Projeto Memória dos Brasileiros
Depoimento de José Barbosa da Silva
Entrevistado por Tiago Majolo e Cláudia Leonor
Vassouras, 25/05/2007
Realização Instituto Museu da Pessoa
MB_HV010
Transcrito por Lúcia Nascimento
Revisor por Paulo Ricardo Gomides Abe
P1 – José, fica à vontade para falar para a gente. Esquece que tem essa câmera aqui, porque não é fácil, eu sei. Então, para começar, eu queria que você dissesse para a gente seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R – José Barbosa da Silva. Nasci em Recife, primeiro de novembro de 1945.
P1 – E qual a origem de seus pais? Conta um pouco da história deles para a gente.
R – Meus pais são nordestinos. A mamãe nasceu em Paraíba, e meu pai em São Lourenço da Mata, em Pernambuco. Ela era dona de casa e meu pai, funcionário da prefeitura de Recife.
P1 – Você sabe como eles se conheceram?
R – Diz ela que ele passava com os cavalos, e ela no rio espiava e acabaram tendo só onze filhos. Isso é a melhor coisa que eu posso falar.
P1 – Onze filhos?
R – Só. E um deles sou eu. Fui o primeiro.
P1 – Como que era assim com 11 irmãos, dez irmãos?
R – Bom. Todo dia tinha briga mas era bom. É briga amável, porque a gente tinha muito a fazer. Papai parado, mamãe no rio e a gente pegando cabra. Eu que era o primeiro, que mais sofri, plantando arroz para os outros, para levar qualquer coisa para a casa. Como até hoje, não mudou nada. Só transformou-se as pedras.
P2 – Mas eram todos homens ou mulheres?
R – Cinco meninas, faleceram quatro e ficou cinco machos e uma menina só. Tem uma irmã.
P2 – Mas era diferente a educação do homem para menina?
R – Não, era normal. Nós tínhamos o cocho no chão e elas tinham a delas lá. A delas aliás. A seguinte fizemos um caminho de capim com cipó. Vocês não conhecem, são cariocas, mas alguns até conhecem e disse não. Uma casinha de sapê, papai separou com madeiras, e não eram madeiras compradas, eram cipó da Angola. E a gente dormia lá e as meninas aqui, sem problema nenhum. O único problema é quando a gente já era um pouco grande, algum menino batia em um irmão mais novo meu. Tinha problema. Agora com a minha irmã mais velha, ela nunca teve problema, ela resolvia qualquer parada, com homem ou com menina. Eu não estou aqui para contar uma história dela, mas de repente até conto. Ela é tão mansa que o marido deu quatro facadas nela e ela deu três nele. Muito mansa.
P2 – Mas os meninos tinham que fazer alguma tarefa dentro de casa, as meninas outras? Como que era isso?
R – Olha que pergunta, como é seu nome?
P2 – Cláudia.
R – Olha que pergunta que a repórter Claudia me fez. Qual é a família que não tem tarefa, moça? Quando é pequenininho só come, ‘ih, ia falar besteira’. Agora ali, vai aqui, pelo amor de Deus. Mas todos tinham tarefa.
P2 – O que vocês tinham que fazer?
R – Limpar o quintal, pegar lenha no mato. Não era ajuda não, descer aqui, almoçar ali, não. Escola daqui, três morros mais desse, quando eles começaram a aprender. A pé, atravessava valas, varedas, beco, pulava muro, complicado. Hoje o estudo está muito bom, para baixo. Me desculpa, professor. Então tem escola aqui, tem escola lá, tem bolsa de estudo. Agora se os nossos governantes fossem mais virados para o estudo nosso, ficava melhor. Mas não é isso que vocês querem saber. Perguntem o que vocês querem saber.
P1 – Fique à vontade para falar o que você quiser. Conta um pouco das brincadeiras da infância. Tinham um monte de tarefas, tinha brincadeira também?
R – Tinha.
P1 – Conta um pouco como que era.
R – Peteca, bola de gude, garrafão. Você sabe o que é garrafão? Você não sabe?
P2 – Conta para a gente.
R – Ele sabe. Garrafão é o pique bandeira aqui. Só que o pique bandeira aqui do Sul, do Rio, São Paulo, Minas, é livre, é como aqui. Bota um galho de mato ali e alguém tira no palitinho, quem vai pegar. Aquele que ficou por último, não pegou, é aquele que vai entrar no cacete. E a gente batia muito nele. E tinha o garrafão de dois pé dentro e um só fora. Brincadeira pesava, aqui não tem. Aqui tem negócio de cartinha, vídeo game, cineminha. Vai perguntando.
P1 – E como que era a cidade?
R – Na época era mal estruturada. Hoje, não. Hoje Recife está uma cidade... Até eu ouvi o falatório de um estudioso, que o Nordeste está passando a ser Sul. E Sul, Nordeste. É o que mais você vê. Sai daqui que a gente vai encontrar forró, bumba meu boi, não sei o quê. Lá era complicado, porque na época não tinha condução. As conduções eram, ou seja, estou com sessenta e um e meio, faz um cálculo, sessenta anos atrás. Com meio, seis meses eu já estava gritando, mijando e outras coisas mais, era complicado. Agora o estudo, hoje, ele é muito elevado. Professor te dá apostila, se tu for estudioso vai para casa e estuda. Tira cinco e meio, passei pai. É brincadeira. Lá, quando a gente tirava de sete para baixo era uma pisa, se tirasse seis era duas. Tinha que tirar de oito para dez. E eu nunca me aborreci com meu pai. Você tem filho?
P2 – Não.
R – Não tem? Pois é, se tiver um filho de cinco anos, ele vai para a escola comer merenda. Quando ele tem dez anos, ele chega alegre para o pai: “Passei”, “Quanto filho?”, “Cinco e meio”. É complicado e é verdade.
P1 – Mas, e aí o senhor estudou lá em Recife?
R – Estudei.
P1 – Até que idade o senhor ficou lá?
R – Eu fiquei lá até treze anos.
P1 – E aí foi para onde?
R – São Paulo.
P1 – Como foi essa mudança?
R – Ah, como foi? Minha tia me levou e eu cheguei na casa dela. É brincadeira.
P2 – Mas foi de ônibus?
R – Fomos de ônibus. Pau de arara.
P2 – O que é o pau de arara? Explica para a gente.
R – É um ônibus que tinha. Princesinha do Agreste. Só tinha um dentro de São Paulo, e outro fora. É verdade. Não fica olhando para a minha cara e rindo não. Pergunta.
P2 – Mas aconteceu alguma coisa diferente na viagem, na paisagem? O que o senhor foi percebendo?
R – Não, não. Na época percebi o quê? O que um menino de doze anos percebe? O bucho quando está vazio para ele comer, e um afago da pessoa que está com ele, a mãe, o pai, o tio, o avô. É só isso.
P2 – E o senhor imaginava o que era São Paulo?
R – Não. Não imaginava, não. Mas também não saía da casa da minha tia. Com quinze anos, eu fugi e vim parar no Rio de Janeiro.
P2 – O senhor fugiu?
R – Claro.
P2 – Por quê?
