Nasci em primeiro de janeiro de 1957, em Recife, na Rua do Lima. O meu avô, Cesário Rodrigues Pereira Serra, imigrante português, tinha esta casa antes das filhas casarem. Minha mãe, Gilda, casou-se com meu pai, João Moura dos Santos, e nossa família cresceu na casa de meu avô. Primeiro na Ru...Continuar leitura
Nasci em primeiro de janeiro de 1957, em Recife, na Rua do Lima. O meu avô, Cesário Rodrigues Pereira Serra, imigrante português, tinha esta casa antes das filhas casarem. Minha mãe, Gilda, casou-se com meu pai, João Moura dos Santos, e nossa família cresceu na casa de meu avô. Primeiro na Rua do Lima. Depois numa casa imensa na Avenida Doutor José Rufino, em Tejipió.
Passei a infância convivendo com bichos, com a linha do trem, com frutas como sapoti e os pés de abiu e de manga. Se eu souber definir o que vem a ser felicidade, era ali que ela estava. Era um lugar de muita calmaria. Naquele tempo as crianças não tinham a palavra, e eu fui um menino muito silencioso. Mas havia a alegria de uma infância com festa de aniversário, com festa de Natal. Acho que foi naquela casa grande que se formou o embrião da minha literatura e da minha fotografia. Havia um parreiral na casa. Debaixo desse parreiral, meu avô reunia os netos para contar histórias da família dele em Portugal, mostrando álbuns de fotografia.
Essa infância na casa grande marcou uma paixão que eu tenho pelas empregadas, que foram fundamentais na história da nossa família e na minha história pessoal como cidadão e como escritor. Eu sei o nome de todas as que passaram pela minha vida desde meus quatro anos de idade: Adalgisa, Maria Pezão, Bidiu, Tereza, Isabel. Eram mulheres que moravam praticamente a vida inteira dentro das casas. Eu acho que elas sabiam direitinho o que estavam fazendo ali. Não havia submissão. Tinha uma coisa silenciosa, tinha o que o corpo delas falava, o que muitas vezes os olhares falavam.
Meu pai era gerente de uma loja chamada Império dos Plásticos, na Rua da Imperatriz defronte à igreja, que vendia plásticos em tubos, por metro. Minha mãe ajudava meu pai, fazia capas de geladeira, de bujão de gás, de máquina. Nós passávamos os finais de semana e as férias numa casa que meu avô tinha em Carpina, na Zona da Mata. Na loja, meu pai tinha uma funcionária que todo sábado, às 11 horas da manhã, enlouquecia para ir embora antes do meio dia, e ele deixava. Na feira de Carpina tinha uma barraca da mulher decapitada viva, uma encenação num pequeno palco com uma cama, um corpo sem cabeça e uma geladeira. Um dia estávamos eu, meu pai, meus irmãos, minha tia na frente e o cara anunciou: “Senhoras e senhores, esta mulher morreu, este corpo ainda treme”. A mulher fez um gesto com a mão e escorreu uma groselha vermelha. Foi fabuloso. Terminou com o homem abrindo a geladeira. O público se deslocou um pouquinho para a esquerda para ver a cabeça da mulher decapitada viva na geladeira. E de quem era a cabeça? Da funcionária da loja! Por isso ela tinha que sair mais cedo do serviço. Eu falei: “Meu pai, é Maria, meu pai.” Ele respondeu: “Cala a boca”. As histórias desse período de Carpina e de Recife são inesquecíveis.
Eu comecei a estudar em colégios no bairro de Tejipió e depois fui para o Colégio Salesiano, em Recife, onde conheci um amigo que jogava vôlei. Começou assim a minha vida no vôlei, que foi incrível. Eu joguei vôlei por 17 anos. Fui da seleção pernambucana, da seleção baiana, ganhei medalhas e prêmios.
