Projeto Memória dos Brasileiros Maués
Depoimento de Sônia da Silva Lorenz
Entrevistada por André Machado e Marília Fróis
São Paulo, 27/09/2006
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número MBMaués_HV001
Transcrito por Anabela Almeida Costa e Santos
Revisado por Viviane Aguiar
Publicado em 18/02/2008
P1 – Professora Sônia, para começar, eu gostaria que a senhora nos dissesse seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R1 – É Sônia da Silva Lorenz, eu nasci no dia 18 de novembro de 1953, no Rio de Janeiro, na Gávea.
P1 – Eu queria que a senhora falasse um pouco sobre a sua família. Qual era o ano dos seus pais, qual era a origem deles, o que eles faziam? A senhora sabe como eles se conheceram? Como eles se casaram?
R1 – O meu pai, que já faleceu, ele era gaúcho. E ele é de uma família já nascida no Rio Grande do Sul, mas de origem alemã. Os bisavós do meu pai. O bisavô do meu pai fugiu do alistamento na Primeira Guerra Mundial. Era um jovem que morava em Berlim, aí tinha o alistamento para a Primeira Guerra. E ele com o irmão, que também era um rapaz, fugiram de casa, foram para o porto de Hamburgo, pegaram um navio. Um desceu em Nova York, nunca mais ninguém soube. E o outro desceu em Buenos Aires, depois veio para Porto Alegre. Casou-se com... E, aí, a família morava no interior do Rio Grande do Sul e na cidade. Portanto, a família do meu pai é uma família de imigrantes alemães. Eles eram comerciantes, eram caixeiros viajantes. A primeira geração que mora em Porto Alegre é o meu avô, que era construtor. E a primeira geração dessa família que foi para a universidade é a geração do meu pai, que foi estudar Agronomia em Viçosa. Bem, a minha mãe, ela é de uma família de... O avô da minha mãe é português, veio de Borba, do Norte de Portugal. E era fazendeiro, tinha sete fazendas no interior do Estado do Rio, trabalhava com cachaça, com rapadura, com cana, numa fazenda que tinha senzala. E a família da minha mãe é, portanto, uma família de ascendência portuguesa, fluminense. De plantadores de cana, de pessoas da passagem da Monarquia pra República Velha. A minha mãe fez Escola Normal, no Rio de Janeiro, que é o que as moças da classe dominante estudavam. E os meus pais se conheceram em Niterói. Meu pai se formou em Viçosa e veio. Ele arrumou um emprego na Secretaria de Agricultura do Estado do Rio. E veio morar em Niterói e tinha amigos que eram amigos da minha mãe, da praia. E aí, eles se conheceram através desses amigos comuns e se apaixonaram. Aí, o meu pai foi para os Estados Unidos fazer mestrado, na Louisiana, e voltou dois anos depois. Pediu a mão da minha mãe em casamento. E eles viveram juntos 49 anos, até o meu pai falecer em 2002.
P1 – Eles se casaram em que ano?
R1 – Eles se casaram em 53, e eu nasci em 53. No fim de 53.
P1 – E a senhora teve irmãos? Quantos irmãos a senhora teve? Eram mais velhos, eram mais novos?
R1 – É. Eu sou a mais velha. E eu tenho mais três irmãos. Dois homens e uma mulher. Somos quatro filhos.
P1 – E qual o nome deles? Que profissões eles seguiram?
R1 – Abaixo de mim, eu tenho um irmão que a gente tem dez meses de diferença. E ele fez Engenharia Naval na Poli. Mas, depois, ele foi para o ramo industrial. E, atualmente, ele trabalha numa grande empresa suíça e italiana, que se chama Frank Faber, que é uma empresa que faz coisas para a cozinha. Faz coifas, fogões, fornos. Aí, tem a minha irmã Beatriz, que mora com a minha mãe, que ela é excepcional. Ela não tem uma formação. E tem o meu irmão caçula, que se chama Sérgio, que é comandante de avião. É isso.
P1 – Eu queria que a senhora falasse um pouco qual é a lembrança mais antiga na casa da sua infância, a primeira coisa que a senhora se lembra. Como era essa casa? Como era a rotina da sua casa, a sua visão de criança desse universo?
R1 – É a casa da minha avó materna, que era no bairro de São Domingos, em Niterói, que era uma casa em estilo art déco, mas era... A gente chamava de chácara. Era uma casa muito grande, tinha um quintal muito profundo, tinha galinheiro, tinha árvores frutíferas, tinha um pequeno orquidário. Era um quintal de terra batida e tinha muitas plantas. Eu, a minha infância, eu sempre, em primeiro lugar, me lembro dessa casa. Que a gente tinha uma cabana no abacateiro, eu e meu irmão. E a gente abria a porta do galinheiro, soltava as galinhas. A gente enchia umas bacias embaixo do chorão, que era o lugar que saía água quando enchia as caixas. E às vezes a gente ficava de castigo dentro da despensa. E, em segundo lugar, da praia. Porque a gente passou a infância na praia de Boa Viagem.
P1 – Mas essa casa de Niterói, ela é ali perto da região litorânea ou ela é mais afastada?
R1 – Ela é uma rua atrás da rua da praia, no Gragoatá.
P1 – Ela não existe mais hoje?
R1 – Ela existe. Ela existe, mas ela está irreconhecível. Ela está irreconhecível. Porque sabe quando as pessoas compram uma casa que cobrem toda a terra? Tiram todas as plantas, cobrem tudo de cerâmica, de cimento. Parece uma tumba, né? Enfim, não é mais como era na minha infância.
P1 – Não tem mais árvores, não tem mais nada?
R1 – Não, não.
P1 – Mas a senhora não chegou a morar nessa casa, né?
R1 – Não. Mas eu ficava muito, porque o meu pai trabalhava. No começo, a minha mãe trabalhava de professora. E nessa casa estava a minha avó, estavam as minhas tias. E eu acho que eu ficava muito mais tempo nessa casa do que na minha casa mesmo. Provavelmente eu ia dormir na casa dos meus pais.
P1 – E a senhora se lembra de alguma festa, de alguma comemoração que era marcante nessa casa, na sua infância? Uma coisa que era aguardada, desejada, que marca a infância?
R1 – É. Eu lembro de festas, mas essa casa é a casa da minha primeira infância mesmo. São as lembranças mais antigas. Mas, de comemoração, aí eu já lembro um pouco depois, onde, na minha casa, com os meus pais, que eram festas que a minha mãe dava para os filhos nos aniversários. Que também era uma casa muito grande, e a minha mãe organizava muitas brincadeiras. E, aí, eu lembro dessas festas. Umas bexigas cheias de balas que eram penduradas em vários varais coloridos e, enfim, moringa também, para derrubar e sair bombons. E nessa casa também tinha muitos bichos. Então, era uma mistura de festa de aniversário com brincadeira de quintal. Aí, eu já lembro dessa segunda casa, quando eu já era um pouco maior.
P1 – Essa casa era em que lugar?
R1 – Essa casa também era no bairro de São Domingos, em Niterói, próximo da casa da minha avó.
P1 – E a senhora falou um pouco sobre brincadeiras. Quais eram as brincadeiras da sua época? E como as crianças brincavam, com quem, onde?
R1 – Olha, eu e o meu irmão, porque a gente era praticamente gêmeo, né? A gente brincava no quintal, e o quintal era tudo para a gente. Eu acho que a gente nem levava brinquedos para o quintal. Porque tinha uma cabana no abacateiro. No galinheiro, acontecia uma série de coisas que a gente observava. A gente comia as frutas do pé. Tinha o cachorro da minha tia, que era um cachorro que era um personagem, porque ele era super mal-humorado, enfim, ele era um personagem. A gente tratava de fazer várias maldades para aquele cachorro. Depois tinham aqueles empregados de chácara de antigamente, que a gente tinha uma relação muito próxima. Essas pessoas contavam histórias pra gente. Então, por exemplo, a gente ia na cozinha e a gente ganhava umas trouxinhas de piquenique. A gente ia para o quintal para tomar o lanche no quintal. Aí, a gente descobria bichos, insetos, guardava nos vidros. A gente fazia casinha. A gente punha uma toalha, punha os pratos, fazia um vaso de flores, fazia tortas de terra, enfeitadas de flores. O quintal dava tudo para a gente brincar. A gente inventava histórias. Aquele quintal era uma selva amazônica, entendeu? Tinha feras, tinha príncipes, tinha princesas, tinha dragões. A gente escutava as histórias antes de dormir – que o nosso pai contava história para gente, ou que alguma tia contava, ou que a avó contava – trazia essas histórias para o quintal. E a nossa brincadeira era isso. Era o contato com essa natureza meio que domesticada do quintal da chácara da minha avó.
