Projeto Kinross Paracatu
Depoimento de Darley Ferreira Gomes (Cacau)
Entrevistado por Marcia Ruiz e Marcelo da Luz
Paracatu, 02/06/2017
Realização Museu da Pessoa
KRP_HV02_Darley Ferreira Gomes (Cacau)
Transcrito por Karina Medici Barrella
P/1 – Cacau, boa tarde. Eu queria agradecer em nome do Museu da Pessoa e da Kinross a sua participação. E a gente vai começar, eu vou pedir pra você dizer seu nome, local e data de nascimento.
R – Eu que agradeço (risos). Meu nome é Darley Ferreira Gomes, conhecido como Cacau, nascido na cidade de Paracatu, Minas Gerais, no dia três de fevereiro de 1980.
P/1 – Cacau, conta um pouquinho a história do seu apelido. Por que Cacau?
R – Ahhhh. Quando eu cheguei na capoeira havia vários apelidos, né? Tinha Café, Parmalat, Diamante, Crisopásio que era alguns nomes de pedras e os mais moreninhos, os negros, já tinham apelido de Chocolate, Parmalat, Café e aí sobrou Cacau pra pôr, o apelido no Cacau que tinha acabado de chegar, outro negro. E aí: “Cacau!”, e eu gostei do apelido Cacau. Pô, tem a ver com o lance do chocolate, né? Da cor. Porque o cacau nem é tão moreno assim, mas é por causa da capoeira mesmo esse apelido, ele surgiu na capoeira.
P/1 – E qual o nome dos seus pais e qual era a atividade deles?
R – O meu pai, Domingues Ferreira Gomes, nascido no Quilombo de São Domingos, ele fez algumas atividades, ele foi pedreiro, trabalhava fazendo casa, alvenaria; também foi chapa de carvoeira de carvão, que foi uma das coisas que pesou muito na saúde dele porque é um trabalho muito complicado de trabalhar, colocar o carvão em cima do caminhão, foi o último ofício dele. E a minha mãe era dona de casa, Maria Sebastiana, conhecida como Nenzinha, era o apelido dela com a família, com todo mundo.
P/1 – E ela também nasceu lá no Quilombo em São Domingos?
R – A minha mãe não nasceu no Quilombo, a minha mãe nasceu em Morada Nova. A minha avó é descendente de alemão e meu avô por parte de mãe já faleceu há muitos anos, mas eu não tenho essa história de onde ele veio.
P/1 – Então, a sua avó era de origem alemã, é isso?
R – A minha avó ainda viva, de 89 anos.
P/1 – Ela nasceu na Alemanha?
R – Não, ela tem origem pelos pais dela, bisavô. Ela é bem branca e de olho clareado.
P/1 – E você sabe por que eles vieram pro Brasil?
R – Eu não sei, essa história eu não sei, a história da vinda dela. Eu sei que ela tem a origem... Eu tenho uma irmã também de pele bem branca, mas eu não sei por que eles vieram pra cá, no Brasil. Ela também desconhece um pouco dessa história de família.
P/1 – E por parte de pai, seus avós, como era o nome deles?
R – Agora pronto, você me pegou (risos). O meu avô é Vitor Lopes dos Reis e a minha avó é, fugiu o nome da minha avó agora (risos). Porque na verdade a minha avó faleceu quando meu pai ainda era criança, nós não tivemos convívio e lendo os documentos, nome, mas agora fugiu mesmo o nome da minha avó. Mas quem cuidou deles a vida inteira foi meu avô. E solteiro ele criou todos eles desde criança até com 50 anos aí.
P/1 – Você chegou a conviver com seus avós, tanto paterno quanto com a sua avó materna?
R – Eu tive convívio sim. O meu avô, ele faleceu tem uns 20 anos e a gente teve convívio, a gente morou no mesmo lugar. O meu avô era garimpeiro aqui na cidade de Paracatu, o pessoal chamava ele de Dragas. Então eles compravam os locais que tinha água, tipo lagoa e ali eles extraíam o ouro. As pessoas viam eles quebrando os cascalhos e extraíam o ouro. E meu avô tinha essa sobrevivência de extrair o ouro. E ele comprou um terreno, que até hoje é o mesmo local, no bairro da Bela Vista, e nesse terreno, um terreno bem amplo, ele deu um lote pra cada um dos irmãos. Lá tem um lote do meu pai, dos meus tios, cada um tinha um lote lá. E nós moramos todos lá junto. Agora só a família do meu pai não reside lá, mas todos os outros irmãos moram lá. Tem a casa do meu avô lá, a casa dos meus tios. Então nós fomos criados todos juntos, os primos, os tios e meu avô.
P/1 – E como é que era essa convivência? Você nasceu nesse lugar também ou não?
R – Não, eu não nasci lá, não. Surgiu depois. Eu nasci no bairro, na época a gente morava no bairro do Alto do Açude que é próximo do Quilombo do São Domingos. Depois meu avô conseguiu, comprou essa terra que a gente foi morar lá. Mas praticamente dos cinco anos de idade pra frente, a gente morou lá junto com a família toda lá na Bela Vista.
P/1 – Você tem lembranças dessa fase, até os cinco anos, que era próximo ao quilombo, você tem lembranças dessa época ou não?
R – Sim, eu tenho lembranças. Eu lembro do meu pai, meu pai arrumava a gente, pedia pra minha mãe arrumar a gente pra gente descer e a gente descia uma estrada de terra, de chão bem suja assim, com muita poeira, porque antes não era asfaltado lá e a gente ia pras festas, lá tinha quadrilha, ainda acontecem essas festas, tinha festa na casa dos tios do meu pai, das madrinhas, a gente sempre ia. Até mesmo pros barzinhos, que naquela época era até comum e tranquilo de estar frequentando. Pra festa da Caretada também a gente sempre ia junto com ele. Ia pra casa dos tios, das tias. Eu tenho lembrança muito boa do meu pai, eu bem pequenininho, acho que eu tinha isso aí, uns quatro anos mais ou menos, eu fui pra casa de uma tia no São Domingos e a gente brincando lá no quintal, na hora de ir embora ela pegou uma galinha assim, um garnizezinho pequeno pra gente, era um galinho pequeno e me deu de presente. Eu nunca esqueço nem da minha tia que me deu e nem desse primeiro presente que pra mim veio com muito amor, com muito carinho. E um dia meu pai matou (risos) minha galinha e pra passar o mel na minha boca, para me agradar porque ele viu que eu fiquei muito apaixonado, ele comprou um ternozinho, tipo um ternozinho de marinheiro, de criança, e me deu de presente, aí disse que era por causa da minha galinha e tal. Então eu tenho muitas lembranças boas dessa época, tenho algumas lembranças que eu nunca deixo esquecer. E uma dessas é essa que eu acho que é boa também.
P/1 – E me fala uma coisa, Cacau, como eram as festas em São Domingos? Você comentou a história da Caretagem, como é que era? Que lembrança você tinha dessas festas?
R – A festa da Caretagem, quando a gente era muito pequeno, era um pouco assustadora porque naquela época eles faziam os ensaios, mas quando chegava no dia da careta, cada um ficava fantasiado de uma forma e eles trocavam às vezes os pares e trocava de um lugar onde eles estavam ensaiando. A Careta é como se fosse uma quadrilha nos ensaios, é onde o pessoal que está na frente, quem vai estar mais atrás e a pessoa que comanda. E no dia da Careta não pode tirar a máscara, você tem que virar a noite inteira na festa dançando sem tirar a máscara. E também a criança não tem o contato, o adulto não fala e não conta quem é quem. Então pra gente era uma festa legal porque a gente tinha um sentimento de que era assustador, mas também era um encontro, todas as famílias estavam ali. Eu sempre lembro que tinha primos que a gente não conhecia: “Ah, veio de Brasília” “Ah, esse Fulano veio do Goiás, de tal lugar” “Esse aqui é o seu primo que mora não sei onde”, que todo mundo vinha pra assistir. Até hoje isso acontece ainda, o pessoal vem pra assistir a Careta, a Festa de São João.
P/1 – E tinha comida? Conta um pouquinho como é que era a festa. Que horas que começava, que horas que acabava? Como as pessoas se envolviam na festa?
R – A festa roda o quilombo inteiro no correr da noite inteira. Ela começa no início do quilombo, na primeira casa, e hoje uma das primeiras casas é próxima ao planeta ali, né? Ela começa lá e vai até a última casa do quilombo. Então o percurso demora a noite toda e encerra com arremate, o final da Careta, com o almoço mais ou menos meio-dia, uma hora, mais ou menos. Sai dançando de casa em casa e tradicional é toda casa a oferecer uma comida, um tipo de comida e uma bebidinha também pra animar o pessoal, os festeiros, quem está seguindo, uma cachaça. Então segue a Careta de casa em casa.
P/1 – E você pequeno fazia isso também, percorria a noite inteira ou seu pai e sua mãe davam um jeito de pôr vocês pra dormirem na casa de alguém?
R – Eu lembro de percorrer a Careta inteira com dez anos, 12 anos, mais ou menos. O que eu tenho de lembrança é isso.
P/1 – Cacau, vamos voltar um pouquinho. Você contou que seu pai adquiriu um tipo de uma lagoa...
R – Meu avô.
P/1 – Seu avô, desculpa. Você lembra dessa fase de como eles faziam o garimpo? Conta um pouquinho o processo pra gente entender um pouco.
R – Sim. Ele adquiriu a lagoa com os barrancos e aí vinha com um maquinário que jogava água no cascalho. Então é uns tubões de água e jogava água no barranco e esse barranco ia desmanchando o cascalho, jogando o cascalho. E o garimpeiro pegava e jogava dentro de uma draga que ia moendo e quebrando todas as pedras. A gente fala, não sei se vocês usam esse termo, as tapiocangas, umas pedras grosseiras assim. Ela ia moendo e lá dentro ia tirando o ouro desse cascalho. Depois que fazia esse processo de quebrar toda a terra e as pedras, passa por um tapete, aí no tapete o ouro fica agarrado. Pega-se o tapete, o ouro ainda preto, negro, aí vai lavando, põe pra bater, pra tirar a terra e pra ficar só o ouro, fica só o ouro, ouro e com a mistura do mercúrio você consegue separar da terra o ouro e depois se queima o mercúrio e fica a pedrinha de ouro. Eu lembro sim desse processo. Eu não participei porque eu era criança ainda, mas eu assisti muito. Na lavagem do barranco várias vezes o barranco caía e caía em cima dos garimpeiros. Eu lembro disso também, o pessoal gritando: “Corre”. E a gente assistindo, criança ficava brincando: “Corre, corre, caiu um barranco!”, tal. E eles vinham e desenterravam a pessoa que estava debaixo do barranco, aí ficava o resto do dia sem trabalhar e no outro dia, às vezes, já estava trabalhando lá de novo. Barranco é isso.
