Projeto: Indígenas pela Terra e Pela Vida
Entrevista de Emerson de Oliveira Souza
Entrevistado por Tiago Nhandewa
Entrevista concedida via Zoom (Curitiba / Santo André), 03/11/2022
Entrevista n.º: ARMIND_HV020
Realizada por Museu da Pessoa
Revisada por Bruna Oliveira
P/1 − Boa tarde Emerson! Seja bem-vindo aqui, no Museu da Pessoa! Obrigada por fazer parte desse projeto! Então, começamos aqui falando sobre suas origens. Eu gostaria que você se apresentasse, falasse seu nome em português e, também, o nome indígena?
R − Boa tarde! Obrigado Tiago! Obrigado pelo convite, Museu da Pessoa. Meu nome é Emerson de Oliveira Souza, esse nome das origens ocidentais, digamos assim. Sou professor da Rede Pública Estadual do estado de São Paulo, sou professor de Sociologia para os alunos de escola pública na periferia de São Paulo, uma periferia assim, bem do extremo mesmo, extremo da periferia. Sou mestre em Antropologia, agora doutorando em Antropologia. E desenvolvo uma atividade, desde 2021, que é uma atividade de reorganização do currículo municipal, que é o currículo aqui da Prefeitura da cidade de São Paulo. Então, eu estou no trabalho de descolonização, digamos assim, do currículo a partir da implementação da Lei 11.645 de 2008, que aí insere as questões indígenas na área da Educação. Então, estou nessa, numa das inúmeras tarefas, desenvolvendo esse projeto aí, que eu acho que é superimportante, justamente porque eu acredito que a Educação é um dos caminhos aí para a gente poder discutir uma nova sociedade, cidadania e, principalmente, legitimar a presença dos povos indígenas aqui no Brasil. Sou Guarani Nhandewa, minha família é do interior, assim também como parte da família do Tiago também é, do interior de São Paulo, de uma aldeia chamada Curt Nimuendaju. E o meu nome indígena é Cunumi Guyra Morantin, que é um menino, que é um pássaro e Morantin, branquinho, é um pássaro branco que adora circular no...
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Entrevista de Emerson de Oliveira Souza
Entrevistado por Tiago Nhandewa
Entrevista concedida via Zoom (Curitiba / Santo André), 03/11/2022
Entrevista n.º: ARMIND_HV020
Realizada por Museu da Pessoa
Revisada por Bruna Oliveira
P/1 − Boa tarde Emerson! Seja bem-vindo aqui, no Museu da Pessoa! Obrigada por fazer parte desse projeto! Então, começamos aqui falando sobre suas origens. Eu gostaria que você se apresentasse, falasse seu nome em português e, também, o nome indígena?
R − Boa tarde! Obrigado Tiago! Obrigado pelo convite, Museu da Pessoa. Meu nome é Emerson de Oliveira Souza, esse nome das origens ocidentais, digamos assim. Sou professor da Rede Pública Estadual do estado de São Paulo, sou professor de Sociologia para os alunos de escola pública na periferia de São Paulo, uma periferia assim, bem do extremo mesmo, extremo da periferia. Sou mestre em Antropologia, agora doutorando em Antropologia. E desenvolvo uma atividade, desde 2021, que é uma atividade de reorganização do currículo municipal, que é o currículo aqui da Prefeitura da cidade de São Paulo. Então, eu estou no trabalho de descolonização, digamos assim, do currículo a partir da implementação da Lei 11.645 de 2008, que aí insere as questões indígenas na área da Educação. Então, estou nessa, numa das inúmeras tarefas, desenvolvendo esse projeto aí, que eu acho que é superimportante, justamente porque eu acredito que a Educação é um dos caminhos aí para a gente poder discutir uma nova sociedade, cidadania e, principalmente, legitimar a presença dos povos indígenas aqui no Brasil. Sou Guarani Nhandewa, minha família é do interior, assim também como parte da família do Tiago também é, do interior de São Paulo, de uma aldeia chamada Curt Nimuendaju. E o meu nome indígena é Cunumi Guyra Morantin, que é um menino, que é um pássaro e Morantin, branquinho, é um pássaro branco que adora circular no movimento de liberdade aí pelo Brasil e pelo mundo, é isso.
P/1 − Emerson, ainda voltando um pouco no tempo. Em que ano você nasceu? E o nascimento, como é um acontecimento muito especial na vida de uma pessoa, eu gostaria, assim, você tem alguma lembrança? Sua mãe te contou como foi esse dia do seu nascimento?
R − Então, na verdade, eu nasci na cidade, no município de Santo André, que é um município da região metropolitana de São Paulo, é uma cidade da região metropolitana. Na verdade, a minha família veio para São Paulo, para essa cidade em específico, justamente por um processo de migração, em que a minha família saía, se deslocava da região do Araribá, Bauru, depois acabava entrando, circulando pela região do Paraná, naquelas aldeias, de Laranjinha e Porto Velho. Então, minha mãe ficou por um bom tempo vivendo ali, meus avós acabaram morrendo e sendo enterrados ali naquela região. E, depois desse momento, a gente acabou se deslocando, a minha mãe acabou se deslocando com a minha família para a região de Santo André, justamente porque era uma cidade que começava um processo de industrialização, com essas fábricas grandes, tipo Pirelli, as montadoras, da Ford, a Volkswagen. Então, minha mãe acabou trabalhando nessa região, principalmente na área de serviços, nessas fábricas. O que a gente tem de lembrança do passado é que a minha mãe conta bastante, que a gente saiu de uma região do interior de São Paulo, para a cidade de São Paulo, para tentar, de certa forma, se inserir dentro de um contexto de cidade, mas o que marca muito, principalmente o meu nascimento, a minha infância, é que essa região, era uma região de muita pobreza. Porque os indígenas saem das suas regiões e quando eles chegam em determinados locais, vão enfrentar um desafio, de sobreviver dentro da cidade grande. Eu nasci dentro desse contexto, minha família morava ainda numa casa, que era uma casa…. um cortiço, e a gente sabe que os cortiços eram casas onde moravam inúmeras famílias, então eu acabei nascendo dentro desse contexto, cortiço, numa cidade que está em processo de industrialização, uma cidade que tinha um crescimento que estava impulsionando a economia, digamos assim, de São Paulo. Só que eu fiquei por pouco tempo em Santo André e depois a gente acabou vindo para região da zona leste de São Paulo. Então eu nasci nesse contexto. Os indígenas que estão em movimento, num processo de migração, foram nascendo, então quer dizer, a gente tem muita essa ideia também, mas nasceu na aldeia ou nasceu fora da Aldeia, tem ainda um certo olhar aí, como se as cidades, os lugares onde a gente circula, não fossem parte desse processo em que os indígenas circulam, por inúmeros lugares, inúmeras regiões, que não só circulavam, mas esses espaços eram espaços indígenas, então quer dizer, Santo André tem uma longa história, Santo André da Borda do Campo, hoje desmembrou, Santo André e São Bernardo do Campo. E foi nessa região aí que grande parte dos indígenas circulavam, território imenso, tinham os rios que eram os rios afluentes, os rios que desembocavam na Marginal do Rio Tietê, que era o rio que hoje corta a Avenida do Estado, então, quer dizer, era um rio que terminava lá no centro de São Paulo, que depois acabou sendo canalizado, mas que a gente sabe que eram rios muito grandes, que terminavam no centro da cidade, e que eram por onde os indígenas circulavam no finalzinho ali, ainda do século XVIII, início do século XIX. E depois do início do século XX, já era uma região que não tinha mais indígenas vivendo em aldeamentos, mas naquela região de Santo André, Diadema, Santo André, São Bernardo, era uma região, onde eu nasci, que tem muita presença dos indígenas. Eu fiz um estudo sobre os indígenas que vivem em contexto de cidade, e ali era uma região que tinha, o último censo apontou assim, quase 600 indígenas vivendo na cidade de Santo André, então é uma região que não é só da passagem, mas é da presença e da história dos povos indígenas, eu posso afirmar que fez parte da minha história enquanto indígena, a gente sabe, depois a gente acabou voltando para Aldeia, mas eu nasci fora desse contexto, justamente porque a minha família acabou saindo da Aldeia, circulando pelo Paraná e vindo para São Paulo, depois de São Paulo, retornando para Aldeia. Então quer dizer, a gente está num movimento, é isso.
P/1 − Ainda falando da sua família, eu gostaria que você falasse específico da sua mãe. O nome dela? Como você a descreveria? E a origem por parte da família dela?