P1 – A senhora falou várias vezes em histórias que a sua mãe contava, seu pai, os empregados. Que tipo de histórias eram essas? As histórias que a gente tradicionalmente conhece, Chapeuzinho, Soldado de Chumbo, esse tipo de coisa, ou eram coisas mais específicas? A senhora se lembra de que histórias que eram?
R1 – Olha, tinha essas histórias. A história do Lobo Mau, a história do Negrinho do Pastoreio, a história da Chapeuzinho. Tinha essas histórias. Tinha algumas histórias que eu acho que são histórias fluminenses, que são histórias do interior do Estado do Rio. Que eu acho que são histórias que devem ter vindo das senzalas. Histórias com personagens, com fugas.
P1 – A senhora se lembra de alguma pequena, curta?
R1 –Não sei se assim, de pronto, eu me lembro. Eu teria que...
P1 – Teria que rememorar.
R1 – Eu teria que dar uma meditada. E o meu pai já contava outro tipo de coisa. Meu pai contava, por exemplo, do El Cid, Alexandre, o Grande, do Olimpo. O meu pai contava como que era na Índia, como que era na Grécia, como que eram os índios americanos. E, aí, a gente misturava tudo.
P1 – Agora, já chegando na parte da formação, da escola. Como era a sua primeira escola? Ela era pública, particular? Como era o prédio dessa escola, como é que eram os professores? Qual é a lembrança que lhe vem?
R1 – Era uma escola particular, que tinha em Niterói, chamada Betânia. E era uma escola pequena. Devia ter uma turma do Jardim I, uma turma do Jardim II, uma turma do pré-primário. E era uma escola aonde iam as pessoas da classe média de Niterói, os filhos dos médicos, os filhos dos advogados. Filhos dos profissionais liberais. Era uma escola particular. E as professoras eram maravilhosas, eu tenho uma lembrança das professoras que eram mulheres lindas. Eu achava que as professoras eram igual às misses. Eram muito bonitas as professoras dessa escola Betânia. Depois, eu fui fazer o primário. Aí, numa escola particular também, que era uma escola chamada Stella Trovão, que era uma escola muito rígida. As crianças tinham que estudar muito para ter boas notas. E a diretora, que era a Stella Trovão, era horrível, porque ela dava castigos, ela dava reguada na mão de quem fazia bagunça. E eu fiz primário nesse lugar. E eu tenho uma lembrança muito forte. Eu tenho duas lembranças muito fortes dessa escola. Uma é que, às vezes, eu e o meu irmão, quem levava a gente para a escola era a minha cachorra, que era perto da casa dos meus pais. Então, eu tenho essa lembrança de ir para a escola com a cachorra acompanhando. E a outra lembrança que eu tenho dessa escola é que tinha uma única pessoa na escola, que era da minha classe, que era uma menina de cor, negra. E que sofria muitos contratempos, muitos preconceitos, porque era a única pessoa negra dessa escola, a Miriam. Eu lembro muito dessas coisas.
P1 – A senhora chega a se lembrar, de uma forma concreta, que tipo de preconceito ela passava?
R1 – Não. Eu não me lembro de forma concreta. Mas só o fato de só ter uma aluna negra na escola já causa espanto para as pessoas. Então, tinham pessoas que eram preconceituosas mesmo. Tipo assim, falar: “Ah, aquela neguinha.” “Ah, aquele cabelo.” Que você vê que tem aquela maldadezinha, né? Mas tinham pessoas que ficavam assombradas e que nem era maldade. É porque era muita diferença. Ter uma única pessoa.
P1 – E, hoje, pensando nessa trajetória, a senhora acha que o fato de ser mulher, naquele período, em algum momento foi um empecilho para que a senhora prosseguisse nos estudos? Existia um ambiente cultural na casa de seus pais que propiciava que a senhora avançasse nos estudos?
R1 – Ah, sim. Bom, a minha mãe, ela se formou professora. E ela trabalhou como professora em escolas públicas na Baixada Fluminense. E ela achava importantíssimo as pessoas estudarem. Ela achava. Ela sempre teve convicção de que as pessoas tinham uma possibilidade de uma mudança de vida. Eu estou falando do ponto de vista financeiro, de ter melhores condições de vida, através do estudo. Então, a minha mãe passava isso para a gente. Que você tem que estudar para você sair da condição de empregado doméstico. Enfim, para você sair de uma condição de um trabalho pior remunerado para uma condição de um trabalho melhor remunerado. E o meu pai é a primeira geração de uma família de imigrantes que chegou à universidade. Então, meu pai achava que a gente tinha que estudar tudo. Tinha que fazer balé, estudar piano, fazer fotografia, fazer universidade, viajar. O meu pai sempre incentivou os filhos a viajar. Sempre ajudou financeiramente a gente a viajar. Ele sempre achou que você, viajando, você aprende tanto quanto indo na universidade. Então, dentro da minha casa tinha um ambiente muito propício à gente ler, estudar, ir à escola. Era bastante propício o ambiente familiar.
P1 – E, no seu círculo de relação, das pessoas da sua idade, essa facilidade da mulher prosseguir nos estudos também era comum ou não? A senhora era uma exceção?
R1 – Não era muito comum porque as mulheres, pelo menos até eu vir para São Paulo, né? Porque eu vim para São Paulo com 11 anos. Quer dizer, lá no Rio e em Niterói, era mais comum as mulheres namorarem, casarem e terem filhos. Isso era mais comum mesmo. Mesmo na minha geração. Mas, como eu vim cedo para cá, eu vim para cá com 11 anos. Aí, São Paulo já é diferente, né? Porque, mesmo tendo essa história que as mulheres têm que ter bons casamentos e casarem, aqui a questão profissional já tem um peso, eu acho que muito maior que no Rio. Pelo menos naquela época. E que no Brasil todo, né? Quer dizer, São Paulo, você traduz São Paulo por trabalho, por profissionalismo, por subir na vida trabalhando, estudando. Aqui em São Paulo, desde que eu cheguei, aqui ficou bem forte isso. Que você tinha que se virar, correr atrás, estudar, fazer os cursos, se relacionar, articular. Porque trabalho também não é só ir na Universidade de São Paulo. Trabalho é uma coisa muito mais complexa do que ir na universidade. Você deve saber disso (risos).
P1 – A senhora, então, veio para São Paulo com quantos anos?
R1 – Com 11 anos.
P1 – 11 anos. Era 64.
R1 – 64.
P1 – E como era São Paulo em 64? Em relação à hoje?
R1 – Olha, na verdade, esse ano de 64, para mim, é muito marcante, porque um dia eu estava ali atrás da Candelária, no Rio de Janeiro, com a minha tia, com a minha madrinha, e a gente viu os tanques, ali na Presidente Vargas. E eu fiquei muito chocada porque eu nunca tinha visto nenhum tanque. Muito mais um tanque na rua da minha cidade, né? E eu perguntei para minha madrinha: “Mas o que que é isso? O que é esse monte de tanque aqui, atrás da Candelária?” Aí, ela falou: “Não, é porque está tendo aí um problema no governo. Tiraram o presidente, o Jango. E agora estão os militares. E os militares assumiram porque parece que tinham muitos comunistas.” Enfim, ela deu aquela explicação clássica das pessoas conservadoras brasileiras. Mas eu lembro que eu fiquei com o coração disparado. Eu tenho uma memória do coração ter disparado. Não entender muito bem a explicação que ela me deu. Mas não gostei daqueles tanques na rua. E, a partir daí, eu comecei a ler jornais, prestar atenção em noticiários. Mas eu acho que ver aqueles tanques na rua já me posicionou contra o que se costuma falar como tendo sido essa Revolução de 64. Eu achei aquilo de quinta categoria, sabe? E, bom, e aí, nesse mesmo ano, o meu pai foi transferido para São Paulo, e eu vim morar em São Paulo. No fim do ano, eu vim morar em São Paulo. E também, para mim, foi muito doloroso sair de Niterói e do Rio e vir morar em São Paulo. Fiquei em estado de choque. Não gostei nada de trocar o mar pela Avenida Paulista. Foi péssimo.