R – Porque eu jogava muita bola, queria jogar bola de dia de sábado e de domingo e ela não deixava. Até hoje ainda jogo. Mas isso não importa, pergunta ela.
P2 – Mas por que o senhor fugiu? Para onde o senhor foi?
R – Eu posso lhe fazer uma contra pergunta?
P2 – Claro.
R – O dia em que a senhora ficar três dias sozinha ou então com dez pessoas te vigiando, o que tu vai fazer quando achar um buraco?
P2 – Escapar.
R – É. Então só mudou a pergunta. Fugir para escapar.
P2 – O senhor foi morar aonde, senhor José?
R – Eu tinha parente aqui no Rio.
P2 – O senhor veio para o Rio?
R – Vim para o Centenário.
P2 – Centenário do Rio de Janeiro.
R – Centenário é um bairro em Duque de Caxias.
P2 – Mas o senhor tinha dinheiro para fazer a viagem?
R – Tinha porque eu trabalhava lá. Trabalhava para minha tia, que tinha uma pensão. Ela foi me dando e eu fui guardando. Não gastava nada. O meu problema com ela era sábado e domingo, para jogar minha bola, que ela não deixava.
P2 – Ela era brava?
R – Não. Ela não era brava. Ela era justa, porque se a senhorita for uma milionária e me proibir de tocar berimbau e jogar minha capoeira, eu fico três dias, não fico nem dois anos. É uma coisa que está dentro de tu.
P2 – E, chegando no Rio, o senhor foi fazer o quê?
R – Ah, minha tia me botou no colégio. Aí viu um estágio na padaria, até chegar a tapeçaria em Copacabana, fui office boy, e de lá para o quartel.
P2 – Quartel, já?
R – Não. Depois, quando eu completei 17 anos, me alistei na aeronáutica. Na polícia da aeronáutica. E da aeronáutica para a capoeira. A capoeira é outra atividade diversa aqui, ali, acolá. Obrigado. Ele quer me matar.
P1 – Esse período do quartel, quanto tempo o senhor ficou lá?
R – No quartel eu fiquei dois anos. Mas fiquei mais dois anos, em outra situação, no quartel. Você não pode saber, nem precisa saber.
P1 – Depois que o senhor saiu do quartel começou a capoeira já, em seguida?
R – Não. Fui trabalhar com papel de parede. Trabalhei cinco anos com papel de parede. Deu um brancozinho, ela querendo me enrolar. Essa tapeçaria.
P2 – Oi?
R – Tapeçaria já vem em Copacabana. Depois do quartel fui trabalhar com papel de parede, paralelo da capoeira. Entendeu?
P2 – Ah, Entendi.
R – Pois é.
P1 – Trabalhar junto?
R – Ora, de manhã eu trabalhava no papel e de noite eu...
P1 – E colocava papel?
R – Colocava papel. E colocava muito bem.
P2 – Papel de parede?
R – Papel de parede. Contato, triotato.
P2 – Teve uma época que teve moda.
R – Estava. Estava em evidência. Eu trabalhei em uma das lojas mais, que mais vendia papel em São Paulo, Elegante.
P2 – Elegante?
R – Papel Elegante. Rua Augusta.
P2 – Que altura da rua Augusta?
R – Seiscentos e pouco.
P2 – Olha!
R – Próximo à cidade.
P2 – É.
R – Que ela é paralela com a Consolação.
P2 – E sair de São Paulo, vindo para o Rio, o que mudou assim? Lugar para sair, praia? O que tinha de bom no Rio?
R – Até que enfim que a senhorita me agradou. Aqui tinha morena bonita, tinha bola para eu jogar a qualquer hora. Eles me davam um dia para jogar bola, Copacabana. E, fã, eu nunca fui. Única diversão era cinema. Cine Rox, Cine, aquele que tem na altura do 415, da Nossa Senhora de Copacabana. Tinha um também lá em, perto de Ipanema. Lá mesmo que a gente ia.
P2 – E praia?
R – E praia, e bola, e...
P2 – E mulher bonita.
R – Só para olhar. Olhar entre aspas, senão alguém depois vai olhar a reportagem vai pensar coisa feia.
P1 – O senhor disse que, depois que saiu do quartel, trabalhou com papel de parede em São Paulo. O senhor voltou para São Paulo?
R – Não, não.
P2 – Foi antes.
R – No Rio.
P2 – Ah, no Rio?
R – No Rio. Mas a gente tinha intercâmbio, porque o papel naquela época encomendava 20 rolos de papel e levava 15, 20 dias para vir. Porque mandava vir da fábrica. Era muito complicado. Hoje não, você encomenda dez rolos de papel que acabaram, e amanhã está aqui. Vocês vão dizer: “Porque tem estoque”, não porque apertou botãozinho. É igual ao xerox. É assim mesmo. Muito obrigado.
P2 – Agora deixa eu perguntar uma coisa para o senhor, a capoeira era uma profissão para o senhor?
R – Era não, é.
P2 – Mas o senhor dava aula?
R – Dava, como instrutor.
P2 – É? Quem te ensinou a jogar capoeira?
R – Meus dois mestres, que foram mestre Artur Emílio, que está vivo, e mestre Valdir Sale. Esse, em Copacabana, Artur Emílio, e Valdir Sale em São João, que também está vivo lá em Ubá.
P2 – Quantos anos o senhor tinha quando o senhor aprendeu? Mais ou menos.
R – Pode repetir a pergunta?
P2 - Quantos anos o senhor tinha quando o senhor começou a aprender capoeira?
R – Quando eu estava na barriga da minha mãe, porque esticava os pezinhos, as mãozinhas, eu queria sair para jogar capoeira.
P2 – Que lindo!
R – É mesmo.
P1 – O senhor aos pouquinhos foi deixando outros serviços e se dedicando só a capoeira?
R – Isso. E fiz várias outras coisas, mas não é bom falar não. Isso aqui a gente está aqui, está falando do Projeto de ____, e da pessoa física do mestre Barbosa. E dos diretores.
P1 – E há quantos anos o senhor está só na capoeira?
R – Vai fazer 40 anos, filho. Quer dizer, na capoeira com a minha associação. Entenda a resposta. Agora picando, dando aula para a tua casa, dando aula para a casa dela, já ultrapassou. Só 38 anos, eu estou em Caxias.
P1 – Sua associação, qual o nome dela?
R – Associação de Capoeira Zum Zum Zum. Pergunta a fundação para a pergunta ficar correta.
P2 – Mas o senhor pode ir falando, falando.
R – Olha, a associação foi fundada em 1970, a associação. Só que ainda era final de AI 5, e não deixava nenhuma associação ser fundada. E quando se pergunta para mim assim: a capoeira tem 400 anos, como foi o caso lá na ___, dia 14 de abril que o mestre afirmou, com o auditório quase sempre todo lotado, aquilo me aborreceu porque esse mestre tem três faculdades, três ou quatro. Duas eu conheço, ainda é capitão do Corveta e eu não estou aqui para falar muita coisa. Então eu deixei o momento exato, quando ele acabou de almoçar eu puxei pelo pescoço. Eu digo: “Meu mestre, quantos anos o senhor falou que a capoeira tem no Brasil?” “400 anos.” “Se fosse outra pessoa até sim, mas você não. Capoeira é milenar, rapaz. Veio com todo mundo. A capoeira tem 25 anos.” Ele olhou para minha cara, faça as contas, eu não tenho leitura, mas faz a conta, de 72 para 2007, Quantos anos tem? Faço a pergunta para você?