R − Então Tiago, a minha mãe, como eu disse, uma Guarani. A minha família vem também desse processo de migração, a gente sabe, acompanha através dos livros, que grande parte da nossa família, saiu do Mato Grosso, regiões da divisa ali do próprio Paraguai, e que circulavam pelo oeste de São Paulo, pelo Rio Tietê e seus afluentes, então tem o Rio Paraná e o Rio Paranapanema, tem o Rio Batalha, então existiam uma série de afluentes que desembocavam ali no Rio Tietê. Mas os indígenas circulavam ali naquele território, que é imenso, onde a gente sabe que tem muitas outras aldeias do povo Guarani Nhandewa, que se formaram no interior de São Paulo. Então a minha família, os meus avós, os pais da minha mãe, circularam nessa região no finalzinho do século XIX, início do século XX. E foi ali que a minha mãe nasceu, na região de Bauru, minha mãe acabou nascendo ali naquela região. Então, ela passou por um processo de mudanças, justamente porque a gente sabe que ali naquela região, foi uma região muito violenta para os povos indígenas, o interior de São Paulo, a gente pode dizer assim, é fruto de um processo de muitas violências, de muitos genocídios e etnocídio, porque a gente pode dizer, que o que se vive em São Paulo, ainda é um processo etnocida, porque a gente acaba apagando a história dessas pessoas, então não só eu, como você, a gente tem assim uma história de muitas violências etnocidas, justamente porque grande parte da história dos nossos parentes, ficou fora dos livros, quer dizer, fora inclusive da própria memória de muitos, porque a gente não documentou, como deveria ter sido feito, a presença desses indígenas. E no fim, a gente acaba tendo que fazer um pouco desse caminho da volta, para entender um pouquinho da nossa realidade, justamente porque esses processos históricos violentos, eles acabaram fazendo parte desse processo de migração, então aquela região ali que recebeu os Guaranis Nhandewa, que a gente chama hoje de Curt Nimuendajú, de Aldeia, foi o povoamento indígena do Araribá. E esse povoamento indígena Araribá, criado ainda no início do século XX, foi onde circularam e chegaram inúmeros indígenas que a gente chama aí dos Taniguá, Oguauíva, Apapokúva e esses indígenas Nhandewa que ficaram na povoação do Araribá, formaram um dos primeiros povos e primeiros territórios indígenas do Estado de São Paulo e que foi um movimento, que eu acho que é interessante, de se criar essa Aldeia, mas não dá para a gente esquecer que era um processo também de retirada de inúmeros outros territórios, para tentar criar pequenas Ilhas. Então a minha família, ela está inserida dentro desse contexto, quando a minha mãe nasce, ela nasce dentro de um contexto de uma violência que havia acontecido na região, principalmente com a chegada de milhões de imigrantes que vieram da Europa, que adentraram o território indígena, quase que em sua totalidade pelo Porto de Santos e subiram de trens até Estação da Luz e na estação da Luz, existiam os trens que iriam se destinar para a região do centro-oeste de São Paulo, que desembocava ali na região de Bauru. Então, Bauru era um grande centro, digamos assim, de distribuição desse povo que vinha da Europa, mas que já começava a ocupar o território que era Kaingang, que era do Povo Oti, que era do Povo Guarani. E nessa chegada, nessa construção de linhas férreas, que cortaram a nossa aldeia, porque você sabe que acabou cortando a Aldeia Curt Nimuendajú ao meio, essa presença foi de uma violência ao extremo, porque com esse contato com os imigrantes que estavam construindo aquele território, os indígenas ali, acabaram sendo vítimas da doença que a gente chama de Gripe Espanhola, então se disseminou entre os indígenas ali em 1919, que estavam naquela região, inclusive os meus avós estavam nessa data, nessa Aldeia. Então, a gente sabe que quase 300 indígenas morreram, quase que de forma instantânea, fruto dessa violência do oeste de São Paulo, com essa chegada, não só das estradas de ferro, mas com esse processo de distribuição que era, a princípio, não só a distribuição de mercadorias, mas era a chegada dos imigrantes via estações de trem. A gente sabe que as estações de trem que saíram ali de Bauru, subiam para Mato Grosso, desciam para região do Sul e que adentravam oeste de São Paulo e iam ocupando imensos territórios indígenas. Então, a minha mãe acabou nascendo dentro desse contexto, de um contexto de uma criação de uma aldeia indígena que, na verdade, reunia inúmeros outros indígenas, foi o local onde teve a presença não só dos Guaranis, mas dos próprios Kaingang, os poucos que conseguiram sobreviver, que não ficaram lá nas aldeias de Icatu e Vanuire e acabaram sendo trazidos para Araribá, para viver também junto com os Guaranis. Então, quer dizer, era um processo de muitas mudanças na região, mas eu diria também, que é um processo que legitimou a violência ao extremo que São Paulo causou. E a minha família, na década de 1930, depois da gripe espanhola, acabou se deslocando para região do Paraná. Então, a minha mãe nasceu um pouquinho depois, mas nasceu aí dentro desse contexto, em 1942, em Bauru. O meu tio, que é o Francisco da Silva, que a gente chama de Sayju Karaí Mirim, ele nasceu em 1926, quer dizer, é um dos irmãos mais velhos, o único irmão na verdade, a gente só tem o irmão, um tio e duas irmãs, que uma você conheceu, a Almerinda da Silva. Uma das minhas tias acabou falecendo e sendo enterrada lá na aldeia Curt Nimuendajú e o Francisco da Silva também está enterrado lá, seu corpo está enterrado dentro daquele cemitério indígena. E a minha tia também, a tia Margarida da Silva. Então, são esses três irmãos já falecidos que, no final, também nasceram nessa região. Minha mãe nasceu um pouquinho mais adiante, na década de 1940, mas era uma época que já tinha muito poucos indígenas Guarani, então meu bisavô, como havia aprendido a falar a língua Kaingang, ele acabou indo para o Posto Velho, justamente porque o chefe de posto daquela região, convidou, para que ele fosse um dos interlocutores com os Kaingang que estavam ainda na região do Posto Velho. Então, ele acabou indo, mas aconteceu a mesma violência que aconteceu aqui no Estado de São Paulo, através desses interlocutores, porque se a gente for pegar a história da Índia Vanuire, ela foi uma interlocutora do Estado que, no final das contas, acabou fazendo papel dos brancos, para poder chegar até os Kaingang. E assim que eles chegaram próximo aos Kaingang, houve uma série de mortes, uma série de matanças, a desintegração da cultura e a retirada dos territórios Kaingang. Eu diria que o que aconteceu com a minha família no Paraná, foi um pouco do que aconteceu também com a família dos indígenas Kaingang de Icatu e Vanuire. Então, aquela região onde a minha mãe nasceu, ali na região de Bauru, era uma região que tinha vários problemas, principalmente da gripe espanhola, da estrada de ferro que passou, dos inúmeros imigrantes que acabaram vivendo no entorno ali daquela região, eu tenho documentos dali, para você ter uma ideia, eu tenho documentos dali daquela região, que acabei encontrando também nas minhas pesquisas, que eram documentos de arrendamento de terras no entorno e na própria aldeia, povoação do Araribá daquela época, então quer dizer, os imigrantes além de ocuparem os territórios do entorno, também produziam terras dentro dos territórios indígenas, e isso foi causando uma total desintegração, os indígenas acabaram perdendo um pouco das suas ações, das suas línguas. A minha mãe também já estava nesse processo de sair da região de Bauru, ir para o Paraná, então ela tinha tudo para deixar de falar o Guarani, ela só voltou a falar mesmo, mais a língua materna, a língua do Povo Guarani Nhandewa, quando retornou em 1980 para a aldeia. Então, a minha mãe tinha tudo para deixar de falar o Guarani, tinha tudo para perder um pouco dessas tradições, inclusive da própria origem, porque a cidade onde eu estou, ela é muito violenta com os indígenas, a cidade ela vai desintegrando os indígenas, e você vai virando aquele morador da periferia que acaba, de certa forma, mantendo laços distantes das suas comunidades. Então, foi muito bom que a minha mãe acabou retornando na década de 1980, com a gente, eu também voltei na década de 1980, Tiago, justamente porque a minha mãe fez esse movimento de retornar para Aldeia. E assim que ela volta, é uma coisa interessante, porque normalmente passa pelas nossas memórias, porque quando eu voltei em 1980, que eu fui estudar ali nas aldeias junto com dos Terenas, lá no posto que a gente chama de sede. Eu acabei, na década de 1980, estudando ali junto com os Terenas e com os Guaranis, mas acho que é importante, inclusive para minha própria formação, da minha mãe, entender um pouco desse movimento que estava acontecendo. Porque a década de 1980, foi a década em que existiam uma série de assembleias indígenas no Brasil inteiro, e os indígenas daquela região em 1980, estavam também fazendo essas assembleias, justamente fruto daquele processo que eu não acabei contando, mas porque a aldeia que foi criada ali em 1910, um pouco antes de 1910, ela acompanhava um pouco da trajetória do Serviço de Proteção ao Índio. Então, quer dizer, esse processo do SPI ali na região do Araribá, região onde a minha mãe está vivendo até hoje, é uma região que passou por um processo histórico de muitas violências, até 1967, quando termina o Serviço de Proteção ao Índio. Eu digo violência, por quê? Porque a aldeia onde viveu minha mãe e viveu os meus bisavós e a minha mãe vive até hoje, é uma aldeia que teve uma espécie de transformação sociocultural, justamente pelas ações do próprio Estado, porque o Estado criou um Serviço de Proteção ao Índio que, na verdade, não era para proteger, era para fazer que grande parte da sociedade indígena, aos poucos, se transformasse numa espécie de fazenda agrícola, onde existia ali, serraria, pasto para boi, criação de porcos, criação de algumas... até pombo, para você ter ideia era criado, tinha pombal dentro da Aldeia. E esse processo da criação de uma espécie de sede, é uma coisa interessante, que eu tenho inclusive pensado um pouco no meu doutorado, porque a sede, ela fica num local alto, em que ela tinha uma visão da colônia lá no fundo, que era uma colônia que se dividia em dois lados. Tem até hoje, você sabe que o povo Terena está lá! E que para mim, era uma espécie de controle também, porque a sede ela servia também como uma espécie de controle, ela ficava num lugar alto, meio simbólico, para dizer: olha, naquela região, na parte alta da comunidade ali, estão os chefes de posto que são do Serviço de Proteção ao Índio. Então quer dizer, era uma espécie de controle, porque ali foi criado junto com o SPI, uma escola, que eu acabei estudando ainda, antes dela ser derrubada, muito recentemente. Eu estudei nessa escola onde se hasteava bandeira, essa ideia do Positivismo, da Ordem, do Progresso, tinha uma bandeira muito grande que os indígenas hasteavam. Na minha época, eu não cheguei a usar uniforme, mas os relatos que a gente sabe, é que tinha um uniforme que os alunos colocavam, uma espécie de uniforme muito ligado a esses uniformes que o exército usa. Então, o SPI fazia com que os indígenas usassem, inclusive, aquelas insígnias de capitão nas roupas. Ali foi um local, o SPI tinha uma espécie de modelo, de modelo a ser aplicado para o resto do país. Uma serraria, e