P1 – A senhora veio morar onde, em São Paulo?
R1 – Eu vim morar na Rua Peixoto Gomide, esquina com a Alameda Itu. E fui estudar no Dante Alighieri.
P1 – Durante a juventude, que atividade mais lhe ocupavam o tempo? E fora isso, quais eram as suas outras atividades? E, dentro disso, como foi ter essa juventude dentro dessa situação de regime militar? Isso influenciou em alguma coisa?
R1 – Olha, eu estudava no Dante Alighieri, que era uma escola muito tradicional. Muito rigorosa. Eu não suportava aquela escola. Mas eu lembro, na minha adolescência, eu lia muito. Muito, muito, muito, muito, muito. Eu sempre li muito e eu já lia muito. E eu, quando eu não estava lendo e quando eu não estava na escola, eu estava escutando os Beatles, os Rolling Stones. Eu sou uma típica geração do rock’n’roll. Eu ia nos bailes, nas boates. Eu ia na escola, eu lia. Lia jornal. Eu andava muito naquela região da Avenida Paulista, andava muito a pé. Ia nas lojas procurar os long-plays que eu queria comprar para escutar. E é isso.
P1 – E a questão do regime militar interferiu de alguma forma ou não? Isso acabou se dissolvendo daquela impressão da infância?
R1 – Não, não. Eu ficava atenta com relação às notícias de jornal. Mas eu acho que interferiu mais quando eu saí do ginásio e fui fazer o colegial, que aí eu saí do Dante e eu fui fazer colegial no Instituto de Arte e Decoração, que era na Avenida Paulista. E, aí, eu acho que, nesses três anos que eu fiquei fazendo colegial, corresponde, mais ou menos, ao tempo da guerrilha urbana no Brasil. Eu lembro de eu ir para o colegial e não sei que lugar estar cercado porque tinha tido um assalto de banco. Ou eu ir para o colegial, e um professor não ia mais, porque o professor tinha sido preso. Ou eu ir com os colegas e os professores num bar e todo mundo conversar sobre a repressão, sobre a tortura, sobre os militares, sobre a guerrilha urbana. Eu acho que, quando chegou no que a gente chama hoje de colegial, eu acho que aí eu comecei a tomar muito contato com essa questão da gente estar vivendo um regime de exceção, repressivo. E, aí, eu fiquei sabendo que as pessoas eram mortas, que as pessoas eram torturadas, que tinham unidades clandestinas. Enfim, eu acho que aí que eu entrei em contato mesmo com essa parte dark. Essa coisa horrível que foi a ditadura no Brasil. Que faz tão pouco tempo e parece que já foi há muito tempo, né?
P1 – E a senhora não chegou a militar em nenhum desses núcleos?
R/1 – Não. Porque aí, depois, eu entrei na FAU [Faculdade de Arquitetura e Urbanismo]. E eu não entrei para nenhum partido. Quer dizer, eu não fui para nenhum partido clandestino. Não fui para nenhum partido de esquerda. Eu lembro que na FAU tinha gente do Partido Comunista [PC], do Partido Comunista do Brasil [PC do B]. Tinha os trotskistas, tinha a Liberdade e Luta. E eu era, eu ia em todas as manifestações estudantis, eu ia em todas as assembleias, eu ia em todas as passeatas. Eu fui presa numa dessas passeatas. Fiquei lá, dormindo no Dops [Departamento de Ordem Política e Social]. Mas eu não tinha nenhuma atração por nenhum partido político. Eu achava que eu tinha que ter total liberdade para pensar da minha maneira, para desenhar o que eu quisesse, para ler o que eu quisesse, para falar o que eu quisesse. Que eu era um espírito livre e que eu não ia me formatar nem a ser maoísta, nem a ser trotskista, nem a ser comunista. E isso era uma coisa que vinha de dentro de mim. Apesar de eu me considerar, naquele momento, uma pessoa de esquerda, e participar de tudo o que estava acontecendo, do movimento estudantil, eu não fazia parte de nenhum partido.
P1 – Em que ano a senhora entrou na FAU? Eu queria que a senhora, se pudesse, contasse um pouco mais sobre essa questão da prisão. Quando que foi? Se foi uma coisa mais ou menos... Bem, tranquila nunca é.
R1 – É, foi, foi. Eu nem lembro direito a data. Mas foi numa das manifestações estudantis que tiveram no centro da cidade, se eu não me engano, numa manifestação que teve na frente da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Que aí, chegou uma hora, a repressão cercava. E jogava água e gás lacrimogêneo. E batia nas pessoas. Numa dessas manifestações, eu e um grupo de amigos, a gente fugiu, desceu uma daquelas ladeiras lá. Ladeira Porto Geral, né? A gente foi preso por ali. Eu e mais um grupo de amigos. Abriram o camburão, atiraram todo mundo dentro. Chegou ao Dops, cada um foi para um lado, ninguém mais se viu. E, aí, aquela história de fotografar, dedo, fichar. E interrogar. E um policial ficou olhando um monte de papéis, um monte de fotos, e falou para o cara que estava com ele, falou: “Não, essa daqui não é peixe grande. Ela é lá da FAU, é massa avançada. Não é peixão. De manhã, a gente manda ela embora.” E, aí, o outro que estava com esse policial, que parecia ser o chefe lá deles, sei lá eu o que que ele era, falou: “É, mas a gente tem que dar um aviso para eles pararem por onde eles estão. Então, vamos ver o que ela tem para contar para a gente do pessoal da escola dela.” E eu lembro que eles começaram a me interrogar a respeito de um líder que tinha na minha escola, que é o Josimar Melo, que hoje escreve sobre comida, sobre vinho, que era um líder estudantil da FAU. Da Liberdade e Luta.
P1 – Da Libelu, é isso?
R1 – Da Libelu. Que atualmente trabalha na área de gastronomia. E queriam saber o endereço, onde morava. Enfim, quais eram os hábitos. Queriam. Eu falei: “Olha, essa pessoa, eu vejo lá na assembleia da minha escola, desconheço não.” Enfim, não falei nada. Aí, o ajudante falou: “Não. Então, a gente... Você espera aí. Você vai contar essa história para um rapaz que está aqui com a gente.” Eles trouxeram um rapaz que devia estar preso lá faz tempo, colocaram numa cadeira do lado da minha. E torturaram esse rapaz do meu lado. E, de novo, esse outro começou a me perguntar quem eram os líderes da minha escola, se alguém tinha envolvimento com a Ação Libertadora Nacional [ALN]. E onde que eles achavam o Josimar, que o Josimar não estava indo na USP [Universidade de São Paulo], não estava indo na FAU. E que teve, aconteceu não sei o quê na PUC [Pontifícia Universidade Católica], que eles não pegaram ninguém porque os líderes... Enfim, eles estavam aborrecidos, eles queriam pegar esses líderes estudantis, eles queriam fazer a ligação de líderes estudantis com o pessoal da luta armada. E eles ficaram perguntando coisas que realmente eu não sabia. Quer dizer, eu não sabia, a não ser o que eu via nas assembleias e nas passeatas.
P1 – A senhora chegou a temer ser torturada mesmo?
R1 – Não. Eu achei que eles iam... Eu achei que de manhã eles iam me mandar embora.
P1 – E foi o que foi feito mesmo?
R1 – Foi. Foi o que foi feito.
