda.
P/1 – E o telhado de quê?
R – De palha.
P/1 – De sapê, palha de banana?
R – Palha de Ouricuri. E me encontrei nisso, já dentro dessa coisa, vivendo um pouco desse seringal, que tinha estrada de seringa. Tinha, vamos dizer, 12 a 15 mil hectares, que é essa terrinha que ele ganhou, juntou o seu povo e nós também. Vivemos lá nesse tempo, vivemos de caça, de pesca, de roça, e o papai continuou trabalhando com os patrões. Meu patrão era Raimundo Ramos.
P/1 – E ele continuou trabalhando com a borracha?
R – Com a borracha, que naquele tempo vendia tudo. Era borracha, couro de animais, gato, couro de gato, couro de veado, cateta, era madeira, eram todas essas riquezas naturais, que vendia tudo.
P/1 – Quer dizer, ele e os irmãos, eles faziam esse trabalho e entregavam pro…
R – Ou trabalhava assim mesmo, ou trabalhava para o serviço, aí trocava as coisas, borracha, tudo. Quem não tinha isso, vai trabalhar mesmo, empregado, mão-de-obra barata, vai ser subordinado para levar balsa de borracha até a cidade ou mesmo carregar, fazer roçado, pescar, caçar, quem está ali, né? Naquele tempo, dinheiro era mais fácil, fácil de pagar também. Era tudo baratinho, naquele tempo dinheiro era mais fácil, não é como nós, agora, que tem que fazer muita assinatura com o juiz. Tu chegava lá: “Eu quero tanto de borracha” “Tá bom”, o cara, se tinha dinheiro... Se não tinha, dava cheque, tu ia no banco, tirava o dinheiro, só voltava pra pegar dinheiro no final do ano, aquela coisa que você comprometeu, “dou dinheiro por produto”, você entrega, ficou devendo ou está com saldo…
P/2 – Mas sobrava dinheiro ou ficava divida?
R – Sempre sobrava um pouquinho. Tanto em mercadoria como em dinheiro.
P/1 – E pra que vocês usavam esse dinheiro? O que trazia em troca?
R – Pra gente trabalhar, pra levar mantimento, comprava o produto que a gente não tem.
P/1 – Quais eram os produtos?
R – Roupa, panela, instrumento de seringa, que é tigela, balde, bacia de outros tipos de material. Consumo, mesmo: sal, sabão e outros mantimentos que necessitam na floresta; enxada, machado, espingarda, munição, combustível, isso faz parte, porque a gente está na mata pra trabalhar.
P/1 – Pegava esse dinheiro para fazer todos esses mandados, essas necessidades?
R – Não é só borracha, você vende tudo, estou falando, até couro de gato para fazer bomba não sei pra quem, comprava coisa. Não tem mais isso.
P/1 – É couro de gato?
R – Couro de gato, eles compravam pra fazer bomba, pra jogar lá em cima, para fazer aqueles cabelos…
P/1 – Bomba?
R – Bomba. Usava couro de gato.
P/1 – Mas bomba pra fazer o que com a bomba?
R – Pra guerrear, esses caras que guerreiam muito aí.
P/1 – E nessa época, então, tinha conflito? Guerra entre…
R – Já parou? Nos Estados Unidos, na Coreia, ainda continua…
P/1 – Mas lá na área de vocês?
R – Na nossa área nós nunca fazíamos bomba não, a gente só flecha, mesmo.
P/1 – Mas a briga era contra quem?
R – Briga foi contra a exploração de riquezas naturais. Essa coisa mesmo de sociedade, de tomar espaço de direito, que foi o que aconteceu com a gente. Quem tem mais condições deixa o outro vazio.
P/1 – Mas você se lembra, de criança, desse tipo de invasão?
R – Não me lembro, não. Foi mais no tempo do meu avô.
P/1 – Ah, isso foi mais no tempo do seu avô? Eu queria entender na sua infância, como era o seu dia a dia. Você, de criança, fazia… Tinha algumas tarefas especificas? O que você lembra, como era o seu dia a dia?
R – Meu dia era tudo diferente das outras crianças, como sempre. Meu pai era um cara que tinha pouca hora pra brincar, pra fazer qualquer coisa, já almoçava e preparava para voltar pro serviço. Pra ser amigo dele, tinha que continuar acompanhar ele do jeito que ele é, se não for assim, se sentia comigo. E ficava difícil não ser amigo do meu pai e não acompanhar tudo que ele faz.
P/1 – Então você foi acompanhando ele desde muito…
R – Fui acompanhando ele desde pequeno, mesmo, que a gente se gostava. E eu fui também nessa parte de agricultura.
P/1 – Então você consegue me explicar? Eu não vivi lá, você me explica assim... Você acompanhava ele, acordava cedo com ele? Como é que era?
R – A gente acorda... Porque na mata a gente acorda já quatro da manhã, duas da manhã quando vai esquentar comida, vai amolar terçado, vai preparar... Que tipo de serviço nós vamos fazer. Principalmente a borracha, é tudo cedo, não dá pra ficar dormindo lá até às sete horas ou mais trade, não pode, você tem que, às quatro horas já estar lá na volta de estrada, atrás de fazer qualquer coisa.
P/1 – Como é que é esse trabalho da borracha? Vocês saíam fazendo andada? Quem vinha coletando?
R – A borracha, no tempo da borracha, a gente fazia duas rondas. Você vai de manhã, chamado de cortezinho de madeira, com a faca de seringa lá. Aí, quando você terminava, assim, por aí, 100, 150 seringas, madeira, terminava, ia de novo com o balde colher o leite, 20, 15, 30 latas, cinco, dez latas que você colhe. Aí defuma o dia todinho, mesmo. E agricultura a gente tinha que ir lá também.
P/1 – O que vocês plantavam?
R – Na agricultura a gente planta roça, macaxeira, milho, banana, batata, jerimum, melancia, mamão, cana-de-açúcar, mas outros... Feijão de muitos tipos, nossa qualidade de sementes é variada. Na praia, né, vários outros tipos de sementes frutíferas que a gente planta também.
P/2 – Mas se era o dia todinho trabalhando na borracha, que horas vocês iam para o roçado?
R – Não, a borracha você tem dia apropriado para ela, só se for pequena a estrada você termina de cortar cedo, você ainda vai para o roçado. Mas sério mesmo, não sobra nada, você tem que tirar o…
P/1 – Você passa o dia nela?
R – O dia nela. E ainda, até às dez horas da noite pra se terminar, defumar, tirar cuíca, preparar tudo.
P/1 – Isso acontecia assim, quantas vezes por semana ou por mês?
R – Seringueiro, mesmo, é todo dia, seis vezes por semana.
P/1 – Mesmo pra seringa longe?
R – Mesmo pra seringa longe, seringa perto, seringueiro…
P/1 – Então a dedicação é a seringa?
R – E tem alguns dias que ele tem que fazer roçado pra comer, pra não comprar. Compra farinha... Essas coisas todas tem que fazer. Se não tiver tempo, tem que comprar, com o dinheiro que ele faz, sobra um pouco pra… E a agricultura é essa mesma coisa também, a gente tinha que planejar. O tempo do verão é mais pra agricultura, e inverno você só cuida da limpeza, que não deixa nada. A gente tinha que sair de manhã, aí o cacique é difícil vir almoçar, eu que aborrecia um pouco.
P/1 – Ele não vinha?
R – Ele não vinha. E ficava falando: “Tá bom, vão bora pra casa”, duas horas da tarde já, você vai de manhã... Aí falava pra mãe: “O cara está aborrecendo, pai não aguenta”, ele não ia mais também, fazia coisa de limpar terreiro, amolar terçado para outro dia, se preparava.
P/1 – E vocês chegavam pra almoçar?
R – Pra almoçar, assim, duas, três horas, ele já não voltava mais pro serviço. Como tinha outras coisas, ele fazia outra coisa e eu fazia as minhas coisinhas também.
P/1 – Você fazia o quê?
R – Sei lá, uma coisa que é mais fácil, ou mesmo continuava com ele, limpando terreiro, carregando lenha, carregando outras coisas. Às vezes, motorista, desde cedo eu conseguia mexer as máquinas também, era motorista também dele.
P/1 – De barco, você diz?
P/2 – Mas já tinha motor, o barco?
R – Varejão. Varejão, remo. Quando começou o motor era varejão. Assim, enfiava o pé... Se você não varejar, não vai. Vai descendo pra trás, aí você tem que botar a força… ele só vai do tamanho da força que você bota, aí direto tem que botar de novo pra continuar andando.
P/2 – Isso você tinha quantos anos, assim?
R – Isso me lembra de oito, assim, pra frente. Mas eu já trabalhei um pouco antes, seis anos eu já acompanhava ali, levar água, fazer qualquer coisinha.
P/1 – Tinha uma espécie de escola, por exemplo, que vocês iam? As crianças tinham que ir à escola?
R – Escola a gente começou ali mesmo. Com 16 anos apareceu a escola.
P/1 – Foi quando você tinha 16 anos?
R – Uhum.
P/1 – Que escola apareceu?
R – Escola de Mobral [Movimento Brasileiro de Alfabetização].
P/1 – Lá dentro da colocação?
R – Lá dentro da colocação, foi até um… Seis pessoas sabiam falar português, escrever, ler e escrever. O meu pai e o irmão dele, que é o Nicolau, o __________ também sabia pouco, aí era o meu cunhado que era Nicolau o Augustinho, que também já sabia um pouquinho... Então apareceu o Mobral, a gente…
P/1 – Quem foi estudar no Mobral?
R – Todo mundo ali, de criança…
P/1 – E quem veio dar aula?
R – Quem veio dar aula foi o ___________.
P/1 – E o que ele sabia, ele dava aula…
R – A família dava. O meu tio, de vez em quando, à tarde, de manhã, mas a gente nunca…
P/1 – Você aprendeu o português… Sua primeira língua não é o português?
R – Não, hancha kuin, né?
P/1 – E o português, você aprendeu desde criança?
R – Não, aprendi aqui mesmo, já com 17 anos.
P/1 – Lá no mobral?
R – No Mobral. É tão difícil, fui e não consegui, furei o papel escrevendo, aí eu olhei assim e deixei. Mas quando eu olhei pros meus amigos, todo mundo já escrevendo, pensei: vou ficar pra trás. Aí voltei a assumir de novo, comecei a ver pelas letras e aprendi um pouco.
P/1 – E hoje, você escreve bem?
R – Não, não fui longe, porque eu não levei a sério. Assim, se pegasse naquele tempo mesmo pra formar... Eu estudava um pouquinho e ia trabalhar, aí a professora nunca dá... Quando você falta de trinta dias, a professora: “Foi falta, não pode”, aí eu não pegava a nota.
P/2 – E os conhecimentos, assim, indígenas mesmo, você foi batizado? Você chegou a ser batizado?
R – Eu me atrasei um pouquinho, eu batizei meio grande, já com 20 e poucos anos.
P/2 – Mas antes, você fez alguma iniciação, assim?
R – Eu fiz a iniciação mesmo de… As medicinas, medicina de tucandeira, medicina de pimenta, medicina de serpente − que é jiboia −, os banhos…
P/1 – Você poderia me explicar melhor com que idade... O que é que tem que fazer pra fazer essa iniciação?
R – Essa coisa toda, desde quando a gente é pequeno, o pai já tem o cuidado de banho, das coisas. Aí ele me entregou para um pajé antigo, que é amigo dele, que é o véio Macaro que é ___________. Pagou pra ele, integralmente, pra….
P/1 – O que é? Como era esse aprendizado?
R – Você tem que tomar esse kampum, que é injeção, no braço.
P/1 – O sapo?
R – É, o sapo. Tem que usar a pele, usar a pimenta na língua pra cantar, tem que usar também o serpente pra você ficar esperto.
P/1 – Como que é esse de usar a serpente pra ficar esperto?
R – Faz trato com ele. Tu vai lá, faz uma reza, pajé reza, aí ele vai te cuidando.
P/2 – Junto com a jiboia?
R – Não, encontra lá, faz um trato, aí continua trabalhando.
P/1 – Você pode me explicar melhor? Eu não entendi. Você faz um trato com quem?