essa serraria… Eu tenho falado bastante dela, porque assim, a serraria, eu coloquei o título agora, que eu estou escrevendo o meu doutorado, que era “a fábrica de moer florestas”. Era uma espécie de fábrica, que tinha uma finalidade, destruir as florestas do entorno de qualquer aldeia que fosse instalada. Então, aquilo era um modelo também criado pelo Serviço de Proteção ao Índio e que, voltando para década de 1980, se materializava naquele movimento. Aquele movimento ali era justamente porque, grande parte das lideranças indígenas, então ali já tinha os Terenas. Então é bom colocar aqui, os Terenas vieram para a região do Araribá, onde está vivendo a minha mãe até hoje, e a gente acabou se encontrando por inúmeras vezes ali, Tiago. Os Terenas vieram para ocupar o território Guarani, justamente porque a Gripe Espanhola havia praticamente dizimado os inúmeros, quase 300 pessoas, e Aldeia ficou limitada, pelo menos 60, 70, 60 indígenas Guaranis. Então quer dizer, era um território de 1900 alqueires e que começou a ser ocupado justamente nesse contexto pelos indígenas Terena. Isso justifica a presença dos Terena ali na região de Bauru. E eles foram trazidos também, porque o Marechal Rondon, acabou passando, fazendo caminho por ali, a gente sabe que a Marechal Rondon corta aquela região e termina no Mato Grosso. E ele acabou tendo contato com os indígenas da Aldeia Araribá, tanto os Kaingang, como os Guaranis, e acabou nas suas voltas para São Paulo trazendo os Terenas para ocupar o território ali, que tinha partes já desocupadas. E a gente sabe que é interessante, porque nas minhas memórias dessa década de 1980 importante, que eu também comecei a entender um pouco daquele movimento das lideranças indígenas, quando eles subiam ali na sede, e aí posso te dizer que eu lembro muito do Claudemir, Marcolino, dos seus irmãos, principalmente o Claudinei, que era um amigo que estudou comigo, não só ali na aldeia, mas depois a gente acabou estudando também na cidade lá de Duartina, eu acabei indo com eles também, estudar. Mas eu acabei entendendo pouco do que estava acontecendo ali, era esse movimento que o SPI tinha criado, de desintegração, e os indígenas estavam começando a se movimentar para criar um movimento inverso, que era da preservação dos direitos. Então, em 1967, termina o Serviço de Proteção ao Índio nessa região, depois começa a Funai. E ficou como sede principal em Bauru, até, pelo menos, a década de 1990 a 2000, e tem até hoje uma base lá, que não é como era na década de 1980. Mas o que eu estou querendo dizer? Eu estou querendo dizer que esse movimento que foi criado na década de 1980 pelos indígenas, acabou culminando também em todo um processo que era de um todo do Brasil e de uma série de movimentos de outras Aldeias, de outras regiões, com as UNIS, as assembleias indígenas, que culminaram na organização ali e na criação, não só de um movimento forte do Brasil, mas no movimento que impulsionou a criação dos Artigos Constitucionais. O artigo 231 e o 232. Então, eu entendo muito que a década de 1980 foi superimportante, porque eu voltei nesse momento de luta, e eu praticamente acompanhei todo esse processo lá dentro, porque eu ia, eu fiquei na aldeia por um tempo, depois voltei para São Paulo, depois voltei para Aldeia de novo. Que dizer, eu voltei, a minha mãe não voltou, a minha mãe acabou ficando na aldeia ali e participando praticamente de todo o processo, porque ela acabou entendendo o que estava acontecendo nessa região, justamente porque a gente tinha lideranças muito fortes. Então, eu estou querendo dizer, assim, que a minha mãe, ela é assim parte de todo um processo que tem a ver muito com a nossa presença enquanto indígena na cidade, mas ela tem muito a ver com a forma como a gente se formou, porque a gente não se forma apenas nas universidades, a gente se forma através desse movimento que eu acho que existe, é muito forte e que deve estar trazendo uma série de novas lideranças aqui no Brasil, porque grande parte das aldeias tem se mobilizado assim. Isso é sem preço para mim, sabe? Essas mobilizações que existem nas inúmeras aldeias e a maneira como esse capital cultural que a gente absorve, ele é importante inclusive para nossa formação enquanto pessoa, enquanto cidadão, enquanto cidadania, enquanto indígena, enquanto alguém que conhece um pouco da sua história, da sua trajetória, não só da sua trajetória pessoal, mas a trajetória de todo um contexto de outras trajetórias também que vão nos formando. Então, as pessoas acabaram me formando dentro desse movimento. Eu lembro que o outro dia, eu conversando até com o Lourenço, que é um dos filhos do Mário, o Mário era…. Mario Terena, Claudemir, o Marcolino, ali o Protásio, o seu Chiquinho e outros. Eu estava conversando com o Lourenço, para a gente tentar lembrar um pouco como que foi essa trajetória dessas escolas, acabei lembrando com ele, que quando a gente foi estudar em Duartina, que a gente ia de caminhonete, era uma caminhonete fechada, e a gente ia sentado em banquinho de madeira do lado. Eles acabaram nos colocando numa escola, que aquela escola que chama de Benedito Gebara, e aquela escola nos separou em salas, a gente ficava separado dos outros alunos, a gente não ficava junto. Então quer dizer, cada vez que você vai remoendo coisas ali do passado, você vai vendo quanto existiam as violências com a gente e a gente não se dava conta. Então isso também era importante para a gente poder entender o quanta a educação, que já era uma educação que tinha uma finalidade de retirar os elementos culturais da nossa comunidade e do nosso povo, inclusive a própria língua era uma das questões a serem retiradas, para se criar essa ideia de nação que a gente tá vendo hoje. E que a gente está vendo num movimento forte, eu acho que é um dos grandes problemas aqui do Brasil, esse movimento nacionalista, que eles chamam aí, mas eu diria que para os indígenas da região do Araribá, da região ali de Vanuire, Ikatu e das outras aldeias que se formaram no oeste de São Paulo, o nacionalismo sempre existiu, sempre existiu para os indígenas aqui de São Paulo. É por isso que eu acho que muita das coisas que aconteceram aqui em São Paulo, principalmente nesse processo de criação de reservas e do próprio Serviço de Proteção ao Índio, ele é uma espécie de modelo que me parece que está sendo ampliado agora, com esses governos que a gente está acompanhando aí, de extrema-direita. Porque a extrema direita sempre foi um problema para os indígenas, eles sempre perseguiram os indígenas, sempre quiseram tirar os territórios indígenas, sempre tiveram de olho, não só na terra, mas nos minérios que existem nos seus territórios. E a região do Araribá onde a minha mãe está e tem inúmeros indígenas, era uma região importante, estratégica, porque ali é o caminho que vai dar, não só para o Mato Grosso, mas para o sul e para o centro do oeste de São Paulo. Eu lembro até que eu vi você comentar, Tiago, e eu concordo muito com o que você falou, que São Paulo virou Caatinga. E é de fato isso, São Paulo é um modelão da destruição do país, primeiro a gente chega aqui, a gente vai criando estradas de ferro, a gente está vendo muito essa conversa agora, “nós vamos ampliar as estradas de ferro, nós vamos ampliar a circulação”. São Paulo fez isso com os indígenas, foi ocupando os territórios, foi amedrontando. Eu lembro que eu li um trechinho, inclusive eu escrevi um trechinho da minha… sobre os povos Kaingang na minha defesa de mestrado. E que eles circulavam com aquele Trem Maria Fumaça durante a noite, até a região ali onde está próximo aos indígenas de Ikatu e Vanuire, os Kaingang, mas naquela época, eles circulavam com essa Maria Fumaça, com uns apitos muito altos, que eram justamente para aterrorizar os indígenas que estavam ali próximo do trem, ou que tinha aldeamentos próximos. Era parte também do terror que o Estado praticava contra os indígenas. Imagina o terrorismo que não deve ter sido realizado ali na presença dessas pessoas, com os nossos parentes daquela região, daquela época. Então, quer dizer, não dá para gente deixar de falar que a presença, por exemplo, da minha mãe, é uma espécie de retorno para tentar resistir, enquanto ser humano mesmo, da grande cidade, que acaba deixando todos os seus elementos culturais de lado para viver uma vida da cidade, porque a cidade é um local que de certa forma acaba desintegrando os indígenas. Eu tenho muito medo justamente porque quando a gente perde esse vínculo com outros indígenas, a gente vai entrando num processo meio de individualidade da cidade, entendeu? Isso é muito ruim! E é justamente o contrário do que os indígenas fazem, que essa ideia de comunidade, é o contrário. Eles sabem exatamente, que diluindo as inúmeras culturas, você acaba criando uma espécie de cidadão de uma coisa que eles querem criar enquanto cidadania de uma nação única, que eles tão brigando aí. Eu acho que é uma espécie de loucura do século XXI, uma cegueira coletiva, mas eu acho que não dá para eu pensar assim, a minha mãe, toda a trajetória dela enquanto pessoa, sem pensar um pouco nesse movimento todo e nesse contexto todo, desde que eu nasci, desde a saída da minha família da cidade de Bauru e da cidade do Paraná. Eu tenho que falar todo momento sobre isso, porque esse movimento histórico, esse movimento de migração, ele é parte de um processo das violências que o Estado criou, que era retirar os territórios indígenas e colocar esses indígenas dentro das grandes cidades para se transformar num trabalhador proletariado ou capitalista, a serviço do capitalismo dentro de um processo de individualidade das grandes cidades. Isso faz parte de algo muito bem pensado e que me preocupa muito no século XXI, ver que outras regiões estão começando a fazer exatamente o que são Paulo fez com os indígenas aqui no séculos anteriores. Então, é justamente um pouco dessa história que eu estou te contando, que é uma história que falta nos muitos livros que a gente estuda, enquanto professor, enquanto universitário, enquanto mestre, doutorando. E muito do que a gente precisa fazer, é esse caminho da volta, esse caminho que circula por inúmeras trajetórias, inúmeros contextos, para a gente poder entender como que a gente constrói um movimento que seja a favor dos povos indígenas num local onde houve exatamente o contrário, um movimento de desintegração total. Então, veja assim, por exemplo, as aldeias não só de Bauru, ali onde está a minha mãe com seus parentes. É toda uma história de um local que eu acho que ainda precisa retomar muitas coisas do passado, para poder entender o que houve. Isso sempre foi uma das coisas que me fascinou, buscar essas histórias do passado, para tentar entender o presente, muitas vezes, desestruturado de alguns povos. Então, acho que é interessante quando os indígenas se colocam e voltam atrás como a minha mãe fez, fazer o caminho da volta, é que a gente começa a entender o processo todo, isso é interessante no processo de formação da nossa sociedade, da nossas comunidades e da maneira como a gente pode retomar também, não só a língua, mas as questões espirituais, as questões que envolvem os conhecimentos tradicionais. Então, minha mãe tem me ensinado muito agora, sobre essas outras questões que, talvez, se eu não tivesse feito esse caminho da volta em 1980 com ela, eu não teria, eu acredito que eu teria me perdido no tempo.