P/1 – E quando o seu avô adquiriu esse pedaço de terra ele deu um pra cada irmão e pro seu pai também.
R – Nas lagoas era o que hoje acontece com algumas, como é que eu posso dizer? Algumas empresas. A pessoa arrenda a lagoa. Então meu avô chegava, via: “Ah, quero extrair ouro aqui nesse lugar, nessa terra” “Eu cobro tanto de você pra você mexer aí”. Eles iam lá e tiravam. E aí, com o dinheiro que ele ganhou ele comprou uma, a gente pode falar um quarteirão, uma quadra enorme com terreno em um local que na época não era tão povoado, mas hoje é um bairro até legal, que é na Bela Vista. Que ele falou: “Eu quero todos os filhos meus juntos”, porque na verdade já tinha um morando em um bairro, outro no outro, a gente morava de aluguel. E ele falou assim: “Eu quero todos os meus filhos aqui. Eu vou dar um terreno e vocês vão construir a casa de vocês”. E cada um construiu a casa lá, os meus tios, todos os filhos dele, né?
P/1 – Eu queria que você contasse um pouquinho da sua infância, que é uma infância depois dos cinco anos. Com quem você brincava, quais eram as brincadeiras, conta um pouquinho pra gente.
R – Era bom demais (risos). A gente brincava de pelada na rua, futebol, golzinho, até que não gostava muito não porque eu era o último a ser escolhido, eu sou muito ruim de futebol, então eu nem jogo, eu era o último a ser escolhido, era o que sobrava, sobrou, vai ter que ser, então vai lá, entra. Mas mesmo assim a gente estava lá todo dia brincando. A gente brincava de pique-pega, pique-esconde à noite, escondia nas mangueiras, lá tinha duas mangueiras muito boas no meio do lote da gente assim. A infância foi muito boa, até porque a gente estava junto com os primos ali, com os parentes, no dia a dia. A educação nossa era dividida com todos, se um tio ralhasse era a mesma coisa do pai, da nossa mãe. O meu avô a mesma coisa... Eu acho que é isso.
P/1 – E fala uma coisa, Cacau. Você conta um pouco dessa coisa de brincar com os primos, como era o cotidiano, que hora vocês levantavam, que horas vocês iam pra escola, que horas que vocês almoçavam? Conta um pouquinho pra gente como era o cotidiano dessa casa.
R – A gente levantava cedo pra escola. Na minha infância, a maioria das vezes, a gente estudou de manhã, na parte da manhã a escola e à tarde voltava, em casa a gente tinha umas tarefas, eu ajudava minha mãe. Dos homens, eu sou um dos mais velhos, aí eu ajudava minha mãe a lavar vasilha, pegava minhas roupas mais sujas, eu esfregava e lavava. E depois tinha o tempo pra brincar. À tarde, saía, brincava, jogava futebol. À noite, a gente ficava na rua conversando ou brincando. Por meio das nove e meia, dez horas, mais ou menos, naquela época o meu pai já chamava a gente, meu outro tio já chamava e tal. E é até engraçado porque eu estava na rua ali e alguém assobiou na semana passada e eu fiquei procurando, procurando, procurando pra saber se era algum parente, porque tinha um assobio código, né? O meu tio assobiava, aí meus primos já sabiam que era lá na casa deles. Aí meu pai assobiava, a gente corria. Quer dizer, está chamando, pra dentro, está na hora de entrar.
P/1 – E como era o assobio?
R – O assobio é tipo (assobia). Bem assim (risos)! Aí eles assobiavam e a gente já sabia... Tem um tio ainda que vê a gente na rua de longe, ele já assobia e a gente já olha: “Ó tio, ‘bença’!” “Deus te abençoa”. Aí a gente ouviu na rua esses dias e ficou procurando, eu falei: “Deve ser um dos meus tios me chamando”, e andando. Mas é isso.
P/1 – E me fala uma coisa, você falou das brincadeiras, você jogar futebol, esconde-esconde, pega-pega. Mas tinha uma coisa de nadar no rio, tinha alguma coisa de matar passarinho, tinha alguma coisa desse gênero?
R – A gente tinha a questão de nadar no rio, mas era proibido, a gente não podia ir. Então assim, normalmente a gente ia na Sexta-feira Santa (risos).
P/1 – Por que na Sexta-feira Santa?
R – Porque na Sexta-feira Santa não apanhava! Nós íamos na Sexta-feira Santa. E tinha vez que a gente ia, não só nessa data, perto de casa tinha um campinho, existe esse espaço lá ainda, e o córrego um pouco morreu, que é esse córrego Rico aqui, que na verdade tinha mais em cima que espalha que é onde extrai a água de alguns lugares de Paracatu. E a gente ia pra lá, ficava um tempo lá nadando na parte da tarde, ficava tudo cinzento, porque a gente fica tudo meio cinzento, aí passava no campinho e jogava terra, passava terra e chegava todo sujo em casa achando que minha mãe e a mãe dos outros iam achar que a gente estava só no campinho. E aí o olho vermelho de ficar na água, do sol e tal, chegava em casa e apanhava ainda, mas a gente ia sim.
P/1 – E por que vocês não podiam nadar no rio?
R – Era perigoso, pra gente que era criança e adolescente, então minha mãe e meu pai sempre pregavam que era perigoso afogar e sempre ter outras pessoas adultas junto e tal. A não ser quando minha mãe ia com a gente pra alguns lugares na roça, de alguns tios nossos pela parte de mãe e aí era legal porque ela entrava com a gente na água, brincava e tal. E o passarinho, eu nunca fui de caçar (risos). Eu um dia na roça, a gente foi morar um tempo na roça e meu pai fez um estilingue e eu fui caçar um passarinho. Eu matei um pássaro preto, tive que enterrar o pássaro preto (risos) porque meu coração não era de caçar, eu fiquei com dó. Eu não sou de caçar, de matar assim.
P/1 – E conta um pouquinho, você falou que de manhã vocês iam pra escola e à tarde era fazer alguma tarefa em casa e depois ia brincar. Quais são suas primeiras lembranças de escola e onde era essa escola?
R – As primeiras lembranças de escola que eu tenho é no bairro Nossa Senhora de Fátima, no pré-escolar. Eu ainda lembro e vou lá, lá tem algumas coisas que estão do mesmo jeito de quando eu era pequenininho, que foi onde eu morava no bairro aqui em cima com meu pai e minha mãe. Eu lembro demais das manilhas onde escorria a água, que a gente no recreio fazia um escorrega, a gente punha as coisas pra escorregar, livros, cadernos e a gente brincava de escorregar. Eu fico olhando lá, a gente era pequenininho. De vez em quando, eu vou lá porque tem atividade de capoeira do pessoal, sempre que eu vou lá eu lembro da minha infância brincando nesse local lá. Então tenho uma lembrança muito boa da escola nessa época. E depois um pouco maiorzinho eu estudei também na escola aqui perto da Bela Vista e eu tenho lembrança de várias brincadeiras, inclusive arroz. Minha esposa estudou nessa escola, morava aqui no Centro. O Carlos que é um amigo nosso que também estudou lá e eles lembram muito de mim lá porque a gente fazia algumas brincadeiras lá, um pique-pega e desse pique-pega quando batesse o sinal, a pessoa que ficasse no pega tomava um banho de grama. Só que a grama coçava (risos), então acabava praticamente a aula pra quem ficasse no pega. E normalmente toda vez era o Carlos que ficava no pega, na hora de bater o sinal. Ele lembra demais disso e a Rose também lembra das atividades da escola, um pouquinho atentado, né? (risos).
P/1 – E me conta uma coisa, essa escola que você passou a estudar foi o primeiro grau, você fez o primário ou o primeiro grau?
R – Fiz o primeiro, aham.
P/1 – Qual era o nome dessa escola?
R – Chama Temistocles Rocha.
P/1 – E você tem uma lembrança de algum professor que te marcou nessa época? Conta um pouquinho pra gente.
R – Lá eu tenho a lembrança sim. Eu tenho lembrança da Rosália, que até hoje ela é minha amiga, a gente se vê na rua. Eu era amigo de todos lá, eu era atentado, brincava, brigava às vezes na porta da escola e tal, mas, dentro da escola, eu era amigo de todos. Uma que eu não esqueço e sempre que eu a vejo eu paro pra conversar, pra abraçar e trocar uma ideia é com a Rosália que me ensinou muitas coisas e brigava também, chamavam minha mãe lá pra puxar a orelha nossa. Na época, ela puxava a orelha dentro da sala de aula.
P/1 – E ela dava todas as matérias.
R – É, nessa época ela dava todas as matérias, isso.
P/1 – Cacau, nessa fase, eu queria que você falasse um pouco que hábitos alimentares vocês tinham, o que vocês comiam em casa? Se tinha alguma coisa especial, se tinha alguma data especial, tinha alguma comida diferente, queria que você falasse um pouco da culinária da família, de vocês, nessa fase de infância até mais ou menos uns dez, 12 anos. Conta pra gente.
R – A alimentação é arroz, feijão, ovo, carne. A culinária em datas especiais a minha mãe gostava de fazer uma maionese pra agradar meu pai, que gostava muito. Sempre que tinha alguma data, não só no Dia dos Pais ou aniversário dele, ou alguma data comemorativa de alguém, dos filhos, ela fazia um almoço no domingo, uma maionese, chamava alguém da família. A culinária que eu mais lembro quando se fala disso, o que me faz lembrar do meu pai e da minha mãe é a maionese, a gente comia. Mas é isso, fazia outras comidas também, mas o que vem à minha cabeça...