P2 – 72? Eu sou ruim de matemática.
R – Mas é bom de perguntar.
P2 – 2007, 72?
R – 25 anos, pô. É brincadeira. E o entrevistado aqui sou eu. Ele se ligou. Por que 25 anos? Vai completar 28 em 2008, porque de 70 até 71 foi um desenrolo para sair desse papel. Isso aí não vale nada.
P2 – Papel?
R – É, papel. __ vai lá e tal. 72 saiu livre assim. Saiu liberação das federações. Mas respondendo para o jovem aqui, há seis anos atrás, para sete, já tinha meu grupo, Grupo de Capoeira Regional. Onde há uma diferença do grupo para a Associação. O grupo praticamente está na marginalização. Está marginal, não porque é marginal. E a Associação está registrada e assegurada pelos órgãos competentes.
P2 – E, seu José, qual é a história da capoeira? O senhor conhece como que ela começou no Brasil? O que o senhor pode contar para a gente?
R – Olha, a capoeira, ela teve os marginais, os assaltantes, salteadores, estupradores, assassinos. Ela ajudou o Brasil na guerra do Paraguai, contra os alemães. Vindo esses todos presos da Ilha de Fernando de Noronha, de Recife, quando na época era o capitão que tomava conta do presídio. E chamou os presos, capitão Noronha, e disse: “Vocês todos aqui, o Brasil está em guerra, eu vou fazer um negócio com vocês. Vocês vão à guerra”. E na época era obrigado. “Se a gente for vitorioso, estão todos livres. Se o Brasil perder a guerra, dobra a pena”. Tem sempre um chefe no grupo, que chamou os presos, os colegas dele e falou: “Vamos arriscar”. E nós vencemos a Segunda Guerra Mundial, está certo? Então está aí uma das pequenas...
P2 – Histórias.
R – Não senhora. (Faurcla?), partícula, da capoeira no Brasil. E quando me perguntam: “A capoeira veio da África?”, isso me irrita, eu fico nervoso, porque na África não existiu nada disso. E a capoeira, de 70 até hoje, é brasileira. Os instrumentos divergem. Tem instrumentos que vieram da Alemanha, tem instrumento que veio da África, de uma parte da África, e os dois que as pessoas mais gostam, que é o berimbau, o reco-reco, o chocalhinho, isso é tudo nativo. O pau do berimbau, ou seja, verga, pega ali que faz o berimbau. A cabaça vai lá, tem lagoa, tem rios, tira faz. O cestinho que está com capim de Angola. E está por aí. Se não tiver o ferro, tem a pedrinha que o axexê tem ali, a varetinha tu pega ali, tu pega de bambu que é a nossa, para não ter essa coisa que não é de lá, nem de cá. Agora, uma coisa está faltando na capoeira, nomenclatura. O que é nomenclatura? O judô tem, o karatê tem, o tai kwon do tem, o boxe tem, o futebol tem, a esgrima tem, o basquete tem, o vôlei de praia tem, aquela bolinha que a gente joga?
P1 – Tênis.
R – Tênis. Porque vocês não me ajudam? Tudo tem nomenclatura. É a raquete, a bola e a rede. A calça, o shortinho nas meninas, quanto mais grandão melhor. Certo? Capoeira um grupo joga de preto e amarelo. O outro joga de azul, outro joga todo de branco. O mais certo é de branco. Mas não só tem um grupo de capoeira. Nem só tem um só tipo de capoeira.
P2 – Por que que o correto é usar branco, na visão do senhor? Porque o branco é melhor, na opinião do senhor?
R – Olha, nós vamos acabar arrumando ratatuia. É, porque é até como cor, me provem o contrário, o preto é a reunião de todas as cores, e o branco é a paz. Agora, o preto, porque que ele reúne? Porque foi fazendo roupa branca, roupa, até chegar o preto. O preto está acima de todas aquelas roupas diferentes. E eu estou com uma briga dentro da capoeira, com os maiores que eu, tem pouquinho viu, mas é para tirar uns determinados nomes da capoeira, deixar só uma nomenclatura. Aquele que criou isso foi o mestre Barbosa, no ano de tanto, tanto, tanto. Isso é para o meu neto. E, segundo, se a gente não passa determinada decepção, perde para outros esportes. Aqui, nesse local, se chegar um professor de judô, de repente ele arruma um lugar, mas se chegar um professor de capoeira, vai complicar. Porque você pensa que a cambada não sabe o que é capoeira, o que é judô? Sabe. Sabe porque as amigas dela falam. Mas isso não é uma discriminação, não chega a ser. Mas a barreira para você descer ou ter que cavar muito, ou ser bom de pulo para saltar por cima dela, senão vai ficar difícil. Tu conseguir uma luta com dignidade e com suor.
P1 – Por que o senhor acha que tem essa barreira? Qual é o motivo?
R – O motivo é racismo. E existe gente aí que diz que o branco é que gosta de chegar para o negro, e já tem outros que dizem: “O negro é que é racista, não quer chegar para o branco”. Todas as duas são erradas. Não é melhor o branco se atacar no branco, o negro se atacar no branco, sem demagogia, sem negócio no coração? Os maiores meus amigos são brancos. Eu gosto deles, e eles gostam de mim. Olha a confusão danada. É complicado fazer pergunta em uma esfera que vocês estão querendo saber demais, e com razão, mas vem aquele questionamento depois, mas isso é bom? Aula boa. Quem é agora? Ela já está correndo do São Bento Grande.
P1 – Conta, então, para mim, quais são os novos instrumentos da capoeira?
R – Muito bom. Os instrumentos de capoeira começam com orquestra de berimbau. Para tu não ficar muito assim, eu vou te dizer, o berraboi, o médio e o violinha, são os três berimbais. Depois vem o atabaque, até bom anotar, está saindo aí, certo? Depois vem o pandeiro e lá no final o reco-reco. Então a formação é a seguinte: grupos fazem o primeiro berimbau aqui, o atabaque aqui e os berimbais para cá. Outros colocam o berimbau aqui e o atabaque ali do lado. Essa é a forma certa, desportiva, das rodas de capoeira dentro da academia para ensinar os alunos. Para que não ensine coisa errada. E tem grupo aí que você vê tudo misturado, mas quando o berimbau ronca, acabou a mistura, ninguém vê nada. Essa é a pergunta boa, porque isso vai fotografar, e alguém vai chegar lá no Museu e quem conhece: “É, esse velho aqui não é bobo, não!” Não adiantava eu dizer o berimbau, o atabaque. Estava errado, tem que falar os três nomes do berimbau, o atabaque, o pandeiro, o agogô. E tem grupo que bota até, tira o agogô de ferro e coloca o de bambu, que é mais nato, místico, entendeu? Dá no mesmo. Tem a mesma letra, tem as mesmas cavinhas, só que o toque, não vai me focar não, um é de uma linha outro é da outra linha. E eu estou querendo implantar a maraca. A maraca faz parte do folclore brasileiro de qualquer grupo do Nordeste para cima. Ela dá sacudidinha. E outra coisa, aqueles dois, professor Alexandre, que a menininha via ontem sacudindo, ali é uma nomenclatura. Não existe o capim __ com diferenciado. Ali é o antigo de uma maraca, de afro-brasileiro, de outras vias que eu não estou aqui para falar de.... Estou aqui para falar de capoeira e do projeto ___.