P1 – A senhora, então, a formação inicial da senhora é como arquiteta?
R1 – Isso. Só que, enquanto eu estava na FAU, eu trabalhava como fotógrafa já. Porque eu fiz curso de fotografia enquanto eu estava no colegial e aí, chegou na FAU, e eu continuei fazendo uma formação de fotografia. E, na FAU, eu já comecei a trabalhar como fotógrafa. Trabalhei também em museu, em escritório.
P1 – Isso aí é mais ou menos que época?
R1 – Eu fiquei na FAU de 75 a 80.
P1 – E, aí, a senhora vai pela primeira vez para a Reserva Indígena de Maués como fotógrafa. É isso?
R1 – Como fotógrafa. Em 78.
P1 – A senhora pode contar como é que a senhora acabou chegando lá? Por que meios que foi que a senhora acabou...
R1 – Na verdade, eu fui convidada para fazer a documentação de uma pesquisa do Aurélio Michiles, com quem mais tarde, mais tarde, eu me casei, e ele é pai dos meus filhos. Mas, nesse momento, ele tinha uma bolsa para fazer uma pesquisa sobre a cultura do guaraná como um todo. Nessa região de Maués, porque a família do pai dele é de Maués. Que essa família Michiles de Maués é do pai dele. Então, ele tinha uma bolsa para fazer uma pesquisa sobre o guaraná que pegava os figureiros do guaraná, que são caboclos, pegava todas as tradições de guaraná da cidade de Maués, e pegava a origem, que são os Saterés-Mawés. E ele precisava entregar o relatório final da pesquisa e ele precisava ter uma documentação fotográfica de tudo que estava na pesquisa dele. Então, eu fui a primeira vez para lá para fazer essa documentação fotográfica. Foi quando eu fotografei todos os figureiros, daquelas figurinhas de guaraná que tem em Maués. Que você faz figurinhas de bichos, né? De toda a fauna ali da região, com a massa do guaraná. Em vez de você fazer o bastão do guaraná, que você rala para beber, você faz todas as figurinhas de guaraná e vende. É um artesanato, na verdade. Eles vendem como um artesanato.
P1 – Quem faz isso? A população de Maués ou os indígenas?
R1 – Não. Os caboclos, as pessoas de Maués, que chamavam figureiros do guaraná. Que eu não sei se ainda tem. Deve ter, deve ter. E, então, eu fotografei os figureiros do guaraná em Maués. Eu fotografei algumas coisas da cidade que estavam ligadas à cultura do guaraná como um todo. E a gente foi para a área indígena Sateré-Mawé pela primeira vez para ir fazer a documentação do guaraná na área indígena. E, aí, o que aconteceu foi o seguinte: eu fotografei tudo e eu fiquei muito próxima de um chefe que se chamava Tuxaua Manoelzinho, que vem a ser avô do Aristides. E esse chefe já era uma pessoa muito idosa, e uma pessoa muito importante dentro dos Saterés. Porque, primeiro, ele é do clã Sateré mesmo, que é o clã politicamente, por excelência, para os chefes. Os chefes gerais geralmente são Saterés-Mawés, tradicionalmente são Saterés-Mawés. E esse Tuxaua Manoelzinho, ele tinha uma coisa muito interessante porque, ao mesmo tempo que ele tinha muito boas relações com a nossa sociedade, com o pessoal que foi do Sistema de Proteção aos Índios [SPI], depois o pessoal da Fundação Nacional do Índio [Funai], depois os políticos da região, padres, pastores, enfim ele era um diplomata, ele também conhecia muitas coisas do tempo antigo dos Saterés-Mawés. Então, ele sabia os mitos, ele contava do tempo dos avós deles, quando tinham grandes aldeias no centro. E ele era uma pessoa que juntava a parte tradicional dos Saterés com essa parte de relações com os brancos. E eles estavam mobilizados em conseguir a demarcação do território deles. Então, quando eu estava indo embora, ele me chamou e falou: “Olha, minha neta.” Me chamou “minha neta”. “Você vai fazer o seguinte: você vai voltar para São Paulo, vai se formar e, a hora que você se formar, você vai vir para cá, você vai morar aqui comigo, na minha casa e você vai ajudar a gente a concluir o processo de demarcação do nosso território. Porque, se a gente ficar aqui sozinho, com o pessoal da Funai, não vai sair essa demarcação. A gente precisa ter alguma pessoa do nosso lado que vai para Manaus, que vai para Brasília. Que vai andar com o pessoal para ver se o limite está certo, se não ficou cemitério para fora, se não ficou nascente de rio para fora. Então, você vai lá, se forma e aí você volta para cá. Eu te dou casa e comida e você vai ficar aqui até o nosso território estar demarcado.” E é tão impressionante que eu tomei aquilo como uma ordem e obedeci. E foi ótimo eu ter obedecido. Foi porque eu, nesses cinco anos que eu morei com os Saterés, eu aprendi muito mais que o tempo que eu estive nas Ciências Sociais, na Antropologia e na FAU, na arquitetura. Porque você aprende em todos os níveis. Você aprende. Nem dá para explicar o tanto que a gente aprende.
P1 – Só para eu entender, a senhora fez a graduação na FAU, depois...
R1 – Aí, eu me formei.
P1 – Sim.
R1 – Aí, eu fui para lá.
P1 – Mas, no meio do curso da FAU, você foi para lá como fotógrafa, é isso?
R1 – Isso.
P1 – Aí, ficou quantos meses lá?
R1 – Ah, eu acho que eu fiquei uns dois, três meses. Por aí. Aí, eu voltei, eu me formei. Final de 79, começo de 80, eu fui para lá. E eu voltei em 84, antes do meu filho nascer, com sete meses de gravidez. Esse tempo eu fiquei lá.
P1 – Desde 79, é isso?
R1 – Fim de 79, 80.
P1 – Até 84?
R1 – É. Aí, eu saía. Todo o ano, eu saía. Eu vinha a São Paulo porque eu fazia parte, ainda faço, do Centro de Trabalho Indigenista [CTI]. Que aí já foi uma possibilidade que eu busquei. Antes mesmo de me formar na FAU, antes de retornar para lá, foi uma possibilidade de você realizar esse trabalho. Aí já é a história do Centro de Trabalho Indigenista.
P1 – Então, a sua aproximação com o CTI foi logo depois do retorno. Entre 78 e 79?
R1 – Eu sou fundadora do CTI. Acho que o CTI foi fundado em 78, se eu não me engano. Eu sou fundadora do CTI. Um grupo de amigos. Esse grupo de amigos tinha antropólogos, indigenistas, fotógrafos. Um grupo que eram amigos mesmo, pessoas amigas, da faculdade, de fora da faculdade, se juntaram e fundaram o Centro de Trabalho Indigenista. E eu estava no Sateré, tinha gente que estava nos Bororo, tinha gente que estava nos Nambikwara, tinha gente que estava nos Krahô, e o Centro de Trabalho Indigenista é precursor, eu acho, de muitas coisas que aconteceram depois. Na área da Antropologia, do Indianismo. Porque a gente começou esse trabalho em plena ditadura militar. A gente morava em área indígena na clandestinidade. Ninguém pedia autorização para a Funai. Eu tinha um amigo que estava nos Krahô, outro amigo que estava nos Nambikwara, outra tinha ido pros Bororo, eu estava nos Saterés. Quem dava cobertura para a gente eram os índios. E em todas essas áreas, a gente trabalhou com a demarcação dos territórios e a gente trabalhou com essas questões que apareciam. Por exemplo, a Eletronorte invadia a área Gavião. Aí, você tinha que estruturar um processo contra a Eletronorte. A Elf Aquitaine invadiu a área Sateré, você tinha que organizar. Eu acho, eu vendo hoje, na época, a gente não tinha essa consciência. A gente tinha uma consciência que a gente corria perigo. Porque, imagina, você estar num lugar sem autorização, em plena ditadura. Um lugar que não tem no mapa. Por exemplo, estava lá no Igarapé do Miriti, na cabeceira do Rio Marau. Lá, se você toma uma picada de cobra, não dá nem para o helicóptero ir te buscar. Não tem no mapa, entendeu? Então, eu acho que a gente tinha um pouco uma noção que a gente vivia perigosamente. Mas, hoje em dia, eu tenho consciência que o Centro de Trabalho Indigenista fez um trabalho precursor de tudo que apareceu depois: Comissão Pró-Índio, Instituto Socioambiental, de todos os processos que existem hoje, que as comunidades cobram das empresas. A gente fez um trabalho precursor na área de identificação de comunidades, demarcação de territórios, processos de indenização.