P/1 – E vocês tinham o hábito, por exemplo, hábitos religiosos, seguia alguma religião, como é que era essa coisa dentro de casa?
R – A gente tinha o hábito religioso católico. Meu pai ia menos, mas minha mãe frequentava a igreja católica, ela fazia parte de alguns movimentos, ela fazia parte da Pastoral da Criança, ela ia na igreja no São Brás, que eu sou do Dia de São Brás, dia três de fevereiro, e ela também era meio que devota de São Brás por eu ter nascido no dia e ter alguns problemas de saúde também, que ela falava: “Vou pedir pra São Brás”, então ela frequentava e a gente ia também. Eu frequentei alguns grupos de jovens, a gente frequentou a igreja católica um tempo.
P/1 – Essa igreja de São Brás ficava onde?
R – Essa igreja fica no bairro da Bela Vista, perto de casa. Tem lá ainda, às vezes eu vou lá no Dia de São Brás, na missa, ainda participo lá, faço uma visita (risos).
P/1 – E fala uma coisa, você ficou estudando nesse colégio até que ano, mais ou menos?
R – Eu fiquei até 1994.
P/1 – Fez o segundo grau também lá.
R – Não, o segundo grau eu já fiz picado, um pouco em um lugar, um pouco em outro. Porque em 1994 eu fui pra Cristalina, morar lá. Eu saí de casa quando a minha mãe faleceu e eu morei quatro anos em Cristalina, fui morar com a minha tia, fui morar com o mestre de capoeira, então fiquei meio que pra lá e pra cá. E eu fiz o Cesec [Centro Estadual de Educação Continuada] também, um projeto pra finalizar o ensino médico.
P/1 – E como foi essa primeira fase antes de ir pra Cristalina, como é que era a diversão de vocês? Você já com 12, 13 anos, com quem você saía, se você podia sair, conta um pouquinho pra gente.
R – Nessa idade, a gente não podia sair à noite, nem nada, mas nessa idade 12, 13 anos foi quando eu comecei a me envolver com o pessoal do hip hop, que naquela época também havia um preconceito mas, até falo isso direto, a maioria deles até hoje não faz consumo de álcool, de cerveja. Muita gente vê a gente como marginal porque a gente usava naquela época boné e as roupas largas e ficava invocado em negócio de dança e tal. Eu tive tios, parentes que falaram: “Ah, agora acabou, ele vai virar bandido mesmo, agora vira marginal, não sei o quê”, por causa do grupo de dança. Meu pai, um tempo, bateu de frente comigo porque ele não me queria envolvido com o pessoal, mas mesmo assim eu estava andando com eles ainda. Nessa fase de adolescente, a gente passava a tarde inteira treinando dança, treinando mesmo. A gente ia pra praia pra treinar os movimentos de aéreos, aí a gente procurava o chão liso, ia pra rodoviária que tem um chão liso lá pra ficar treinando os movimentos de chão porque a gente não tinha um espaço bacana em casa, o grupo, e viajamos para alguns lugares. Até hoje, a gente ficou conhecido por causa da dança mas, na época, era um pouquinho assim, às vezes, até tinha que mentir pro meu pai que eu estava fazendo outra coisa ou em outro lugar pra estar com o pessoal do grupo da dança.
P/1 – E a música era o hip hop.
R – Isso.
P/1 – Você lembra de alguma música que você cantava de hip hop na época ou não?
R – Ah, tinha um rap, na verdade, o rap não dá pra dançar, e tem as músicas de dançar. Uma das músicas que a gente gostava muito na época era Fim de Semana no Parque, de Mano Brown, de Racionais (canta): “Chegou o fim de semana, todos querem diversão, só alegria nós estamos no verão, mês de janeiro” (risos). E tinha Steve Bean, na época Furacão 2000, né? Não sei inglês não (risos). Mas era ótimo, até hoje escuto, a gente tem essa trilha sonora, eu tenho em casa, escuto às vezes no carro, trilha sonora da minha vida.
P/1 – Quem era o grupo? Quem formava esse grupo?
R – A gente tinha Marquinho, que era um dos mais velhos, que parece um pouco comigo mas bem maior. Hoje, eu vejo ele também, e ele era uma das nossas lideranças, era o cabeça, que montava as coreografias, que aprendia mais rápido que os outros. Ele tinha a facilidade de aprender o Moinho de Vento, que era um dos movimentos do hip hop mais bonitos de se ver naquela época. Aí tinha Ronildo que hoje é funkeiro, faz capoeira também, que fazia pião de cabeça, ele ficava de dez, 15 minutos rodando só com a cabeça... Hoje mudou muito, a gente mais antigo, o break era mais ou menos isso, você fazer em quantidade maior. Hoje trocou, quantidade pouca, mas um já fazendo o outro, fazendo o outro, fazendo o outro, então, mudou um pouco. Aí tinha o Márcio, que participava com a gente também e o Paraguaçu. A gente era cinco pessoas que dançava, imitava as coreografias de Michael Jackson, imitava as coreografias de Latino e a gente ia fazendo as apresentações aí, participava de campeonato.
P/1 – E pra onde vocês foram? Você falou que vocês viajaram bastante.
R – Aqui na cidade tinha uns lugares na época, Pandeiro de Prata, que fazia os campeonatos e a gente participava. Tinha a Tô Que Tô que na época também era muito bom, um espaço legal, uma danceteria legal que fazia campeonato e a gente sempre estava lá sábados e domingos. Nós viajamos pra Festa da Lapa em Vazante pra apresentar, pra dançar; fomos pra Brasilândia nessa época também. É isso aí, que eu lembro de cidade Brasilândia, Vazante, aqui perto.
P/1 – E como era o nome do grupo?
R – Backstreet Boys (risos).
P/1 – Que ótimo!
R – Backstreet Boys (risos). Garotos da dança de rua, alguma coisa assim, né? A gente tinha a camisa, conseguimos fazer a camisa. E é isso aí, Backstreet Boys.
P/1 – Isso você estava com mais ou menos 12, 13, 14 anos.
R – Isso, chega nessa fase aí de 13 anos, 14 anos.
P/1 – E você tinha quantos irmãos, Cacau?
R – De homem, sou eu e mais um irmão mais novo, Vilson. A minha mãe já tinha a Lúcia, que é uma irmã minha que eu gosto de apresentar ela quando ela está junto porque muita gente estranha porque ela é branca, bem branca mesmo, loira, tal, que a Lúcia é mais velha do que eu porque é só da minha mãe. Do meu pai, já tinha duas irmãs, a Leia e a Keli. E eles se separaram, tal, e quando eles começaram o relacionamento eu nasci. Então do meu pai e da minha mãe sou eu, Darley, abaixo de mim a Darlene, que é uma irmã um ano mais nova do que eu, depois o Vilson e a Valéria. Depois que minha mãe faleceu o meu pai teve um outro casamento e a gente tem mais uma irmã que chama Sara, mais nova do que a gente. Então somos sete, oito (risos). É oito, né?
P/1 – E me diz uma coisa, sua mãe veio a falecer do quê, Cacau?
R – A minha mãe teve alguns problemas. Diagnosticaram, na época, o que eu tenho de entendimento, que eram seis tipos, ela teve problema de rins, de pulmão, ela era hipertensa. Na juventude dela, ela fumou e fumava ainda o cigarro, até eu não gosto muito de cigarro, não. Ela era fumante, minha mãe veio a falecer com 38 anos, nova, jovem; bonita minha mãe era. Ela teve alguns dias doentes aqui em Paracatu e eles mandaram ela pra Brasília. Ela ficou 28 dias em Brasília internada e não resistiu a todo o tratamento e todo o processo que eles fizeram pra melhorar ela. Até hoje o que a gente diz é isso. No laudo dela foi isso, uns seis tipos de incômodo, problema de coração, problema de rins, de fígado.
P/1 – E você tinha quantos anos nessa época?
R – Eu tinha 14 anos.
P/1 – E o que aconteceu nesse momento que você perdeu a mãe, como vocês se rearranjaram? Conta um pouquinho pra gente.
R – Quando a gente perdeu a minha mãe, a gente já estava num processo de quase 30 dias sem a mãe e sem o pai porque meu pai estava lá em Brasília e a gente estava um pouco [dividido] que dois irmãos em uma casa, outros em outra, em outra e outra. Pra gente foi muito, foi difícil. Só que meu pai foi muito homem, muito firme, muito forte. Porque meus tios já estavam todos eles, já tinham feito um plano de como seria a nossa vida, então um dos meus tios falou: “Eu vou ficar com Darley”, aí o outro: “Eu vou ficar com Darlene”, outro: “Eu vou cuidar de Valéria”, não sei o quê. Quando acabou todo o processo do velório, do enterro, os meus tios já estavam todos decididos. Como eles fizeram um pouco com as fotos lá em casa, né? Eles mexeram e dividiram, eles acharam que iriam fazer com os filhos da mesma forma. Meu pai falou: “Não, meus filhos, eu vou criá-los ainda, eu vou manter eles ainda”. Com meu pai e minha mãe, eu era o mais velho e a minha irmã que tinha 13 anos na época também... Meu pai saía pra trabalhar, então quem cuidava era eu e essa minha irmã dos meus dois irmãos mais novos que eram o Vilson e a Valéria. E o meu pai, pra mim, é um grande herói. Foi um momento de tristeza, eu fiquei um tempo meio... Adolescente de 14 anos, um pouco fora de mim porque...
P/1 – Você quer parar um pouquinho?
R – Não, pode ir de boa. A minha mãe era muito carinhosa com a gente, punha no colo, cuidava, brincava (emocionado). Esses dois dias estou meio emotivo, saudades.
P/1 – É natural.