P/1 − Você me trouxe várias questões, vários pontos que eu poderia te perguntar para a gente avançar um pouco na sua história. Mas eu ainda quero fechar o seu ciclo da família. Eu gostaria que você falasse da parte do seu pai, e aí, na sequência, também falar dos seus irmãos, quem são eles? Quem é seu pai? Quem são seus irmãos?
R − Então, meus irmãos, a Tânia, Tânia Alessandra. Nós somos em sete irmãos, a Tânia é minha única irmã, os outros são seis irmãos, o Carlos, o Anderson, o André, Gustavo, eu, Emerson, o João, a gente acabou perdendo dois irmãos, um deles é o Anderson e o João. As violências que as cidades grande nos traz, no final, os indígenas acabam também fazendo parte desse processo. Uma pena, duas pessoas que morreram muito novas, um deles, o Anderson morreu com dezesseis anos de idade, era uma criança ainda, um jovenzinho, tinha tudo, um futuro pela frente. O João, com 33 anos de idade. Esqueci de falar, tem o Saulo também. Mas a gente vem fruto assim, Tiago, de um processo de muitas misturas, como eu disse, para justificar inclusive essa mistura, minha mãe acabou saindo da região do Paraná e a região do Paraná era uma região que vivia ainda uma espécie de colonato. Um colonato, não sei se você sabe, o colonato era assim, eram fazendas, nessas fazendas, o modelo que se criava dentro dessas fazendas de café, era um modelo em que as famílias deveriam ser muito grandes, por exemplo, a minha família era muito grande, sete irmãos. Você prepara as pessoas para trabalharem dentro da própria fazenda, porque não existia pagamento, não existia salário, você vive lá dentro desses lugares e você, de certa forma, recebe algum auxílio que era de alimento e tudo mais. Então quer dizer, era um regime de colonato, ainda. Então minha mãe acabou conhecendo o meu pai, que é o seu Adão, que era de uma família que vinha também de fora do país. O meu tio Francisco, acabou conhecendo, acredito que você deve conhecer, que é a tia Luzia, que vive ali no Ekerua, na aldeia Ekerua, próximo de Curt Nimuendaju. E ela é de origem italiana, então quer dizer, a gente acabou conhecendo pessoas de fora. Que eu também acabei entendendo esse processo de miscigenação assim, como um processo também que eu acho muito interessante da fala de alguns indígenas, que é assim, como os indígenas sofreram uma série de violências, principalmente com genocídio, que veio de várias formas, com o próprio Estado e suas políticas, as pandemias, epidemias e as doenças que chegaram e a maneira como os indígenas foram perdendo de certa forma os seus territórios tradicionais, ali daquela região. Então eu tenho concordado muito, porque é impressionante que a minha família, toda ela, por parte dos meus irmãos, nenhum deles, apesar dessa mistura, dizem não ser indígena Guarani. Eu acho muito interessante isso, porque o sangue indígena parece, ele teve que ser misturado com outros sangues, justamente para ele poder continuar existindo. Então, eu vi muitas lideranças dizerem isso e eu concordo com eles, de certa forma, justamente porque alguns povos acabaram se desintegrando totalmente e perdendo. É como se a gente fizesse esse caminho da volta, para a gente entender esse processo histórico que, no final, essas migrações acabaram fazendo parte da nossa história, enquanto indígena. E a gente acaba retornando para as aldeias, a gente acaba voltando e retomando as nossas origens. Interessante te dizer assim Tiago, que ninguém da minha família, se diz não indígena, muito pelo contrário, todos eles reafirmam exatamente essa existência indígena e a maneira como esse sangue indígena faz parte da nossa trajetória toda, de existência. Então, eu diria que a família do meu pai, ela contou, acredito que, como parte desse processo aí, em que a gente precisava continuar existindo como povo, para lá na frente a gente poder voltar para trás. A minha mãe se casou muito nova, minha mãe se casou com treze anos de idade, era uma criança, assim como os indígenas Guarani se casavam naquela época, muito novos. Minha mãe se casou com treze anos. E aquilo era parte de formar uma família para existir, justamente porque quando a minha mãe chegou na região do Paraná, em 1942, a minha mãe tinha apenas dois anos de idade, era um bebê. E o meu tio, que era o Francisco da Silva, que tomou conta da minha mãe, então quer dizer, ele que cuidou dela. E, no final, ela acabou se casando muito nova, e é porque ela perdeu muito contato também com os próprios pais, os pais morreram. Os pais da minha mãe morreram quando ela tinha dois anos de idade. Então, quer dizer, ela não teve mãe para cuidar dela, para criar ela, muito menos pai. Todos eles morreram na região e foram enterrados no Posto 10, ali. Então, ela viveu naquela região do Laranjinha, e foi trabalhar nessas fazendas de café e acabou conhecendo meu pai dentro desse contexto também. Tem muito a ver, essa história da vinda da minha família, com a questão do meu pai, justamente porque o meu pai também, o pai dele, que a gente chama de ‘avô’ André, já tinham vindo para São Paulo, na região de Santo André. Justamente nesse contexto que a gente acabou indo para Santo André também. A gente acabou saindo lá da Aldeia, indo para Santo André, justamente porque parte da família do meu pai, acabou se deslocando para essa região. Então, eu acho que é um pouco isso, para te dizer um pouco desse ciclo.
P/1 − Acho que está bem completo essa história da família. E aí você trouxe um ponto que é sobre a sua formação, você falou da escola que você estudou em Araribá. Mas gostaria que você contasse um pouco mais da sua formação escolar e acadêmica, você se apresentou. E que te levou a uma profissão hoje. Então se você pudesse falar um pouco desse processo.
R − Então, eu estudei, como eu disse, eu fiquei, se eu não me engano até a terceira série, estudando aqui na cidade de São Paulo, numa escola pública, municipal. Eu sei exatamente o que é ser indígena dentro de uma escola pública em São Paulo, não é muito diferente de hoje, eu tenho acompanhado a presença do meu filho numa escola pública e as questões indígenas também não mudaram. Eu estudei numa escola que acabou fazendo parte um pouco desse processo que a gente chama de etnocídio, que é o que a gente esconde dos povos indígenas nos livros. Então isso é etnocida, porque essa formação dos professores, ela também desintegrava os indígenas, e de certa forma quem está na cidade e é indígena, deixa de ser indígena no olhar dos professores, que não compreende o processo histórico, não compreende a maneira que esses indígenas, de certa forma, acabaram chegando na cidade. Então, eu estudei até o 3º ano, depois eu fui para aldeia, lá eu fiz o 4ª, o 5º ano eu já estava na cidade de Duartina, depois eu acabei voltando aqui para São Paulo e terminei a 6ª, 7ª, 8ª série, naquela época, na escola municipal, depois numa escola estadual. Então quer dizer, eu estudei em escolas públicas a minha infância toda, aqui na periferia de São Paulo, estou ainda na mesma região onde eu estudei. Mas o que eu posso dizer dessa história da minha formação, enquanto aluno indígena, dentro de escolas públicas, é que eu não era indígena, essa é a questão, a questão é essa, eu não era indígena dentro dessas escolas, era capaz do pessoal me chamar de japonês, como me chamam até hoje, muitos. Então quer dizer…. E agora pode ser boliviano, um Boliviano dentro da escola, mas indígena mesmo, eu acho que ainda é uma coisa muito complicada, porque estudar dentro de uma escola pública, ela não é fácil, justamente porque a gente precisa de professores que tenha uma certa formação e que conheçam essa formação, que tragam elementos da cultura indígena. Então, eu diria que, eu vivi em uma escola em que pouco se falou sobre os indígenas e, quando falava, ainda era daquela forma que a gente sabe, estereotipada, o indígena sempre do passado, tem que ter cara de índio. Hoje, ainda tem que ter mesmo cara de índio. Mas isso é muito perigoso também, porque como a gente sabe e tem contato, existem muitos indígenas que estão na cidade e são do Norte e do Nordeste. Então, essa cara do índio Guarani Nhandewa, porque os Guaranis, de certa forma, acabam tendo uma espécie de jeito de ser, que eu acho que é interessante, e é diferente também, não é igual os indígenas lá do Norte e do Nordeste, mas os preconceitos que eles sofreram, que os indígenas do Norte e Nordeste sofrem, eu diria que eu sofri todos dentro da escola, talvez o maior deles seja o genocídio, que a gente viu de inúmeros parentes, mas o etnocídio quando você volta para a escola e não vê falar da gente, a gente não existe. E não só esse genocídio, que eu acho que é, esse etnocidio que é praticado pelas escolas, mas eu acho que é interessante pensar aqui na minha formação, enquanto aluno na periferia de São Paulo, é que depois de tudo isso, de terminar o ensino, eu começo a trabalhar, trabalho em inúmeras empresas, acabei virando, dentro do processo histórico aqui, o proletariado que eles queriam que eu fosse, alguém que teve a sua família, que veio para a grande cidade e essa grande cidade transformou as pessoas em não indígenas, que vão estar em serviço do capitalismo, vai ser proletariado, vai ser assalariado e que, aos poucos, vai deixando seus elementos. Então, eu estava nesse processo aí, de trabalhar em inúmeros lugares, sem levar em consideração a minha questão étnica. Demorou até um pouco para eu entender isso, foi quando a gente voltou para Aldeia que eu me deparei mais com essa questão. Mas quando você deixa a aldeia e volta para grande cidade, se você não tiver o contato constante com a aldeia, você vai deixando mesmo, você vai perdendo muita coisa. Então o que eu fiz, o que eu achei que é interessante nessa volta, eu acabei conhecendo, ainda em 2000, então eu passei praticamente a década de 1990 inteirinha trabalhando nos inúmeros lugares. Em 2000, no começo de 2000, foi que eu fui conhecer o movimento dos indígenas que estavam aqui na cidade, os indígenas que estavam começando a se reorganizar, começando a buscar políticas públicas. Então, foi aí que eu conheci, por exemplo, o programa Pindorama da PUC. E ali no programa Pindorama. o Pindorama foi assim, foi um passo inicial para políticas públicas de acesso dos indígenas que vivem em contexto urbano, para as diversas formações acadêmicas aqui na cidade. Então eu comecei a conhecer, o projeto começou em 2001, em 2000 foi a primeira turma, para você ter ideia, na primeira turma formou 22 indígenas, entraram 22 indígenas. grande parte desses indígenas eram indígenas Pankararu, Pankararé e Guarani. Os Guaranis que viraram, depois, diretores da Escola Municipal, ali no Jaraguá, eram ex-alunos do programa Pindorama. Então, quando eu entro, quando eu começo a conhecer esse programa, eu não entrei nessa época, eu entrei em 2006 no Pindorama, eu fui conhecer, fazer parte mesmo do processo lá dentro, comecei a participar das reuniões dos indígenas da cidade. Eu conheci dois contextos ali, primeiro, os indígenas na