P1 – Mas se você fosse definir a capoeira: é uma dança, uma luta, uma espiritualidade?
R – Eu tinha certeza. E de certeza, eu passando mal no hospital, ontem eu fiquei pensando. Porque um amigo me preparou. Mas eu baixei no hospital ontem, não estava preparado para isso aqui. Mas eu disse: “Quem vai fazer uma pergunta, se tem dança? Eu não vou me irritar porque, na realidade, é dança. E eu vou explicar o tipo de dança”. Era dança da morte do lugar. Os dois capoeiras defendendo ela, querendo casar com ela, se pintava de preto e branco e subia o morro. Um dos dois descia para casar com ela e ela ficava, aliás, e o outro ficava lá. Quer dizer, dança da morte do lugar. Não é a dança com qual intenção o senhor me perguntou. Era dança de salão, dança de bailado, realmente a capoeira é um dos balés mais lindos que tem no mundo. Agora é um balé perigoso, se escorregar a barca afunda, meu filho. Calma! Eu sabia que era ela.
P1 – E de onde vem o nome capoeira?
R – Eita, rapaz! Boa! Sempre pergunta boa, o resto é meia babozeira. A capoeira, ela tem esse nome, porque nós tínhamos um pássaro, discute-se que é do Nordeste, discute-se que é da Amazônia, chamamos capoira, capoeira. E no nome capoeira é, por exemplo, isso aqui, essa mata ralada. Capoeira não entrava na mata para apanhar namorada, quem entrava na mata era o capitão do mato ou os índios. Como era já muito preguiçoso, subia em uma árvore perto de um rio, e de lá pescava um peixe que encerrava a situação.
P1 – E agora conta um pouco da Associação. Ensina capoeira, mas tem mais alguma coisa social, como que é?
R – É. Eu, por enquanto, estou parado da aula, mas estou supervisionando três professores no Projeto Griô, em Duque de Caxias. Um lá e dois na FeoDuque. Dois, não, me perdoe, três. Está vendo, me enrolam. Três e dois. Quer me ajudar não? Na FeoDuque, três?
R2 - Três.
R – Ah, então ganhei. É difícil eu perder.
R2 – Três mestres na FeoDuque e você. Você trabalha com esses três mestres e esse três mestres trabalham com os alunos.
R – Então é quatro, pronto! Você quer mesmo dar rasteira no mestre, não é? Até agora tu não conseguiu me pegar, não. Ela quase me pegou.
P2 – Eu? Sem querer.
P1 – Conta como é que começou, então, a Ação Griô na sua vida?
R – Ah, foi bom, rapaz! Eu conheci um cara chato para caramba, que me liga de madrugada, ainda disse meu telefone, e nunca aparece. Dei logo ele. “Olha, estou há 30 anos aqui, como é que você vai comigo?” Mas, rapaz, não é que eu me enganei. Sabe que errei cabeçudo, me enganei. Porque é fácil você entender. Trinta anos, o que a Secretaria de Cultura de Duque de Caxias tem é me dever apresentações. No coleginho tal, no coleginho tal. Bom, os meus alunos seguiram. Agora, chegou um moço aí e está resolvendo. Tem outra, não vamos falar de Secretaria de Cultura, de nada não. Vamos falar da capoeira. Que eu sei que vai ter duas perguntas que algum de vocês dois vai fazer.
P2 – O senhor não quer responder já, então?
R – Respondo.
P2 – Mas a gente não vai saber qual é a pergunta.
R – Ah, se eu sou adivinho, sabe onde eu estava essa hora? Não queria estar muito velho não. Na região do lago, uma casa desse tamanho, cinco moças trabalhando para mim. Brincadeira, certo? Não é mole, não. Pergunta.
P2 – Mas aí o senhor começou com a Ação Griô? O senhor foi chamado para ser o mestre da Ação Griô?
R – É. Olha só. Eu pediria até a uma pessoa para responder, mas vou responder do meu jeito, se estiver errado é problema.
P2 – Isso mesmo. É o olhar do senhor.
R – Olha, vocês vão me enrolar, isso é coisa séria. ___ não é capoeira. A capoeira está dentro do grupo, uma coisinha assim, mas eu vou dizer. Aquele que mantém a palavra oral é dito por várias pessoas que é o Grião do projeto, grião nacional. E cá estou eu, porque sou mais antigo que Duque de Caxias, e o projeto é de Duque de Caxias, que está inserido na liga de ouro, que já foi dito, ou não?
P2 – Já.
R – Pois é.
P2 – E o que mudou na vida do senhor?
R – Quando?
P2 – Com o seu mestre Griô? O senhor tem todo um conhecimento já, mas quando o senhor passou a ser o mestre Griô e a ensinar os outros o que mudou na vida do senhor?
R – Nada. Porque eu não aprendi nada no Griô ainda. Aprendi, você, aliás, está junto de pessoas cultas, várias como foram hoje. Não falei uma palavra e fiquei só aprendendo. E conheci uma moça muito, para mim, no meu entender, muito culta, muito sabida. E cada um fala uma coisa, eu não vou falar nada. A primeira reunião que eu tive com o Griô, aliás, é, foi segunda, para manter quem vai ficar cá, quem vai ficar lá. Mas eu vou aprender. Devagarinho eu vou aprendendo.
P2 – É um desafio para o senhor?
R – Não. Nada é desafio para mim. O maior desafio que tive foi ontem, quando a pressão foi 21 por 11. Eu fiquei desafiado. A morte vai me levar. Mas se ela levar, vai. Esse foi o maior desafio que tive na minha vida, outro não. Tem que haver descontração porque quando se fala em capoeira, normalmente quando o repórter vem fazer algumas perguntas, ele já jogou capoeira, ele tem amigo dentro da capoeira. Aqui, eu não sei se vocês têm. E ele faz uma pergunta sutil, deixando uma brecha para o mestre dançar. Vocês não, estão perguntando na bucha, aí é mole para responder.
P1 – E, além da capoeira, o que mais o senhor como mestre passa para as pessoas?
R – Olha, atualmente, eu estou tomando lição só de um. Porque essa questão, que me fez essa pergunta, eu no dia 14 chamei vários mestres lá e disse: “Vamos botar uma coisa chamado Liga do (Cacheese?).” “Ah, eu estudo, não tenho tempo”. Outro: “Ah, não sei quê.” É difícil, porque nem todos têm condução própria. Por exemplo, a Silvia mora em São Gonçalo, e vai sabe para onde? Para Nova Iguaçu, anda um bom pedaço. De ônibus vai gastar umas três, quatro conduções. Fica difícil se reunir pelo menos uma vez por semana. E é complicado, porque, às vezes, no sábado o professor tinha marcado uma reunião. Então fura. O outro marcou para ir jogar futebol. É complicado. É muito complicado. Agora tudo isso tem que levar tempo. Não é de um dia para o outro. Mas nós vamos conseguir, através dos dois meninos, estamos brigando por isso. Não é briga de soco, é briga histórica, porque não tem. E tem umas federações aí que estão precisando ser repassadas, puxada a orelha. Umas. Não vou citar qual, senão pega. Pergunta mesmo.