R – Com a jiboia. Sabe o que é jiboia?
P/1 – Uma cobra. Sim, mas você acha a jiboia no meio da floresta?
R – Pajé sabe onde ficam, aí tu vai.
P/1 – Tu vai com ele encontrar a jiboia?
R – Encontra, faz vários tratos. Com um mês, dois meses, um ano, com 13 anos. O meu trato foi de oito anos, era com 12 anos,fez outro porque era muito tempo, também.
P/1 – Isso você foi fazer quando tinha 12?
R – Eu era mais novo, na época.
P/2 – Você fez um trato de oito anos.
R – Não, era 12, mas eu consegui só cumprir oito.
P/1 – Mas qual que é o trato?
R – É o trato mesmo, você faz trato com banco…
P/1 – Você tem que pagar?
R – Trato com o seu pai, seu amigo, com qualquer pessoa, faz trato: “Vou fazer compromisso, isso…”, se você não cumprir, o que faz o gerente? Vai te enquadrar.
P/1 – E o que faz a jiboia?
R – Se você não cumprir, toma toda a tua força... Você fica sem nada, você fica panemado, você não consegue mais nada, nem caçar, nem pescar, nem rolar, nada. Você fica panemado até pra mulher, você não consegue nem arrumar namorada.
P/1 – No banco a gente negocia, você tem como negociar com a jiboia?
R – Não tem. Aí você violou, se não cumpriu o prazo, você está fora, não tem como chiar. Aí tem que ir pro muka, da jiboia vai pro muka pra consertar, porque aí é outro compromisso mais sério.
P/1 – Mas se você só cumpriu oito, o que você fez pra encurtar os quatro anos que estavam faltando?
R – Eu fiz outras partes, tem que me virar, pra terminar as coisas, justificando. Aí você pode ver, você tem que justificar pra você mesmo quando você perder esses pontos.
P/1 – Mas ela veio cobrar?
R – Não, te cobrar, não, já te manda pro meio do campo, então tem que se virar pra poder recuperar…
P/1 – Você mesmo faz o seu caminho de recuperação?
R – É, você tem que fazer a recuperação, ou sobre o muka.
P/1 – Mas você fez o muka? Você fez o que para recuperar?
R – Eu fiz mesmo essas quantidades que às vezes falta, que um ser humano busca, né? Às vezes a gente está com saúde, a gente está positivo, você alcança mesmo o teu nível 100 por cento, 50 por cento, como é que tu está treinando? Tu sabe, menino da gente, a gente sabe se está bom, está ruim, ainda falta, ainda continua te pedindo dinheiro, sustenta. Menino bom é aquele que já te traz a caça, a pesca, aquela alegria, nosso ponto dez. Aquele menino que só traz problema não é dez pontos, você tem que investir mais nele pra… Tipo assim, estou dando exemplo: a qualidade da nossa educação. Mas ali, também, o meu pai era muito legal, mas ele queria que todo mundo cumprisse o dever. E nessa minha amizade, eu sempre tentei fazer o que ele manda, o que ele quer. Eu queria fazer mais um pouquinho pra eu ser melhor do que ele, mas ele sempre foi melhor do que eu, também. Nunca eu fui melhor do que ele. Melhor do que ele eu aprendi essa coisa de escrever, ler e viajar pra fora, aí eu passei um pouco dele, mas melhor do que ele na floresta, eu não conseguia, porque ele…
P/1 – Era bom demais?
R – Era o mais forte de todos nós.
P/1 – Mas ele te treinava para ser cacique?
R – Ele não me treinou, não, mas treinou outros filhos dele, eu que aprendi nessa coisa, aprendi toda a linha da família, desde o pai dele, desde tudo, quem são, a mesma coisa…
P/1 – Como se fosse a linhagem, você pesquisou…
R – Não, porque eu estudei. Se você é trabalhador demais, morre, mas se você… É a mesma coisa, eu decidi ser artista, que não tem em nenhuma das famílias. Aí, o meu pai ficou um pouco desconfiado: “Deixa aí, porque vocês são tudo bom, mas a mesma coisa...”. Se nós não tivéssemos uma vida que morre, eu ia acompanhar ele. Mas é a mesma coisa, você chega lá, você não leva nada, você não carrega, não rouba o seu saber, o saber fica aqui mesmo, tu vai só o corpo. Eu não tenho essa prova que tem a vida lá legal. Tu tem a prova que depois de morrer, está lá teu irmão, teu primo... Nada, só história que a gente vê muito. E aqui faz, aqui paga, aqui leva, é aqui mesmo. Então eu decidi sem falar com ele, porque você não pode ficar falando isso, que ele está errado, você vai aprendendo a ciência com ele e levando essa coisa pra frente.
P/1 – Mas aí você decidiu o que, ser artista? Como?
R – Artista assim, do jeito que nós estamos aqui. Se não for artista, tem que estar lá na roça, na seringa, 24 horas, não tem nada que ficar lá zanzando no terreiro dois, três dias sem fazer nada, a recomendação é 24 horas no serviço.
P/1 – Ou lá 24 horas no serviço, ou essa sua tarefa, que é diferente?
R – Diferente, porque as outras famílias não tinham artista. Mas eu fiz uma parte para ser cinematográfica ou para ser um outro tipo de artista, fotógrafo, ou mesmo sair cantando, isso aí é artista, né?
P/1 – Isso você decidiu com que idade? Que você ia fazer isso.
R – Eu decidi já grande, quase 17, 18 anos.
P/1 – Você decidiu que ia ser isso?
R – Que eu achei mais fácil de tudo. Lá na floresta podia ser qualquer cacique, qualquer agricultor, mas quando vem pra cidade, você tem que ter titulo, pra ganhar, pra pagar, pra… Se não tem titulo, como é que tu vai arranjar um emprego aqui em São Paulo, me diz? São Paulo quer só cara que é bacana mesmo, pra ir trabalhar pra ele, para ganhar mais, se não tu fica na rua, mendigando. Qualquer tipo de cidade, como é que tu vai pagar seu custo de vida? Na cidade ninguém tem pena de ninguém, não. Então essa parte, você tem que descobrir o grau da gente, o ponto pra gente dizer pra sociedade que você sabe fazer alguma coisa.
P/1 – Me explica melhor qual foi a sua decisão, exatamente o que você fez.
R – Então, essa decisão de família é assim, a gente fez de tudo um pouquinho. O cacique já vem com coisa forte, então eu achei que conseguiu educar a gente a buscar o papel dele, nesse ponto. E eu tenho que caçar também, não podia copiar ele, nenhuma das famílias, eu tinha que seguir um caminho também, como ele fez, e decidir pra ver o que era que eles me chamaram quando eu tinha essa idade, 18 pra 21, que a pessoa dá mais confiança. O meu irmão que fez passagem agora, semana retrasada, que era o cacique ___________, todos nós confiávamos.
P/1 – Foi ele que ele treinou para ser cacique?
R – Ele que ele treinou, e eu também aprendi, a gente aprende, menino novo, a gente aprende, você não pode falar, mas ele captura.
P/1 – O que é treinar para ser cacique? O que ele transmitia?
R – Tudo. Coisa difícil, coisa fácil, vai treinando. Ele vai fazendo essa dieta, também. Ele fez muka no meu irmão.
P/1 – Então para ser cacique precisa fazer o muka?
R – Não, ele fez todinho. Treinou ele, passou também. Igual tu forma eles, vai pra faculdade, depois vai pra doutorado, vai pra… Foi, passou. Aquele que não passa, não passa também.
P/1 – É, o muka daqui é esse.
R – Daqui é esse, você fez, ele fez __________, ele vai descobrindo e faz também, esse que é o negócio. Mas eu, pegando fora também, eu peguei tudo, eu fazia também dessa parte, me convidaram pra ser chefe, os dois, né?
P/1 – Você e o seu irmão se tornaram chefes?
R – Não, o meu irmão, o meu pai deu confiança. Aí, o meu pai e o meu irmão, depois, me chamaram pra me entregar o negócio. Eu cheguei lá, eu estava ___________. Falei que não queria o tal de chefe, eles ficaram bravos comigo: “Pô, como é que tu não quer ser chefe? Tu quer o que? Ficar na rua aí, andando?” “Não, não é isso, não”, não falei isso. “Não, mas eu tô legal”, mas de lá pra cá, eles nunca mais assumiram, deixou o… A chefia ficou solta. Porque o povo, quando você está na liderança, ele não te respeita, na hora que você está bom, eles falam de você. Aí o meu irmão se aborreceu nisso que falavam dele, assim, que às vezes, você não está fazendo... O povo falando mal de você, você fica tonto, bravo. Nisso, o chefe chamou: “Está aqui chefia, quem quiser levar...”, aí me ofereceram e eu não queria.
P/1 – E ninguém mais pegou?
R – Ninguém pegou. Ficamos oito anos sem chefe. Eu fiquei olhando, porque nós estávamos começando a desmontar o nosso negócio, e eu assumi sozinho, mesmo.
P/1 – Aí, você assumiu?
R – Assumi, porque não dava, né? Eu não assumi com o coração, ser chefe, eu assumi pra não…
P/1 – Para o negócio não degringolar de vez?
R – É, para não ficar pardo. Por exemplo, de dois faz, nós viramos as costas, como é que fica? E o prédio? E o negócio? E o dinheiro que está lá no banco, congelado? Como é que vai resolver? Tinha que resolver.
P/1 – Então esses oito anos quem é que tocou?
R – Ficou sozinho.
P/1 – E qual foi o impacto disso?
R – Impacto já foi morte, foi muita coisa. Já foi desorganizado, todo mundo queria partir, aí eu que assumi um pouco.
P/1 – Tinha álcool lá na aldeia, assim, o pessoal começou a beber?
R – Sempre teve.
P/1 – Inclusive na época do seu avô?
R – Principalmente nessa turma, de quando vai explorar mesmo, aí tem mesmo álcool. Qualquer território tem álcool. Se você não tiver preparado, vai tudo. Então nós tivemos que organizar isso, esse pensamento. Álcool não é proibido, nem chupar rapé, tudo... Não é proibido, mas tem que saber usar com responsabilidade, senão, a gente perde.
P/1 – Isso mudou alguma coisa na aldeia? Você lembra, de criança, como é que... Era diferente, os homens bebiam demais? Isso você reorganizou, como é que foi?
R – Não, já vinha sendo reorganizado por outra turma, porque a nossa tradição mesmo não é bebida, nossas bebidas são sagradas, a gente não bebe pra ficar bêbado, pra matar, pra nada, a gente bebe pra curar.
P/1 – Mas aí vocês não bebem álcool, né?
R – Mas estou dizendo que sempre teve, nossos parentes, nesse tempo da borracha, esses outros patrões tinham… Eles bebem pra trabalhar, pra não ficar lá, também. Não fomos muito alcoolizados, não, mas sempre existiu. Até hoje existe, no município. Quem quiser... Mas aí, esse lado espiritual também ajuda a gente.
P/2 – E esse lado espiritual, você começou a beber Nixipan?
R – Bebi desde cedo, oito anos.
P/2 – O que você lembra assim, do Nixipan? Como é que era a experiência?
R – Nixipan era uma coisa muito forte. Claro que você vê que, como jovem, às vezes, você experimenta, coisa que você toma, você fica vendo... Não fica vendo, mas sente. Você sente aquilo que não está falando com ele, sente como tapete, sente com o vento, sente com… É comunicativo, Nixipan é isso, você acaba encontrando jiboia mesmo, acaba encontrando alguém que você já perdeu, conversa. Não é todo dia que você acaba encontrando o sentimento. Então isso também é uma coisa que você descobre tomando... Se tem alguma coisa que o menino normalmente não perde, você pode massacrar, maltratar, mas ele sabe o que ele quer, também. Sabe o que ele quer aprender, então nisso eu gostei, se eu não tivesse gostado, acho que não tinha tomado. A gente tem aquela admiração boa de…
P/1 – Mas depois tem uma conversa, como é que é? Uma criança vai tomando e como que isso é levado? Isso é uma medicina, né?