universidade, em segundo, os indígenas que estavam se mobilizando, que eram os indígenas Guarani Mbyá do Jaraguá, de Parelheiros, os Pankará, os Pankararé. Eu fui conhecer a Comissão de Articulação dos Povos Indígenas de São Paulo, e acabei me inserindo e entrei na universidade dentro desse contexto. Então, quando eu entro dentro da universidade, uma universidade que não é pública, uma universidade, digamos assim, da elite de São Paulo, porque a PUC-SP é uma das universidade mais cara do país. A gente percebe também, que o problema não era nem ser indígena dentro da Universidade, o problema era ser pobre mesmo, dentro da universidade e principalmente de uma universidade da elite, quer dizer, a gente tinha uma questão ali, não era só apenas indígenas, indígenas pobres da periferia de São Paulo. Então quer dizer, é luta de classes totalmente. Então eu passo dentro desse processo de 2006 até 2010, quando eu me formo ali no programa Pindorama, mas dentro do programa Pindorama, eu acabei criando uma espécie de projeto, é um projeto que a gente tem até hoje, que a gente chama de Retomada Indígena. Então eu acabei, junto com organização ali do programa Pindorama, criando um movimento, que era um movimento que eu achava que era superimportante para os indígenas que estavam na cidade, justamente porque era uma série de eventos. Então, dentro da universidade a gente criou, um evento de seminários com os indígenas falando, os indígenas do Pindorama, a gente criou uma série de debates com filmes indígenas, com os indígenas apresentando esses filmes e falando sobre as questões indígenas, para o público da universidade, a universidade que não é pública. A gente criou um local, um ambiente, que se vendia a arte e artesanato indígena, nos corredores da universidade e que também utilizava o museu da PUC-SP com exposições. Então, olha só, a gente criou uma Retomada Indígena dentro da universidade, e dentro de uma universidade que começa a ter um contexto de reserva de vagas. Porque até então não existia, no Brasil não existia a lei de cotas. Eu diria que o Pindorama foi pioneiro no Brasil inteiro, com essa reserva de vagas. A lei de cotas vai começar a se intensificar a partir de 2004, o Pindorama já estava fazendo esse movimento. Mas tinha uma especificidade o Pindorama, o Pindorama só recebia alunos que fossem da grande cidade, mas por quê? Porque São Paulo é a quarta maior cidade em população indígena do país, e de indígenas que vivem em contexto de cidade. Então eu estou falando de um processo histórico, que acabou culminando num processo de migração de centenas de indígenas para a cidade. Então quer dizer, aquilo era fruto de um processo também, de muitas outras histórias que estavam acontecendo no entorno, nas periferias de São Paulo, mas eram a expulsão mesmo, de indígenas dos seus territórios tradicionais, numa maior ou menor intensidade, mas era. Então é interessante para mim, por quê? Eu já havia bebido daquela fonte importantíssima da década de 1980, daquelas mobilizações. Mas na década de 2000, que eu comecei mesmo a retomar, falar assim, nossa, espera aí, tem coisas aqui que eu preciso entender. Primeiro, uma das coisas que eu preciso entender, é porque os indígenas estão vivendo em contexto urbano. Tanto é que o meu mestrado é sobre isso. Segundo, a partir daí, entender também esses processos, não só de migração, mas de como São Paulo era importante na formação de lideranças indígenas. Então comecei a entender um pouco do que aconteceu, por exemplo, o Ailton Krenak, que viveu na cidade de São Paulo, trabalhou aqui inclusive, na própria Secretaria Municipal de Educação. Um trabalho muito parecido com o que eu estou fazendo hoje. Mas ele conheceu, ele foi para o Jaraguá, ele conheceu os indígenas, eu conheci um pouco da história dele, que era dos indígenas Krenak, que estavam vivendo em Vanuire e Ikatu, porque é justamente parte desse processo. Acabei estudando com uma das filhas do Ailton Krenak, Elimar Krenak. Então, quer dizer, ali existia uma formação que eu achava interessante, dentro da universidade, na PUC de São Paulo, porque eu acabei entendendo também todo esse processo, que incluía duas questões pra mim, primeiro, entender os indígenas que viviam em contexto urbano e como que se dava essa distribuição na cidade. Em segundo, fazer o caminho da volta com o meu trabalho de TCC para entender a história da minha família. Então, tudo que eu contei aqui para você, tá muito ligado ao meu trabalho de TCC, que foi para falar da família Mboka, que era dos meus avós, então conto muito dessa história aí. E, também, era importante para mim, conhecer elementos da cultura ocidental e acadêmica, pra eu poder também, me inserir dentro desse contexto de discussão, de igual para igual, porque a partir dali eu, de certa forma, viraria um cientista social indígena. Então quer dizer, isso é muito importante para o movimento indígena. E no Pindorama, dentro desse processo, se formaram quase cem indígenas, nesses últimos vinte anos, não é pouca coisa, eu venho da segunda turma, mas circularam, deixaram de se formar, pelo menos mais cem indígenas, então era para ter 200 indígenas formados, a gente conseguiu formar a metade, eu tenho acompanhado, falei muito dele no meu trabalho de Mestrado, do Pindorama. Mas tem um movimento que eu acho importante colocar aqui Tiago, que é assim, que é primeiro, a gente formou uma grande quantidade de pessoas na PUC, que acabaram retornando para suas comunidades de origem. Então quer dizer, isso é importante para os povos indígenas, é importante justamente para a manutenção dos direitos e da presença dos povos indígenas. Acabei percebendo que grande parte dos alunos que estudaram comigo, tinham mais ou menos uma trajetória parecida com a minha, de fazer o caminho da volta, de entender as suas comunidades e fazer trabalho sobre as suas próprias comunidades. Quer dizer, os Pankararu que estudaram comigo, estavam desenvolvendo trabalhos sobre os Pankararu do Real Parque, para entender por que que eles estavam ali também. Então tinha uma questão histórica. Então quer dizer, aí eu acabei me formando na Retomada Indígena e dentro dessa formação, que eu tive na universidade, eu acabei entrando, em 2007, na Prefeitura de São Paulo, como Auxiliar Técnico de Educação. Então, eu comecei a trabalhar ali. O Auxiliar Técnico na Prefeitura é o inspetor de alunos hoje, é o inspetor de alunos que fica cuidando dos alunos do lado de fora da sala. E fiquei um ano trabalhado com os alunos fora da escola, nesses dois movimentos, trabalhava na Prefeitura de São Paulo como inspetor de alunos e ia para a PUC fazer o curso de Ciências Sociais. Então, eu vivi esse movimento até 2010, quando eu me formo. Um ano depois que eu entrei como inspetor, eu fui convidado para ser secretário de escola, e virei secretário de escola, e fiquei mais sete anos como secretário de escola. Depois eu acabei exonerando da Prefeitura, quando eu acessei a escola pública, aí já numa outra categoria, de professor. Então eu acessei já a escola pública como professor de Sociologia titular, eu diria que talvez eu seja um dos únicos professores titulares da disciplina de Sociologia no estado inteiro de São Paulo, porque eu não conheço nenhum um outro professor de Sociologia, que seja concursado, a gente conhece os professores indígenas, que estão lecionando a disciplina de Sociologia, mas num contexto de aldeia, eu não, eu no contexto de cidade como Professor Titular de cargo. Então quer dizer, são coisas diferentes, coisas muito diferentes, inclusive. Mas foi importante para minha existência, principalmente na educação, porque eu entro dentro da universidade, acabo também acessando o concurso público, conhecendo um pouco, porque até então eu não conhecia, não sabia nem o que era concurso público. No final, eu acabei passando, depois passei em outro concurso público, fui começando a ter um pouco de acesso a isso. E nessa trajetória, quando eu saí, quando eu me formei na PUC, eu acho que tem duas coisas interessantes para colocar aqui Tiago, eu acho coisa assim…. Primeiro que eu tentei fazer um trabalho sobre as escolas indígenas, em 2008, porque eu fui, acabei entrando num grupo de pesquisa, que era da professora Circe Bittencourt e acabei sendo bolsista desse grupo de pesquisa. Foi ali que eu conheci um monte de funcionários, uma série de funcionários da Prefeitura de São Paulo, professores, pesquisadores da PUC e foi ali, por exemplo, que a Chirley, a própria Chirley Pankará estudou também, dentro desse núcleo de pesquisa, com a professora Circe. E que quando eu saio em 2010, que eu já estava dentro da prefeitura, como secretário. A gente começa a criar uma espécie de mobilização dentro da secretaria Municipal de Educação de São Paulo, para se criar o movimento de implementação da Lei 11.645. Então você vê, são várias outras formações que a gente vai tendo ao longo da sua formação acadêmica e que foram importantes. Então, quando a gente chegou, por exemplo, de 2013 para 2014, a gente foi convidado para fazer parte de reuniões dentro da Secretaria Municipal de Educação, para se criar um Agosto Indígena, que era parte de um processo de criação, de implementação da Lei 11.645, aqui. Então a gente tinha, por exemplo, o prefeito era o Fernando Haddad, nessa época, então Fernando Haddad estava entrando na Prefeitura, e estava começando a fazer esse processo de implementação da Lei 11.645. E eu estava dentro da Prefeitura também, como secretário de escola, fui convidado para fazer parte desse processo de criação. Então, o que eu estou querendo dizer? Eu estou querendo dizer, que aquelas reuniões do criação do Retomada Indígena dentro da PUC, acabaram se materializando na criação do Agosto Indígena na Prefeitura Municipal de São Paulo. Então olha só, foi tudo parte de um processo, a minha volta, esse meu caminho que eu fiz acadêmico, ele me serviu inclusive, para poder me mobilizar com outras pessoas, na criação de políticas públicas na educação. Então, o Retomada Indígena e os indígenas na universidade, que não era pública, que era a PUC, estavam criando um movimento interessante, que começava a criar, de certa forma, um certo corpo, dentro da Prefeitura de São Paulo, justamente porque a gente começaria a criar uma série de eventos, bebendo na fonte do Retomada Indígena, que virou o Agosto Indígena, na prefeitura e que continua até hoje, o Retomada está na sua 22ª edição. O Agosto Indígena foi criado de fato em 2014 e que também de 2014, já está dentro como algo oficial, dentro da Secretaria Municipal de Educação, então todos os anos tem o Agosto Indígena, numa maior, ou numa menor proporção, porque ai tem questões políticas. Eu diria que o momento de muitas discussões se deu no período que o Haddad foi prefeito aqui na cidade de São Paulo. Então eu diria que não tem como pensar a criação de políticas públicas, sem pensar o Haddad como prefeito. Agora, quando ele sai, existe uma série de desintegrações também, tudo que