P1 – Mas o senhor foi feito mestre Griô porque o senhor tem conhecimento da palavra, certo?
R – Sim.
P1 – E o senhor passa, conta casos, quem sabe a sua vida, para os seus aprendizes?
R – Eu não acabei de contar aqui, um montão?
P1 – Sim.
R – Mas está doido, rapaz? Agora, dentro do projeto Griô eu vou levando tempo para, preciso tirar um tempo, de semana em semana, não sei o quê, o povo se reunir. Eu vou aprendendo devagarinho.
P1 – Capoeira tem muita música?
R – Tem muita música. Tem muita música, até em outro linguajar?
P1 – O senhor poderia cantar uma música para a gente?
R – Olha, essa pergunta, eu vou deixar até meio que em branco, mas posso te dizer os nomes de várias delas. Por exemplo, do ritmo lento da Angola. Do ritmo mais corridinho, regional São Bento. Mais para lá, aí vai entrando, e pá, e pá. E tem dois votos na capoeira, aliás, desculpa, dois ritmos, que não pode sair, a cavalaria. E o que é cavalaria? Era na época da escravidão, na senzala, quando o capoeira morria, eles faziam algum tipo de fúnebre, que era enterrar. Era eles que enterravam os irmãos de cor, vindo da... de onde mesmo? Da África, certo? Isso. Seguiu o tempo e quando esses mesmos carambolas, que começou a aparecer soldado e polícia. Então o feitor contratou esse capitão da mata e o capitão do mato. Um pegava o capoeira nas matas, mas sabia jogar as pernas, porque tinha aprendido na senzala. E o outro era bem bonzinho, igual vocês dois, pegava o chicote para bater no co-irmão. Bondade danada, não é? E esse não pode sair. A cavalaria que avisava, eu vou cantar uma. Pum, pum tchi, pum. Jogo encerrava e eles começavam a brincar de angola. “Nós estamos brincando de angola”. O macaco, que era o senhor do mato olhava, olhava, não tinha ninguém sangrando. Mas isso era para enganar o feitor e o capitão da mata, até eles tomarem o rumo da liberdade. E até hoje não conseguiram. E eu gostaria que tivesse um mestre espertão para discutir essa questão comigo. E ele sabe quem é. Vou contar a história da capoeira de Duque de Caxias para vocês não ficarem... A gente acabava de botar o ritmo, vinha um moço furava o bumbo, identificava o povo, sessenta por cento não tinha documento. Hoje é muito óbvio que a gente saía na rua e não tenha documento assinado, porque o Brasil não tem emprego. E os empregos que tem é muito curto. Quer dizer, tem uma vaga em Caxias que a gente coloca ela sábado, às oito horas, vai até onze, meia noite, não passa um mosquito para mexer. E um dia questionaram, para que essa capoeira do mestre Levi esteja assim, eu tomei muita borrachada da polícia. É verdade. É verdade. E até hoje, não vai mudar muito. Agora tem professor de capoeira da cor, que está com duas faculdades. Medicina, às vezes, advocacia, letras, fisioterapia. Que as duas eram as que eu falei, advogado para defender, e terapia para consertar o teu osso, osso dos irmãozinhos que não podem pagar quinhentos reais para consertar uma perna em três meses. Pode fazer outra.
P1 – Então me corrija se eu estiver errado. O que o senhor disse agora, então capoeira é uma forma de resistência, sempre foi, até hoje?
R – Ela deixou de ser resistência para ser disputa e esporte, mas continua a resistência, não tanto assim. Mas no jogo da capoeira é resistência, porque se tu ficar jogando pensando nela, daqui a pouco tu vai para o hospital de braço quebrado ou pelo menos meia dúzia desses dentes bonitos. Ou se não for o nariz ou a morte. Capoeira se liga aqui, não tem mais ideia. Depois da capoeira conversa, brinca, ri. Então a resistência tem de dois a três tipos. Por exemplo: o pai fica espremendo o filho, a filha, primeiro tu vai tentar a resistência dele até um certo tempo, depois vasa, quer dizer, é pressão. A palavra que tu me perguntou, a resistência de uma coisa. Entre resistência e persistência existe uma grande diferença. Mas não é tanto assim, não. Agora está mais tranqüilo, está mais suave.
P2 – Tem moças que praticam a capoeira? Como é que é isso?
R – Moças a gente fica complicado para responder. Mas têm muitas senhoritas, meninas, senhoras, muitas. Vamos explanar: a mulher em qualquer esporte, ela recebe uma resistência, que ela mesmo fez, “Ah, não vou lutar com ela”, vai que uma menina é faixa preta de judô, karatê, tai kwon do, com uma mesma faixa, e dar mole para ela, porque o mesmo golpe que tu sabe, ela sabe. O pezinho dela é fininho, mas se pegar no pescoço faz o mesmo efeito que o pé grande, que pega em lugar errado. É isso aí. Tem muita moça na capoeira. E no tai kwon do também, muita, muita moça.
P1 – Vamos trocar a fita!
R – Graças a Deus.
P2 – O senhor não está gostando?
R – Agora não sei o que tem por debaixo desses olhos dele, porque esses óculos estão pretos. Cala a boca.
P1 – Conjuntivite.
P2 – Não, olha que pega.
R – Quando me defendo, lanço uma tese. Vamos lá?
P1 – Conta um pouco para a gente a simbologia toda da capoeira, o berimbau...
R – Rapaz, já respondi. Tudo bom.
P1 – Dos três berimbaus que eu não escutei.
R – Então, não é orquestra que eu falei? A simbologia é essa. Os três berimbais, o pandeiro quatro, entendi, o atabaque cinco, o agogô seis. Agora tem uma coisinha na simbologia que se botar esses instrumentos todinhos ali e botar seis pessoas para tocar foi por água abaixo. Simbologia cultural e musical. Que elas fazem vocês explorar sua cultura e o seu jogo. Porque tem três coisas no mundo que você não mente, o resto tudo você mente e engana. Mas jogar capoeira, presta atenção, dançar e jogar bola é ruim tu enganar. Grava isso. Leva isso como pergunta para vocês. Não dá, na capoeira se tu ficar com muita mamãezada, o molequinho de dois anos te dá uma rasteira, tu cai. Na bola, tu joga a bola no peito do cara, ele bate a bola, vai lá na casa dele, que jogador é esse? E dançar, pelo que eu entendi, mesmo o cara sendo canhoto a mão da moça, mão direita no braço esquerdo do cavalheiro. “Ah, sou canhoto”. Está errado, sai daí, não sabe dançar. Essas três coisas você não engana. E essas três coisas eu faço bem. Agora futebol tu descansa, judô tu descansa, tai kwon do, boxe, mas na capoeira tu não pode. É o seguinte: são giros rotativos, para a esquerda, para a direita, para os lados, para o alto, não dá para tu parar não. Agora tem muito capoeira manhoso, que ele faz assim para tu, aí olha para lá e tu vai. Tem que estar acordado. Um dia vocês vão me ver jogar capoeira. Eu sou cavernoso. Sou mesmo. Eu falo e tem também quem não me conhece. Pergunta.