P1 – Só para eu entender, quando a senhora vai em 78 como fotógrafa, a senhora já era do CTI? Ou só veio a fundar depois?
R1 – Já era.
P1 – Ah, tá.
R1 – Eu acho que é concomitante. Eu não lembro, sabe? Se eu fui um pouco antes ou pouco depois. Mas, quando eu voltei para a área Sateré, aí já tinha uma articulação dentro do Centro de Trabalho Indigenista para ter o Projeto Sateré. Porque tinha um financiamento mínimo para você ter gasolina, para você ter passagem de ida e volta, para você ter rancho. Enfim, para você ter um mínimo de mobilidade para poder acompanhar uma demarcação.
P1 – Então, a senhora volta lá da segunda vez já com o Projeto Sateré, sendo financiado inclusive pelo CTI. Gostaria que a senhora explicasse para a gente mais ou menos o que era esse Projeto Sateré-Mawé, quais eram os objetivos. Como isso foi se desdobrando?
R1 – O Projeto Sateré-Mawé?
P1 – O que era o Projeto Sateré-Mawé, quais eram os objetivos.
R1 – O Projeto Sateré-Mawé, ele começa com esse acompanhamento da demarcação do território Sateré-Mawé, que era o contato com os funcionários da Funai que estavam fazendo essa demarcação. E, depois, toda a parte de encaminhamento para, enfim, os papéis andarem, ter mapa, até ser homologado pela Presidência da República. O começo do projeto era para isso, para estar junto com os Tuxauas, junto com os caçadores e ir a Manaus, ir a Brasília e dar uma monitorada no processo de demarcação do território. E, aí, o que aconteceu é que eu acabei, de fato, conhecendo o território Sateré-Mawé. Porque, por exemplo, eles falavam: “Ah, tem um lugar que tem um cemitério dos antigos que está fora.” Aí, saíam os caçadores em canoas. A gente ia lá naquele lugar que estava fora, procurava as pessoas da Funai, agrimensor, antropólogo, para colocar aquela alça dentro. “Tal lugar que é uma nascente está fora e é a nascente do rio, é importante.” Ia para os confins da reserva, do território. Então, o projeto começou mesmo com a questão da demarcação. E foi muito bom porque eu conheci o território, conheci muitas aldeias, conheci muitas chefias. E fui tendo muito contato com o que era a cultura dos Saterés-Mawés. Como eles estavam organizados socialmente, como que eram os clãs, como que era a cultura do guaraná, como que eram as relações entre as chefias. Fui aprendendo por conta da demarcação. Aí, eu estando morando lá, o que eu percebi é que toda a produção do guaraná era entregue na mão dos regatões, que são esses comerciantes que sobem e descem os rios de barco. Porque eu comecei a presenciar isso. Por exemplo, um regatão encostava no porto de uma casa Sateré. Aí, vinha o dono da casa, entregava, por exemplo, seis quilos de pão de guaraná. Levava uma Havaiana, um Melhoral, um Nescau, um quilo de café, um quilo de açúcar e ainda ficava devendo. Eu fui vendo acontecer isso em vários lugares. E, aí, eu conversei com os Tuxauas, conversei com o CTI, da possibilidade da gente montar umas cantinas onde eles não entregassem mais a produção do guaraná para esses regatões. Eles juntassem toda a produção do guaraná, toda a safra do ano. E que, aí, eu ia ajudar, o CTI financiava viagem para ir a Maués ou para ir a Manaus à procura de preço. E eles venderiam a produção junta, por um preço melhor. E, com o dinheiro, eles já compravam aquilo que realmente era necessário, que não era Nescau, nem Sonrisal, entendeu? Compravam munição para caçar, compravam querosene. E a gente começou esse trabalho. É um trabalho que deu certo. Não deu totalmente certo porque, enfim, porque chegou um momento, o preço do guaraná caiu bastante. E porque também começou toda essa história de tentar colocar o guaraná em setores mais amplos de comércio. Mas, enfim, eu acho que deu certo do ponto de vista que eles pararam de ficar na mão dos regatões. Eles começaram a pegar a produção deles, que é o guaraná, a farinha, e irem vender a produção deles, pegarem o dinheiro na mão e comprar o que eles queriam. Umas vezes procurando preço, outras vezes por qualquer tostão. Mas parou de entregar tudo na mão dos regatões. E acabou que teve uma invasão no território deles, enquanto tinha esse projeto das cantinas do guaraná, enquanto estava tramitando a demarcação do território, que uma empresa francesa Elf Aquitaine, que é a estatal de petróleo na França, com um acordo, entre aspas, com a Petrobrás e com a Funai. Começou a fazer uma pesquisa sismográfica no Andirá chegando até bem perto do Marau. E eles acabaram procurando, recorrendo a mim, procurando o CTI. Porque já estava lá, já estava acompanhando demarcação. E a gente começou uma outra parte do projeto, que foi organizar as chefias. E já fazer uma organização também do ponto de vista jurídico, deles terem um advogado em Manaus, deles terem um acompanhamento. Aí que a gente procurou o professor Dalmo Dallari para dar acompanhamento. Porque aí não havia nenhum precedente disso. Nenhuma comunidade indígena tinha procurado a justiça brasileira para ir contra uma empresa brasileira e uma empresa internacional. Então, não tinha precedente. A gente queria fazer isso, mas a gente não sabia como fazer isso. E o professor Dalmo, ele já tinha dado uma ajuda no caso dos Gaviões, que também estava ligado ao Centro de Trabalho Indigenista. E ele era uma pessoa que estava muito interessada nessa questão da relação do Estado com as comunidades indígenas. E ele é, eu acho que é, a maior reserva moral que a gente tem nesse país, que está apodrecendo, está podre o Brasil. E ele que foi dando todos os passos de como que os Saterés-Mawés, através de seus chefes, com procuração em cartório, poderiam nomeá-lo procurador para estar entrando com o processo de interdito proibitório para essa empresa francesa, mancomunada com a Petrobrás e com a Funai, que estava invadindo a área deles. E, aí, ele acompanhou também depois todo o processo para ser cobrada uma indenização. Porque aí foram derrubados guaranazais, morreram índios. Quer dizer, aconteceu uma série de coisas por conta dessa pesquisa sismográfica, que, depois, o professor Dalmo acompanhou para ser cobrada uma indenização.
P1 – Na época, existia toda uma polêmica se deixaram algumas bombas ali, a Elf Aquitaine, se ela deixou algumas bombas na região dos Saterés depois que ela saiu. Parece que existia uma coisa de que as bombas tinham substâncias tóxicas, né? Morreram índios depois. A senhora sabe se realmente foram deixadas bombas lá, depois que eles que eles saíram?
R1 – Olha, várias vezes a gente interpelou a Petrobrás e a Elf Aquitaine no sentido de eles retornarem, refazerem esses caminhos em que iam sendo enterradas as bananas de dinamite e limpar. E nos responderam que isso tinha sido feito. Mas eu, sinceramente, acho que ainda deve ter alguma coisa enterrada lá. Porque foi uma quantidade enorme de dinamite que era sendo enterrada de tantos em tantos metros.
P1 – Mas a senhora não sabe de nenhum acidente que tenha acontecido com os índios por conta dessas bombas depois que eles saíram?
R1 – É que tudo aconteceu simultaneamente. Depois, um pouco depois que eles saíram, enquanto eles estavam lá, tem pessoas que morreram. Se eu não me engano, três pessoas faleceram porque manusearam essas bombas. Porque ou estavam junto quando elas foram colocadas, ou acompanharam a equipe que foi retirar e manusearam isso. E depois vai comer ou beber água, entendeu? Então, tem três pessoas que, com certeza, morreram por intoxicação. Não pela explosão em si da dinamite.