R – Tem em sala de aula, mesmo, tipo, essas aulas eu sempre participei. Como eu estou dizendo, meu pai já pagou integral pra mim com o pajé. Quando tinha tempo, ia cheirar rapé, tomava Nixipan, ia viajar com ele, caçar e pescar. Ali tu vai aprendendo o segredo. Se você respeitar o professor, ele te dá o… Se você não respeitar, ele não te ensina também, pode até te colocar pra fora. Respeitar ele como é que é, aquela coisa de julgar, pensar: o menino é bom, ele vai te informando mais.
P/2 – E ele que puxava as cantorias?
R – Ele que sabe, os outros só aprendem.
P/2 – Mas aí você tomava só com ele ou todo o povo se reunia?
R – Não, reunia várias pessoas, dez, 15, 20, 50.
P/2 – E como é que vocês faziam, conciliavam, para fazer a bebida e a borracha, assim?
R – A borracha é particularmente... Borracha é pra ganhar dinheiro lá, você não tem tempo pra nada. Mas aí tu tem que tirar uma semana, algum dia para fazer isso.
P/1 – Não pode ser todo dia e nem toda hora, né?
R – Borracha ocupa lá, sábado e domingo que não tinha, negócio. Mas domingo a gente não ficava dormindo, exportava o nossos produto que estavam ali parados, para levar mais perto. Ou atrás de comida, ou trazia coisa que estavam paradas ali pra chegar mais perto.
P/2 – E quem produzia o cipó, pegava o cipó?
R – Esse pajé.
P/2 – Era o pajé que fazia isso? E ele não trabalhava na borracha?
R – Não. Aí já era outra… Tem coisa... Pajé a gente paga, também, pra poder manter. A gente dá lá roupa…
P/1 – É que nem padre? Você paga pra…
R – A gente dá roupa, a gente dá comida.
P/1 – E ele que juntava, ele que produzia, e aí vocês se reuniam pra fazer exatamente…
R – É, o pajé está lá na casa dele, ele tem coisa dele, tem roçado, tem barco, tem outras coisas que… Pajé é pajé, ele não vai lá, mas puxa, né?
P/2 – E os conhecimentos tradicionais, como é que eles eram passados no meio da borracha? Como o Katxanawá, quem fazia?
R – O meu pai era mais dessa coisa de organizar desenvolvimentos, de cuidar da família, de cuidar também dessas coisas todas. Aí tem outra turma que cuida, que é o pajé, que é o txana. Como eu estou dizendo, o velho Macaro __________, ele também acho que fez muita dieta, ele sabia muita história, cantoria, e conduzia tudo, toda Nixpupimá, Katxanawá, Nixipan, todas as outras coisas. Ele é um velho forte, que acho que fez dieta mesmo pra até quando olha um maracanã voando, cara forte mesmo, da rua. Se você passa no sacope pra fazer um xixi, um coco, o bicho seca ali, porque o cara é forte. Então era um desse que tinha feito dieta no passado, aí ele estava com a gente, ele que conduzia o Katxanawá, o Nixpupimá, o Nixipan, o Txidin…
P/2 – E o Txidin tinha também?
R – Txidin ele sabia, né?
P/2 – Como é que é o Txidin?
R – Txidin é uma coisa muito sagrada, você tem que ouvir bem, não pode fazer coisa errada, ali no fechamento, no inicio, senão acontece muita coisa, você tem que fazer direitinho. É uma festa de batismo, tanto pra criança como para o adulto. Quando você vai para faculdade, para frente, o Txidin é mais para o tipo Doutor, você vai estar finalizando…
P/1 – Já é um doutorado?
R – É.
P/1 – Txidin é uma erva? É o que?
R – Não, Txidin é uma festa que a gente chama de Txidin, que é festa sagrada, onde você faz a cerimônia de graduação, está pronto, você passa o Txidin, não dá pra ficar brincando com coisa sagrada, também, né? Pouca gente faz, mas a gente tem, o que nós temos hoje que nós… Já há muito tempo a gente não tinha mais escola ali, de dieta. A gente abriu __________ ali com a gente.
P/1 – Vocês abriam uma escola para organizar isso?
R – Vocês chegam, vocês três: “Eu quero dieta”, aí eu não posso botar na minha casa, porque você vai continuar comendo açúcar, comendo carne, então tem um lugar sagrado que tu quer, né? É o que está escrito no regimento, vai estar lá. Quem quiser…
P/1 – Mas vocês aceitam qualquer um? Tem regra pra entrar?
R – Aceitamos pessoas, nossos amigos. Porque coisa divina você não pode prender, se a pessoa chegar: “Eu quero fazer isso”, tem escola, então está matriculando para, dependendo do custo, como que é, sofrer lá pra emagrecer, comer pouco, ficar só na energia. É isso, dieta não é nada fácil, ficar com saudades do parente, namorado, mulher ou… Quem não tem nada, fica lá mesmo, aprendendo muita coisa de ____________ pra curar, pra fazer as coisas.
P/2 – A que você participou mesmo, é um mestrado, e aí tem a… A inicial é a Nixpupimá, né?
R – De lá pra cá a gente tem vários, todo esse trabalho, mas o Nixpupimá, pra você também fazer uma dietazinha pra vida particular, que você vai enfrentar, tem uma parte que você conseguiu cumprir, que é pra tu viver bem. Se não cumpre, aí dá problema no meio da viagem, a gente vai também, né? Faz a passagem, porque o bicho fica ouvindo… Você não cumpriu a dieta, não ouviu, aí vem vampiro pra ele, deixa veneno, cai, quebra.
P/2 – E você participou?
R – Eu participei já mais adulto.
P/2 – E como é que foi?
R – Foi muito bom, eu perdi sete quilos, cada dia era um quilo e muito sonho.
P/1 – Mas você já tinha o que? Quantos anos?
R – Eu tinha 23.
P/2 – E você lembra de algum sonho?
R – Eu lembro sonho mesmo dessas coisas que a gente precisa sonhar todo dia, que você está maneiro, que você vem fazendo dieta, diminui um quilo por dia, é muito bom, sonho todas as coisas, coisa boa, né?
P/2 – Tem algum sonho que você possa contar, assim?
R – Sonho que você começa a cantar, pega e canta, quando você acorda, tem que cantar mesmo. Isso que é o sonho importante, você… Aí o pajé lá, cantando, então acorda, não pode esquecer nada, você tem que pegar e sair cantando, aí o pajé vai te pedir lá na iniciação: E aí, o que tu aprendeu? O que tu sonhou?” Certeza que ele vai pedir, aí tu tem que fazer. Ele mesmo cura, te dá o que você tem que seguir. Não é fácil também não, pior um pouco do que daqui também da cidade, da cidade você ainda faz aqui, internet é fácil, mas lá você tem que pegar o…
P/1 – Pega no sonho.
R – No sonho. E nas coisas você vai juntando, até tu virar tu mesmo. Como eu estou dizendo, o professor diz: “Vai”, aí tu… 100 por cento tu está liberado. Se não for, tu vai ficando mais 12, 13 anos, 14, 20 anos, até tu entrar no formato, é assim.
P/1 – Então esse aprendizado todo, ele demora? Tem um tempo pra demorar ou…
R – Tem.
P/1 – Quanto tempo, mais ou menos?
R – Tempo de um dia, uma semana, um mês, um ano, dois anos, três anos, 12.
P/1 – O seu foi de quanto tempo?
R – O meu fez oito anos, por causa desse negócio de ajudar o meu pai, de ajudar esse povo.
P/1 – Então você saía, voltava…
R – Eu saía, mas o cara nunca teve pena de mim: “está aqui a nota”, saiu, está reprovado. Aí, você tem que fazer de novo.
P/1 – Então você voltava?
R – Voltei poucas vezes, porque achava que ajudar as pessoas era importante. Estou aqui, com sede, como é que eu não vou ajudar e passar um dia, meio dia... Aquele teu ponto já deu pra ele, mas o teu ponto lá está conectado. Por exemplo, estou fazendo... Tenho que fazer um negócio, passa um mês, dois meses, você não está batendo, você tem que estar lá também pra fazer.
P/1 – Eu queria entender mesmo nessa parte, desde a sua infância, como é a divisão, assim, existe uma divisão entre homem e mulher?
R – Existe.
P/1 – Assim, as mulheres faziam o mesmo aprendizado, ou elas iam pra agricultura? Como que estava organizado isso?
R – Pra nosso ____________ naquele tempo, a mulher não é mesmo um peso, porque a gente tem um pouco assim, pena delas que estão lá no roçado, com machado, com tipo assim, pesado mesmo. Fica lá na casa, cuidando da comida, cuidando das coisas, fazendo outras coisas. Porque a gente sabe que a casa lá também não é pra dormir, casa tem muita coisa pra gente fazer, e nós caçávamos, pescávamos, essa parte também aí, mas é bom também, tem gente que aprende essas cantorias, essas palavras bonitas do treinamento, as coisas, pra confortamento.
P/1 – Mas a mulher participa desse aprendizado? Da música?
R – Participa.
P/1 – Mas a mulher pescava? As mulheres pescavam, caçavam, não?
R – Pescam também. Tem mulher que corta, tem mulher que faz roçado, tem mulher que pesca, caça.
P/1 – Na maioria, as meninas não eram treinadas pra isso?
R – A gente treina, mas como estou dizendo, a gente dá uma oportunidade pra elas decidirem, também. Não posso pegar elas e fazer do jeito que eu faço. Não, hoje o direito da mulher, que ela ganhou, que a gente não pode nem botar o dedo assim, se não tiver legal... Elas que vão dizer o que elas querem, tem uma liberdade de escolher, e nós só damos orientação do que tem que fazer, ou o que não tem que fazer, também. Orientação lá em... Elas vão pegando, tem mulher forte também, né? Aprende tudo, às vezes, mais do que…
P/1 – Do que os meninos.
R – É, porque o homem também fica olhando as meninas, aí aprende mais que a gente, se vende o barato pra sabedoria, que elas são mais... Energia. Homem tem que levar tudo, não tem porcentagem, tem que fazer integral. Mulher não, mulher já tem… Quando você olha que é encantadora ou mais bonita, você para, pensa, derrete, você perde o seu dia pra poder pensar isso. Mas um pouco conjunto, diminui um pouco por velocidade também…
P/1 – De força?
R – De força, porque a gente aguenta mesmo. Como é que uma mulher e um homem aguenta na briga? Não aguenta, porque o homem vende, ele tem mais força.
P/1 – Quando você decidiu, então, assumir a liderança, você já tinha… Você tem mulher? Você juntou com uma, como é que foi essa época?
R – Já tinha, consegui juntar de 17 pra 18, que também não foi muito sortudo de tudo. Quando eu tinha ali, pra 12, eu perdi minha mãe. Aí aquela mesma força em casa, eu perdi, só ficou o cacique…
P/1 – Só ficou ele?
R – Aí aquele amor de roupa, comida, de coisa, aí já não rolou mais.
P/1 – E aí, como foi?
R – Tem que ter… Pai arrumou uma, é legal, né, ele foi botando: “Tem que arrumar mulher pra te cuidar, arrumar roupa, fazer comida e tal”, aquela coisa que “não vou cuidar de você aqui não”, mandando já…
P/1 – Isso quando, ele arrumou? Com 12 anos a sua mãe…
R – Passou alguns dias, já, eu fiquei até 18 anos sem mulher. Desde lá pra cá, ele veio enchendo o saco: “Você tem que arrumar uma mulher pra te cuidar”, essa coisa. Eu achei que era a solução arrumar uma mulher pra cuidar, mas se eu soubesse, não tinha nem…
P/1 – Aí, você arrumou?
R – Eu acabei me submetendo a esse voo, né?
P/1 – E aí?
R – Aí é mais problema, você acaba discutindo, acaba enfrentando, assume mais uma despesa... Porque é despesa pra tudo, fazer roçado, caçar, pescar e dar conta do recado.
P/1 – E aí, não foi bom?
R – Eu acho que quando você não sabe, não é assim: “Tem que arrumar mulher pra resolver as coisas.” Pode fazer outras coisas. Mulher eu acho que é última coisa que você deve ter em casa. Tem tudo, aí da para pensar em ter paz ali.
P/1 – Primeiro tem que arrumar as coisas?