Um dia O Império dos Plásticos faliu. Desempregado com seis filhos, meu pai pediu ajuda a um tio que vivia em Salvador e tinha lojas de tecidos e calçados. Nós entramos numa Kombi às cinco horas da manhã, toda a família com Adalgisa, a empregada, e com Avon, um cachorro, e chegamos em Salvador no fim da tarde, no dia dois de julho, dia da independência da Bahia, em 1971. Foi um dia de choro. Fomos morar no bairro negro da Liberdade, em Salvador, eu passei a estudar no Colégio Duque de Caxias à noite e viajava muito jogando pela Associação Atlética da Bahia.
Em Salvador começou outra vida. Fiz parte de todo o início do Ilê Aiyê, do Muzenza, do Olodum. Escrevi a primeira matéria de revista sobre o Olodum, para a revista Exu, quando trabalhava na Fundação Casa Jorge Amado. Conheci a elite que frequentava a Associação Atlética da Bahia.
Uma noite, depois que terminou o treino, eu estava tomando banho e Edmilson, um companheiro que tinha vindo de Sergipe veio me agarrar. Não que não goste de sexo com homem, mas eu fiquei meio sem jeito. Um cara que lutava capoeira no clube passou, viu a cena, e foi dizer ao diretor do clube que Diógenes e Edmilson estavam transando no banheiro. Isso foi numa quinta-feira. No domingo, quando cheguei ao clube para passar o dia, tinha uma carta da diretoria dizendo: “A partir de hoje você não faz mais parte do nosso time de sócio-atleta”. Eu tinha 17, 18 anos. Disse ao diretor: “Um homem muito bonito, Edmilson, agarrar outro homem muito bonito, que sou eu, não é problema. Pergunte para o capoeirista qual é o problema dele, porque comigo não tenho problema nenhum”. Dei a carta de volta e fui embora. O problema do preconceito é do outro, a tragédia do preconceito pertence ao outro, não a nós. Na terça-feira, João Alfredo Soares de Quadros, da AABB (Associação Atlética do Banco do Brasil), me chamou e disse: “Nunca mais você sai daqui”. Nós ganhamos o campeonato durante dez anos.
Naquele tempo, Salvador era vanguarda. Junto com o vôlei veio a contracultura dos anos 70 e uma sexualidade de surubas maravilhosas com homens e mulheres. E as drogas, que foram fundamentais na minha vida. A droga do meu tempo era uma descoberta, uma transgressão. Eu ficava doido e voltava para casa doido. Nunca fiquei pela rua. Era tudo junto, as drogas, o vôlei, o Porto da Barra, a contracultura, a ditadura gritando no país, Salvador como referência no mundo das artes e a gente no meio de tudo isso. Muito bom.
Toda aquela liberdade, ter feito tudo aquilo, passado por tudo aquilo, não teve muito sentido – ou teve? Teve para nós, para a gente poder contar essa história. Eu penso muito na nova geração, como ela vem e como ela enfrenta todo esse acúmulo de informações, de mídias, Facebook, Instagram, WhatsApp, tudo isso. Essa superficialidade. Deve ser muito difícil ter um filho adolescente e deve ser muito difícil ser adolescente atualmente.
Maura, minha irmã, era casada com um cara que era alcoólatra. Eles casaram porque ela engravidou, e tiveram três filhos que foram criados dentro da casa de meu pai e de minha mãe. Nós, eu porque era o filho mais velho, meu pai e minha mãe, ajudamos a criar os três.