P1 – E essas três coisas, dança, futebol e capoeira, elas se misturam? O futebol também é um tipo de...
R – Negativo. Futebol não se mistura com capoeira. Que é isso, rapaz? Futebol é bola redonda, capoeira é pau, berimbau, e dança é moça com rapaz. Olha. Eu sou extrovertido. Quando eu responder assim do certo, que vocês não entendam o lado, vocês apagam a fita e pergunta outra.
P2 – Imagina, está uma delícia.
R – Sim, para me malhar depois é bom. Nisso eu conheço vocês, rapaz.
P1 – Para você qual a importância dessa ação do Griô?
R – É ótima. É correta. É honesta, é cultura. É um apanhamento de se dar e receber. E outra coisa, o mais tímido ali, ele está aprendendo. E hoje, a moça falou ali, não sei o nome dela, é uma doutora, dá uma brincadeira que nós fizemos, ali, aquela brincadeira chama-se terapia em grupo. E teve um movimento que dois ou três cidadãos, “aqui não”, mas por quê? Então você vai se dando e daqui um pouco a gente estava dançando, rodando, rodopiando, uma porção de gente velha e vem para cá. E quando um menino respondeu, menininho da Bahia, a uma pergunta de um ___, “Qual foram os primeiros povos do mundo?”. Ele não respondeu certo, mas ele chegou bem próximo: “Os índios”. Até que onde você sabe, você, você e ele, o dono da terra é os índios, só que o dono da terra é o mar. Não vamos botar macumba nessa porra, não. O outro foi inquieto e ele anotou. Um aluno perto do meu irmão da África. E teve outras coisas que eu peguei, gravei, só não escrevi, não sou muito de escrever, mas é coisa que está na minha raiz. É o nome Griô de uma coisa, não é dentro da forma melhor do Griô, eu sou isoladamente. E ontem, eu pensei em um rapaz, eu fui o único a jantar sozinho lá. Eu olhei, sozinho mesmo. Mas quem foi que mandou você? Olha a questão, fui para o hospital, eu sou de trabalhar. Era oito horas e fui eu sozinho. Essa casa preta fechada, tudo estava apagado e eu sentado na cadeira, foi me dando aquele desânimo. A madre passou, olhou, “Está com problema?”. Digo; “Estou”. “Venha para cá que está frio”. Abriu a porta, fechou e eu fiquei lá dentro. Botou minha janta, fiquei um pouquinho, peguei logo um violão, dei umas tapas nele e depois fui embora. Acontece o seguinte, é aquilo que você falou, como eu fugi de São Paulo? Para quê que eu fugi? Para que vim para o Rio? Pressão. Eu conheci o mundo, descobri. A capoeira tem muito descobrimento. Toda aula de capoeira é um ensinamento. Porque a capoeira só não termina, por exemplo, uma hora de aula, acabou, das oito às nove, a gente vai para um barzinho, vai para casa de um amigo, está rolando capoeira. “Ah, você entrou errado, você entrou ali”, aí onde tu tomou a partida? Aonde tu me perguntou se tinha repressão? Foi isso? Foi, mas foi. Então, acontece o seguinte: ali rola uma hora, duas horas. Sábado passado sai da Liga de Ouro onze horas, cheguei em casa meia noite e meia. Capoeira comendo de duas horas da tarde até dez e meia, mais ou menos. Muita capoeira. Agora pensa que tinha dez pessoas? Tinha mais ou menos umas 50 pessoas para jogar capoeira, fora o povo. Lá é uma quadra, daqui para lá, estava cheio. Então, a capoeira, ela não tem limite. E está acontecendo uma coisa, que os americanos, os europeus e os asiáticos estão tomando da nossa capoeira daqui para lá. É complicado. Uma das capoeiras mais antigas que tem fora do país é na França. Mestre ____ quase 40 anos. Você vê, 40 anos atrás já estavam roubando nossa capoeira. E já teve vários campeonatos internacional. Porque aqui nós somos muito, sei lá... Deixe ver, está gravando?
P1 – Está gravando.
R – Está gravando?
P1 – Está gravando.
R – Esse nego jogou.
P2 – Ele foi buscar uma água para o senhor.
R – Foi mesmo?
P2 – Foi.
R – Ave Maria. Meu Deus. Benzer essa água para sair daqui. Pergunta.
P2 – Para começar uma roda de capoeira tem alguma reverência? Qual que é a...
R – Olha, primeiro nós temos que ter duas coisas, certo?
P2 – Ritual?
R – Aliás, desculpa. Três coisas.
P2 – Diga.
R – O espaço, o povo para jogar capoeira e o ritmo. Agora, em termo de ritual tem. Você não pode chegar vindo de uma festa. Por exemplo, vamos fazer uma suposição. Você foi para festa?
P2 – Ontem?
R – É.
P2 – Não.
R – Então, você podia. Foi. Então, tu não podia. Vem tudo cheio de impureza. Ora, a cada esquina que eu passo, eu não posso passar, tem esquina que eu não passo, porque ali tem tudo quanto é coisa sobrenatural. Aqui, essa mata aqui, meia noite, tu tem medo. Isso é místico. Outra coisa, a exibição. É bom vocês terem gravado. Eu depois de 30 anos, aproximadamente, eu: “Meu Deus, espera aí, eu estou devendo um negócio para uma pessoa”. Então uma porção de instrutores, bonito, uma porção de moças com dois, três anos, e dava aula no colégio, Casimiro de Abreu em Caxias, limpei a quadra e no meio daquela rodinha que se joga bola, os alunos chegando, eu: “Vai para lá. Só vai tocar nisso quando eu mandar!” Quando eu acabei de limpar tudo, fui no banheiro, tomei um banho, botei a roupa e fui trocar de roupa. Me ajoelhei para a senhora Mãe Terra, “Muito obrigado pelo tempo”. Porque é nego de braço quebrado, é morto, não foi um nem dois que morreu na roda, não. E você, olha, os anos... Mas ninguém pediu licença. Pisa. Pisa. Que é ela que deu essa dádiva de Deus para nós. É isso aí. Então gente a capoeira, além de ser mística, ela fez a pergunta, não dá dando muito certo comigo tuas perguntas, não. Primeiro tem que ter o local, pode ser até, pode ser chão, mas continua terra; o ritmozinho e o povo para jogar. Aí sim, no ritual para você começar o jogo, tem aquele pede para lá, pede para cá. Tem outros que entram já pulando. Aquele está mais propício a tomar um contra-vapor, porque eu gosto de ver uma pessoa, quando a gente está fazendo uma coisa está ligada, porque aqui não está de brincadeira. E tudo que tu faça é capoeira. A maior capoeira que eu vejo na rua é dia de chuva. Um sai para lá, outro dá um olé para cá, outro guarda-chuva bate na cabeça, bico na canela, moça anda a pé, eu paro e fico assim, ó. Fico. Ali é capoeira. Capoeira sem jogo. Mas tu está jogando. Quantas vezes já esbarrou em alguém na rua? Várias, certo? E tu também? Então, pronto. Principalmente aquelas pessoas desligadas, vindo para cá e olhando para lá. Já vi nego quebrando supercílio, nariz, briga depois por causa daquilo. O errado acha que está certo. Faz outra pergunta.