R – Esses dias estou meio assim. Eu acho que seria um pouco melhor se a minha mãe tivesse ficado um pouquinho mais com a gente, sabe? Eu falo sempre pros meus alunos, com a galera toda, eu falava: “Tem sua mãe, valoriza porque a gente...”. E, meu pai se manteve firme na educação da gente, assim, ele tentou fazer o máximo dele pra que a gente fosse pessoas do bem e brigou pra gente se manter na escola, tal. E nessa fase da adolescência e da perda da minha mãe, tal, eu saí de casa. Mas eu saí pra ir atrás da capoeira, que até hoje faz parte da minha vida. E depois ele entendeu que seria isso, né? O meu pai fazia alguns planos: “Não, que você vai trabalhar disso, vai trabalhar daquilo”, queria que eu fosse mecânico de carro, porque naquela época a maioria dos pais queria porque carro era o auge. Eu trabalhei uns 20 dias lá e não quis, não (risos). Ele ficou um pouco bravo, ainda levei um biloquê, na época a gente tinha um biloquê: “Faz isso” “Aham” “Tem que mandar esse menino embora, não quer não, desinteressado, não aprende. Põe ele pra fazer as coisas e tá aí batendo esse biloquê o tempo todo”. Mas é que eu não queria. Eu conheci um mestre de capoeira, o pessoal falou, os amigos da capoeira falaram: “Lá em Cristalina, a academia tem um espaço ótimo, dá pra morar e tal”. Eu até magoei muito meu pai porque eu com 14 anos fui morar em outra cidade, fiquei quatro anos lá treinando capoeira, participando. Voltei de novo, voltei já pra cidade. Quando eu voltei eu fui morar com meu pai, mas ele já estava casado e não estava dando certo. Não daria certo também, você volta com 20 anos pra casa e não daria certo também. Mas acho que é isso, não sei.
P/1 – Então vamos voltar um pouquinho. Nesse momento de perda da sua mãe, você falou que seu pai foi muito firme em fazer com que os filhos fossem criados e estivessem juntos. O seu pai trabalhava com o quê nessa época? E você falou que os mais novos ficavam sob a sua responsabilidade. O que era essa responsabilidade?
R – A responsabilidade de fazer comida, a responsabilidade de ter que tomar banho, mandar eles pra escola. De olhar na rua porque às vezes saía pra brincar, era o costume de brincar. Meu pai trabalhava, como ele trabalhava nesse serviço de carga de carvão, o caminhão pegava ele de madrugada e trazia à tarde pra casa, então ele saía de madrugada, ia lá, enchia o caminhão, fazia a carga – você já deve ter visto aquelas cargas com saco de carvão que vai empilhando direitinho, o meu pai fazia as pilhas lá em cima. O pessoal falava que ele era um dos melhores, que ele ia empilhando direitinho e a carga dele nunca tombava. Então ele era muito requisitado, trabalhava, às vezes, ele ia pra lá e ficava um tempo maior pra encher dois caminhões e tal e ele voltava. Tem uma época de chuva, tem uma época de frio que eles não fazem essas viagens porque é perigoso, então nessa época meu pai tinha que trabalhar na roça e às vezes ele ia pra Boia Quente. Então teve uma fase antes de eu ir embora que meu pai ia pra Boia Quente e a gente ficava em casa 15 dias sem o pai e sem a mãe. Eu era o mais velho, tinha que pôr pra dormir, tive que fazer a comida – eu e a minha irmã de 13 anos – a gente que fazia o almoço. Aí até virou bagunça porque a minha mãe fazia tudo organizado, às vezes a gente até fazia uma bagunça: “Vamos fazer só macarrão” “Ah não, só tem arroz, vamos fazer arroz” “Como arroz mesmo”. A gente comia, tal, bagunçou um pouquinho a nossa vida.
P/1 – E a sua irmã mais velha, que era filha só da sua mãe, né? Ela não morava com vocês?
R – Não, ela não morava. Na adolescência dela, ela passou a morar na casa de uma tia. Ela começou a trabalhar, ela trabalhava, recebia o salário dela, mas na casa de uma tia nossa. Ela já morava lá. A gente tinha o convívio com ela de final de semana. Então, final de semana ela ia lá pra casa e ficava lá com a minha mãe, com a gente, ficava lá.
P/1 – E quando a sua mãe morreu ela continuou com esse hábito ou não, vocês se afastaram um pouco?
R – Não, ela estava morando perto da gente porque nessa fase da minha mãe morrer foi a fase que ela casou e foi morar pra perto da gente. Ela morou bem vizinha, do lado. Cuidava, ajudava no que precisava, ela também estava ali. Ontem eu estava lá.
P/1 – Como você conheceu esse mestre de capoeira? Conta pra gente como foi isso.
R – A gente saiu de Cristalina pra abrir uma escola aqui em Paracatu. Aí ele veio de lá porque tinha uma capoeira aqui, mas não era capoeira, assim, a gente pode falar um pouco mais evoluída a dele, ele veio de uma escola de Brasília que estava estudando e mudando a capoeira. E eu vi essa capoeira. Dançava hip hop, eu tinha visto algumas capoeiras aqui, mas eu não tinha visto a capoeira de lá, depois até descobri. Que naquela época estava começando um processo de misturar o hip hop e a capoeira, ele era dançarino, então ele chegou aqui ídolo de todo mundo de Paracatu, que ele fazia os movimentos, os saltos, os negócios e tal e todo mundo ficou assim: “Gente, que cara é esse? Fenômeno na capoeira”. E ele abriu uma academia aqui, mas a academia não tinha alunos pra mantê-lo aqui. E ele foi embora e deixou mais dois alunos aqui de Cristalina cuidando, que um deles é meu amigo pessoal até hoje. E ele falou assim: “Vamos passear lá em Cristalina” e eu fui. Eu fiquei um tempo lá, um mês mais ou menos, com meu pai contrariado e aí voltei pra pegar algumas coisas: “Pai, eu preciso voltar, eu vou morar lá, o mestre deixou eu morar na academia” “Não vai”, chorou no dia e tal, eu falei, vou, não vou. Meu coração pediu pra ir, foi bom também.
P/1 – Conta pra gente esses quatro anos que você passou lá em Cristalina, como era o seu cotidiano, como era treinar? Como era morar na academia, conta pra gente.
R – Eu morava na academia e tinha a responsabilidade de limpar a academia, de fazer a comida, participar de alguns treinos. Aí eu ia pra academia de musculação junto com o mestre, eu o acompanhava no dia a dia dele. Ele ia dar aula pra criança e eu estava lá ajudando, as aulas dos adultos também eu participava e treinava. Eu lembro da gente indo pra musculação e tal e ele falou: “Ó, daqui mais um tempinho você já pode fazer também”. Porque eu tinha 14 anos, não era coisa, mas ele treinava lá. E eu tinha que fazer isso, cuidar da academia. Ele viajava no final de semana e eu que ficava pra abrir, pra fechar. Às vezes ele ficava uma semana fora que a família dele não morava lá, ele ficava uma semana e eu que abria a academia pros mais velhos darem aula. Eu fiquei lá e já comecei a assumir responsabilidade. Na época eu usava roupa frouxa, calça xadrez, boné, tal. Eu furei a orelha, na época era moda furar a orelha, um monte de brinco e tal. Aí ele: “Olha, vamos tomar cuidado, você pode até fazer tatuagem, você pode ter o brinco, você pode ter tudo, mas primeiro você tem que ser visto na sociedade. Se você não é ninguém na cidade as pessoas vão te ver de outra forma, então você precisa centrar. O que você é? Você é um dançarino de hip hop, você é coisa”, a calça era baixa, que era a moda da época. Aí eu aprendi muita coisa com o mestre, que é um amigo meu até hoje. Eu não participo da escola dele, mas eu falo com ele às vezes. Hoje ele mora em Uberlândia (MG) e me ajudou bem.
P/1 – Como é o nome dele?
R – O apelido dele é Bill, Antônio Carlos o nome dele, mas todo mundo chama ele de Bill, Bill da Capoeira.
P/1 – Você ficou quatro anos lá, quando você retomou os estudos também, né? Foi isso o que aconteceu, você parou de estudar de vez?
R – Lá eu estava parado, eu fiquei parado lá.
P/1 – Só ficou treinando.
R – Lá eu fiquei só mexendo com capoeira. Aí ele falou para eu trabalhar: “Vamos trabalhar”. E eu fui correr atrás de trabalhar. “Vamos trabalhar, você tem que ter um serviço”. Trabalhava, namorava muito (risos), uma fase muito... participava das...
P/1 – O que te levou pra capoeira?
R – Ah... eu acho que eu posso falar que é toda magia que envolve a capoeira. Quando eu cheguei um dia, foi até aqui, eu vi a capoeira e vi a energia que estava rolando na capoeira. O pessoal batendo palma, a música, aquilo me tocou de uma certa forma que eu falei: “Eu quero ser capoeirista”, eu era dançarino, né? “Eu quero estar na capoeira, quero fazer isso”. Então assim, quando eu cheguei mais perto eu fui entender que ali também o pessoal começou a viajar o mundo. A capoeira levava, já naquela época, vários mestres pra vários lugares do Brasil. Eu posso contar hoje, eu tenho vários primos e parentes aqui que nunca saíram de Paracatu, nunca foram em Brasília, nunca foram em Cristalina. Tenho tios que falam assim: “Você é corajoso demais, esse negócio de você ir pra São Paulo, não sei o quê”. Então assim, é uma das coisas que eu tenho muita vontade, é de sair. Eu gosto muito de viajar, eu acho que essa coisa toda, a história toda da capoeira e de vencer fazendo uma coisa que nos traz felicidade, acho que seria isso, eu estou na capoeira hoje pra fazer uma coisa que eu gosto, eu trabalho com capoeira. Então chego no meu trabalho, eu falei esses dias aqui, né? Eu falei: “Gente, não é qualquer um que tem um escritório igual a esse meu aqui. Não é qualquer um que trabalha descalço, com a mão no chão, brincando com criança, tocando berimbau, cantando música”. Eu acho que é toda essa energia e essa magia da capoeira que me fez chegar mais perto, que me fez encantar assim por ela. Acho que é isso.
P/1 – Então vamos voltar lá. Você ficou quatro anos em Cristalina, por que você resolveu voltar pra Paracatu? Conta um pouquinho desse seu retorno.
R – Ah, eu voltei por voltar pra minha cidade natal, pelos meus irmãos que estavam aqui, pelo meu próprio pai que estava aqui também. Então assim, eu resolvi voltar pra isso. Eu estava pra dar aula de capoeira aqui porque eu já tinha treinado lá, então voltei com toda essa intenção, tinha quatro anos, 1999, voltei cinco anos de capoeira e eu cheguei aqui com toda a ânsia e toda a vontade de ensinar o que eu tinha aprendido lá, então voltei justamente pra isso. E aconteceu (risos). Nessa época eu cheguei e assinei minha carteira como monitor de capoeira (risos).