R – Tem que arrumar tudo, não pode arrumar primeiro a mulher, como é que tu vai pagar as suas contas sem saber? Isso eu acho que foi um pouco assim, não precisa pagar, mas a necessidade não era isso, necessidade podia ir mais longe sem essa coisa, mas você é cercado também por muita gente, né? Filho do cacique, trabalhando lá, bacana, mulherada fica lá olhando.
P/1 – Aí, você…
R – Porque a nossa cultura, se o cabra é trabalhador, mulher quer. Quem não trabalha... Não precisa ter dinheiro para conquistar nada, você tendo um caso de roçado, outras estruturas, que a mulher acha que aquilo lá…
P/1 – E como é que você escolheu a sua? Você gostou de alguém, especificamente?
R – No meu tempo não tinha mulher pra mim, tinha as primas, um grande escasso de mulher de família.
P/1 – E aí?
R – E aí, tinha uma sobrando lá no meio do campo.
P/1 – Foi essa?
R – Foi essa.
P/2 – Como assim, tinha uma sobrando?
R – Sobrando, né? Sobrou uma lá.
P/1 – Ela era do outro clã? Você respeitou isso?
R – Eu acho que desrespeitei um pouco, era de um clã que…
P/1 – Você misturou os clãs?
R – Não tinha, né?
P/1 – No outro clã não tinha, aí você pegou do mesmo clã?
R – Do mesmo clã. E deu essa separação também, a gente fez um compromisso forte pra ficar legal, “vamos ficar legal aqui”, mas lá na frente a gente já furou o esquema.
P/1 – Não vingou?
R – Não foi o combinado, começou a dar errado, né? Primeiro erro dela, acabei de dizer, não podia... Podia lá na frente, aí deu esse pequeno problema já de…
P/1 – Mas vocês tiveram filhos?
R – Tivemos dois filhos. O que mora aqui que é o ___00:54:59____, e o Zé também, dois meninos.
P/1 – Os dois estão aqui?
R – Não, só está um aqui.
P/1 – E o que aconteceu? Você largou essa e se separaram?
R – A gente separa. Compromisso é ruim, quando se separa da família. Não é fácil não separar, porque já tem filho, já tem negócio, já gastou muita coisa no negócio, aí aquela coisa… Homem sério sente, né, o bagunçado não sente nada, não, deixou, está deixado. Mas quando você vai pensando com a cabeça, vai estragando tudo também o que você vai fazendo.
P/1 – Isso demorou… Foi depois de quanto tempo que você ficou com ela que você separou?
R – Muito tempo, dois filhos, né?
P/1 – Demorou?
R – Demorou, a gente não fez rapidinho, demorou. Um ano depois, cinco anos depois veio outro filho.
P/1 – Então demorou quanto tempo junto com ela?
R – Uns dez anos.
P/1 – Dez anos?
R – Acho que é por aí. Dois filhos…
P/1 – É. E você voltou a casar?
R – Voltei a casar não. Fui arrumando as namoradas, aí nunca mais deu certo também.
P/1 – Você não caminhou com outra, assim, mais…
R – Não. Ainda arrumei outra, mesmo em São Paulo, em Campinas, passei 15 anos, acabei também, não deu certo.
P/1 – Mas você teve mais filhos?
R – Tive.
P/1 – Quantos?
R – Tive seis filhos, três mulher e três homens.
P/1 – Mas com a mesma?
R – Não, diferentes.
P/1 – Tá na turma do meu pai, né? (risos)
P/2 – Eu queria que você contasse… Você estava falando que era seringal, que quando você nasceu era seringal. E quando foi que se formaram as aldeias?
R – Esse seringal, nesse tempo de 1964... Porque eu nasci já lá dentro do seringal que o velho conquistou com a madrinha lá, aí o pai juntou o povo dele, eu já me acordei lá. E chamou, foi chamando. Meu pai era legal, chamou os irmão, a irmã, os parentes para morar, cabra trabalhador também, ia conduzindo os caras e a gente veio formando. É o tempo que chegou o amigo dele − que é o Aquino −, que ajudou a gente a conhecer leitura: “Vocês têm direito” “Como nós temos direito?” “Tem direito”, aí o pai veio aí pra Brasília, ou aqui mesmo pra São Paulo, com a igreja, com a FUNAI [Fundação Nacional do índio], na época, com essas outras…
P/1 – Foi o seu pai que veio?
R – É.
P/1 – Ele veio com a FUNAI?
R – Conquistou esse pedacinho, seringal, que é a colocação, vamos dizer, que é o seringal.
P/2 – Você lembra quando o __________ chegou lá? Você estava?
R – Foi em 74, por aí.
P/1 – Você tinha uns dez anos.
R – É.
P/2 – Mas você se lembra?
R – Lembro. Tinha medo dele, qual o menino que não tem medo de outro que não conhece, né?
P/1 – Você tinha medo dele? Por quê?
R – Não era o mesmo time nawa que a gente chama. Tem medo de alguma coisa, o menino fica: “Quem é o cara? Não vou ficar perto dele não, ele pode fazer alguma coisa”, fica meio assim. Eu me lembro de 74 ali, gravando o meu pai, como nós estamos fazendo aqui, contando história e a dificuldade. E a gente foi crescendo um pouco, né, dessa coisa de seringal, a gente voltou a ocupar. Voltar normal, voltar a coisa pra trabalhar. Aí, rodou acho que… Chamava cooperativa, trazia mercadoria e revender também…
P/1 – Ah, montou essa cooperativa?
R – Montamos, porque a seringa… eram 13 estradas, dava pra negociar lá algum cheque, 13 estradas de seringa. Vendia, negociava isso, trazia as coisas. E chamou a cooperativa para dar continuidade na economia. Se você tiver sem nada, você está fora também, você fica freguês ou mesmo agricultor, como o velho foi organizando com os irmãos dele, porque os irmãos todos organizados também, traziam as coisas, trabalhavam, negociavam, sabiam buscar. Daí a gente fez a discussão para ficar com seis seringais, e rolou seis seringais, não era mais aquela aldeiazinha. Seis seringais é o rio todo, o Rio Jordão.
P/1 – E vocês foram distribuindo?
R – Distribuindo e ocupando, porque nós estávamos cheios ali, não tinha seringa pra todo mundo, pra negócio. Aí cada família foi distribuindo, próprio Ikamuru foi pra o Novo Segredo. Com ______________ foram pro lugar mais alto, aí eu vim baixando, acabaram me empurrando lá pro Belo Monte, já era maiorzinho. Então, vai cuidar agora da sua comunidade. Acho que com 16 anos eu comecei a liderança lá.
P/1 – Ah é?
R – Eu achei jovem, mas o que eu ia fazer? Tinha que trabalhar, né? Trabalhava, ajudava, levava, trazia uma mercadoria também lá para esse Belo Monte, que é ali…
P/1 – Quantas pessoas foram com você pra Belo Monte?
R – Ah, tinham todos os meus sobrinhos fortes comigo.
P/1 – Vocês foram tudo pra lá?
R – Por exemplo, o ____________ vai comigo, que vai onde vai, a gente vai junto, tromba quem a gente quer, até bom de trabalhar com os amigos bons, é bom também de trabalhar, vamos juntar aqui a nossa borracha. Às vezes você chegava lá um pouco antes que todo mundo, aí o seu chefe: “Cadê a borracha?” “Está aqui”, aí tu vai ganhando espaço, gerenciando também as pessoas de mais idade. Eu senti assim, que eu era pequeno, mas eu tinha que fazer também, fazer direitinho. Então a gente ocupou seis seringais, geral, e o povo também... Aceitaram. Não aceitaram fácil, foi difícil da gente estar conversando com os donos da… Responsáveis da terra.
P/1 – Quem eram os donos da terra?
R – Quem gerenciava são os Faria ou Melo, agora, quem era o dono era… Não sei se era dono, mas que estava lá, Raimundo Felis, outros que…
P/1 – Mas aí, quando o seu pai foi pra Brasília com o Tierry, que ele assinou com a FUNAI, a terra virou de vocês, é isso?
R – Ele foi lá reivindicar e aí virou a nossa responsabilidade, o Jordão. Quem demarcou foi o Fernando Henrique.
P/1 – Foi agora, Fernando Henrique?
R – Foi, que todo mundo diz que é sacana, mas pra nós ele passou a caneta pra terra sair demarcada.
P/2 – Ah, ela não foi demarcada naquela época, 70, 80?
R – Não, foi o tempo...
P/2 – E o que vocês fizeram com os patrões da borracha para abrir o seringal de vocês?
R – Foi difícil, tivemos que… Difícil, mas também eu vinha trabalhando pra ele, um dia, ele… Chamaram lá, eu vinha descendo um pouquinho assim, eles tinham o barco deles cheio de armas. Eu estava descendo, chamaram lá pra acertar conta, acertar, mesmo. Chegou aquele pensamento: quem morre é quem perde, quem ganha é o cara macho.
P/1 – Mas te chamaram pra isso?
R – Chamaram. Nós vínhamos descendo, o pai já veio… Era difícil também de correr, não tinha nada... Foi lá o pai, ele pediu: “Não vamos brigar agora não que eu não tenho nada, vamos marcar o dia, data”. Imagina, marcar dia, data, pra matar o outro?
P/1 – Um duelo?
R – Ele marcou, o velho lá, aí falou pra nós: “Marcamos dia tal. Quem tem condições é quem vai vencer”. A gente se organizou, valorizamos, vendemos nossa produção, compramos equipamentos e fomos lá no tal dia que o patrão marcou para nós. Ele foi com a turma dele, nós fomos com a nossa turma.
P/1 – Quantas pessoas foram, de vocês?
R – De nós acho que foram umas 35 pessoas.
P/1 – E de lá?
R – De lá não sei quantos foram.
P/1 – Muitos?
R – Muitos também, seringais, tudo.
P/1 – E todo mundo com arma?
R – Todo mundo com arma.
P/1 – Vocês arrumaram armas também?
R – Levamos a flecha, né?
P/1 – Ah, levaram a flecha?
R – Levamos a flecha.
P/1 – Mas eles tinham o que?
R – Tinham tudo, rifle, tudo.
P/1 – E como é que foi essa luta?
R – Na luta parece que o chefe lá reconheceu que não ia ganhar, liberou para nós.
P/1 – Ele assinou alguma coisa?
R – Não, lá mesmo, na praia, ele entregou para nós. Estava no porto, ele vinha chegando, nós chegamos também, encostamos na praia, aí não aguentou, ele vomitou, o outro vomitou também: “A terra é de vocês”.
P/2 – Ah, eles passaram mal?
R – Eles passaram mal, mas nessa hora ele mesmo decidiu que a terra era nossa. Aí deram o tiro pra cima e ficaram com mais medo.
P/1 – E eles entregaram a terra?
R – Entregaram.
P/2 – Mas por que eles decidiram entregar a terra?
R – Não aguentaram, viram que iam perder.
P/1 – Tinha menos gente?
R – Não, ele ia perder de qualquer forma, ele reconheceu que não ia ganhar ali. Lutar com a faca, com tiro, com porrada…
P/1 – Vocês estavam decididos mesmo que vocês iam…
R – Não tinha outra forma pra nós fugirmos, tinha que estar ali mesmo, só que nós íamos sair matando eles, se eles matassem o chefe, nós…
P/1 – Ia ter uma guerra mesmo.
R – Nós íamos pegar eles todinho. Não dava pra fugir, porque estava dentro da gente.
P/1 – E desde esse momento, eles tentaram pegar de volta essa terra?
R – Não, ele entregou, entregou, porque não precisava, tinha muita, muita terra mesmo, terra… Toda aquela terra, todinha, não ia perder uma vida por causa de um pedaço de terra, ele deve ter pensado, então, liberou. A gente foi atrás pra organizar, demarcar as coisas e botar em ordem. De lá pra cá nós ocupamos, mas entregaram a gente. Na hora que entregou, a turma já veio saindo também, aí a gente ocupou seis seringais.
P/1 – Agora, para o estado, só agora, depois na época do Fernando Henrique, que vocês fizeram…
R – Logo depois, também, isso foi 70 e pouco, né? Parece que foi em 80 que foi demarcado, 81, 84, ali não demorou muito não.
P/2 – O Fernando Henrique foi 94, né?
