Projeto: Indígenas pela Terra e Pela Vida
Entrevista de Adriano Karipuna
Entrevistado por Marcia Mura
Entrevista concedida via Zoom (Porto Velho), 26/10/2022.
Entrevista n.º: ARMIND_HV019
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrita por Mônica Alves
Revisado por Luiza Gallo
P/1 - Puranga Ara! Bom dia! Coema. Adriano Karipuna é com imensa alegria que eu venho fazer com você essa conversa, entre parentes, nesse projeto super importante, Terra e Vida do Museu Da Pessoa. Nemiguere! Muito Obrigada por estar aqui com a gente! Eu gostaria, Adriano, que você começasse a falar sobre a sua narrativa, por onde você achar melhor e por onde você achar mais importante começar. Sinta-se à vontade.
R - Bom dia! Em primeiro lugar quero agradecer esse momento oportuno, para que as pessoas nos ouçam pela luta dos povos indígenas. Também do Karipuna, que é um povo do território mais ameaçado aqui da região Norte, Norte Amazônico, que vem sofrendo ataques, contra esse desgoverno, corrigindo, com esse desgoverno. E sabemos bem que esse ataque no nosso território é vindo de força política. Eles querem fazer o ilegal para o legal. Onde tem muitas empresas transnacionais, que têm interesses de usurpar ilegalmente os nossos territórios destruindo a floresta, tirando a matéria prima, como os minérios, madeiras, formação de pastoril no território indígena Karipuna. Então há um interesse muito grande dos ataques dos territórios indígenas Karipuna, por conta dessa situação vinda da força política. É bom mencionar e deixar claro que, quem nos ouve e quem nos assiste, que essa atual conjuntura, os órgãos ambientais foram sucateados propositalmente, justamente para não haver a proteção da integridade física do território indígena Karipuna, ou seja, para ele ficar desguardado e desprotegido. Por isso que os invasores, esse crime organizado, entra no território indígena sem medo algum. Até mesmo, tem uma matéria publicada pelo O Globo, que a...
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Entrevista de Adriano Karipuna
Entrevistado por Marcia Mura
Entrevista concedida via Zoom (Porto Velho), 26/10/2022.
Entrevista n.º: ARMIND_HV019
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrita por Mônica Alves
Revisado por Luiza Gallo
P/1 - Puranga Ara! Bom dia! Coema. Adriano Karipuna é com imensa alegria que eu venho fazer com você essa conversa, entre parentes, nesse projeto super importante, Terra e Vida do Museu Da Pessoa. Nemiguere! Muito Obrigada por estar aqui com a gente! Eu gostaria, Adriano, que você começasse a falar sobre a sua narrativa, por onde você achar melhor e por onde você achar mais importante começar. Sinta-se à vontade.
R - Bom dia! Em primeiro lugar quero agradecer esse momento oportuno, para que as pessoas nos ouçam pela luta dos povos indígenas. Também do Karipuna, que é um povo do território mais ameaçado aqui da região Norte, Norte Amazônico, que vem sofrendo ataques, contra esse desgoverno, corrigindo, com esse desgoverno. E sabemos bem que esse ataque no nosso território é vindo de força política. Eles querem fazer o ilegal para o legal. Onde tem muitas empresas transnacionais, que têm interesses de usurpar ilegalmente os nossos territórios destruindo a floresta, tirando a matéria prima, como os minérios, madeiras, formação de pastoril no território indígena Karipuna. Então há um interesse muito grande dos ataques dos territórios indígenas Karipuna, por conta dessa situação vinda da força política. É bom mencionar e deixar claro que, quem nos ouve e quem nos assiste, que essa atual conjuntura, os órgãos ambientais foram sucateados propositalmente, justamente para não haver a proteção da integridade física do território indígena Karipuna, ou seja, para ele ficar desguardado e desprotegido. Por isso que os invasores, esse crime organizado, entra no território indígena sem medo algum. Até mesmo, tem uma matéria publicada pelo O Globo, que a Polícia Federal teve um corte, imensamente, de seis bilhões. Assim está na matéria, para que a Polícia Federal não tenha força para poder intervir em algumas ações. Aí você percebe que os territórios indígenas e quilombolas, cerrados, a caatinga, estão vulneráveis, sem proteção alguma. Além disso, a integridade física das pessoas que defendem esses territórios, que é o dito ativista ambiental ou ambientalista, que são um dos mais ameaçados e onde muitos ambientalistas e ativistas são assassinados no Brasil. Além disso, o Brasil