P/1 – E você voltou pra casa do seu pai. E você foi trabalhar onde, que você falou que já assinou sua carteira.
R – Isso. Eu cheguei e de primeiro momento eu não tinha feito esses contatos ainda de trabalhar nos locais, eu não tinha esse, mas eu voltei capoeirista e fui trabalhar um dia com meu tio, um dia não, um tempo com meu tio, de servente de pedreiro. Eu trabalhando com ele ia nos lugares pra dar aula de capoeira. Eu trabalhava com ele, ia nos lugares, até fui numa academia aqui que era muito famosa, na época eles estavam anunciando que precisavam de capoeirista, tal. E aí eu cheguei lá, a dona da academia era dona do local onde eu trabalhava de servente e eu não sabia, ela era esposa do dono onde estava sendo construído o edifício que eu trabalhava. E ela: “Tal, você é capoeirista” “Sou”, eu contei pra ela a história. “Legal, mas você não trabalha lá no prédio?” “Trabalho”. Ela: “Então tá, beleza”. Eu voltei magoado um pouco, assim, que eu tinha saído da entrevista e contei pro meu tio, né? Aí meu tio falou assim: “Você vai ter que definir, ou você vai ser capoeirista, ou você vai ser servente de pedreiro, ou pedreiro e tal. Porque se você for as duas”, eu nunca esqueço disso, “as pessoas não vão entender que você pode ser as duas coisas ou vai ser as duas coisas”. Depois disso eu falei: “É, verdade”. Eu fiquei mais um tempo com ele e comecei a ir nas instituições, fui contratado pra trabalhar na Fundação Conscienciarte pra trabalhar com capoeira lá (risos). Foi na Conscienciarte um dia, abriram uma entrevista pra três monitores de capoeira, na época eles precisavam de três, foram várias pessoas, selecionaram os três, nós três fomos contratados nessa época. Depois teve que tirar alguns e eu me mantive ainda mais um tempo. E tinha uma formação muito boa dentro da fundação.
P/1 – E quem te contratou, quem te entrevistou na época?
R – Na época era Lucivaldo, que ele chama, era um superintendente, ele veio de fora, ele veio do Nordeste pra cá pra ser diretor executivo da Fundação Conscienciarte e ele fez essa entrevista, o que eu já tinha feito com capoeira, como eu ia tratar os adolescentes, os jovens e as crianças. A formação dele é muito boa. E aí deu certo.
P/1 – E como é trabalhar com jovens? Conta um pouquinho pra gente. Naquela época o que era trabalhar com jovens e que jovens eram esses?
R – A gente trabalhou nos projetos, naquela época estava surgindo o Projeto Segundo Tempo do Governo Federal, que era um projeto onde o aluno participava em um primeiro momento na escola e no segundo horário ele ia para o local fazer futebol, dança, capoeira, aula de reforço. A gente trabalhava com o pessoal que a gente fala carente. O carro passava na época, era um trenzinho, que é um ônibus que parece um trenzinho, ele passava em todos os bairros pegando as crianças inscritas e levavam pro espaço que antes era o Clube Lagoa Azul e hoje é um espaço da fundação lá. E a gente começou a trabalhar com essas crianças lá. Eu trabalhava com a capoeira e com a dança de rua, que é uma parte do hip hop. Ensinava as minhas coreografias.
P/1 – E como foi essa coisa do ritmo da dança com a capoeira pra você? Porque você trouxe até, que até o seu mestre era isso, uma fase da capoeira que alguns mestres começaram a juntar a dança com a capoeira, né? Como é que foi isso pra você e que tipo de ritmos você usou pra poder fazer essa mistura?
R – Na verdade, dentro da capoeira a gente acaba fazendo algumas coisas que surgiram no hip hop e o hip hop hoje está usando quase tudo que é da capoeira, o ritmo da dança, as coreografias, os movimentos acrobáticos e tal, as performances que usava só na capoeira hoje o pessoal do hip hop está usando. E o hip hop, a capoeira veio também pegando algumas coisas do hip hop. Na capoeira houve uma fase muito de luta, naquela época que eu entrei era uma fase muito luta, então até se misturava algumas outras lutas com a capoeira, então a pessoa vinha pra assistir a capoeira, na maioria das vezes via uma capoeira um pouco mais agressiva, com agarrão, com alguns chutes, umas coisas um pouco mais pesadas. E depois começou a surgir mesmo os movimentos até que o pessoal do hip hop também fazia e do próprio circo. Pra mim, foi legal porque eu consegui mesclar várias vezes nas coreografias e nas aulas a capoeira e a gente pôs o nome, se deu o nome de Capobreak, que é o break, a dança de rua, junto com a capoeira, fizemos apresentações e tal.
P/1 – E quando você aprendeu a capoeira, você teve uma iniciação também não só prática, mas também teórica a respeito da capoeira, da origem da capoeira? Ele também ensinava isso, você também ensinou isso pros seus alunos?
R – Sim. Os mestres, todos eles fazem isso, no dia a dia, as aulas são práticas mas também entra a parte teórica. E aí a gente também, vai do interesse de cada um, quando você está ali você quer pesquisar mais, surgiu algumas revistas, surgiu livros, eu li pouco, não muito (risos), mas eu aprendi muito com o mestre, até hoje a gente aprende muito com os mestres contando as histórias e explanando isso. E da mesma forma eu faço, eu sento com meus alunos, eu conto as histórias, eu faço pequenas apostilas e distribuo pra eles também, contando a história de como surgiu a capoeira no Brasil, de algumas pessoas que são ícones na capoeira, o mestre Bimba, o mestre Pastinha, que são dois baianos. O Bentinho que é um descendente de escravo que deu origem à capoeira pra esses dois mestres também. Então a gente vai aprendendo e no dia a dia tem muita, a capoeira é muito infinita, todo dia chega uma historinha. E é interessante porque às vezes choca com uma, choca com a outra, né?
P/1 – E como foi essa aproximação sua da capoeira com a própria cultura negra? Conta um pouquinho pra gente como isso de alguma forma você conseguiu juntar? Como você fez essa junção?
R – Na parte da cultura negra foi na minha fase do hip hop, eu já estava envolvido. Porque nessas viagens que a gente fez pra Vazante, para alguns lugares, foi no movimento negro. E a gente dançava, não jogava capoeira, que é até uma das fotos ali. O pessoal: “Ah, vocês dançam, tal. Vem cá pra vocês conhecerem o movimento negro, nós vamos viajar, vamos fazer algumas coisas”. Aqui tem a casa do Colégio Dom Eliseu, lá tem a casa das freiras e o movimento acontecia lá, elas participavam dos movimentos, o pessoal que era da comunidade negra participava desse movimento e lá falava sobre Zumbi, a questão da história dos escravos. E aí tinha as missas, que nem em Paracatu tinha a missa agora até não acontece tanto, a Missa Afro, que mudava todo o cotidiano da igreja, enfeitava a igreja como se fosse um lugar africano, aí na entrada a veste do padre era outra. Então assim, as entradas da igreja em vez de ser com os hinos e cantos normais era com toque de berimbau, com tambores, pandeiros, tal. E nessa época eu só via a capoeira, a gente participava do grupo de dança. Então, vai ter uma viagem lá e nós vamos precisar de uma noite cultural, aí chamava a gente pra ir e a gente começou a participar e se envolver. E eu fui juntando um pouquinho disso tudo aí (risos) e fui me informando.
P/1 – Você falou que essa Missa Negra já não acontece mais ou ainda tem?
R – Em Paracatu ela não acontece mais. Ela nasceu aqui em Paracatu, quando eu cheguei já acontecia antes, Rose já participava, minha esposa Rose já participava, outras pessoas, eu já cheguei numa fase assim já acho que a quarta ou quinta Missa Afro. E aí ela foi fazendo parte dos movimentos, foi criando força, criando força e depois o movimento se acabou. O movimento negro de Paracatu se acabou e deixou de acontecer. A missa era no dia 20 de novembro e essa missa deixou de acontecer. A última que eu lembro que aconteceu em Paracatu foi em 2004... 2005, certeza.
P/1 – E ela acontecia no dia 20 de novembro por causa da data...
R – Pela data do dia da morte de Zumbi, dia 20 de novembro.
P/1 – E acontecia em que igreja?
R – Aqui ela aconteceu na Igreja do Rosário, aqui em cima, na Igreja da Matriz e também já aconteceu na igreja aqui de Santana. Aí às vezes um ano era em um lugar, outro ano era em outro lugar e tal. Nós conseguimos fazer na Matriz pra quebrar aquele estigma, né? Porque aqui a Igreja Matriz era a igreja dos brancos e a Igreja do Rosário foi criada pra entrada dos negros, os negros podem ir lá e rezar lá, que em uma época os negros não entravam na igreja da matriz. E foi feita as missas lá alguns anos justamente pra quebrar essa história que aconteceu.
P/1 – E me fala uma coisa, Cacau. Quando você chega, você começa a trabalhar na Conscienciarte. Conta um pouquinho como se deu a sua evolução profissional, porque hoje a gente sabe que você dá aula, mas eu queria que você contasse um pouquinho como é que você se aprofundou nessa sua profissão, nessa sua arte, conta um pouquinho pra gente.
R – Quando eu cheguei na Fundação, eles fizeram esse processo de entrevista e tal, mas antes de começar eles traziam pessoas de fora pra dar curso pra gente. Então traziam formadores, eu tenho os diplomas ainda, formadores, como eu posso dizer? Ele era um educador social, que dava um curso de educação social pra gente. Como você vai tratar da criança, como você vai falar com ela, até onde que você pode se aproximar, até onde você não pode se aproximar, de como agir sem o pai ou com o pai. Então nós fomos fazendo vários cursos. A Fundação Conscienciarte nessa época trouxe vários educadores pra trabalhar com a gente e eu fiz parte de todos esses cursos e tomei interesse de participar, às vezes não só dos cursos que eram direcionados a mim, mas os que não eram também pra ir aprimorando e melhorando. E até hoje tem muita coisa que a gente faz e trabalha com adolescente que foi dessa fase aí de 1999, 2000, por aí.