R – Tem tudo na documentação, você olhando dá pra pegar…
P/1 – É, a gente vê direitinho. Depois que demarcou, mudou alguma coisa na vida de vocês?
R – Depois que demarcou a gente foi buscar educação, saúde, meio ambiente, esses outros desenvolvimentos, porque era mais fácil.
P/1 – Como foi que vocês fizeram isso?
R – Juntando, como eu te falei, com a borracha, a gente abriu a cooperativa, e a cooperativa mandou muito... Até um tempo a gente fretou dois… Naquele tempo era a Varig, nós fretamos dois Varig cheios de mercadoria para levar pra lá. Aí vai organizando.
P/1 – Aí foi o seu papel? Você que foi fazendo essa movimentação toda?
R – É, ideia de meu irmão, ideia de meu pai, eu só assessorava por baixo. Ninguém... Não conta nada, mas você está lá, limpando um matinho, fazendo a peça, pensando. Na nossa questão não precisa dizer que eu estou fazendo, você estava fazendo com a família unida, família com saúde, está bom, também, né? Já de pequeno ajudava com motorista, ajudava tudo isso…
P/1 – Você estava continuando isso? Mas vocês negociavam com o governo do Acre ou vocês tinham que ir pra Brasília?
R – Naquele tempo o governo do Acre não tinha nada a ver com a gente, ainda. Não tinha mesmo, você não podia falar a sua língua, não podia falar a sua história, não podia porra nenhuma, porque a sociedade quer da gente isso, não quer educar e não quer desenvolver, só quer que se ferre mesmo. Mas a gente não quer acabar, a gente quer organizar, também, até melhor do que eles, pra gente também dizer que não é por aí. Não precisa ficar brigando. Você tem mercadoria? Eu quero. Você tem uma coisa boa? Você criou para desenvolver o planeta, a terra onde você esta? É isso que é a troca, né?
P/1 – Mas nesse momento, o governo do Acre não…
R – Não, depois a gente foi enganchando um pouco. O apoio veio mais aqui de Brasília, pra São Paulo, Rio de Janeiro que o pessoal acreditava: “Índio, eu vou te ajudar, como que é?”
P/1 – Vocês se engajaram com outras tribos ou era os Huni Kuin fazendo esse trabalho todo, mas os…
R – Nesse tempo acho que demos o exemplo pra eles, pros __________ , foi até nós que ajudamos eles a demarcar. Quando nós terminamos, pior que a gente lá, porque é tudo tráfico de droga.
P/1 – Lá nos Iachanis?
R – Bem piores que a gente, faixa de fronteira mesmo, que morre todo dia. O último nós ajudamos depois de tudo isso, agora fechando 1900, acho que começando 2000, a gente foi lá, eu, o Macedo, depois do Chico Mendes.
P/1 – Depois do Chico Mendes?
R – Aí, fizemos também ___________, foram nossos exemplos, outros, outros, outros.
P/2 – Pode contar um pouco dessa viagem? Foi você e o Macedo para os outros povos ajudando a demarcar?
R – Nós andamos muito. A experiência que nós agregamos pra levar pra outro lugar, esse pagamento da indenização de terra, os outros, a gente carregava dinheiro no saco, seis mil, dez mil pra pagar a indenização.
P/1 – Pros outros?
R – Pros outros. Aí dono da terra, outro que está brigando com a faca ou a espingarda: “Só saio daqui se vocês me pagarem”, a gente tem que pagar, claro, né? “Quanto é que custa?” “Dez mil” “Então pega 20 mil, porque tem transporte, tem que levar pra…”, o cara saía feliz. Precisava dez, a gente dava mais dez pra ele.
P/2 – E como é que vocês arrumavam 20 mil pra dar?
R – Indenização que tinha passado, aí da FUNAI.
P/1 – Vocês pegavam dinheiro da FUNAI pra levar pra esse pessoal?
R – Pra esse pessoal.
P/1 – Pra deixar a terra pra vocês?
R – É, pagar pra ele… Nada saiu assim, indisposto, esses caras mesmo pegaram muita grana.
P/1 – Não foi assim, também?
R – Não foi assim, o negócio lá também quer receber. Também não posso te tirar assim de sua casa de graça, trabalhou, né?
P/1 – E eles pegavam o dinheiro e não voltavam, não? Ou muitos voltavam?
R – Não, não voltavam. A turma lá são muito organizados, pega dinheiro, não sai gastando, faz alguma coisa. Por exemplo, um amigo nosso que mora mesmo no Jordão pegou indenização do banco e comprou uma fazenda, hoje é o maior fazendeiro.
P/1 – Entendi. Então não teve assim… Por exemplo, teve, durante esse período, morte entre os índios e esses…
R – Com a gente não, graças a Deus. Nessa coisa a gente conseguiu sair limpo.
P/1 – Resolver de outra maneira?
R – De outra maneira. A gente falou assim, muita besteira, mas a gente não…
P/1 – Não teve assim, essa guerra?
R – Não teve, não precisou fazer essa confusão toda, até hoje. Teve na politica, na politica, a gente fala mal do outro, mesmo. Mas você está falando o que pensa.
P/1 – Mas me conta assim: vocês organizaram a cooperativa, organizaram as outras…
R – Ajudamos… Criamos a cooperativa, educação, saúde, meio ambiente, e também criamos hoje o mercado, abrimos o ano que vem o nosso mercado, que vocês viram um pouco, com todo esse resultado. Tudo que nós fizemos, abrimos nossa própria economia, senão vamos ficar aqui fora do mercado chiando e o fazendeiro vai continuar falando mal da gente.
P/1 – Mas como é que vai funcionar esse mercado?
R – Esse mercado... Nós temos três mil e quinhentos habitantes. Tudo o que você ganha, tudo que eu ganho vai pra algum lugar que está organizado. Então tu quer comer, quer viver. Então, assim, nós enriquecemos a cidade, mesmo.
P/1 – Vai para um fundo comum?
R – Não, vai… Não existe, você tem o seu salário, tu compra onde tu quer, mas tu compra todo esse mercado que tem ali, entendeu?
P/1 – Ah, aqueles mercadinhos que tem lá, mesmo?
R – Nós ganhamos assim, quase 500 mil por mês. Mas você não vê dinheiro de jeito nenhum, tu pegou seus dois mil reais, tu compra onde tu quer. Eu peguei os meus contos, eu compro onde quero, e você não vê nada, aí o bicho enfraquece. Muito tempo, a gente vem… Tipo, essa pergunta mesmo, a gente vem rastejando mesmo, aí abrimos um mercado com a economia da gente, você organiza esses 500 mil…
P/1 – Pra comprar no mercado?
R – Não, pra você criar o seu próprio mercado, você organiza esses 500 mil, aí tu organiza tudo que vocês vão… Vocês foram lá, agora, né? Por exemplo, eu estou com um mercado legal, você compra lá, o que vai comprar? Água mineral, que você goste, produtos que não tem, você continua comprando. Tem dois comércios que tem tudinho, eu vou comprar, tu compra porque tem lá, não dá pra comprar em São Paulo e voltar de novo no mesmo dia.
P/1 – Então, vocês vão abrir um mercado ali no Jordão?
R – No Jordão, aí fortalece toda coisa que vai…
P/1 – Aquela economia.
R – A gente multiplicou, daqui dois anos estaremos administrando 100 milhões, aqueles mil reais com projeto, sofrendo…
P/1 – Quando vocês estruturaram essa ideia?
R – Nós fizemos o que eu te falei aqui, fretamos dois Varig, a gente deixou sem registrar nada, porque a gente já sabia que ia pagar importo, tudo, e a burocracia. A gente fez legal, agora, nesse tempo, tivemos que registrar, aí a gente registrou a cooperativa pra funcionar. E é um pouco assim, depois que a gente é criticado dentro da sociedade, que nenhum de nós é nada assim… Não, igual japonês, igual chinês, igual peruano, igual esses caras todinhos, falta só o tempo que nós somos… Passamos um tempo, nesse tempo assim, mas nós precisamos usar a nossa riqueza da floresta. O que nós temos? Temos terra boa pra plantar, pro gado não presta muito, não. Temos terra boa pra plantar e temos todas essas coisas fortes da gente, nós temos amigos bons também que… Então daí não funciona, não? Funciona, é claro que funciona. A gente botou lá para gerenciar isso, e é forte. A nossa mercadoria também não vai ser preço do que a gente compra ali caro, a gente vai botar preço que nem dá prejuízo para a cooperativa e nem dá prejuízo para a administração, que a gente respeita um produto bom, assim, mesmo. Você está trabalhando, com pouco dinheiro dá pra você comprar, com o maior carinho ali, sem o cara te roubar. Por exemplo, gasolina, dez contos, é...
P/1 – É muito.
R – Muito. Por que não põe o preço correto? Precisa roubar? E isso dá moral para todo lado e acaba entrando a verba. E daí, tem problema? Não tem, tem que saber administrar.
P/1 – Então esse mercado vai ser propriedade da cooperativa?
R – Cooperativa Huni Kuin.
P/1 – Quem faz a gestão dessa cooperativa?
R – Nós mesmos.
P/1 – Deixa eu te fazer uma pergunta bem objetiva: dá trabalho fazer uma gestão financeira como essa? Tem que aprender a fazer isso pra poder…
R – Tem que trazer, tem que perguntar o ____________, porque esse é o papel desse…
P/1 – Então ele era treinado pra isso?
R – Não, estou dizendo que tem que ser essa pessoa formada, que não pode brincar ali.
P/1 – Quem que tá fazendo esse trabalho com vocês? Quem é o ____________ de vocês?
R – Nosso ____________ são nossas experiências que a gente agregou até agora. A gente paga o técnico.
P/1 – Vocês pagam um técnico?
R – Se para você é bom, não quero saber se custa 50, ou 100 mil por mês, por dia, ele vai treinar.
P/1 – Vocês estão pagando alguém que vai treinando vocês…
R – Treinando, e nós estamos treinando o nosso povo no mercado. Por exemplo, o meu filho Leo está aqui treinando já há dez anos. Ele vai botando o botão correto, enquanto ele não tá botando correto, ele fica aqui.
P/1 – Ele está estudando aqui? Está estudando o quê?
R – Politica. Já está pronto, já quer sair deputado. Por que politica? Politica não é para sair, politica é para defender nosso projeto.
P/1 – Mas estudando politica, o que? Fazendo Direito?
R – Não, é cidadania.
P/1 – Na universidade, aqui?
R – Terminou, já.
P/1 – Então, vocês têm um projeto, vocês estão formando os jovens pra fazer esse trabalho?
R – Continuidade. Meu pai foi... Quem que tem que dar conta? Meu irmão já foi, também. Tem que dar quem tá aí sobrando. Ou tu está sobrando, vai reclamar e não vai trabalhar, vai ficar com medo de morte, ali guardado? Não, você tem que… É assim, o negócio nosso de….
P/1 – Mas aí você é o cacique, né, você decide isso?
R – Não, vim dessa coisa que eu falei, estava ruim, eu assumi sem diretoria, sem reunião, eu passei acho que dois anos. Me senti mal, porque ninguém me elegeu também, estou ilegal. Aí reuniu. Eu fui eleito, aí fui eleito de novo, esse ano agora fui lá para entregar, porque é cassado, tu não tem um salário bom pra coordenar o teu povo, nunca ganhei assim, pra administrar isso.
P/1 – Então você está devolvendo...
R – E aí eu fui lá entregar, falei: “Está aqui. A coisa não é minha, não é seu e nem de ninguém”, mas ninguém quer, ninguém quer esse negócio pesado, difícil, sem ganhar, só o cara que gosta mesmo. Como eu sou de lá também, eu vou contribuindo. Não poso ficar também a vida inteira nesse jogo. Quem quiser fazer essa parte está aberto para fazer uma boa administração.
P/1 – Você tem que achar um sucessor?
R – Tem que ter um cara forte aí.
P/1 – Você já encontrou?
R – Não. Teve, né, reunião, que eu estou falando, não teve nenhum que… Tem pessoa, amanhã, se entregar, está sem responsabilidade, já está fazendo qualquer rolo, que às vezes, não faz nem bem. Talvez não tem porcentagem de fórum suficiente pra juntar o povo. Às vezes o cara não tem respeito. Por exemplo, o cara que não tem respeito, faz reunião e não vem ninguém , como é que vai ser?