havia acontecido, deixou de existir, não com a mesma intensidade, quer dizer, tinham os eventos, mas não eram mais como os quatro primeiros anos, então diminuiu muito. Talvez seja até um dos motivos para mim hoje, enquanto professor da escola pública, entender um pouco, e ser inclusive convidado. Isso mistura um pouco do Emerson que tem todo uma trajetória na escola pública municipal, inclusive, eu posso dizer que eu sou uma pessoa que conhece a escola pública como ninguém, porque eu era estudante da escola pública, depois eu virei agente, inspetor de alunos, trabalhei no corredor, depois eu virei secretário de escola, virei professor da escola pública. Então, eu conhecia profundamente as questões que envolvem a não prática das próprias secretarias em não estudar a questão indígena. Mas a gente estava num movimento que, eu acho que é interessante colocar aqui, era o movimento de criação mesmo, implementação dessa lei. Então, depois de 2010, que eu saí da PUC, acabei participando pouco desse processo de criação dentro da Prefeitura de São Paulo. Depois de 2014, eu começo a circular pela USP, foi quando eu conheci o Professor Danilo Guimarães, que era da Psicologia. Então o Danilo Guimarães foi superimportante também, porque eu não conhecia, não sabia o que era USP, eu só fui conhecer a USP em 2014. Eu nunca tinha colocado o pé na Universidade de São Paulo, eu só fui conhecer, depois, meu lado, eu conhecia PUC, PUC para mim era o meu mundo, era o mundo que eu vivi, enquanto pessoa da academia, que tentava, de certa forma, da sequência. Então, eu conheci a Universidade de São Paulo através do Instituto de Psicologia, circulei pelo Instituto de Psicologia, foi quando eu fiz um curso de pós-graduação dentro da Psicologia. E a partir daí, eu comecei a tentar fazer parte desse processo. Eu não passei… é coisa interessante, eu não consegui passar no curso de Psicologia, porque é um curso muito difícil dentro da PUC, da USP, desculpa! Não tem ali as ações afirmativas, o inglês é primordial, para você entrar dentro do curso de Psicologia da USP. Espero que isso mude o quanto antes, porque isso para mim é caminhar ao contrário, mas interessante saber que o Instituto de Psicologia tem uma pessoa que é muito ligada às comunidades indígenas aqui de São Paulo, tantos indígenas que vivem na cidade, quanto fora. E que, de certa forma, começa a criar um movimento também, entre os professores. Isso é legal! Por outro lado, eu acabei conhecendo Diversitas. Primeiro, antes de eu entrar na Antropologia, eu conheci o Diversitas, então quer dizer…. e lá aconteceu ao contrário, eu passei na prova de redação, que tinha uma dissertação, sobre dois temas, eu passei, fui aprovado. Eu lembro que eu fiz uma prova muito interessante, muito boa, até eu me surpreendi com aquela prova. Mas quando eu fui fazer a prova de Espanhol, eu não passei. Eu não consegui entrar! Eu achava que o espanhol seria mais fácil, também não passei. Não passei no inglês, não passei no espanhol, aí foi quando eu conheci a Antropologia. E eu lembro que eu, o Jaime e o Ubiratã, acabamos nos encontrando ali no corredor, que era para fazer, para passar pelo processo da Antropologia. No final o Ubiratã acabou não chegando, por questões do destino, talvez ele tivesse entrado no meu lugar. O Jaime já era um dos doze, porque o Jaime tinha vindo lá do Vale do Javari e acabou se formando depois de mim. O Ubiratã acabou se atrasando no dia, chegou atrasado. Então quer dizer, para nós, foi muito triste, porque no final eu acabei sendo aprovado, eu e o Jaime. E o Ubiratã ficou fora, porque ele não participou do processo, chegou atrasado no dia. E ele não conseguiu nos avisar, aí tem a questão de quem mora numa aldeia do litoral, na serra, tinha lugares que não funcionava o celular, não tinha como avisar o atraso. Então quer dizer, tudo vinha a crer, que se ele tivesse chegado antes, que talvez ele e Jaime tivessem sido os alunos que iriam fazer o mestrado naquela época. Até porque a gente sabe que a USP tem esse problema, uma forte ligação com os indígenas que vivem em algum contexto de Aldeia. Eu era ali uma espécie de outsider, alguém que vivia na cidade e que tava tentando mostrar, inclusive pela a própria USP ali, que existiam indígenas no contexto urbano. Tanto é, quando eu fui falar disso para os professores, ninguém tinha muitos trabalhos sobre essa questão, sequer discutiam muito as questões ligadas a indígenas da cidade. Grande parte dos pesquisadores que a gente sabe ali, são ligados aos indígenas do Norte, do Nordeste, do Centro-Oeste do Brasil. Então eu era ali outsider, estava chegando para falar de uma questão, que era importante, não só para mim, para minha trajetória, para trajetória da minha família, para trajetória do Povo Guarani, para trajetória da minha mãe, que é super importante em todos esses processos que eu te contei. E acabei entrando ali em 2018 para fazer o mestrado, 2017 para 2018. E fui o primeiro indígena dentro das ações afirmativas ali da Universidade de São Paulo, no departamento de Antropologia, da pós-graduação em Antropologia, a me formar. Então, olha só, aquele que talvez nem fizesse parte do processo, de repente, entrei e fui o primeiro dentro das afirmações a me formar. No final, nesse percurso, eu vou te dizer Tiago, eu ia lá para Bauru, encontrava você, “Tiago, vem para a gente, vem junto, vem fazer parte da Antropologia também, monta um projeto”. “Emerson, eu tenho dificuldade!” “Não, vamos fazer, vamos te apresentar professor.” Foi aí que você foi conhecer a professora Marta Amoroso, que o nome é isso mesmo, é amoroso mesmo. Então, quer dizer, a gente foi assim ao longo das nossas trajetórias, retomando espaços importantes. Eu como um aluno da periferia, indígena, que tem todo uma trajetória de processo de migração da família, que acabou me trazendo para a periferia de São Paulo, que depois sai da categoria de aluno indígena, para depois virar um funcionário público da prefeitura de São Paulo, que depois virou secretária da escola, que depois virou professor, que depois retoma para Prefeitura de São Paulo, como Assessor do Currículo Indígena. Então, nesse momento, eu estou escrevendo o currículo da Prefeitura, reescrevendo, porque a gente tem aí um primeiro currículo, que esse aqui, é o currículo dos povos indígenas. E eu estou assim num momento de retomada desse currículo e no currículo de todas as disciplinas, para tentar fazer algo que seja um pouco mais completo, sobre as diversas questões sobre os indígenas, uma série de leis que a gente precisa conhecer. Então tem a lei 231, 232, tem a lei 10.639, que é 2003, que trata das questões afro-brasileiras, mas é importante, porque é um dos primeiros processos para poder se pensar a questão dos indígenas na lei 11.645 de 2008. Então, tem uma ligação que é com a questão da lei 9.394 de 1996, que é a Lei de Diretrizes Básicas, que toca a Educação do país. Então tem uma série de questões e de leis e de matrizes, que são importantes para a discussão da formação, inclusive do foco do povo brasileiro. E que se a gente não fizer isso, o Tiago, a gente sofre um pouco do que está acontecendo no Brasil nos dias de hoje, dessa ideia de nação, de nacionalismo, desqualificando as outras presenças. Então, se a gente não conhece nem a nossa história, como a gente vai criar um país, um povo, que não conhece a história do seu próprio país. O que a gente vê, é um pouco parte desse processo, de uma elite branca, que vem de diferentes processos para cá, de imigrantes. E que eles estão ‘se lixando’, digamos assim, para a presença dos povos indígenas. E a maneira como a gente implementa isso também, porque não é nada muito fácil, aliás, nada é fácil para os indígenas aqui. Não é fácil a gente nem sequer escrever, porque você sabe, enquanto na categoria de professor que também é escritor, e a gente sabe que é difícil colocar o nosso livro para o próprio aluno que está na periferia, estudar ele e conhecer um pouco da nossa trajetória. Eu diria assim, que a gente luta contra tudo e contra todos, porque esse movimento é etnocida, ele é um movimento que se dá assim, e que tem também frutos da própria história e da própria escola. que se a escola não tem uma educação libertadora, uma educação que coloca os alunos diante das questões étnicas do país, a gente continua ainda com essa ideia do Ocidente, essa ideia ocidental, eurocêntrica, norte-americana, etnocêntrica, antropocêntrica. E os indígenas ficam distantes de tudo isso. Então, quer dizer, talvez o movimento que a gente tem criado agora na cidade e fora dela, é de tentar reescrever uma nova história. Então, eu sempre digo para todo mundo, que o Emerson, na categoria de indígena que vive na cidade, mas que tem uma forte ligação com as aldeias de origem, ele é aquele camarada que pensa, quando ele está falando dele, é óbvio que ele não está falando apenas dele, existe um coletivo de comunidades de pessoas, que está inserido na fala dele, justamente porque os indígenas tem muito disso, de falar não só de sei, mas de um contexto, de outras lutas, que a gente precisa fazer as pessoas entenderem muito bem o que é, se não a gente cai no erro eurocêntrico, etnocêntrico. E o que eu tenho dito para muita gente, o que a gente precisa abandonar é essa escola que continua ainda colonizando. A gente ainda tem um processo colonial, a gente ainda tem um processo de uma escola, que me parece assim, saiu dos oceanos, aqueles barcos, aquelas caravelas e as caravelas acabaram subindo os trilhos e foram se instalando, várias caravelas, em várias regiões. E os professores são como se fossem uma espécie de Cabral do século XX, XXI, que vão ensinando o conhecimento europeu e desqualificando as outras culturas, as culturas indígenas. Então, o que a gente tem na cidade e fora dela, é um modelão da cultura ocidental. A gente precisa cada vez mais, com as nossas histórias e trajetórias pessoais, descolonizar, não só as escolas. Então quer dizer, quando eu falo descolonizar a escola, eu digo o seguinte, a gente precisa ter uma Maracá na sala do diretor, a gente precisa ter uma Maracá na sala de leitura, a gente precisa ter uma Maracá, ou um arco e flecha de determinado povo que conte ali e que traga uma certa curiosidade. A gente tem que ter os brinquedos indígenas dentro das salas das crianças, a gente tem que ter um quebra-cabeça de fotos e imagens das crianças indígenas. Então, quer dizer, a gente precisa colocar as crianças diante da música indígena, da arte indígena, da dança indígena, da língua indígena. A gente precisa desconstruir muita coisa nesse país, a gente precisa desconstruir uma história de muitos apagamentos. Então nós enquanto indígenas, a gente tá fazendo isso a todo momento, o problema é aqueles que não estão. Que dizer, a nossa parte a gente está fazendo, que é descolonizar, a gente está descolonizando a escola, a gente pensa em descolonizar a escola, isso é um processo muito difícil e demorado, mas é o processo que a gente tem