P/1 – E você ficou trabalhando na Conscienciarte até quando?
R – Eu trabalhei na Conscienciarte acho que uns cinco anos, 1999... é, mais ou menos isso, até 2004, por aí, uns quatro ou cinco anos.
P/1 – E você foi fazer o quê daí?
R – Depois disso? A gente estava na última Missa Afro aqui, Largo de Santana, e aí um padre que é muito amigo nosso, de muitos anos, padre Preguinho, ele chamou a gente pra ir em uma missa em Unaí. Falou assim: “Vai ter uma missa em Unaí” “Mesmo?” “É, daqui a pouco tem uma missa lá em Unaí, vamos com a gente”, convidou eu e a Rose pra ir. A gente já estava numa fase desempregado, já tinha saído da Conscienciarte, trabalhado também na prefeitura e a gente estava desempregado e fomos pra Unaí pra participar da missa, assistir. Estava a cidade inteira na missa e o padre Preguinho foi e chamou a gente na frente: “Chama a Rose aqui e o Cacau” “Ó gente, a Rose e o Cacau, de Paracatu, os dois trabalham com cultura africana, com capoeira, com dança e tal”, a hora que a gente acabou lá o prefeito e a assistente social falaram assim: “Eu queria que vocês mandassem um projeto pra vocês trazerem as atividades de vocês pra cá, pra darem um curso aqui de um mês, tal”. Nós fizemos a proposta e eles convidaram a gente pra ir pra lá. Nós ficamos um mês trabalhando lá com Dança Afro-brasileira, Puxado de Rede, Maculelê, a Dança Guerreira, foi legal, Dança do Fogo. E depois desse processo de um mês, eles convidaram a gente pra morar em Unaí, falou: “A gente não quer que vocês vão embora”. E eles ajudaram a gente com a questão da casa, eu fui contratado pela prefeitura, a Rose também e nós começamos a morar em Unaí. Foi nessa virada de 2005 pra 2006 nós fomos pra lá e ficamos até 2012, 2013 quer dizer.
P/1 – Em 2013 vocês voltaram pra cá?
R – Voltamos pra cá.
P/1 – Vamos voltar um pouquinho aí nessa história, que está muito legal.
R – Vai dar pra pôr pelo menos uns 30 minutos.
P/1 – Dá sim. Eu queria que você falasse um pouco quais foram as dificuldades que você encontrou quando você estava trabalhando na Conscienciarte, de cuidar desse jovem carente. Quais foram os principais desafios que você encontrou lá nesse seu trabalho, Cacau?
R – Não sei. Como a capoeira é bem atraente, a dança também, eu não tinha muita dificuldade, acho que o que tinha era lidar com a agressividade que, às vezes, eles traziam de casa. E às vezes eles queriam brigar uns com os outros por causa de coisa à toa e tal, e a gente conversando no dia a dia com eles a gente foi descobrir que eles passavam por momentos violentos em casa e acabava, como eu posso falar?
P/1 – Refletindo.
R – Isso, acabava refletindo neles. Então a maior dificuldade que tinha às vezes era justamente isso, nesse processo do trabalho. Por exemplo, eles tinham uma dificuldade com higiene pessoal, então a gente trabalhava isso na capoeira: “Gente, todo mundo tem que lavar a mão e tal”. Eu sempre falava: “Quem é da capoeira tem que estar com o pezinho limpo, com a mãozinha limpa, a roupinha da capoeira tem que estar branquinha, não pode sentar de qualquer jeito. Tem que escovar o dentinho”. A gente sempre trabalhou isso, mas essa questão da violência, às vezes que eles traziam dos bairros ou da própria casa é que pegou às vezes no trabalho na época, mas nada que a gente não conseguisse se sobressair.
P/1 – Como foi? Eu vi algumas ações que você participou de campeonato, tal. Você entrou no mundo da educação da capoeira, mas você também era um atleta da capoeira, se pode se chamar assim. Como é que foi esse seu envolvimento com campeonatos, conta um pouquinho pra gente.
R – (pausa) E aí as dificuldades que a gente sentia no dia a dia com eles e tal, tinha psicólogo também. Depois nós começamos a entender que o psicólogo nem era tanto pra eles, a gente que tinha que passar pelo psicólogo pra conseguir trabalhar essa parte com eles. Mas acho que a capoeira ajuda muito a gente no trabalho, em lidar com o chefe, lidar com o adolescente, ser um pouco direto porque a gente acaba sendo pai dos alunos, né? Eu falava pros meus alunos: “Eu sou pai de todos vocês”. Tem aluno mais velho do que eu, mas eu estou ali no papel de mestre e a gente acaba tendo papel, recebendo eles como pai mesmo, eles como filhos. E a gente briga mesmo porque está se envolvendo ou porque não está vindo no treino porque está deixando de fazer outra coisa. Eu fico feliz quando eles deixam a capoeira pra estudar ou pra fazer um trabalho, pra fazer um curso em outra atividade, que vai somar. Eu tenho vários alunos desse início e que às vezes a gente chega no lugar e fala assim: “Lembra de mim?”, às vezes, a gente chama por nome ou por apelido ou não lembra o nome, mas lembra. “Tá vendo? Eu estou trabalhando aqui hoje. Se não fosse o projeto da capoeira, lá da Fundação...”, fala às vezes da Fundação também, “Se não fosse [o projeto/ a Fundação], eu não estaria aqui, acho seria outra pessoa”. Teve outros que não tiveram esse seguimento, que vieram a falecer, que eram alunos queridos da gente, mas que não quiseram ouvir e fazer parte, se envolveu com drogas. A gente tem uma família que é triste, recentemente morreu mais um deles, foi o terceiro irmão, que era uma família de índios. Eles todos faziam capoeira, depois abandonaram a capoeira, foram se envolvendo e a gente até via eles na rua se envolvendo e mataram em Brasília, depois mataram dois aqui, tem só um deles, quatro irmãos, os quatro faziam capoeira, tenho fotos dele em casa, a gente tem arquivos deles na capoeira e eles não fazem mais nem parte da vida nossa.
P/1 – Cacau, eu vou retomar um pouco aquela história dos campeonatos.
R – É, verdade!
P/1 – Não tem problema, foi ótimo. Como é que você se envolveu nos campeonatos e onde foram esses campeonatos?
R – Algumas escolas de capoeira promovem um campeonato pra incentivar também a prática esportiva da capoeira, que na verdade a gente tem várias pessoas na capoeira, mestre, instrutores de capoeira, que fazem parte de outra forma. A gente conhece um que é muito famoso, ele canta muito bem, compõe muito bem músicas e é um grande instrumentista, porém ele teve um acidente de carro e ele não pode mais fazer atividade física da capoeira, ele não ginga, ele só toca e canta e é um dos fenômenos pra todos os capoeiristas, que é do Rio de Janeiro, o Boa Voz. E tem gente que entra na capoeira e mesmo sem treinar acaba ficando só mais no instrumento, no canto, tal e pra incentivar e movimentar a escola e o grupo foi-se criando os campeonatos de capoeira. Na verdade, criou o JEC também, os Jogos Escolares de Capoeira, de muitos anos atrás que era no Rio de Janeiro, tinha a seletiva em Goiás, em Brasília, eu não cheguei a pegar essa fase, quando eu cheguei na capoeira já estava acabando já. Aí eu participei em Brasília de alguns campeonatos, eu fiquei em primeiro lugar no primeiro ano, 2003. Em 2004, eu fiquei em terceiro lugar, em 2005 eu fiquei em primeiro lugar novamente e depois disso eu não participei mais de campeonato.
P/1 – Você chegou a viajar muito com a capoeira? Como é que eram esses processos de viagem com a capoeira, conta um pouquinho pra gente.
R – A gente fala que no início é um investimento, né? Quando você é aluno de capoeira você viaja por conta própria, aí eu viajei muito, muito, muito. Deixei de pagar aluguel lá em casa (risos). Uma fase também já maior (pausa). E aí a gente fala que acontece meio que um investimento, sabe? Você tem que começar a participar dos encontros pra ser conhecido, pras pessoas te conhecerem e te verem, e você acaba tendo de investir nas viagens, no dia a dia, pras pessoas verem como você toca o berimbau, as músicas que você canta ou você faz, o procedimento que você tem dentro da roda. E aí passa uma fase, que você começa a ser convidado. E quando você é convidado, aí fica tudo a cargo da pessoa. Eu comecei a ser convidado, fui convidado um dia pra viajar pra Brasília em um evento que eu não ia, depois fui convidado pra ir pra Goiânia (GO), depois fui convidado pra viajar. Minha primeira viagem foi pra Curitiba (PR), uma cidade que na época eu não tinha noção de como era, tinha o Paraná, a gente não ouvia tanto. E a minha primeira viagem de avião, que eu falei assim... “Vamos pra Curitiba, tal” “Vamos”. Na hora: “Vou tirar sua passagem, não sei o quê, dá seus documentos”, tirar minha passagem de avião (risos). Pra mim foi muito bom, curti pra caramba a viagem, a cidade, eu fui pra lá pra ficar três dias, aí pedi pra ficar mais uns três dias lá e depois disso eu até fui morar lá. Mas eu fui convidado pra ministrar uma palestra em Manaus, lá no Amazonas. Fui pra Manaus, já fui pro Rio de Janeiro várias vezes. São Paulo várias vezes também. São Paulo eu posso dizer que eu consigo ir em alguns lugares lá que a gente já foi de carro também. Vou no aeroporto, Campinas, esses lugares, tal. Brasília, Goiânia, Mato Grosso e outros lugares, eu conheço vários estados.
P/1 – Eu queria que você falasse um pouquinho, você contou pra gente quando você saiu, você acabou saindo pra cidade, na última missa, mais ou menos em 2004.
R – É, acho que 2005 era.
P/1 – Nessa época você já conhecia a sua atual esposa ou não? E como é que vocês se conheceram?