P/1 – E você não está preocupado com isso?
R – Faz tempo, né?
P/1 – Entendi. E aí, como é que você pretende… Você tem um plano para fazer essa…
R – Tem um monte de gente que está treinando, já tem lá, treinando, a gente bota alguém lá pra… Daí o cara não tem telefone, como é que eu vou administrar com ele? Vai começar a falhar, tem que ter alguém…
P/1 – E hoje, como é que foi o trabalho... Você me contou do mercado, a conquista da parte da educação, da saúde foi você também que liderou?
R – Nós lideramos juntos. Primeiro fomos buscar criar essa cooperativa pra gente começar a ter a base, ter a estrutura e ter respeito, também, pela sociedade, depois foi buscar educação.
P/1 – E como vocês fizeram pra buscar educação?
R – Com a necessidade ali de escrever e a Matemática para não ser roubado de alguém que é estranho. Aí buscamos educação e depois fomos buscar a saúde, para cuidar de quem está doente também. Saúde, aí meio-ambiente, que é preservar a floresta, plantar…
P/1 – Então educação vocês trouxeram uma escola pra dentro da…
R – Trouxemos.
P/1 – Para cada aldeia? Ou…
R – Cada aldeia.
P/1 – Cada aldeia tem uma escola?
R – Tem uma escola.
P/1 – E os professores são da aldeia?
R – Da aldeia, mesmo. Treinados, né?
P/1 – Eles vão aprender e voltam?
R – Voltam. Pra dar aula na língua e de português, também. Primeiro, segundo, terceiro, hoje tem gente fazendo aí, faculdade, mesmo. Tem alguém que fez um doutor, mas não foi direto, foi só por cima. E a ideia é que os jovens que estão nascendo agora, a gente vai com cuidado pra treinar.
P/1 – E a parte de saúde é aldeia de vocês, mesmo, ou está vindo gente de fora, médico?
R – Saúde da gente é da aldeia, mas até agora, enfermeiros formados e médicos são de fora.
P/1 – Vocês têm uns agentes comunitários lá?
R – Temos.
P/1 – Aí forma como agente comunitário?
R – Comunitário para acompanhar, para saber. Agora, nessa nova era, também vamos formar o médico e tudo!
P/1 – O posto fica onde?
R – O posto fica na cidade.
P/1 – No Jordão?
R – É. Temos os pontos de… Cada aldeia tem o lugar de agente de saúde para cuidar, para trazer, mas ninguém pode usar remédio, não. Tudo é difícil, até pra febre você não tem remédio.
P/1 – Não tem remédio no posto?
R – Nós começamos pensando outro lado para valorizar aquilo, não sei se vocês entenderam aquele livro que a gente lançou, que estamos fazendo. Temos que usar o que nós temos, brigar lá na farmácia, não dá para brigar com alguém da farmácia ou quem é dessas medicinas aí de categoria. Você tem que ter alguma coisa pra você ter, se não formar, também não dá pra usar antibiótico, como é que tu vai salvar o cara lá?
P/1 – Então vocês foram resgatar o que tem de tradicional?
R – Essa medicina é... Agora, nós estamos começando, nós já fizemos essa coisa de saúde, que é saúde sem limite. Aprovou, está aí um monte de dinheiro, um monte mesmo, nunca é aplicado do jeito que é aplicado, o médico não sabe fazer e nem o enfermeiro. Vão lá, não ________ nem na casa, estão lá tratando só o que está doente, mas você tem que dar orientação àquele que não está doente para não pegar, senão,
pode ter muito dinheiro, mas ninguém cuida…
P/1 – O dinheiro está num fundo pra vocês?
R – Tem aí em Brasília, ___________ que chama FUNASA. Um bom dinheiro mesmo pra ter um médico e um enfermeiro, uma equipe.
P/1 – Mas tem que treinar um médico, agora?
R – Não, nós temos que sair com essa coisa que a gente quer, porque médico pra lá não resolveu nada, quem resolve é o posto. Daqui cinco anos, já está rico, vai embora e nós continuamos.
P/1 – Então o que você está pensando em fazer com respeito a isso? Me explica melhor.
R – Eu falei assim que estou fazendo, que nós temos a medicina da gente, mesmo, que a gente tem lá; não temos pílulas, nem empresa e nem laboratório. Está lá na floresta. Então nós estamos organizando, cada grupo, cada sítio, pra gente fabricar a gente mesmo, banho pra tomar, pra assoprar, pra fazer fumaça e tudo. Porque ali, vem de lá... Nós temos conexão com Europa e Brasil, dá para fazer laboratório, não precisa alguém brigar com nós, estamos fazendo para usar, não temos condição de usar o que vem de fora, porque nós não sabemos, a gente pode matar ou se matar também de usar coisa ruim que não sabe. Então, da floresta, a gente faz e a gente usa , não precisa de ninguém lá enchendo o saco, nem médico, nem ninguém.
P/1 – Mas isso que você está propondo, que você está fazendo, é que cada tribo organize a sua saúde com os saberes que vocês têm?
R – Cada aldeia está organizada, não temos com quem queixar. Quando você vem para o hospital, está cheio, 300, 400 pessoas na fila para atender, aqui na cidade. E tu vem pra cidade, está assim... Como é que tu vai tratar, me diz? Às vezes, até um cara com dinheiro, você não consegue…
P/1 – Mas esse saber da floresta está na mão de quem?
R – Da gente.
P/1 – Mas então, por que vocês não usaram até agora?
R – Estamos usando, até agora usamos, mas agora a gente quer melhorar socialmente, economicamente.
P/1 – Então o que significa melhorar? Isso que eu estou querendo saber.
R – Melhorar é a gente estar com ela... Essa sala com esse material, melhorar, conviver com ela, sabedoria… Economicamente, saúde, respeitar. É muita riqueza a nossa medicina, muito cara.
P/1 – Tem gente de fora que está vindo atrás dessa medicina de vocês?
R – Muita gente, mas a gente não está aberto para ninguém, não.
P/1 – Não estão abrindo?
R – Já está tudo lascado. A gente já deu pra caramba e não respeitam, não têm… Nós não temos educação adequada para nós, não temos saúde adequada, não temos respeito, então vamos fazer o que nós sabemos. O resto, se não fizer isso, não tem para onde ir.
P/1 – Então você me contou da educação, da saúde e o meio ambiente. O que vocês fizeram em respeito ao meio ambiente?
R – Meio ambiente, nós pegamos a nossa terra meio degradada nesses 70 e pouco... A gente está só remanejando, recuperando, organizando. Nós ainda bebemos água do rio, temos que cuidar para não poluir, essas coisas de jogar e misturar tudo. Nós recuperando esse manejo de área degradada, que os fazendeiros estragaram. Nós recuperamos tudo, acho que 70% do manejo de caça e pesca e madeira, e a gente também, nesses alcoolismos, nessas outras coisas, a gente tem que estar no lugar. Nós tomamos Nixipan, nós tomamos o nosso rapé, o que nós estamos fazendo? Temos que consertar também alguma coisa que está errada, trazer a coisa boa e viver com ela, porque todos os assuntos é: vamos fazer o que para melhorar? E aqui a gente vê um pouco o Guarani lascado, terrinha deles também, o que vai fazer ali? Só se fizer um prédio bom pra… Porque ali não tem água, não tem caça, aí viver do que? Vai crescer, né, e aí buscar a melhor solução. O Brasil, a floresta, a terra dá para todo mundo, às vezes alguém atrapalha. Então distribuindo, acho que todo mundo pode viver bem. A saúde, a educação, o meio ambiente, ainda tem a vida espiritual. Pajé lança a medicina que a gente... Então nesse meio ambiente, que se chama agroflorestal, a gente reproduz a semente, a gente replanta. Já tivemos muitas plantas de alguns florestais que plantam, e está aí pro macaco, pra nós, pros peixes, pra comer. Quando você tem muita comida, você está com saúde também, riqueza, não está passando mal, não passa mal nesse país todo. Nesses países de guerra também não passa mal por causa desse negócio que morreu com fome, e está de boa, está de boa. A semente a gente faz troca, é troca de semente, traz treinamento, faz o teste, e o que nós não temos, vamos pegando no Xingu, vamos pegando lá no… Vamos pegar aonde tem.
P/1 – Então, vocês levam sementes de vocês e pegam semente que vocês precisam?
R – Pega semente pra comer... Como é que nós não levamos? Semente pra comer é bom. Levar uma frutinha, laranja, uma tangerina, um amendoim, um cacau.
P/1 – E essa parte da medicina, vocês trocam com os outros também, ou é cada…
R – Troca.
P/1 – Como?
R – Troca. Às vezes eu não tenho um, eles têm, tem que fazer abertura pra… por exemplo: você tem uma folha e ele tem lá na base dele maçaranduba. É assim que é madeira de lei, lá na minha região não tem, eu tenho que fazer. Ou trago semente, ou troco com eles, porque na região deles eles têm maçaranduba, uma madeira muito especial pra fazer casa. E não temos, só ele que tem, então a gente faz…
P/1 – Você pega a semente da maçaranduba pra plantar lá ou você pega a maçaranduba, direto?
R – Eu tenho que pegar a semente, porque não vou ficar derrubando dele, ele não vai gostar se eu ficar pegando as coisas dele.
P/1 – Ele que você tá falando é quem?
R – Ele, às vezes, é o vizinho. Às vezes é vocês aqui, que tem…
P/1 – E agora, o próximo passo é essa coisa do mercado? Ter um mercado de vocês?
R – Mercado é igual o nosso filho, nossa família, nossa vida, é cheio de coisa, você tem que dar conta, não pode fugir dele. É o que tem… São Paulo, ele vai viver sem mercado, vai fechar todo o comércio, vai viver como? Ele está investindo mesmo pra ele ficar bonzinho, pra ele receber todo mundo.
P/1 – Nesse período que você organizou tudo isso, você teve as suas maiores dificuldades. Quais foram?
R – Todas. Desde perder a minha mãe, a maior dificuldade... Foi ali que começou, e nunca foi fácil pra mim, pra eu conquistar as coisas sempre é difícil, mas a gente vai conquistando.
P/1 – De onde você tira a sua inspiração, a sua força para seguir nessa luta?
R – Acho que é da vida mesmo, de coração, porque a gente não pode aguentar, nem gritar, nem chiar. Você está aqui na terra pelo amor do pai e da mãe, você sai e você não é bem planejado... Às vezes eu reclamei isto comigo mesmo, um dia sozinho: “Quem é que me trouxe aqui? Por que me trouxeram? Cadê quem vai me aconselhar? Com quem que eu vou conversar?”, falei sozinho, assim, no ar. Mas quando fui vendo, tinha que aguentar, como é que tu vai fugir? Tu vai pra onde? Eu não quero mais, não dá. Tu tem que saber conduzir com sabedoria, com responsabilidade, ou mesmo que a gente constrói a família, tem que doutrinar, ensinar como é que funciona isso. Porque as dificuldades foram sempre grandes lá na floresta. Até agora, nunca é fácil você encontrar… Está difícil combustível, está difícil transporte, está difícil educação, está difícil saúde, está difícil tudo. Nós temos que nos virar. Acho que no ano que vem vai ficar tudo fácil. Quando você chegar lá, tem cooperativa, tem transporte, tem comunicação, nós estamos brigando por internet lá também para implantar... Porque está longe. Esses meninos que estudam, a gente leva: ”Vamos embora, porque não tem internet”, como é que nós vamos fazer? Tem que botar lá pra eles.
P/1 – E você teve dificuldade com os próprios Huni Kuin?
R – Tenho muito também.
P/1 – Qual que é a sua maior dificuldade?
R – Dificuldade a gente... Vão crescendo, eles também vão querer fazer... O outro quer criar, botar uma organização, uma associação, quer fazer também e não sabe a ideia que… A vontade que tem. Igual menina da gente, não sei se você criou menina. Menina, você cuida tanto, ela saem fora, vêm com o marido, vêm com namorado, com bucho, com menino, aí como é que a gente faz? Você não mandou… Botou ideia, mas não ouviu. Então, as dificuldades são essas coisas que a gente busca nessa volta também, que é o nosso povo do Jordão. A gente tentou buscar, tudo isso que a gente falou, e vai conquistando também. Dificuldade é igual a vida da gente, não acaba de ter, você tem que solucionar. Como a terra é tão rica – do Jordão –, de água, de terra, de vento, da floresta, falta botar o pensamento positivo pra levar isso.