P1 – Existem alguns personagens, fora a senhora mesmo, dessa invasão da Elf Aquitaine, que lutaram contra isso. Tem o Dalmo que a senhora já falou. Existe o caso da etnóloga francesa, não é isso?
R1 – A Simone Dreyfus.
P1 – E também a participação do próprio deputado Mário Juruna, na época, não é isso?
R1 – Sim.
P1 – A senhora podia falar um pouco dessas participações?
R1 – Olha, o Juruna, na verdade, ele ajudou no primeiro momento, porque eu acho que ele tinha contato com alguns líderes Saterés. E ele acabou pegando uma banana de dinamite. Eu não me recordo precisamente, mas eu sei que o Juruna recebeu aquele primeiro impacto quando a Elf Aquitaine entrou. E foi aos jornais e veio a Brasília. Então, tem fotos do Juruna com a banana de dinamite, dizendo que a área Sateré estava invadida, que não existia uma autorização formal da Funai para essa empresa estar dentro de uma área que estava em processo de demarcação. Porque o processo de demarcação estava, de fato, tramitando já. Já tinha um mapa da demarcação dentro da Funai. Bom, isso o Juruna. A Simone Dreyfus, o que se passou é o seguinte: teve um momento que a gente fez uma reunião no Centro de Trabalho Indigenista, aqui em São Paulo, e a gente fez uma avaliação que, para realmente a empresa retirar todo a dinamite que tinha ficado enterrada, e para a empresa não voltar a fazer a pesquisa sismográfica na área, e para a empresa pagar a indenização por todos os danos, teria que ter uma repercussão lá na França. Porque a Elf Aquitaine é, na França, como a Petrobrás no Brasil. E o CTI acabou contatando a Simone Dreyfus Gamelon, que é do Instituto de Altos Estudos, na Sorbonne. Trabalhava no mesmo departamento do Lévi-Strauss. E era uma pessoa que já tinha feito pesquisa na América do Sul, tinha uma ligação com a América do Sul. E ela veio para a Amazônia. E eu fui a sua cicerone para levá-la onde tinha bomba, onde tinha clareira, onde descia helicóptero, onde tinha tido pesquisa. Levei ela para conversar com as chefias, para as chefias contarem o que eles estavam pensando sobre isso. E a ideia era a Simone Dreyfus, retornando à França, escrever um relatório dela como etnóloga, dizendo tudo que ela tinha visto na área Sateré. E, procurando a presidência da Elf Aquitaine, lá na França, para entregar um relatório do que essa empresa estatal francesa estava fazendo numa área indígena aqui no Brasil. E foi uma coisa eficiente porque tanto através do interdito proibitório que o Dalmo conseguiu equacionar com as lideranças indígenas, como o fato da Simone ter feito esse relatório, ter procurado a Elf Aquitaine, acabou constrangendo essas pessoas a de fato negociarem e indenizarem e não retornarem à área indígena. Foi isso que aconteceu.
P1 – Existia também, antes de eles chegarem a isso, existia uma posição de não negociar com índios, não é isso? Eles até aceitavam negociar com representante dos indígenas, mas não com indígenas propriamente?
R1 – A Elf Aquitaine?
P1 – Isso.
R1 – É. Eles, eu acho que eles não imaginavam o que eles iam ter que enfrentar. Eles achavam que eles iam conversar com o presidente da Funai, com o presidente da Petrobrás, com o advogado dos índios ou comigo. Mas a gente trabalhava de outra maneira. Na verdade, nós éramos articuladores, a gente fazia um trabalho técnico de dar condições para aquelas pessoas avançarem nessa sociedade envolvente que somos nós. Então, eu dava um apoio logístico, o Dalmo dava uma assessoria jurídica. Mas eles tinham que falar. Tinha que ser de chefe para chefe. O Dalmo explicou isso perfeitamente: tem que sentar o chefe da Petrobrás, o chefe da Elf Aquitaine, com o chefe Sateré.
P1 – No final, eles acabaram não pagando uma indenização, né? Eles pagaram, eles pagaram dinheiro, mas...
R1 – Eles pagaram uma parte da indenização, né?
P1 – Mas foi a título de doação, não foi isso?
R1 – Não. Foi como indenização.
P1 – Foi como indenização mesmo?
R1 – Foi paga uma indenização. Foi paga uma indenização. Você quer falar?
P1 – A senhora podia explicar um pouco melhor a questão do funcionamento propriamente dito das cantinas?
R1 – É, então, como é que eram as cantinas? Bem a grosso modo, né? Quer dizer, o que acontecia? Eles juntavam a produção da safra. Então, por exemplo, no Manga, que é onde morava o Tuxaua Emílio, que era o Tuxaua geral do Rio Marau. Estava combinado que os caçadores, que as famílias do Manga para cima iam agrupar ali os pães de guaraná, guaraná torrado, farinha. E que isso, numa data marcada, a gente levaria para Maués ou para Manaus para procurar preço. E com esse dinheiro, você repunha o que tinha na cantina que os caçadores e que as famílias que tinham trazido os produtos. Que era basicamente munição, querosene, café. Basicamente isso. Que acontece? Porque que não dá certo esse sistema? Porque uma cantina num lugar que o dono do lugar é um Tuxaua geral, a tendência é esse Tuxaua geral não cobrar dos caçadores. Para você ter uma ideia, o Tuxaua geral Sateré, você chega na casa dele, você vai parar na casa dele, você vai dormir, vai comer, para no dia seguinte seguir viagem. Ele desata a rede dele e ele ata a sua rede no lugar dele. Então, um dos atributos do Tuxaua geral é a generosidade. Quer dizer, é atributo de um chefe Sateré-Mawé ser generoso. Isso é uma coisa muito importante. Apesar de todo mundo saber que você entrega dois pães de guaraná, que custam tanto, e que depois você leva esse tanto de munição. E aí, você vai girando isso. As pessoas acabavam não pagando porque estavam num lugar que o dono era um Tuxaua geral, entendeu? Então, o que aconteceu? A parte de retornar o capital de giro das cantinas, seja o capital inicial, que foi colocado pelo CTI, como seja o capital da própria venda da produção do guaraná deles, era muito complexo por causa disso. E o que começou a acontecer é que desmanchou aquela cantina naquele lugar específico, mas ficou o funcionamento da cantina. Então, por exemplo, você tinha um guaranazal. Você, em vez de levar o seu guaraná defumado lá para a cantina, no Manga, do Tuxaua Emílio, você já descia de barco para Maués, já ia onde tinha o bom preço. Você vendia o seu guaraná, você não entregava mais para o regatão. Você pegava a sua grana e aí você comprava um corte de tecido para a sua mulher, você comprava sal, você comprava munição. Então, a gente não conseguiu, o CTI junto com os Saterés, fazer essa cantina vingar desse ponto de vista do capital de giro. Mas a gente conseguiu implantar uma nova dinâmica de eles venderem a produção deles, pegarem dinheiro vivo, espécie, que eles não pegavam com os regatões, e comprarem aquilo que eles precisavam.
P1 – Nesse processo de aprendizagem, em algum momento, a senhora achou que houve uma dificuldade por conta de duas lógicas diferentes: a que vocês traziam pra eles, de que eles deviam se autossustentar, e a deles? Ou não?