R – Nessa época, eu já conhecia ela. Eu conheci ela em 1999, ela era funcionária da Fundação Conscienciarte, ela dava aula de teatro lá e a gente virou amigo, amigo mesmo do dia a dia. Eu dava aula de capoeira, ela dava aula de teatro, a gente misturava capoeira e o teatro, fazia as coisas juntos e a gente trabalhava no mesmo local, então às vezes a gente almoçava junto. À noite, não só eu e ela, mas o grupo de teatro e o pessoal da capoeira. E aí eu fiz uma amizade com ela, uma amizade, uma amizade. E um dia a gente fez uma brincadeira de beija não beija, beija não beija, a gente se deu um beijo e está aí, tem tempo já (risos).
P/1 – Aí foi onde ficou.
R – É, ficou.
P/1 – Isso foi mais ou menos em que ano?
R – Isso em 2000. Se eu falar que não foi ela me pega, 2000.
P/1 – Aí vocês já foram morar juntos.
R – Não. A gente ficou um tempo só namorando, perto de um ano a gente só namorava mesmo, tal, depois a gente foi morar junto.
P/1 – Vocês saíram da Conscienciarte, você foi pra outra cidade a convite do padre. Vocês moraram quanto tempo lá?
R – Nós ficamos dez anos lá.
P/1 – E o que era diferente de Paracatu, conta um pouquinho como foi a vida lá.
R – O que foi mais diferente e o que fez a gente até retornar pra cá foi ficar longe da família. Porque nós somos muito família. A família dela, a minha família, a gente se vê muito, se encontra muito e a gente ficava lá, é lógico que não dava pra ficar vindo todo final de semana, mas a gente sentia muita falta da família. Eles iam lá, a gente vinha aqui, mas eu acho que a gente pensou e pesou várias vezes isso. A mãe dela aqui, minha avó que já é mais de idade, eu tinha uma filha aqui também. A gente ficou pensando nisso, mas dez anos nós trabalhamos, corremos atrás de muita coisa lá. Eu acho que foi o que pesou na vontade de voltar era isso, a cidade é boa, mas faltou o abraço familiar porque só estava a gente lá da nossa família e os nossos filhos.
P/1 – Você falou que você tinha uma filha. Como é que surgiu essa filha na sua vida aí, conta um pouquinho pra gente.
R – Essa filha foi antes da Rose, ela até nasceu em 2000, quando eu comecei a namorar com a Rose a mãe dela já estava grávida, a gente já estava separado, tem uma briga até hoje (risos). Mas tem a Letícia. Era uma namorada que eu tive de pouco tempo e a gente acabou não se cuidando, não se prevenindo. A minha filha maravilhosa que eu tenho, a mais velha.
P/1 – E com a Rose você tem filhos?
R – Eu tenho uma filha com a Rose, de 12 anos, a Sofia, que faz parte com a gente, faz capoeira, faz dança afro, gosta de hip hop, de música e tal. Tem a Sofia aí.
P/1 – Vamos voltar um pouquinho agora. Eu quero que você fale da paisagem de Paracatu. Como era Paracatu na sua infância e como foi Paracatu depois desse retorno de ter morado dez anos fora. O que mudou?
R – Como é que eu posso dizer? Na minha infância a paisagem que a gente tinha era muito pequena, porque na verdade o que eu lembro é do Alto do Açude, do São Domingos e da Bela Vista porque era o caminho percorrido que a gente tinha. Mesmo morando no Alto do Açude o meu avô morava na Bela Vista e a gente ia e voltava. Depois a gente foi morar na Bela Vista e voltava. E o São Domingos, né? De quando a gente saiu daqui de Paracatu, a cidade tinha alguns bairros, o centro histórico que se mantém ainda, mas os bairros cresceram bastante. A Bela Vista não é mais o que era porque tem uma extensão de dois bairros depois, o Alto do Açude tem mais outro lugar. Tem uma localidade de lazer no Alto do Açude que pra gente não era um local de lazer, era só uma lagoa onde algumas pessoas pescavam, que agora lá é um espaço bem legal também. Então assim, melhorado, mais urbanizado.
P/1 – Nessa época quando você era pequeno o casario já era tombado, já tinha uma preocupação na preservação histórica da cidade?
R – Quando eu era pequeno? Acho que não, não lembro (risos). Eu não sei.
P/1 – Mas você vê mudança, por exemplo, no calçamento da rua, nos casarios?
R – Alguns lugares mudaram. Na verdade tirou algumas pedras, tinha rua que tinha calçamento de pedras e hoje é asfalto. Algumas fachadas mudaram mesmo, alguns lugares que a gente passava e ia quando era criança e agora ficou mais modernizada, acho que é.
P/1 – Essa coisa com São Domingos, você trouxe muito na sua narrativa uma aproximação muito grande em função dos seus parentes e tal. Como é que se deu a sua relação com o São Domingos durante a vida vida? Você sempre vai em festas lá? Eu queria que você contasse um pouco das tradições que têm lá, tanto de comida como de festa, eu queria que você falasse um pouquinho do que você vivenciou lá.
R – Meu pai sempre levava a gente quando criança e você consegue manter o amor pelo local, né? Depois que ele faleceu eu e minhas irmãs não deixamos de ir, até porque ele pediu pra ser enterrado lá. E o no Dia de Finados a gente vai lá pra visitar a cova dele, o local em que ele está, no dia do aniversário dele a gente também se reúne, os irmãos, e vamos lá também. E fora essa data que não é legal, que é um pouco triste pra gente, a gente sempre está lá nas festas. Na Careta, eu sempre estou lá, eu passo a noite a Careta. Depois que ele faleceu eu dancei uns três anos lá a Careta, passei a noite toda dançando, eu fui lá ensaiar, esse ano eu quero ir de novo. Lá tem as quadrilhas tradicionais do local, tem outras festas de algumas famílias e aniversários que às vezes a gente lembra ou é convidado e a gente vai a rezas também, tem rezas na casa das tias lá e às vezes a gente acaba indo também, participando. A culinária também a gente ia lá, ia buscar rapadura, pra comprar, às vezes nem comprava porque como você era parente de outro lugar ganhava rapadura. Os doces que eram muito bons.
P/1 – Que doce você lembra que era bom?
R – Os doces de amendoim, de cocada, uns doces de leite, porque sempre fabricava lá, algumas coisas é fabricava ainda. Mas é isso. As rapaduras, o pessoal fala rapadura, fugiu o nome agora. Tem rapadura normal e tem outro nome, agora fugiu o nome da rapadura. É tipo um doce de rapadura, mas não é rapadura. É temperada. As rapaduras temperadas.
P/1 – Você participou do movimento da cultura negra, tal. Eu queria que você falasse um pouquinho o que te marcou nisso e o que te levou a buscar essa aproximação. Porque pra mim foi muito interessante você ter uma ascendência alemã também. Então como isso...
R – Eu falo pros meus alunos, mas eles não acreditam que eu sou branco (risos). Eu falo: “Eu sou branco” “Que branco”. Aí eu vou contar a história, por que.
P/1 – Eu achei interessante isso. Como é que você se aproximou, qual foi o seu interesse que te levou a participar do movimento negro?
R – Na verdade assim, quando nós surgimos foi isso. Na verdade, a ideia do grupo de hip hop era viajar: “Vamos viajar, vamos ser conhecidos e tal”. E depois a gente entendeu que o processo não era esse, que o processo era mesmo trabalhar na militância contra o racismo e a favor da igualdade. E a gente começou a se aprofundar mais. Chegamos em Unaí, depois que a gente saiu daqui, o movimento estava um pouco se acabando. Chegamos em Unaí e levantamos o movimento de Unaí que também fazia parte e movimentava. Eu fiquei presidente lá por dois anos, o mandato de dois anos na presidência do movimento negro de Unaí. E a gente buscando atividades culturais, correndo atrás de trabalhar a favor da igualdade. E acho que é isso, por ser negro e ser descendente de escravo e conhecer toda a história a gente está sempre envolvido pra que tenha um futuro melhor não só pra minha filha, mas pros meus netos, tal. A gente briga e é a favor das cotas, a gente tem outras situações que sempre estão acontecendo no mundo e a gente está aí, acho que a gente tem que fazer um diferencial. Eu penso que essa luta minha com a capoeira, com o jovem, com o adolescente, com os movimentos é um pouco imortalizar a pessoa do Cacau no lugar em que eu moro, acho que é deixar um pedacinho. Acho que depois: “Eu não vou esquecer nunca do Cacau. O Cacau esteve aqui”, acho que um pouquinho só, uma sementinha só, deixar assim.
P/1 – E qual a importância, por exemplo, de você passar essa tradição? Porque de alguma forma quando você fala do movimento negro você está passando tradição, cultura, valores. Qual a importância disso e qual a importância de se trabalhar isso junto aos jovens?
R – Eu acho que a importância é não deixar morrer e fazer com que cada vez mais a gente ganhe força, não só para o movimento, mas, como é que fala? Trabalhar, fazer com que o adolescente tenha mais interesse.
P/1 – E quando você volta pra Paracatu, como é que você começa a trabalhar com a capoeira de novo, como é que você, você continuou se envolvendo com o movimento negro? Conta um pouquinho pra gente.
R – O movimento, como eu disse, o movimento negro de Paracatu está parado. O pessoal que era militante sempre, cada um deixou de se envolver. Teve algumas questões financeiras e aí o pessoal que estava na frente presidindo e mexendo com o movimento, eles meio que deixaram de lado de fazer o movimento e brigar pelo movimento, estar no movimento. Então, o movimento existe na mão de uma ou duas pessoas. Não, existem dois movimentos, cada um na mão de uma pessoa só e pronto, não tem as pessoas envolvidas mais. A nossa associação de capoeira, no estatuto, ela rege como se fosse o movimento negro também porque a gente pode estar militando. Mas os movimentos históricos de Paracatu estão desativados.
P/1 – E como você se inseriu economicamente falando aqui dentro da cidade novamente.