P/1 – Assim, agora, na vida que você está tendo hoje, quais que são os seus principais desafios, o que você está buscando agora?
R – Eu acho que os nossos principais desafios são muito positivos. Todo esse tempo a gente fez toda essa coisa, então hoje a tecnologia chegou pra todo lugar. Falando do Jordão de lá pra cá, tem poucos bichos que é o __________, água boa, como diz…
P/1 – Desculpa, me explica melhor isso. Eu não entendi.
R – Na nossa região, eu gosto muito, Juruá tem muitos bichos pequenos que chamam ____________, borrachudo…
P/1 – Tem pouco?
R – E lá na região da gente é pouco... Você sente isso, só falta a gente organizar agora. Pé no chão de botar a educação pra funcionar mesmo. Essa mal que nós pegamos junto a vocês da sociedade, mal de guerrear, confusão, mesmo, a gente tentou limpar, porque não é nosso. Então como é que vamos acostumar bebendo? Ficar bebendo e caindo, esse não é o caminho bom. Como é que tu faz... Matar é caminho bom? Não é caminho bom. Como é que tu vai... Sabe? Esse não é... Temos que tirar uma coisa positiva. O que é? Desenvolver. Então saiu esse mercado. Como é que a gente vai desenvolver? A gente nunca ficou preocupado com a economia da gente, tudo que vem pro nosso rumo, então vamos organizar pra respeitar também, pra nós... Só guardar dinheiro no banco, não, vamos usar pra futuramente, na educação, na saúde, nessa parte espiritual, que é muito importante você manter a sua raiz. Raízes, ancestrais, fala-se muito em ancestrais, cadê, realmente? A gente fala muito pouco, fala mentindo. “Faço isso, isso...”, mas você faz? Não faz, então está mentindo. Fala de Deus... Quem é Deus? Ettá ouvindo? Não está, então está mentindo, tem que fazer alguma coisa. O mundo tem muita coisa errada, mas tem pessoas boas, pessoas que sabem também desenvolver, saber as coisas, coisa boa. Então o desafio está nisso, ____________. Hoje estão lá, já viraram prefeito, tentei pegar, mas não consegui, está lá organizado, os _____________.
P/1 – Os ____________ estão organizados?
R – _______________ também está lá organizado ____________, e nós vamos ficar mesma coisa? Não, né.
P/1 – Então, você tem que…
R – Tenho que fazer também, como é que eu vim aqui contigo se eu não tiver o produto que você não quer? Não posso nem entrar e nem falar contigo, tenho que virar social, virar gente, virar o produto de qualidade. Hoje, o mundo, todo mundo está atrás de produto de qualidade. O que é produto de qualidade? Alguma coisa nós temos, temos o nosso ___________ vitaminado com banana, que faz vitamina muito forte; nós temos aí o rapé bom, Nixipan bom; temos produtos de qualidade: farinha, açúcar mascavo, nossa batatas, nosso amendoim, nossos peixes, nossas caças, nossa florestas e nós também.
P/1 – Então você quer organizar isso e tudo isso para você pôr mais organizado no mercado?
R – No mercado. E viver dentro da sociedade também, sem alguém botar defeito, porque você é índio… Não, sou índio, mas estou aqui, com você, qual é o problema? O problema é que tem que estar formado. Então vamos formar nos Estados Unidos que tem avião forte, a gente vai ter que ir lá.
P/1 – O _____________ organizou mais que vocês? Você acha que eles estão mais organizados?
R – Não, mas eles são pequenos, porque eles foram. São meio fortes, quando a gente cochila, eles não estão cochilando, já buscaram… Estão com o prefeito na mão. Nós somos maior e a gente não fez, ainda.
P/1 – Por que você acha que eles foram tão…
R – Bichos dormiram no ponto, eles pegaram lá. Tem que ser esperto.
P/1 – E os _____________?
R – Eles estão lá, querem andar junto. Eles faz também um trabalho bom, têm cultura. Nós também retribuímos um pouco da nossa cultura, a gente também, quando eles não sabem falar, a gente ensina. Esse massacre da sociedade, perderam muita coisa deles, também.
P/1 – Os ____________ ?
R – Todo mundo. Não só ___________. Aquele que precisa, a gente dá. O exemplo do livro, para eles olharem como é que é, de qualquer forma, o registro lá da terra, sempre tem uma história que se perdeu, para recuperar.
P/2 – E você fez muitas andanças também pra fora do país, não fez?
R – Fiz.
P/2 – Pra onde você foi?
R – Eu, nesse tempo que eu estava contando pra vocês, eu queria ver quem é que mandava no mundo. Fui para os Estados Unidos, porque americano gosta de matar muito… Matar tudo, se nós contarmos aqui, mataram Sadam, mataram Bin Laden, mataram todos esses lideres também, embora sejam marginais, são terroristas, tudo, mas têm a vida. Eles são os caras que controlam, mas resolveram o problema? Resolveram nada. Estão até fracos de estrutura no país deles, tem até esses outros países que querem pegar eles. Então resolveram? Não resolveram. Tem que saber mais importante, então eu fui direto.
P/1 – Você foi lá? Você foi onde?
R – Fui para Nova York, Boston, Califórnia, Chicago…
P/1 – Você foi onde? Foi buscar o que, lá?
R – Esse poder que manda, poder que eu acabei de falar, que manda. Eu achei que eles que mandam no mundo, no país.
P/1 – Você tinha razão. Mas aí você foi na universidade? Você foi onde?
R – Eu fui lá ver quem é que manda, presidente, como é que é ser… Passei uma noite e não gostei, porque eles pagam bem, você trabalhou o dia, eles te dão, mas virar americano, virar o jeito deles, eles não querem saber de outra tribo, outro país, outra coisa. Não sei se vocês já foram para os Estados Unidos, eles são eles e ponto final. Eu não gostei.
P/1 – Mas eu não entendi. Você ficou fazendo o que durante um ano lá?
R – Eu fiquei olhando esse direito, esse poder que eles têm, que manda lá, manda fuzilar, eles não mandam?
P/2 – Mas ficou “olhando”? Como assim?
R – Fui lá ver por que eles são assim, não é assim, para estudar? Passei um ano estudando eles, aí eu não gostei, como disse...
P/1 – Você aprendeu inglês? Você estudou na língua deles?
R – Está lá, tem que aprender. Aí eu não gostei, eu gostei do Brasil, mesmo…
P/1 – Você ficou sozinho ou... Você ficou com quem?
R – Sozinho.
P/1 – Mas você viveu do que? Me explique melhor.
R – Ah, se vira, como é que esse menino vai… Trabalha, come…
P/1 – Mas você foi trabalhar? Você trabalhou lá?
R – Trabalhei um pouco para manter.
P/1 – O que? Num restaurante?
R – Não, meu filme mesmo, fazia filme, fazia articulação. Lá tem... O índio tem valor. Também encontrei aqueles indígenas, pobre e rico também.
P/1 – Entendi. É que lá eles têm aqueles cassinos deles, né?
R – Eu ia lá, ganhava três mil, quatro mil. Eu era melhor do que eles, também, mais esperto.
P/1 – Mas você ficou na aldeia deles?
R – Não, ia para visitar. Nunca ficava lá, mesmo. Tenho muitas amigas colombianas, outras etnias, outras turmas também…
P/1 – Lá, né?
R – Lá.
P/1 – Eles têm esse dinheiro do jogo, lá, né?
R – Têm, mas é pior do que aqui, eles também usaram mal o dinheiro deles, o dinheiro que eles recebiam. Acaba, acaba com muita confusão também, problema também. Eles moram naquela casinha de plástico, tipo carro, mora tudo lá, sem terra mesmo, só têm direito àquela casa. Mais difícil que a gente, aqui.
P/1 – Mais difícil?
R – Acho que os Guarani ainda estão de parabéns, terreno pequeno, mas eles moram numa casinha de plástico.
P/1 – Lá, né?
R – Lá.
P/1 – Você achou que eles estão mais… É do pior que…
R – Pior, você não tem mais direito a nada, você está vivendo de casinha de plástico. Mas tem outros indígenas fortes, mesmo. Eu encontrei a loja de artesanato cheia, muita coisa em Montreal.
P/1 – Canadá, né?
R – Canadá também, passei um ano.
P/1 – Você foi para o Canadá?
R – Fui para o Canadá fazer filme pra ganhar dinheiro. E lá eu gostei, eu gostei, porque lá o cara… Você pode deixar a sua carteira cheia de dinheiro, ninguém fica pegando coisa dos outros. De quatro em quatro anos eles jogam essa coisa de computador antigo. Nós estamos trabalhando, como é que nós vamos continuar trabalhando com coisa quebrada, coisa velha? Então, bota aqui, nós vamos querer outra coisa, coisa nova para nós trabalharmos. Isso eu gostei, porque você sente com coragem, com vontade para trabalhar. Vai trabalhar aqui no Brasil cheio de vírus, internet não anda... A deles não, o que quer fazer, eles botam dinheiro pra rodar, nesse ponto eu gostei.
P/1 – Do Canadá, né?
R – Canadá.
P/1 – Montreal? Você ficou em Montreal?
R – Montreal. Também encontrei índios lá, também.
P/1 – Você se deu bem com os índios de lá?
R – Sim.
P/1 – Eles têm problemas lá também, né?
R – Têm, todo canto tem problema.
P/1 – Mas o que é fazer filme, você fez filme profissional? Filme sobre índio ou qualquer filme?
R – Ali em 1984 eu vim pra estudar um pouco na cidade, eu senti a dificuldade da formação, não tinha formação pra assinar alguma coisa pra ganhar dinheiro, pra eu comer. Então eu achei que isso ia me ajudar a divulgar a minha história, denunciar outros e registrar a coisa. Eu fiz alguns documentários dentro da atividade de desenvolvimento de atividade, mas eu fui fazendo outros, aí eu acompanhei a demarcação de terras, outras questões com o Chico Mendes, com outras lideranças. Fui premiado lá em Washington, Boston, cem mil dólares para quatro ganhadores. Isso também é um resultado, não é só o meu trabalho no documentário, se eu estou documentando ela aqui, você constrói muita coisa, é importante. É a mesma coisa, Chico Mendes, acompanhar as lideranças, as coisas que ele perdeu a vida pra outras… Demarcar várias terras indígenas, enfrentar essa coisa toda. Então rolou esse prêmio, porque com esse prêmio que a gente comprou lá _____________.
P/1 – Ah, entendi. Me conta essa história. Primeira vez que você chegou em Montreal, você foi convidado por quem?
R – Pelo Michael, ele foi lá filmar a nossa terra, como eu era um menino legal, ele gostou de mim. “Tem que ir lá editar” “Eu não vou, não” “Tu vai, porque eu vim sozinho também, de lá pra cá, eu te dou tal tempo, eu vou mandar a tua passagem”. Veio mesmo, né? Eu nunca tinha ido, não sabia falar nada mesmo, meio cruzão mesmo, assim. Como é que eu vou? É coragem demais. Embarquei mesmo, sozinho, sem alguém me acompanhar. Ele falou pra mim: “Desce lá em Atlanta, não sei onde, desce no aeroporto, pega um carro ali, assim, assim”. Deu certinho, de lá eu fui... Sete pararam pra eu descer de metrô até onde ele ia me esperar, o ponto.
P/1 – Você fez tudo isso?
R – Eu entre lá, conversei com dois, três, quatro, cinco, seis, e eu perdi se era sete, se eram seis, aí... “Aqui mesmo, vou descer por conta”, ele estava lá na porta. “Não te falei que era fácil pra chegar?” “Fácil nada, fácil é pra ti”. Ele achou graça. Fomos lá, ele falou para mim: “Agora tu pode andar pra todo canto sozinho, já que chegou até aqui”.
P/1 – Isso em Montreal?
R – Ele me deu coragem, né?