e essa conjuntura atual, a política nacional, é um país e um povo muito racista contra os povos tradicionais. E quando eu digo povos tradicionais, não é só com os indígenas, é também com os ribeirinhos, os seringueiros, os extrativistas, quilombolas, em outras regiões, quebradoras de coco, que não tem aqui na nossa região, ainda, né. E esses grupos menos favorecidos, na visão política atual, são empecilhos para esse tipo de desenvolvimento, porque para nós, indígenas, desenvolvimento não é isso. Desenvolvimento é proteger e cuidar daquilo que já existe. E também essa economia sangrenta não é a economia da vida, porque a economia da vida é segurar e assegurar, garantir a segurança da diversidade. E como líder indígena na qual eu faço parte, eu estou nessa luta desde os meus quatorze anos, quando começou o Brasil 500 anos, eu me recordo com o meu mapa mental. A partir daí eu não parei mais, mas eu comecei a ser mais visível na questão ruim e boa, quando eu fiz a minha primeira denúncia nas Nações Unidas em 2018 em Nova Iorque, em seguida foi em Genebra, na Suíça. E também no mesmo mês em Genebra, Suíça. E no mesmo ano foi no parlamento Europeu sobre o que está acontecendo com o território indígena Karipuna. A Márcia sabe bem quando começou a destruição da floresta Karipuna, começou a partir de 2010, mas em 2017 a começou aumentar, porque já tinha esse discurso do atual presidente: “Que se eu chegar lá não vai haver mais nenhum centímetro de terra demarcada e homologada”. Depois ele foi na íntegra e corrigiu: “nenhum milímetro”. Então a partir daí começou-se a empoderar esse crime organizado, que eles usam hoje como pequeno agricultor, ou trabalhador. Nós sabemos que um trabalhador não tem condições materiais e financeiras para abrir inúmeros quilômetros de estrada dentro da floresta Amazônica e também não tem condições de derrubar quilômetros e quilômetros de floresta e também formar grandes pastagens. Porque os trabalhadores tradicionais não conseguem. Até porque eles não têm nenhuma linha de créditos para o tamanho desse financiamento. Porque a maioria dessas invasões no território indígena, nos territórios públicos, é financiado por alguma corporação, falando na questão de bancos. E aí o Governo vem usando isso como argumento norteador, mas não são! Porque nós sabemos que esse é um grupo criminoso, que está roubando o território indígena, roubando as terras públicas. E inclusive, durante a pandemia, o Governo atual deixou muito a desejar, foi muito ineficaz e foi muito negligente com os povos indígenas, porque a vacina chegou muito atrasada. Eles não priorizam o lockdown e muito menos o distanciamento social. Eles priorizam o projeto antiambiental. Uma delas é o 490 que é Marco Temporal, a 191, no nosso estado foi a 1089, que extinguiu a unidade de conservação Jaci Paraná e Pacaás Novos, que formavam o cinturão nos territórios indígenas aqui da região, que era do povo Uru-Eu-Wau-Wau, que é do povo Uru-Eu-Wau-Wau, perdão, Karipuna, Ribeirão e Jarapelagem, Lage Velho. E ameaçando os povos livres, que são os indígenas isolados que vivem nesses territórios. Tanto no território Karipuna, no território Uru-Eu-Wau-Wau, no Ribeirão, eles ficam andando para lá e pra cá, por conta dessas ameaças das queimadas e do desmatamento. Então o Governo Brasileiro foi cúmplice de inúmeros mortos por conta da contaminação de Covid-19 nos territórios indígenas e para os povos indígenas. No entanto, nós percebemos que isso cada vez mais vai aumentando com esse discurso atual do presidente, de não homologar os territórios indígenas. O Marco Temporal é uma tese muito grande que eu como… já olhando no olhar técnico, é um projeto etnocida, porque eles estão dizendo que nós só teremos direito dos territórios a partir de 1988. Mas como povo originário, nós sabemos que nós já existíamos e existimos até hoje nos territórios indígenas. E por aí que você vê que dentro dessa tese, uma tese perigosa, é uma tese sangrenta, porque muitos pecuaristas, o agronegócio e grandes corporações de minérios, têm interesse nisso. Porque ela vai fragilizar, mais do que já está fragilizada, a proteção do território indígena e empoderando esses invasores. Mais uma situação que eu quero mencionar e lembrar, que o sucateamento dos órgãos, Ibama, Funai e o ICMBio, foram um sucateamento para garantir invasões dos territórios indígenas. Esse sucateamento foi na questão administrativa, técnica e financeira. Recentemente teve