P1 – Esse foco, estar ligado nas coisas, isso o senhor passa para os alunos? Tem uma maneira de ensinar isso?
R – Se eu estou passando para você, não vou passar para os meus alunos, filho? Passo sim. E passo olhando para eles e ajoelhado. E outra coisa, se ele não sair daquele ritmo, um dia ele vai pecar, e quando ele pecar, eu só posso agradecer, bem feito. É complicado, rapaz. Agora é só a capoeira que tem essas magias? Todo esporte tem, tudo que é esporte. Por exemplo, escrever. Um dos maiores erros para estudante, sabe o que é? Escrever deitado. E para ser humano, em geral, comer deitado. Poucas pessoas comem sentado. Eu mesmo não como sentado, não. E, de acordo com a fome, não precisa sentar muito. Pode ir comendo logo. Vocês podem me aturar até amanhã. Eu só vou embora daqui amanhã. Não tem problema, não.
P1 – José, os Griôs trabalham com a história oral, memória. E como que juntaram esse ensinamento oral com o ensinamento formal, colégio? Como foi essa mistura?
R – Olha, no pouco saber meu, eu acho que os Griôs, os membros que têm menos tempo que outro passa para meninos. Porque eu não sei até onde vai a capacidade do ser humano. Porque cada nível da mente vai acompanhando, vai aprendendo. Eu nunca fui um aluno bem dedicado ao estudo. Mas à capoeira eu fui, porque queria chegar onde eu cheguei. E se eu soubesse que eu ia ficar onde cheguei, no geral, na minha posição, eu tinha parado no meio da metade, da metade. É verdade. Você não sabe como é que está dando problema. Griô não tem que explicar tanto, e eles não sabem nada o que é Griô, perguntam agressivo. A gente faz agressão também com eles. Porque agressão não é só de dar tapa não. No olhar já está agredindo. Se olhar assim, está mandando tudo para tudo que é lugar.
P1 – E o que senhor sente em ser um mestre Griô? Qual seu sentimento sobre isso?
R – Tu quer me pegar, mas tu não vai me pegar, não. O mestre Griô, eu já disse, aquele que mantém a palavra oral, e se tiver mais alguma coisa: “Espera aí”. Tem vários seguimentos além da palavra, mas eu acho que é essa mesma a que te mantém. A palavra oral.
P1 – Mas o senhor se sente honrado?
R – Claro. Claro. Isso é todos aqueles que tem uma posição, um patamar maior. Ele não é o maior, ainda tem uma pessoa acima dele.
P1 – Tinha alguma coisa que o senhor queria que a gente perguntasse. O senhor falou que eram duas perguntas, que o senhor disse que a gente ia perguntar, a gente fez essas perguntas ou não fez?
P2 – Está faltando o senhor falar alguma coisa?
R – Não. Para mim não. Eu respondi. Você me deu liberdade. Fale, olhe, diga. Agora tem um moço aí que quer fazer pergunta ruim, é melhor nem fazer. Mas ele não é repórter, certo? Faz uma bem boa agora.
P2 – Uma pergunta bem boa?
R – Bem boa.
P2 – Nossa! O que é uma pergunta boa? O que o senhor quer contar para a gente, que está faltando?
R – Eu já contei tudo que vocês queriam saber.
P2 – Essa pergunta não é boa?
R – Boa. Muito boa. Vocês é que... (risos) Eu não estou para perguntar, eu estou para responder, ora.
P2 – Mas e o senhor, assim, qual a importância desse trabalho, a capoeira ela é bem conhecida, tem muita gente que pratica, tudo. Mas o senhor está contando uma coisa aqui para a gente, que é super importante, que a capoeira do ponto de vista ritual. Eu acho que perdeu isso um pouco. O senhor está falando que se a gente for para uma festa, a gente não pode dançar capoeira, tem que se purificar, essas coisas todas. Então, qual que é a importância do senhor de estar passando para outras pessoas esse conhecimento da capoeira como ritual, como uma coisa importante, sagrada e não algo banalizado?
R – Isso. É porque a capoeira, ela sempre foi questionada e era sempre olhada pelo lado ritual. E pior que é. Não tem mais de dez capoeiristas que não tenham o seu lado espiritual, com Deus, com os orixás, com a água, com o vento, com ele mesmo. Eu lhe disse que você não estava preparada porque primeiro você veio doido pra dormir, tem uma capoeira ali, pegando fogo, tu vai entrar de qualquer jeito? Já está aquecido, mas lá só está aquecido teu cérebro. Aqui, na capoeira vocês fazem alongamento, vocês fazem abdominal, vocês fazem flexão, senta para escutar um papo. Agora, ajeita o ritmo e vou-me embora. Isso é para quem sabe ensinar e gosta de ensinar certo os seus alunos, seus discípulos. Existe uma diferença, iniciando, aluno e discípulo. Depois veio o problema das faixas, instrutor. Sabe quantos anos é para levar um instrutor de academia? Dez a 12 anos treinando consecutivos. Em determinados grupos, eles vão a uma cidadezinha, porque tem dois ou três estilos, mas tem judoca aí que em oito anos, seis anos já é faixa preta. É porque evoluiu muito. Pode me encher de pergunta.
P2 – Acho que está bom.
P1 – Vou fazer mais uma pergunta então. O senhor disse que hoje em dia está melhorando essa coisa da repressão, da pressão contra. Como que era nos anos 70, anos 60, quando o senhor começou?
R – Olha, em uma entrevista aí, eu falei com um menino. Era pesado. Pronto, já respondi. Não era mole, não. Até porque 60% não andava em posse do documento assinado. E outro problema era também capoeira é meio assanhado. Agora tem duas capoeiras que, em dois locais do Rio de Janeiro, na década de 64, eu como militar em 65, joguei meio minuto, se foi meio minuto foi muito, que era as duas capoeiras mais pesadas que nós tínhamos. No centro do Rio. Tinha outras, mas menos divulgadas. Cinelândia e Central do Brasil. Mas não era na Avenida Presidente Ferreira, era lá por detrás, era lá pelo outro lado, a polícia não vinha. Porque se viesse uns dez ou 12 iam levar pelo menos uns oito ou nove. E eu fui dois sábados lá. E um nego velho olhou assim: “Compadre, deixa eu jogar o pé nesse menino”. Quando eu joguei a perna para lá, ele disse: “Sai”, porque ele sentiu que eu era - a gente sente - bobão, a minha idade não permitia. E eu respeito isso. Quando chega um menino, eu pego um menino do tamanho dele, boto com ele? Negativo. Porque eu não sei se o menino que chegou sabe. Você que é instrutor, vai com o menino. Então dele se dá uma pernada no moleque, porque tem que respeitar. As pessoas têm que ser respeitadas. Eu, com essa idade, não vou falar de idade, não, mas com o meu tempo de capoeira é difícil ter uma briga comigo, mas sempre tem um ranca rabo. É o que tu falou. Isso é pressão? Isso não é agressão. Porque se um graduado for meter uma capoeira com um mais graduado e toda hora que eu der um golpe ele for lá para aquela parede nunca mais ele vai aprender capoeira. Ou seja, pode aprender, mas demora muito. Porque vocês dois são grandões, certo, e já sabe capoeira, e vai jogar com um baixinho? Quanto mais o baixinho se afasta mais a tua perna cresce. Qual é a tese? Técnica, tática e certa. Levantou a perna, o baixinho cai, abre o teu joelho, mete o pé. Encurtar a sua perna. Porque se ele fugir, ele está esticando a tua perna. Essa foi uma boa resposta, não foi? Faz mais uma.