Marcelo, o do meio, sempre foi um menino lindo. Não brincava de boneca, nada disso, teve namoradas e tudo mais. Mas em Recife ele começou a viver uma vida noturna no meio das baladas, das trans, do “mundo gay”. A partir daí ele começou a passar por um processo de transformação interior. Então um dia de quinta-feira ele disse à minha mãe, que nessa época estava em cadeira de rodas, que ia passar o fim de semana na casa de um amigo. Ela disse: “Vá. Só não fume maconha, beba e saia dirigindo para não ter acidente.” Passou a sexta. No sábado, ela estava vendo o jornal local na televisão, e aparece na um acidente de carro com dois jovens não identificados. Isso era meio dia, uma hora. Ela continuou na cadeira. Três horas da manhã, Marcelo entra enfaixado do pescoço aos pés. Ela começou a passar mal e dizia: “Eu vi o acidente na televisão, eu lhe pedi para não fazer isso com o seu amigo.” “Minha avó, eu não sofri acidente nenhum. Eu apenas virei mulher. Eu não sou mais Marcelo, minha avó. A partir de hoje me chamo Marcele”. Tinha botado silicone do pescoço aos pés. Botou peito, bunda, perna, ficou linda. Mas não operou, tem pinto. Depois de um ano minha mãe quis mudar de volta para Salvador. “Faça a minha mudança que eu não fico mais aqui. Não quero ver as pessoas da família olhando para Marcele desse jeito”. Em Recife a violência é pior, o machismo é pior, o preconceito é pior, a ignorância é pior.
Em 1983 eu parei de jogar vôlei porque minha vida mudou: fui convidado a compor a equipe que fundou e dirigiu a TV Educativa de Salvador. Foi uma mudança muito boa porque eu entrei no mundo cultural como criador. Eu escrevo desde os 12 anos. A relação com a imagem começou mais profundamente quando eu estudei fotografia e imagem para a televisão. O meu primeiro livro, Mingau de Alma ou o Traço Fixo da Loucura, foi publicado em 1980 pela Fundação Cultural do Estado da Bahia na Coleção dos Novos. Daí até 1989 havia certa leveza comigo. A partir dos anos 90, quando comecei a trabalhar em São Paulo, essa leveza foi desaparecendo. Os últimos anos da década de 80 foram terríveis. Muitos amigos morreram de HIV. Eu passei a ter certeza de que não há futuro.
Em março de 1992 entrei na Pinacoteca como diretor de comunicação. Emanoel Araújo era uma cabeça genial e me ensinou muito. Quando eu entrei o acervo de fotografia tinha 78 imagens. Quando eu saí, em 2013, tinha 600 imagens. A fotografia foi ganhando os espaços do museu inteiro. Houve uma repercussão nacional e internacional. Entre 1999 e 2013 foram nove prêmios, três deles internacionais. É um acervo importante porque foi construído por doações de fotógrafos, 95% das obras foram doadas, e muitas delas foram feitas a partir de projetos desenvolvidos para o próprio museu.
Eu falo da fotografia com toda segurança porque sempre enxerguei bem. E eu tive dois problemas grandes desse ponto de vista: minha avó Maria, que criou meu pai, morreu cega, e meu pai ficou cego aos 60 anos. Eu traduzia as imagens para ele poder captar, o que sempre foi muito provocante porque parecia que ele via melhor do que eu. Acho que o que faz com que eu seja um escritor, sobretudo um cronista e um contista, é a minha curiosidade para com o mundo e a minha disponibilidade em ver o mundo.
Casei duas vezes, com duas mulheres ótimas. Esses casamentos terminaram porque elas queriam se reproduzir e esse negócio de ter filho não é comigo. E tive um casamento que não era casamento, com um cara muito importante, Teo, Teodomiro, que durou cinco anos. Há 35 anos eu não tenho nenhum casamento, nem com homem, nem com mulher. E não quero. Fico muito bem sozinho. A minha casa é ótima, os meus amigos são ótimos, a cidade em que eu vivo é ótima. Eu acho que intimidade é como luz, quanto menos melhor. Quando gosto muito de uma pessoa, não fico muito próximo, porque o dia a dia é muito chato.
Eu gosto de tudo na minha vida. Só não consigo mais suportar a mediocridade. E essa coisinha de politicamente correto, dessa moral no meio dessa bandidagem toda, dessa corrupção. Essa caretice desse mundo no qual a gente está vivendo. Se eu tivesse grana, não sairia mais de casa. Eu tenho muito material para escrever dentro da minha cabeça.Recolher