R – Eu cheguei, a gente não tinha ainda como ia fazer, como ia ser. Aí eu comecei um projeto com criança, que a gente sempre mantém esse projeto, sempre que eu estou em um lugar eu dou aula gratuita pros alunos, funciona aqui na quadra. Eu comecei lá e depois a gente foi nos lugares mesmo. Eu fui no prefeito, trocar uma ideia com ele, que eu estava aqui de novo na cidade. Ele não me conhecia, tal, eu, a Rose. Aí depois a gente foi na Fundação Conscienciarte, também conversamos com o pessoal da Fundação, na época Edna e Sueli. E quando a gente chegou aqui, o primeiro lugar que a gente foi inserido foi no projeto da Kinross, nos projetos, no Integrar da Praça e os projetos também nas escolas. E pra gente foi um ganho muito grande, fiquei muito feliz com esse abraçamento que a gente chegou um pouquinho desfalcado financeiramente e o projeto chegou valorizando a gente. Quando nós chegamos foi assim: “Nossa, então nós precisamos já pra semana que vem teatro e capoeira na escola tal”. Aí tal e já veio uma verba legal e valorizada também. Depois na outra semana, daí duas semanas: “A gente precisa de vocês trabalhando em tal lugar”. Então nós chegamos já com essa, como eu posso dizer? Trabalhando já num projeto da Kinross via Conscienciarte. E depois eu vim conversar com a diretora da Casa de Cultura, falando pra ela das danças afro que a gente trabalha, tal, aí eu trabalhei um tempo com a dança afro, já tinha um professor de capoeira e ele teve que sair e eu também entrei com a capoeira. Então, eu trabalho com duas oficinas da Casa de Cultura e às vezes a gente também presta serviço pra Kinross.
P/1 – E quais são essas danças africanas e qual a simbologia que tem por detrás dela? Conta um pouquinho pra gente.
R – Isso. A dança afro é um pouco voltada pras danças dos orixás. A gente não trabalha tanto essa linha por trabalhar às vezes num órgão público, municipal e tal, então nós trabalhamos mais com os elementos também de água, do fogo, movimentos. Então a gente trabalha um pouquinho, uma outra linha.
PAUSA
R – Estava falando das danças e a Dança Afro surgiu do movimento, ela veio pro balé com as danças dos orixás, né? Cada orixá tem sua dança, tem sua música. E aí surgiu no balé a Dança Afro. E a gente trabalha não com a linha direta da dança dos orixás, mas a questão da dança dos elementos, da colheita, questão da chuva e outras histórias contadas que a gente tem trazido da África. Tem a Dança Guerreira, que é uma dança que retrata os negros com lanças e escudos; tem todo o movimento de guerra, de luta e de confronto, tudo dançado e cantado. Tem o Maculelê, que é uma história que fala de um guerreiro que era doente e foi excluído da sua tribo e outra tribo cuidou do Maculelê e depois ele já tinha melhorado e estava cuidando da tribo, que só tinha mulheres e crianças e os guerreiros dessa tribo saíram pra caçar e outra tribo veio pra lutar, pra acabar com a tribo e o Maculelê pegou o bastão, dois pedaços de pau e lutou até a sua morte. E o pessoal fala também que historicamente a gente tem várias versões, tem a história que eram duas tribos, os Makuas e os Lelês, que na verdade eles se confrontavam com pedaço de pau, com os bastões e aí surgiu a dança. São danças que eu aprendi também na capoeira porque os capoeiristas adquiriram. Antes, na Bahia, tinha o Maculelê; era só o grupo de Maculelê, quem fazia Maculelê fazia Maculelê na Bahia. E aí o capoeirista, pra te convidar pra vir participar de um evento de capoeira e ficar só capoeira, capoeira: “Vamos por uma dança” “Então vamos pôr o quê?” “Vamos pôr o Maculelê” “Ah, vamos pôr a Dança Afro”. E aí a gente começou a buscar se aprimorar em cima das outras danças. E aí tem outras danças, a Dança do Fogo, que o pessoal faz às vezes pra Xangô, pra Iemanjá, às vezes a gente canta música de Iansã e as pessoas nem sabem que está cantando, mas a gente acaba fazendo também (risos).
P/1 – Isso é legal você explicar pra gente. A música de Iansã, tem uma dança correspondente e ela é uma dança que está chamando pra quê? É pra colheita, é pra água, eu queria que você explicasse.
R – Ixi, aí você meio que me (risos), eu não vou saber te explicar não qual que é de cada um.
P/1 – Na verdade você pega...
R – Na verdade tem Iemanjá que é da água, Iansã se não me engano é da Justiça. Não, Justiça é Xangô. Agora fugiu.
P/1 – Eu vi que teve a Dança do Fogo também, você tem fotos aí, que também estava ligado a essa dança afro.
R – Isso, é Dança do Fogo misturada com pirofagia e tal, pra dar uma incrementada também.
P/1 – Hoje você está trabalhando basicamente na Casa de Cultura, você dá aulas aqui da dança africana e...
R – De capoeira.
P/1 – De capoeira. E você também, você está dando aula na Conscienciarte ou não?
R – Não, não, aí só quando eles convidam pra participar de oficina. Aí eu monto oficina de hip hop, aí eu monto uma oficina de grafite, a gente fez alguns grafites também que é uma outra linha do hip hop, então é isso, a gente fez alguns grafites.
P/1 – Eu queria que você falasse um pouquinho agora pra gente, aliás eu queria que você fizesse alguns movimentos de capoeira pra gente, pra gente filmar. Dá pra você fazer aqui? Isso a gente faz depois, porque depois ele edita, tá? Mas já pra ir finalizando, suas filhas hoje têm quantos anos, o que elas fazem, elas também entraram pra jogar capoeira, se sabem dançar, conta um pouquinho.
R – A Letícia tem 17 anos, ela fez capoeira na infância, quando mais jovem e hoje ela estuda e faz curso também, faz curso à tarde, informática, é isso, estuda e faz informática, que é o que ela tem feito agora por último. Aí tem a Sofia, como ela mora com a gente, ela está sempre no dia a dia com a gente e ela participa, estuda, faz capoeira, ela faz dança, ela viaja com a gente em alguns lugares. A Letícia também, de vez em quando ela viaja. Elas participam sim com a gente (risos).
P/1 – Você geralmente viaja pra fazer o quê? E pra onde você vai geralmente?
R – Eu viajo pra dar o curso de capoeira às vezes prática, às vezes só teórica ou as duas, ou pra participar de palestras, discussões sobre a história da capoeira. E é isso, participo sim.
P/1 – Cacau, eu queria que você falasse pra gente qual é o seu sonho?
R – Assim, a gente vai falar uma coisa e como eu posso dizer? (risos) Eu me sinto meio que um pouco realizado. Uma coisa que não é nem sonho, que me toca muito é a perda do meu pai e da minha mãe, me toca muito. Se eu tivesse como realizar uma mágica ou Deus falar assim: “Eu vou permitir você voltar e vai ser um pouco diferente”, eu queria eles comigo, eu acho que mais um pouquinho, sabe? E a minha filha Letícia, eu queria ela mais perto de mim também, que ela não mora comigo e é um pouco difícil. Ela está com a mãe dela, muito bom, a mãe dela cuida muito bem dela, mas eu queria ela um pouco mais perto de mim. E em outras questões eu sou feliz, eu faço o que eu gosto, eu acordo a hora que eu quero (risos), eu meio que sou dono do meu tempo. Eu falo com os meninos: “Eu tenho o que eu almejo, porque eu almejo sossego, tranquilidade, a liberdade de poder ir e vir”. Na maioria das vezes eu estou 70%, 80% mais feliz com o que eu sou. Eu só queria mesmo essa parte familiar, que eu queria um pouquinho mais perto de mim. Eu sei que meu pai está presente, a minha mãe também, em tudo o que eu faço de bom. Quando alguns pensamentos vêm eu sei que são eles. A minha fé, às vezes eu sonho com meu pai e é bem real, eu sonho com a minha mãe e é bem real. Minha filha eu sei que um dia a gente vai ficar um pouco mais próximo do que a gente está agora, eu acho que é isso. Meu sonho é esse. Eu sonho com a humanidade também mais feliz, mas eu acho que seria um pouco o sonho de cada um, né?
P/1 – E como é que foi contar a sua história pra gente, Cacau?
R – Ah, um pouquinho de pressão, eu não sabia como... Eu falei: “Gente, como é que eu vou ficar lá duas horas conversando?”. Você falou: “Não, vai ser de duas até às quatro”. Eu falei: “Duas horas”. Ela falou: “Eles vão saber o que fazem”. Mas eu confesso que eu acordei com a cabeça doendo e ainda estou com dor de cabeça pela pressão de estar ou não estar, de não ser verdadeiro, às vezes a gente fica com medo de não ser verdadeiro, porque quando liga essa aí você tenta ser outra pessoa, né? Então eu tentei ser, eu acho que era isso. Eu acho que a pressão maior é tentar ser eu, mostrar um pouquinho de mim, porque o que vocês estão fazendo aqui hoje pra mim, eu acho que é o que eu venho fazendo e falando várias vezes, né? Tem uma música de capoeira que faz sucesso no Brasil e no mundo, pessoal disse que já cantou... disse não, eu já vi vídeos em Israel, Colômbia, Estados Unidos, vários lugares o pessoal cantando essa música. E o pessoal fala: “Ah, é música afro”. E uma das coisas que eu sempre quero é imortalizar a pessoa do Cacau e eu acho que a música vai ser uma das coisas, que é uma música, tipo assim, quem criou Paranaguá (canta): “Paranaguá, Paraná”, quem nunca fez capoeira sabe que essa música é uma música de capoeira. Então a minha música entra nisso. E o que vocês estão fazendo aqui também é imortalizando um pouquinho da minha pessoa. E do meu pai que já se foi, da minha mãe que não teve a oportunidade de me ver; meu pai teve, mas minha mãe não teve a oportunidade de me ver vencedor. Porque eu me vejo como vencedor. Não sou a melhor pessoa do mundo, mas eu tento ser o melhor possível por causa do meu pai e da minha mãe, acho que para eles terem orgulho, minhas filhas terem orgulho, minha esposa, pessoas que estão à nossa volta. Acho que é isso (risos).
P/1 – Eu queria te agradecer muito, Cacau, por você ter nos doado essa sabedoria toda, em nome do Museu da Pessoa e em nome da Kinross, muito obrigada.
R – Eu que agradeço! Tomara que eu tenha contribuído bem aí. Valeu, obrigado, gente!
FINAL DA ENTREVISTA
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