R/1 – Olha, os Saterés, eles são um povo comerciante. Eles, tradicionalmente, são comerciantes. Porque o guaraná é um bem valioso. Então, eles comerciavam o guaraná no Mato Grosso. Eles chegavam até Cuiabá para comercializar o guaraná e comercializaram pau-rosa, no tempo do SPI, comercializaram sempre farinha, guaraná. Então, eu acho que eles têm tino comercial. Eles gostam do comércio. Eu acho que a maior questão mesmo é por conta... Primeiro é assim: eles acham que, como que eu posso te explicar? Por exemplo, chegou um capital a fundo perdido para começar a cantina. Eles acham que a gente é eternamente devedor para eles. Então, se chegou um capital para começar uma cantina, e você fala que esse capital tem que voltar, que tem que ter giro, eles não pensam dessa forma. Eles acham que os brancos devem sempre para eles. Porque eles tinham um território gigantesco que ia do Tapajós ao Madeira, do Amazonas às cabeceiras, e eles ficaram com uma titiquinha. Eles já perderam tanto, tanto, tanto, desde o começo do contato, que eles acham que o Estado brasileiro, que os comerciantes, que os americanos, que os franceses, todo mundo deve para eles. Então, eles têm uma certa dificuldade não é de entender. É de concordar que aquela primeira injeção de capital retorne para o negócio rodar. Que eles acham que a gente tem que dar as coisas para eles. Eu acho que a filosofia do SPI e depois da Funai corroboraram com isso. Foi péssimo, né? Foi péssimo. E por outro lado também, tem essa questão da tradição. As cantinas, geralmente, ficavam nos lugares de chefia. E os chefes acabam acolhendo as pessoas, dando dormida, dando comida, dando caça, dando tudo. Então, por exemplo, o Tuxaua Emílio, ele falava muito duro com relação a questões políticas e estratégicas. Ele era muito duro. Ele, realmente, era um guerreiro. Agora, se chegassem lá várias famílias e levassem tudo que estava na cantina, ele não sabia cobrar. Por quê? Porque ele está investido numa posição que as pessoas na casa dele comem o que tiver.
P1 – A senhora leu o livro do Nunes Pereira, que esteve lá na década de 40, 50.
R1 – Li.
P1 – Pensando naquela experiência, naquele livro e de quando a senhora esteve lá, o que mudou na sociedade Sateré-Mawé?
R1 – Eu acho que a maior mudança é que realmente já tinha o milagre brasileiro, já estava chegando estrada perto, já tinha Transamazônica, já tinham garimpeiros. Já tinha muito garimpo no Madeira, no Tapajós, no Itaituba. Eu acho que a maior mudança do tempo, desse tempo do SPI e do Nunes Pereira para o tempo que eu estive lá com a Funai, é que a ditadura é pior, né? Essa ditadura militar que teve. Os chefes de posto da Funai, os funcionários da Funai, os garimpeiros que já estavam na Amazônia buscando ouro. O fato de ter sempre, de eles estarem sempre atormentados se uma estrada vai cruzar o território deles. Porque várias estradas estavam sendo abertas na Amazônia. Então, eu acho que a mudança mesmo é essa ocupação da Amazônia, que acontece na década de 80.
P1 – E isso influencia diretamente na cultura deles? Há mudanças de padrões culturais ou não?
R1 – Eu acho que influencia porque, primeiro, você convive com o medo. Isso influencia culturalmente. Depois, você sai para caçar, bate com o garimpeiro que está lá, cavoucando no seu quintal. Você sai para ir cuidar de um guaranazal, detona um monte de dinamite de uma empresa que está fazendo pesquisa sismográfica para achar petróleo. Depois, eu acho, chega mesmo a sociedade de consumo nas cidades próximas. Muito mais do que no tempo do SPI, do Nunes Pereira. Que é a época que o Nunes Pereira visitou o Rio Andirá. Então, a cidade de Maués já tem uma presença marcante da sociedade de consumo. A cidade de Parintins já tem uma presença marcante. Isso atrai os índios para a cidade. Os índios querem rádio, gravador, televisão, munição, fósforo, bala, bombom. Eles têm essa curiosidade, eles querem ter acesso a isso. E isso, gradativamente, tira os Saterés das cabeceiras e vai trazendo eles para a beira dos rios. Isso é um fenômeno típico da Funai. Tanto o apelo das cidades, como a maneira como a Funai trabalhava com as lideranças, com as famílias, faz com que essas aldeias das cabeceiras venham para a beira do Rio Andirá, para a beira do Rio Marau. Então, você muda completamente a parte de territorialidade do Sateré, que eram lugares centrais, grandes aldeias, nos centros, perto das cabeceiras. De repente, no Rio Marau, tem um monte de aldeia. Por quê? Porque tem o posto da Funai, porque tem o enfermeiro da Funai, porque tem o padre, porque tem o Summer, porque tem mais não sei o quê, tem mais não sei o quê, porque eles querem ir para Maués no supermercado. Então, eu acho que a grande mudança mesmo é a vida econômica e política do país.
P1 – E eu queria saber como que eles veem, especificamente Maués, como os Saterés-Mawés veem a cidade de Maués. Quando a senhora esteve lá, já nessa época, já tinha também a fábrica da Antarctica. Era a época da Antarctica. Já existia a Fazenda Santa Helena, com uma outra proposta de cultivo do guaraná. Quando a senhora esteve lá, como era a visão deles em cima dessas mudanças de Maués? E como Maués parecia para esses indígenas?
R1 – Eles veem a cidade de Maués como um lugar que era deles, no tempo dos antigos e que eles perderam. Eles tinham, e devem ter ainda, certeza absoluta que aquele lugar é um lugar que eles perderam para os brancos. Que a cidade de Maués fazia parte do território deles. Eles mostram as urnas. Tem lugares em que eles levam para mostrar as urnas. Eles relatam guerras com os Mundurukus, guerras com os Parintintins, na região que vai do Paraná do Ramos até Maués. Eles relatam episódios da Cabanagem que eles participaram. Então, a cidade de Maués, para eles, fazia parte do território deles, desse imenso território que eles tinham. E que eles perderam para os brancos.
P1 – E a relação com a cidade mesmo, com a indústria? Ou não existia?
R1 – Eles sempre falavam que os brancos, que a Antarctica – naquela época não tinha AmBev, a AmBev já é uma coisa recente –, mas que os caboclos e que a Antarctica, que eles plantavam guaraná errado, colhiam guaraná errado. Mas eles também não se importavam muito porque era para fazer xarope, que é consumido no Estado do Amazonas, é um costume o xarope do guaraná. E que era para fazer refrigerante. E que nesse guaraná da Antarctica não tinha nada de guaraná. E que eles viam os caboclos colherem guaraná e pisarem guaraná. Enfim, que eles faziam tudo errado, que aquilo não era çapó. Não era o guaraná dos Tuxauas, dos Saterés-Mawés. Aquilo já era uma coisa vira-lata.
P1 – Eles chegaram a vender para a Antarctica? Eles vendiam produção para a Antarctica?
R1 – Não, não, não.
P1 – Na época que a senhora estava lá não existia isso?
R1 – Não, não, não.
P1 – Então, a produção deles se voltava principalmente para...
R1 – A produção deles era assim: iam para os regatões os pães de guaraná e a grande parte para consumo próprio. Eles tomam muito guaraná, que eles chamam çapó. E tinha um excedente que ia para os regatões e que depois eles foram se organizando para eles comercializarem, entendeu?
P1 – Mas aquela região...
R1 – Mas, por exemplo, essa história de vender guaraná em grão, né? Que, aí, vende para indústrias farmacêuticas e que exportam para a Itália. Isso já é uma coisa recente. Não existia isso. Eles achavam, eu lembro de conversar com os chefes de família, donos de grandes guaranazais, eles achavam horrível vender guaraná em grão para comércio, para os brancos. Porque o guaraná é uma coisa sagrada, ritual. Então, eles vendiam os pães de guaraná, porque também, naquela época, tinham um bom preço para o comércio. Eles não viam muito sentido em vender o guaraná que não fosse um pão de guaraná, que foi bem colhido, bem descascado, defumado. Depois, eu acho que eles se deram conta que eles tinham que exportar, que eles podiam ganhar dinheiro com isso.
P1 – E do que a senhora presenciou, fora a questão da produção, que lugar que ocupa, na vida deles, essa bebida? Como que é diariamente isso?