P2 – Não. Está de bom tamanho.
R – Faça mais uma. Eu faço questão. Estou aqui para responder.
P2 – Vixe Maria!
P1 – Mas aconteceu isso? O senhor contou que jogou meio minuto?
R – Na Central do Brasil.
P1 – O que aconteceu?
R – Nada. Eu não sabia quando eu cheguei que era tudo bandido, era tudo bicho solto, tudo cara que jogava há 50 anos. Tu é doido?
P2 – É verdade? Eu já ouvi falar, não sei se é verdade, que antigamente, muito antigamente, os capoeiristas escondiam faca.
R – É verdade. De faca e navalha para lá. Sem contar a navalha dentro dos pés. Eles chegam ali na Bahia eu vi também. Mas isso tem mais de vinte anos e já acabou. Agora a foicinha e a faquinha é fogo. Vocês querem que eu diga um negócio para vocês?
P2 – Diga.
R – Todos vocês aqui, todos nós, estamos armados. Um brinquinho é uma arma, desde que você saiba mexer com ele. Pega um alicate, abre ele, bota um pedacinho de pau, aí fura o olho dela, os dois logo, para abrir a boca e parar de falar. Todo mundo anda armado. Não é com armas, mas todo mundo anda. Eu fico olhando isso. Eu estou armado. Eu não sou bobo de sair com aquele cara desarmado. Vê aqui, isso aqui é uma arma. Nos teus óculos vai ficar sem ver nada. Olha aí. Em determinado local, não estou falando de armas adversas. Tem mais uma?
P2 – Não, não. O senhor já deu entrevistas assim, falando da história do senhor?
R – Já, várias vezes. Inclusive tem uma revista em casa.
P2 – É?
R – É.
P2 – E o que o senhor achou? Isso aqui vai fazer parte do material do vídeo do Griô, certo? O que o senhor achou de ter deixado registrado sua experiência?
R – Eu não sei se a nota que eu vou dar serve. Mas de cinco para cima está bom, não está, não? Cabe alguém julgar quando ler. Agora, as perguntas foram bem colocadas? Rapaz, é brincadeira uma coisa dessa. (risos) Vocês se esqueceram. Eu vou dar um mole para vocês. Porque tu eu dei mole umas duas. Esse daqui eu dei uma só e mole. Ele é mais malandro que tu. Porque vocês não perguntam para mim, isso não fica bem, mas como vocês, são do Griô?
P2 – Não.
R – Por isso que vocês estão insistindo com essas perguntas. Não pergunta se maculelê faz parte da história da capoeira?
P1 – Então responda, já que o senhor perguntou para o senhor mesmo. Faz?
R – Já fiz pergunta.
P2 – É para fazer pergunta?
R – Isso.
P2 – Então eu vou fazer uma antes então. Para o senhor definir o que é o maculelê, contar para gente o que é maculelê. E se maculelê faz parte da capoeira.
R – Todinha. O grande grupo que se prestigia, quase errei a pergunta, que se preza, ele tem que ter o grupo de maculelê dele. Porque maculelê era dança de guerra, moça. Dentro da capoeira. E a outra. Eu tinha aqui uns vinte, porque tem três tipos de maculelê. Maculelê de bastão. Bastão é com pedaços de madeira. Maculelê de canavial, que é um com a tocha, outro com facão, isso de madrugada. E tem o maculelê que é arrumado na escola um cabinho de vassoura, aquilo é maculelê. Maculelê de bastão, maculelê de facão, maculelê de canavial. O que maculelê de canavial? Os meninos iam roubar umas canas, meninos e nego velho e tinham um maculelê, não precisava ter pau, pega um pedaço de pau aí. E sempre acontecia coisa.
P2 – Mas maculelê é o que exatamente?
R – São dois pedaços de paus, tu com um e eu com outro. Esse é o primeiro. Esse é o de bastão. O de canavial, eu com facão para cortar teu pescoço, tu com pedaço de pau. (risos) E o outro é o maculelê de tocha de fogo. Entendeu? Se não entendeu, eu repito.
P2 – Não. Entendi.
R – Maculelê de facão, maculelê de bastão, maculelê de canavial. Cada um com um tipo de armas diferentes. Fala.
P1 – Eu estou...
P2 – A gente está super satisfeito.
R – Muito obrigado.
P2 – A gente tem que agradecer o senhor. Acho que esclareceu bastante algumas ignorâncias nossas.
R – É. Qualquer coisa procura o professor Alexandre, a secretária de Cultura de Duque de Caxias, ou na FeoDuque, ou no Pingo de Ouro. E está difícil de eu ver ela. Mas eu vou ver qualquer hora dessa. Aí eu falo com ele.
P2 – Mas o senhor joga capoeira até hoje? Não só ensina, o senhor joga capoeira também, todo dia?
R – Não. Todo dia não, porque eu tenho outras coisas também. Mas eu jogo qualquer hora, qualquer minuto, com qualquer um.
P2 – Isso é coisa boa demais.
R – Quer aprender um golpe de capoeira, quer?
P2 – Difícil? Então eu quero.
R – Mas olha só. Então eu vou jogar contigo também.
P1 – Não. Ela que quer. Não sou eu, não.
P2 – Mas é de leve, certo? Espera, vou tirar o microfone do senhor.
R – Está vendo. Tu não está nem jogando.
P1 – Deu um golpe nele.
P2 – Mas não é difícil, não, senhor José? É um vexame. Se eu cair não vai mandar para o Faustão.
P1 – Filma aí, só para garantir.
P2 – Mas eu não sei nada! Se o senhor fosse me ensinar?
R – Se você ficar assim, você vai perder. Dois tipos de capoeira. Põe a cabeça no chão, prepara, ou...
P2 – Ou? Uma estrela? Ah, aí eu não consigo! O que a gente vai fazer?
R – Levanta mais a perna.
P2 – Mais?
R – Ai, caramba.
P2 – Eu sou melhor desse lado. Para cá?
R – Mais ou menos nessa altura.
P2 – Aqui?
R – É uma figura. Vem cá, rapaz.
P1 – Eu não. Está louco? Eu vi o que aconteceu com ela já.
P2 – Senhor José, obrigada pela entrevista.
P1 – Obrigado.
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