feito, isso pode ter certeza de que os indígenas têm feito, por onde circulam. Agora, não é só o apagamento, a descolonização dos espaços da escola, mas a descolonização das universidades, do próprio entorno dos campos universitários, eu sempre digo para todo mundo, que é assim, é superinteressante circular pelos lugares, ir ocupando os lugares, porque esses espaços são nossos e eles nunca tiveram a presença dos indígenas nesses lugares. Então é superimportante que os indígenas acessem esses lugares, descolonizem em esses lugares, e comecem a trazer as suas culturas e suas tradições, e a história do seu povo, que isso seja circular, uma coisa circular, que circule para todos os lugares. A gente precisa descolonizar os espaços públicos, eu posso dizer para você, que pela primeira vez na minha vida, eu entrei, como eu disse aqui, em alguns lugares, tipo a universidade pública, para mim, eu nunca tinha tido acesso à universidade pública, a USP, eu também não conhecia. E muito recentemente eu entrei no Teatro Municipal, para falar do Agosto Indígena, e eu nunca também tinha colocado o pé no Teatro Municipal, e olha que aquilo tem uma história de mobilizações, inclusive o movimento da Semana de 22, era justamente para gente recriar uma espécie de cultura, de um povo que até então deixara de existir. Então, eu quando eu coloquei ali, eu senti muito, muito, essa ausência dos indígenas circulando nesses espaços. Então a gente precisa cada vez mais ocupar uma série de lugares, uma série de espaços que são públicos ou não, então que dizer, o próprio circular da gente, eu posso falar público ou não, porque a minha trajetória está ligada a uma universidade que não era pública, mas eu precisava descolonizado também. Então a gente por onde passar, precisa descolonizar esses lugares, acho que é um pouco dessa minha questão que eu tenho, que é a questão acadêmica, da minha trajetória acadêmica, ela está muito ligada a educação, ela está muito ligada a esse processo de descolonizar.
P/1 − E muita história. Mas como a gente vem falando, o projeto é isso, luta, a luta indígena pela terra, pela vida. E você trouxe também em algum momento, falando sobre a Gripe Espanhola, que foi uma pandemia também, no início do século XX. E agora, no século XXI, a gente está vivendo mais uma pandemia. Gostaria que você falasse de como que foi esse momento de pandemia, como você se protegeu, sua família? Teve alguma perda? Que você contasse um pouco desse momento da pandemia.
R − Então Tiago, a gente levou muito a sério, a pandemia. Partindo um pouco até dessa história pessoal da nossa família mesmo, dos próprios Guarani da pandemia da Gripe Espanhola, que a gente perdeu muita gente, muitos parentes nossos morreram com a pandemia da Gripe Espanhola, em 1919. Então, eu diria assim, quando eu vi na aldeia aqueles portões fechados, aquelas chaves, aquelas correntes, para mim, aquilo era muito parte desse processo, todo mundo tinha um certo medo, um medo e um receio de que isso voltasse acontecer. Então, aqui na cidade, a gente acabou se isolando, tinha dia que, a minha irmã que mora do lado da minha casa, eu não a via, quer dizer, a gente se fechou muito no começo, aquilo trouxe muita alarde e, de certa forma, um medo também, porque circulava em toda a sociedade, a ideia de que se você pegasse aquela doença você não poderia mais ver os seus entes queridos. E era verdade, não podia mesmo, então eu ficava pensando a todo momento, e se a minha mãe pegar, e se a minha mãe…. como vai ser isso? E se a gente pegar também? E se a gente vier a perder pessoas da família? A gente não perdeu aqui em São Paulo ninguém, a gente se protegeu muito, a gente se fechou dentro das nossas casas. Então quer dizer, eu acabei dando aula, aqui, para os meus alunos, via online. O contato que eu tinha com os meus alunos durante mais de um ano. E a gente ficou ali sem ver a minha mãe também, durante três meses, uns três, quatro meses, naquela época terrível mesmo, que circulava as notícias vindas da Europa, e que a pandemia começou a surgir assim em uma esfera mais, que pegava muita gente, a gente sem vacina, esperando. O único jeito que a gente tinha, era de se cuidar, proteger, então a gente se protegeu muito aqui na minha casa. Eu fiquei um bom tempo sem ver o meu próprio filho, que estava na casa da avó. A minha filha, fiquei mais de um ano sem ver a minha filha, porque ela acabou ficando em Santa Catarina. Ela também é muito parte disso daí, a Amanda está fazendo o curso, você sabe disso, aliás eu tenho muito agradecer a você, enquanto liderança mesmo lá da Aldeia, que precisava das assinaturas, dos documentos para encaminhar para Universidade, você me ajudou muito nisso, eu sou muito grato com isso, não dá para gente deixar de dizer, e registrar inclusive, deixar registrado, faz parte das nossas histórias. Mas Amanda, ela já está no quarto ano, passou essa pandemia todinha dentro da casa dela, estudando também de forma online, Santa Catarina, é uma região difícil também, ela está no curso de Medicina, então ela vai se formar, vai virar médica, provavelmente mais uma médica indígena, se formando pela Lei de Cotas. É bom a gente dizer isso, as cotas, nas universidades federais é muito importante para os indígenas, acessar isso, retomar depois para as comunidades, fazer o caminho da volta também, de certa forma ajudar as suas comunidades nas questões, principalmente que a gente se propõe. Então, eu diria que a educação para mim e, também, uma forma de retribuir, construir políticas públicas. E de certa forma a pandemia estava ali colocando a gente diante de coisas que a gente poderia deixar de fazer, eu acho que o grande problema nosso era esse. Será que a gente vai continuar vendo os nossos parentes? Será que a gente vai continuar vendo os nossos amigos? Será que a gente vai continuar vendo os nossos pais, nossa mãe, principalmente? Isso me dava muita angústia, dava muito medo. Você lembra daquela época que a gente foi fazer o teste lá, e no final minha mãe acabou testando positivo, naquele teste rápido, e que no final a gente acabou fazendo o teste também, porque provavelmente a gente testaria positivo, e no final a gente acabou descobrindo que nem a minha mãe, que não era minha mãe, fez depois o segundo teste, deu negativo. E que a gente já deu no primeiro teste negativo. Então quer dizer, para nós foi muito difícil, esse momento, era um momento de muita preocupação. Ainda é, ainda é, porque a gente tá tendo que conviver ainda com os problemas da Covid-19 e com a maneira que essa Covid-19 afetou todo mundo. Então que dizer, eu diria que na escola, ela ficou assim de uma forma total, porque alunos que estavam, por exemplo, no primeiro ano do Ensino Médio, a gente só foi ver ele no terceiro ano do Ensino Médio, está se formando, sem praticamente ter todas as habilidades de ensino concluídas. Então, eu diria que a pandemia trouxe um problema muito grave para a educação, déficit na educação terrível, e não só nas escolas públicas, fora das Aldeias, mas nas próprias aldeias também, trouxeram uma série de problemas. A pandemia, para nós, que vivemos na cidade, era uma coisa assim do dia a dia, e que talvez pudesse se alastrar entre nós, porque a gente não tinha aquela distância que as aldeias têm de uma casa para outra, principalmente lá na aldeia Curt Nimuendajú, onde estavam, na época, você também estava, passou praticamente todo o processo lá. Aqui não, aqui é uma casa uma do lado da outra, a gente está num conjunto habitacional, Tiago, onde eu vivo, que é o primeiro conjunto habitacional do Município de São Paulo, criado pelo prefeito Prestes Maia, tanto é que se chama Prestes Maia aqui. E é uma casinha uma do lado da outra assim, não tem distância, não tem distância, você sair daqui de um espirro, o outro escuta, entendeu? Então quer dizer, eu ficava com muito medo, porque eu falei, “poxa, será que eu vou conseguir sobreviver na pandemia?” Nós indígenas, em contexto urbano, tivemos os outros problemas, você sabe disso! Problema da própria vacinação, porque quando a gente está fora da aldeia, até as próprias políticas públicas, nos ausentam delas, quer dizer, a gente não se vacinou dentro das aldeias, porque a gente é indígena que vive fora da aldeia, em contexto urbano. Por outro lado, os postos de saúde da cidade, elas também desconhecem a presença do indígenas que vivem na cidade, então quer dizer, os indígenas que vivem na cidade também não eram uma prioridade na vacinação. Então quer dizer, a gente virou assim, viveu muitas angústias, desde a angústia de ficar distante das pessoas que a gente gosta, mas da angústia também de não poder se vacinar, porque os indígenas nas aldeias começaram a se vacinar. E nós não, nós tivemos que esperar os processos. Eu me vacinei, por exemplo, não como indígena, eu me vacinei como professor da escola pública. A minha irmã, que depois foi se vacinar, porque a gente conseguiu mobilizar aqui a Prefeitura de São Paulo. E a Prefeitura de São Paulo acabou cedendo e autorizando a vacinação da gente, mas desde que a gente comprovasse a nossa etnia, etnicidade. Então, quer dizer, eu tive que, por exemplo, ir para FUNAI, coisa que eu jamais pensaria que eu tinha que fazer, eu acabei entrando em contato com o pessoal aqui da FUNAI de São Paulo, para eles emitirem declarações para mim, para o André, para os filhos do André, para os filhos do meu irmão, o João falecido, para os filhos, para minha irmã, para o meu cunhado também poder se vacinar, enquanto o esposo da minha irmã. A gente conseguiu as declarações para todos e a partir dessa declaração que eles poderão se vacinar, com uma certa prioridade, aqui em São Paulo, mas isso demorou também, foi muito demorado. Existe o medo, né! Porque os hospitais aqui estavam todos lotados. Se a gente fosse, naquele momento, hospitalizado, assim como eu tive professores amigos meus, que infelizmente a gente acabou perdendo aqui. Dentro da escola eu vivi isso, professores que acabaram contraindo a Covid-19, foram internados, intubados e eu nunca mais tive a felicidade de ter o contato com aqueles professores que fizeram parte, professores das ciências humanas, filosofia, que era o professor Célio, que acabou falecendo aqui na escola onde eu trabalho. Então ele era uma pessoa muito próxima de mim, eu senti muito com isso, e senti que aquilo poderia acontecer comigo também, acontecer com os meus familiares e acontecer com os meus parentes. E a gente não estaria aqui hoje Tiago, contando essas histórias. Então quer dizer, a gente diria, digo assim, seriamos parte de um processo de muitas outras sobrevivência. A gente sobreviveu muito Thiago, a gente tem sobrevivido muita coisa, enquanto indígena que vive na cidade, com suas trajetórias pessoais e com as suas trajetórias familiares. Mas eu diria, que 522 anos, para os povos indígenas é muita coisa, é muita coisa, é como se a gente estivesse lutando contra tudo e contra todos, para continuar existindo. Então é um pouco disso.