R1 – O guaraná? É uma bebida cerimonial, entendeu? Quer dizer, por exemplo, você chega na casa de uma pessoa, a pessoa te oferece um cafezinho, né? Tem esse papel. Mas, acrescido a esse costume de oferecer o cafezinho, que eles ofereceriam o çapó. É uma bebida cerimonial porque eles se dizem filhos do guaraná. Existe um mito da origem, que os Saterés-Mawés nasceram do guaraná. Nasceu o guaraná, em seguida nasceu o primeiro Sateré-Mawé. Tem um mito, tem toda uma história que tem no meu livro. Então, quer dizer, é um cafezinho com muito valor agregado. Porque é uma bebida religiosa, é uma bebida sagrada. Cada vez que você toma çapó, você está comungando com a sua origem. Então, é isso. E eles bebem muito guaraná. E também tem essa questão que o guaraná é um estimulante. Então, você vai caçar, você bebe guaraná. Você vai pescar, você bebe guaraná. Você sai de uma aldeia e você vara a mata para chegar em outra aldeia, você toma guaraná. Guaraná corta a fome. Então, tem isso.
P1 – A coisa da culinária deles... Por que em alguns momentos eles bebem guaraná, não é isso? Por exemplo, quando a mulher está grávida, alguma coisa assim.
R1 – Isso.
P1 – Aí, alguns relatos, o Nunes Pereira fala também de comidas típicas desse período. Como comer formiga. Isso se mantém?
R1 – Sim, se mantém, eu vi tudo isso. Eu vi tudo isso. Vitamina, né?
P1 – Desculpe, não entendi.
R1 – Vitamina. Uma formiga torradinha com farinha é muito bom.
P1 – A senhora também experimentou?
R1 – É. É ótimo.
P1 – Naquela época, ainda se conservava a função de xamã feiticeiro, xamã curandeiro? Qual era a força da religião dos brancos já nessa época, como que isso ficava, naquela região?
R1 – Nessa época que eu estive bastante lá, já tinham os adventistas, já tinham os batistas, já tinham os católicos. Mas ainda tinham os pajés e os xamãs. E eu acho que algumas famílias fizeram uma opção mais radical, né? De de ir só às missas da igreja católica, ou ir aos cultos adventistas. Mas eu acho que a maioria dos Saterés tinha essa capa, esse invólucro. Porque era ou batista, ou adventista, ou católico, mas ainda tinha contato com os xamãs. Porque, por exemplo, eu conheci um xamã, o Lautério, que chegavam muitas pessoas na casa dele para serem tratadas. Chegava batista, chegava adventista, chegava católico.
P1 – Existe, então, um sincretismo?
R1 – Isso, isso. Eu estou com um probleminha de tempo.
P1 – A senhora presenciou também o ritual da Tocandira, não é isso? A senhora podia contar, em linhas gerais, quando acontece, como é, a importância disso para aquele grupo?
R1 – Esse ritual, na verdade, é um ritual de passagem. E é um ritual na passagem dos meninos para homens. É um momento que a família resolve que aquele rapazinho vai enfiar a mão na luva. E aí, eles dançam a noite toda e eles fazem um jejum por causa dos venenos das formigas. Eles fazem um jejum. Eles bebem guaraná. São cantados vários mitos durante o ritual. Então, eles ficam dançando, cantando. As músicas sempre são épicas, sempre são de guerra, sempre são de caça. E aí, depois dali, o menino estaria pronto para casar, para caçar sozinho. Não ajudar mais o pai. Para abrir roça. Na verdade é isso. É uma passagem de menino para homem. As meninas, quando ficam menstruadas, não têm um ritual explícito como é o ritual masculino. Elas também ficam de resguardo e também fazem uma dieta e são cuidadas pelas mães, pelas avós. Mas o ritual de passagem masculino, que é a festa da Tocandira, é um ritual bem marcante para eles. E, geralmente, é junto com esse comecinho da colheita do guaraná. Porque tem que ter muito çapó durante o ritual. Porque aí, vêm muitas famílias. E tem que ter muito çapó para todo mundo beber. E os rapazes também têm que tomar durante o ritual.
P1 – Depois, a senhora sai em 84 de lá, não é isso? Do território dos Saterés-Mawés. A senhora defende o mestrado mais ou menos nessa época também, com a Lux Vidal, não é isso?
R1 – Isso.
P1 – E aí, eu queria saber um pouco depois de 84, quando a senhora sai de lá, defende o mestrado, como que foram as suas atividades relacionadas com a Antropologia? Porque depois a senhora também trabalha com mosaicos, não é isso? Que já era uma atividade. Eu queria que a senhora contasse um pouquinho depois de 84, como se dá ainda a relação com a Antropologia, com os Saterés-Mawés? Com que atividades a senhora foi se relacionando mais?
R1 – Eu continuei no Centro de Trabalho Indigenista. E eu tive, eu voltei à área Sateré, depois que eu retornei. Eu retornei à área Sateré algumas vezes para dar uma monitorada nessa questão da cantina. No que a cantina estava se transformando, né? Foi quando eu chequei que, realmente, os regatões não estavam mais entrando no Marau, que eles procuravam vender a produção deles fora. E também eu fui dar uma assessoria para uma equipe de médicos espanhóis que estavam tendo dificuldade de fazer o trabalho de saúde na área, porque, exatamente, eles não conseguiam contato com os xamãs. E aí, a resposta dos Saterés para uma série de tratamentos de medicina preventiva ficava truncado. Eu voltei com a equipe da Doutora Cristina Alvarez para fazer essa ponte da nossa medicina com os xamãs. E eu trabalhei muito em outras áreas. Porque tem essa história da Antropologia e da Arquitetura. Então, eu fiz muitos livros, eu fiz edição de arte de vários livros. Eu trabalhei na Fundação Roberto Marinho. Eu fiz, esses anos todos, eu produzo mosaicos. Eu fui dona de uma empresa, Oficina de Mosaicos, que no ano passado eu saí. Agora, eu trabalho sozinha. E eu continuei dando algumas assessorias nessa área de Antropologia para empresas. Trabalhei na área, nessa parte de estudos de impacto. Agora, eu estou prestando uma consultoria para uma empresa que é a Natura, já prestei para outras empresas. E eu sempre vim trabalhando nesses três nichos. Essa parte de fotografia, de edição. Parte de etnografia. Também dei consultoria para o Instituto Socioambiental no Alto Rio Negro. E nessas três áreas, o tempo todo, trabalhando.
P1 – Hoje, os Saterés-Mawés, eles conseguem fazer uma coisa que a senhora vislumbrou na década de 80, né? Que é vender a produção no mercado externo e conseguir agregar ao valor do produto um valor, digamos assim, de conservação da cultura, do fato de eles serem os inventores do beneficiamento do guaraná. A senhora tem contato com o que eles estão fazendo agora, nesses termos? É uma coisa que a senhora vislumbrava mesmo?
R1 – Eu achava que essa experiência embrionária da cantina, considerando que eles são comerciantes e considerando o orgulho étnico, do ponto de vista de eles serem filhos do guaraná, eu achava que eles iam longe. Eu achava que precisava quebrar aquela dependência com os regatões, que eles tinham que chegar em Maués, em Manaus, Brasília, Roma. Por causa disso, porque tinha um suporte muito bom, que é o fato deles terem orgulho étnico. E o fato deles serem comerciantes, além de agricultores do guaraná. Eu acho que veio um rapaz para cá, o Maurício, que fez as primeiras tratativas para venda, para exportação de guaraná para a Itália. E eu acompanhei, eu conversei com ele várias vezes, mandei cartas de recomendação, eu acompanhei o começo desse processo aí, de exportação. E, às vezes, eu vejo alguma coisa em jornal ou eu tenho amigos que trabalham em Manaus que dão notícias. Mas eu não sei nos detalhes o que eles estão fazendo agora. Mas eu achava que ia prosperar, que ia dar certo.
P1 – Por fim, a última pergunta: o que a senhora achou de contar essa história?
R1 – Ah, eu gostei (risos). Eu adoro falar dos Saterés. Eles são muito importantes na minha vida. Eles realmente são um divisor de águas. Eu fui de um jeito, voltei de outro jeito completamente diferente. E é um prazer falar sobre eles.
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