P/1 – Mas ele te ajudou? Te deu casa, te arrumou um lugar pra ficar?
R – Ele me botou na casa de um amigo lá, pra eu não ficar sozinho.
P/1 – Lá é frio, né?
R – Frio.
P/1 – O que você achou daquele frio de lá?
R – Não era muito frio, não, o tempo que eu fui. Ele brigou com a diretoria também, passou uma semana suspenso. Eu andava na rua para conhecer um pouco, encontrei em um restaurante brasileiro: “Você é brasileiro”, me deram um pratão lá, comi: “Não precisa pagar, não”. Eu andava mais também pra olhar.
P/1 – Então, só pra gente… Você foi pra Montreal, foi para os Estados Unidos, que outros lugares você foi?
R – Eu vivi mais nos Estados Unidos, queria ir lá conhecer os americanos. Criei amizade, criei uma organização que é de direitos humanos, que a gente foi premiado, tem uma cadeira lá também para defender essa coisa. Eu fiz a maioria do meu negócio quando era jovem, nos Estados Unidos, fiquei ligado com eles, embora não acreditasse, mas…
P/1 – Indo e voltando?
R – Depois, fui pra Montreal. Primeiro foi Montreal, depois Estados Unidos, depois – agora mesmo, já adulto – eu conheci a Europa.
P/1 – Que lugar da Europa você foi?
R – Conheci a Holanda, a Alemanha, Dinamarca... Conheci ali também onde tem essas faixas de fronteira, também conheci um bocado de lugar: Lima, Cuzco, Machu Picchu, Santa Cruz de la Sierra, são vários também aqui. Então Europa foi um bocado. Fui ali, Bélgica, naquele outro…
P/1 – Mas ali na Europa também é com essa coisa do direito humano ou é ligado ao Nixipan? É ligado ao que?
R – Europa foi mais ver como é que estava a situação desses países que têm poder, mesmo, de economia.
P/1 – Eles mandam dinheiro para vocês?
R – Não, tem que trabalhar. Fui lá para ver como é que é a ação. Eles falaram pra nós que já guerrearam muito, mataram, já perderam também, agora dizem que só querem acertar. Pouca confusão, eles querem… Eles têm mercadoria de boa qualidade, roupa... Não faz qualquer roupa, a roupa deles é boa, até a porta de entrada você vê a chave, aquele brasileiro que tranca uma vez, umas quatro… Não dá pra entrar de qualquer forma, eles são mais... A cabeça deles é mais avançada, um povo que pensa mais. Eles também não liberam se estiverem desconfiados, só libera quando é confiável, mesmo. E também fazia contato, porque no Brasil é difícil a gente conquistar alguma coisa de financiamento e apoio, lá tem gente que quer ouvir, quer ajudar, quer parceria.
P/1 – Você conseguiu abrir portas lá, já?
R – Consegui com essas medicinas naturais, mesmo.
P/1 – De mandar pra lá?
R – Não, fazer parceria, junto. Nós temos que produzir aqui mesmo, em São Paulo, não dá para levar a nossa medicina daqui pra lá, então aproveitar…
P/1 – Então, o apoio deles pra vocês fazerem a produção...
R – Pra fazer também, você usar, ele usar.
P/1 – Pra produzir aqui? Pra fazer um laboratório aqui?
R – Laboratório para distribuir, também.
P/1 – Então quem está apoiando vocês? Quem se interessou, qual país?
R – O país que nós fomos lá ver o trabalho deles, que mostraram pra nós foi... Acho que a Bélgica. Como é que chama aqui?
P/2 – Espanha, não foi?
P/1 – Noruega?
R – Não, aqui perto, mesmo.
P/2 – Dinamarca?
R – Dinamarca é nosso outro parceiro, também. Foi ali nessa região, depois a gente lembra. Mostraram para nós como é que faz remédio, eles não perdem tempo, estão lá, ganhando. Pode ser cara simples, mas eles fazem loja, essas coisas, aproveita. Isso deu vontade. Nós tínhamos muita coisa, aí isso deu muita vontade de usar o que é da gente. A menina que está com pequenas máquinas, Juliana, ajudou a gente no treinamento, como é que a gente faz. Consegue fazer óleo, cozimento nas panelas. A gente vai tirando aquelas coisas fortes, e você usa para o banho, para a massagem, para beber, para curar, alguma coisa. Beleza, né, vocês são melhores do que a gente, que é Natura, essa perfumaria toda. Aí dá dinheiro isso, a gente está submetendo, matando, um matando o outro, cedendo o nossos produto para bem de saúde, eu acho que é um… Eu acho que tem uns dois milhões e meio de hectares, só o povo...
P/1 – Pra produzir isso? Com a Natura vocês conversam, também?
R – Nós vamos conversar, muita gente está querendo entrar, a gente está vendo ainda como é que a gente vai fazer.
P/2 – Você tem alguma memória, assim, alguma história, ou alguma coisa que o pajé te falou que você quer contar, que você não contou até agora?
R – Acho que a gente contou muitas histórias, mas faltou muitas outras. História da nossa família, como é que foi... Contei mais da nossa família. História do passado tem aí, ___________ dieta do tabaco, Xekitian, aí tem a história do Nixipan, tem a história do jacaré atravessar a ponte atrás dessa empresa brasileira, eu acho que a gente chama ____________, que é o mercado. Um bocado foi para a tecnologia, um bocado foi para o natural. São essas histórias passadas, presentes, mas histórias do nosso contato, a gente acabou contando. Como é que a gente vai chegando, como é que foram as nossas correrias, na questão de amansar, entrar aqui mesmo, na sociedade. Eu falei um pouco também dos bravos que estão chegando aí, já é contatado muito tempo, estão aí, os amigos estão chegando.
P/1 – Por que você acha que é importante contar todas as suas historias? Para que você gostaria que isso servisse?
R – História, para nós, serve para quem vem de trás. Se você não deixar o rastro, o cara não vai saber que ele veio... De onde. Se tem história, o menino, a menina vai saber de onde é que veio para poder organizar também. Ler, completar o que falta, deixar registro também, meio o que a gente fez, também. Tem uns atores, artistas, são muito importantes, deixa o livro de graça. Você pega, lê todinho, aquela cabeça que o cara quebra tudo, você lê o livro de uma semana, um mês, você lê todinho, mais fácil, aprender tudo o que o cara fez durante anos. História sempre é bom, história positiva, história interessante. Então nossas historias são interessantes por questão do meu pai, ele não é qualquer um, conseguiu terrinha, criou a gente, botou... Está aí, né? Eu tive vontade de escrever o livro meu e dele ano que vem, que tudo que ele fez está registrado também, não todas... Tudo o que eu acompanhei tem, tudo que eu fiz, alguma coisa também está, está mais ou menos avançado, falta eu escrever 30 ou 40 páginas pra poder mandar ver. Porque o surgimento como o meu pai é muito histórico, conquistou tudo, deixou aí. E nós temos um único… Não sei se é único, mas a gente comprou a terra, independente de demarcação, terra apropriada, povo...
P/1 – É um caso diferente, né?
R – Caso diferente, pode levar... Agora, terra indígena, não, porque aí é com a federal.
P/1 – Vocês são independentes, então?
R – Eu sou independente.
P/1 – O seu caso é muito diferente, mesmo.
R – Eu estudo, mas não é independente assim, perdido, tem muita... Igual agora, eu assinei tudo para vir pra cá pra falar, assim só facilita. Mas tem suas regras, também. Essas histórias todas, para nós, são histórias significantes, a gente fez, a gente também não fica fechando para nós, a gente tem os amigos, também, a gente recebe, a gente compartilha, a gente conversa, a gente chora junto, trabalha junto. Quer (vender?) também um pouco de coisa boa para o mercado. Ou a gente vai ficar fechado, com o coração fechado, ninguém quer falar com ninguém? Não é assim também.
P/1 – Esses anos todos de muita luta e muito aprendizado, tem algo que você gostaria de deixar para essa geração que está vindo? Uma conclusão sua, ensinamento?
R – É muito importante essa conclusão, eu nada conquistei fácil. Eu falei alguma coisa, mas tem muita coisa pra gente terminar. Eu acharia que a educação seria assim, dependendo de cada família, facilitaria mais, não enrolar muito. Pro jovem, para os seres viverem com tranquilidade, facilitar um pouco, porque me dificultou vários pontos da família que o meu pai criou, botou, mas ainda faltou muita coisa para eu terminar todas as minhas coisas. Mas eu acho que a educação da sociedade brasileira, educação de todo lado que vem, respeitar, ter condições de olhar um pouco assim... Se criança nasce sem deficiência, é muito importante, porque ela nasceu completa, isso pode buscar mais coisas do que a gente busca. Entender realmente o que são todas essas etnias, que não é só indígena, mas a sociedade em geral, que está em um mundo global, misturado. A gente se mistura muito com nordestino, baiano, lá também é tudo misturado, não tem mais como ser puro. Então nós estamos no Brasil global. Aproveitar o que tem de natureza, de riqueza e aproveitar como vocês dois, mãe e filho também, como ele conseguiu aprender e ensinar, buscar mais, se ele conseguir aprender sozinho, também aquilo que a família traz é muito importante para ficar feliz. O que nós temos? A gente pode ser milionário, mas você acaba não levando nada quando você vai fazer a passagem. Ter um pouco de amor, um pouco humano, respeito, dignidade, sempre trazer mais coisa nova, que não vai faltar. O próprio Brasil, a terra tem muito segredo, mas a gente não descobriu nem um por cento ainda, tem muito ainda. Agora é que nós estamos descobrindo como é que... Remédio que é para câncer, remédio que é pra AIDS, remédio... Não sabemos tudo ainda, nós que somos da raiz, ainda morremos com o veneno de cobra, com vermes, imagina esses outros que não têm raiz? A Índia, muita gente tem sagrado com a água, com o boi. Nós, aqui, já comemos o boi folgado, sem cuidar. Então várias diferenças dessa coisa. Queria que todos nós no mundo... Ficaria mais fácil, e a humanidade também se entendesse mais, facilitaria. Não dificultar, como esses caras que têm dinheiro. Fica jogando um contra o outro, fica criando clima com a terra, trazendo muita doença, sabe? Podia fazer esse outro que precisa... No capital grande, que é São Paulo, tem muito desassistido. Rio de Janeiro, cidade grande... Sem isso, e nós também somos sem recurso. Se esses intelectuais pensarem bem e investirem nesse dinheiro que é sangrento, de lavagem de dinheiro, coisa toda, se o cara pensar e voltar para a terra e investir, nós estaríamos melhor ainda. Apoiar a gente num mundo de educação mais... Não vamos dizer mais avançado, mas dar condições para essa geração descontrolada que está no Brasil, que vai vir mais coisa pesada. Se nós não conseguirmos também educar, daqui a pouco nós vamos ter vento forte, chuva forte. A terra está tremendo, a natureza está com problema, não sei se você veem isso. Lá comigo, mesmo, no Jordão, se eu passar dez minutos no Sol, a pele pode cair, porque está tão quente que é quente como o fogo... Não, é outro tipo de quentura, que te queima e pode trazer até câncer. Muito vento, e leva a tua casa, leva até você. Chove demais, também enche, eu estou vivendo isso lá. Não sei se você vê como é que. Mudança de clima descontroladamente dessa violência que nós fazemos com a natureza, com combustível, com madeira, com a terra. E a terra também, ela purifica, então eu queria deixar esse recado para nós, passagem do Siã aqui na área do Museu da Pessoa, com vocês, que já me encontraram no Jordão. Dois corajosos estão lá, estão abertos lá, na hora que puderem descansar uma semana – vocês que trabalham não têm tempo –, passar um dia pra gente viver um pouco. Na realidade, a outra passagem, a gente não vê ainda, não leva seu dinheiro com ele, fica aqui mesmo. Então tomar cuidado com a educação, respeito, dignidade e um pouco de amor para nós todos.
P/1 – Eu queria te fazer um convite. Tem outras histórias que faltaram, você quer fazer esse livro, então a gente fez um pedaço. Se você quiser, o Museu da Pessoa está aberto. A próxima vez que você voltar, você marca, a gente continua. Essa sua história a gente vai transcrever.
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