P/1 − Assim, é uma trajetória espetacular, chegar no momento de hoje ainda, como você disse, continuar resistindo, lutando, resistindo, para a gente existir. E indo para os finalmentes, então, hoje, depois de toda essa superação, o que você poderia falar das coisas mais importantes pra você? Quais seus sonhos? Que legado você quer deixar?
R − Então, Tiago, acho que o que eu pretendo deixar, enquanto indígena, enquanto professor, enquanto mestre agora, doutorando, futuramente um doutor na área da Antropologia. É deixar um trabalho materializado, escrito, que possa mostrar quem são os indígenas de ontem, quem são os indígenas de hoje, muito porque eu tenho muito o sonho que os indígenas continuem existindo por pelo menos mais uns 2.000 mil anos. Então, eu espero muito que os não indígenas compreendam um pouco das nossas trajetórias e vidas pessoais, e que todos, que a gente supere, talvez, um dos grandes problemas, que eu acho que é da nossa sociedade, que não é o preconceito e a discriminação, é o racismo mesmo. Eu acho que a gente precisa superar a história de racismo que os indígenas sofreram nos últimos cinco séculos dos não indígenas, a gente continua ainda sofrendo uma série de preconceitos, mas é pior do que isso, é o racismo mesmo! E o racismo se dá de muitas formas, inclusive o próprio racismo institucional. Tem pouco indígena dando aula, tem pouco indígena dentro das escolas públicas, tem pouca indígena no teatro, tem pouco indígena nas artes, tem poucos indígenas dentro das Universidades dando aula, tem poucos indígenas em vários lugares de poder, inclusive nas próprias estruturas. Então, a gente tá vivendo agora um momento diferente, da história, que talvez seja criado o Ministério dos Povos Indígenas, eu estou vendo que isso é superimportante, para manutenção não só desses direitos que a gente está conseguindo construir na cidade, que são esses escritos nossos, esses livros que a gente está publicando, e essa mudança nesse processo de descolonização, o próprio currículo da cidade de São Paulo, ele seja fomentado não só na cidade, aqui. São Paulo tem uma força e a gente precisa saber que essa força é importante para mobilizar outras ações, em outros estados, que a gente sabe que esses escrito, esses livros, essas histórias, elas precisam também circular. Então, eu diria que se esse conhecimento que a gente está construindo, circular em outras regiões, principalmente nas regiões que continuam ainda sendo regiões muito racistas e anti indígenas que ele consiga trazer um certo alento. A educação precisa chegar nesses lugares e a educação escolar indígena, e não indígena, que essa oralidade, esse conhecimento ancestral, circule, circule. A gente precisa fazer com que esse povo entenda que, em primeiro lugar, os indígenas já estavam aqui. E depois, a partir dessa presença dos indígenas, a gente criou um conceito de sociedade, que exclui, mas que, de certa forma, acaba também se apropriando de elementos culturais dos povos indígenas, sem mencionar que são. Vou dar um exemplo para você, que me incomoda muito. A gente fala, por exemplo, do Poncho Gaúcho. O Poncho não é Gaúcho, o Poncho é Guarani, se apropriaram da cultura Guarani, sem citar a fonte. Quer dizer, se apropriaram do próprio mate, a erva mate Guarani, se apropriaram do fumo do Povo Guarani, sem citar a fonte. Então, quer dizer, para mim, se os professores, se a escola, se a sociedade começar já, colocar seus filhos, seus alunos, em contato com as culturas indígenas, para mostrar de onde veio, talvez a gente construa um novo, sim. Eu gosto bastante daquele texto do, Eduardo Viveiros de Castro, quando ele diz que a gente precisa renascer, eu acho que é um pouco isso mesmo, a gente precisa renascer enquanto o povo. Mas a gente não renasce sem colocar os elementos da cultura indígena dentro das pessoas. Os indígenas estão aí, os indígenas sempre estiveram, a cultura indígena faz parte da história desse país, a gente precisa fazer com que eles entendam, que a história desse país, foi criado em cima de derramamento de muito sangue indígena, qualquer lugar que a gente circular por esse país, vai ter sangue indígena, e a gente precisa fazer eles entenderem. Então talvez o legado é que a educação de conta disso, de conta de explicar, quem são esses indígenas, quem são as 305 etnias, quem são as 274 línguas, quem são os povos vivendo de forma isolada, quem são os isolados indígenas da cidade. Então a gente precisa dar conta disso daí, a gente precisa explicar. Se daqui alguns anos eles souberem quem são os indígenas, para mim tá tudo certo já, a gente conseguiu avançar. É isso!
P/1 − Eu posso te dizer que o seu doutorado aqui, contado hoje, ou pós-doutorado, toda essa história. Bom, eu acho que atende, as suas respostas, as perguntas que eu fiz já. Mas você gostaria de acrescentar mais alguma parte da sua história, que você não contou, fique à vontade.
R − Eu queria, primeiro, agradecer o convite, dizer que estou bem contente, a gente precisa, de fato, ter um acervo de inúmeros indígenas e das suas trajetórias pessoais. Eu diria que a minha trajetória pessoal, ela muda a partir do momento em que eu conheço a minha história indígena. Eu mudei muito, depois que eu fiz o caminho da volta, eu andei para trás para conhecer. E eu acho que muitos indígenas têm feito o caminho da volta também, para poder entender um pouco desse passado, para você poder viver. Eu sempre digo que a gente tem um problema, que eu chamo de reparações históricas. Eu lembro que tinha uma indígena, não lembro o nome dela agora, que acabou me contando, que ela não concordava muito com as afirmações que eu fazia a respeito dessa questão das reparações históricas, porque a gente não vai conseguir reparar nunca. Mas eu diria para ela, que eu chamava de reparações históricas, um pouco dessa memória que a gente cria do passado e que, de certa forma, nos faz ser o que somos hoje. Então, a gente acaba tendo uma questão, das nossas memórias do passado e que as nossas memórias do presente, se unem, para a gente poder construir as nossas próximas memórias do futuro. Que eu espero que as memórias do futuro sejam bem melhores para os indígenas que estão hoje. Então, isso que eu chamo de reparação histórica, é reparar em sintonia com as memórias do passado, do presente e as memórias que eu espero ter, boas, para o futuro, para os povos indígenas. Então acho que é um pouco isso que eu quero, um pouco isso que eu espero também.
P/1 − Emerson, e como foi contar a sua história? Essa experiência de hoje?
R − Então, eu gosto muito de falar um pouco sobre isso, Tiago, porque me fortalece, me fortalece! Me faz olhar para trás, me faz olhar tudo que aconteceu com os povos indígenas. E eu fico imaginando quantas outras histórias a gente não deixou de contar, né Tiago! Então isso, eu ainda estou tendo o prazer de poder contar as minhas histórias e a história da minha família. Eu fico imaginando aqueles indígenas que não puderam contar as suas histórias, e que as suas histórias foram silenciadas ao longo de toda a nossa trajetória. Então eu, de certa forma, me sinto feliz.
P/1 − Bom, eu acho que encerramos, então, a tua biografia, o teu livro. E já agradecendo, pela tua disposição e acredito que vai ser mais uma das lindas histórias até aqui que vai compor esse acervo no Museu da Pessoa. Que é um espaço importante, que dá visibilidade para essas pessoas que não estão nos livros, junto com aquelas pessoas contadas, historicamente famosas. Mas acredito que a partir de agora vai ter uma material bacana e a valorização, então eu agradeço, Emerson! Obrigado!
R − Obrigado!
[Fim da Entrevista]
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