o último, eu digo o último, pode haver mais sucateamento, porque estão querendo extinguir CR, que é Coordenação Regional da Funai, inclusive os comitês onde ainda tem indígenas que fazem parte, comitê da Funai. O novo decreto que está circulando para extinguir esses programas que existem na Funai. Observamos também que esse sucateamento vem com força política. Também quero dizer que os indígenas isolados estão muito vulneráveis, porque ainda não há garantia e segurança para que alguns territórios deles sejam homologados e demarcados imediatos, assim como outros povos indígenas que estão nessa luta há muito tempo, não foram demarcados e nem tem previsão para demarcar. Por essa razão, nós, povos indígenas, nos reunimos no Acampamento Terra Livre para cobrar esse direito que está garantido constitucionalmente. Mas até o presente momento, essa garantia não saiu do papel e não foi prevalecida para que os povos indígenas sejam beneficiados e que seja cumprida no que diz a lei e na carta maior da Constituição. Porque nós temos esse direito garantido, mas só que essa garantia não saiu do papel. Percebemos também que outros sucateamentos e outra atrocidade que nós estamos sofrendo é com relação ao ingresso nas universidades, porque existem cotas para os indígenas, mas os cursos que a maioria dos indígenas almeja ingressar, ou seja, fazer aquele curso, elas são muito pequenas. Estou querendo dizer, se abre um curso para medicina ou outros cursos, só abre uma vaga ou duas, sendo que não são só dois ou três indígenas que querem entrar neste curso. E essa situação também é complicada, porque as pessoas 'botam' dificuldades para que os indígenas sejam acessíveis a esse curso. Também é uma garantia garantida na constituição, para que os indígenas tenham ingressos nas faculdades. E o governo brasileiro não tem priorizado a questão dos povos indígenas, porque eu digo isso, até o presente momento os povos indígenas não são reconhecidos por suas lutas e o que nós perdemos, aí quando eu falo nós, não é só de agora fazendo a linha do tempo. Desde muito tempo os povos indígenas vêm perdendo seus territórios pouco a pouco, vindo da força política. Território Karipuna, nos dados recentes, desde 2017 já derrubaram 4.700 alqueires de florestas dentro do território indígena Karipuna. E quem vai fazer a reparação disso? Quem vai poder reflorestar isso? Ninguém tá nem aí, falando de governo. E quem já está protegendo isso, desde sempre, é o povo indígena. Mesmo assim, por protegermos os nossos territórios, nós somos vistos como pessoas criminosas, que nós não somos! Nós não estamos invadindo o espaço de ninguém. É ao contrário, as pessoas que estão invadindo os nossos territórios, as pessoas que tomaram os nossos territórios com esse argumento de desenvolvimento e de economia. E aí você percebe que a pecuária desde sempre vem se prevalecendo com esse tipo de discurso e com esse sangramento e esse massacre aos povos tradicionais. O Estado brasileiro deve muito para os povos indígenas, porque é irreparável o que ele fez com o povo que perdeu o seu território e como o povo que está perdendo o seu território, com os assassinatos dos indígenas que protegem o território e que foram assassinados por defender seus territórios. Então nós não temos mais que romantizar, eu uso sempre essa fala: “Não podemos mais romantizar a luta dos povos indígenas”, porque os povos indígenas estão sendo assassinados, muitos deles estão ameaçados, muitos já foram assassinados e não fizeram nada! Só apareceu nas estatísticas que mais um indígena foi morto. E essas pessoas que assassinaram o nosso povo, nenhum deles foi preso e muito menos responsabilizado pelo seu crime. Tanto pelo crime de assassinato, quanto pelo crime de desmatamento do território indígena Karipuna, e em outros territórios também. Não sei se eu consegui falar um pouco para que as pessoas me entendam.
P/1 - Muito importante, Adriano. Todas essas questões que você trouxe na sua fala sobre a luta pela vida, pelo território. E agora eu quero te perguntar algumas coisas mais referentes a você enquanto pessoa, enquanto liderança. Você poderia falar novamente o seu nome e falar qual é o significado do seu nome? Seu nome indígena Karipuna e o seu nome não indígena? Quem foi que deu o nome? Como foi? Teve algum ritual específico do teu povo nessa escolha do nome? Essas coisas… você pode falar?
R - Então, o meu nome é Adriano Karipuna. Karipuna é o nome do povo, nós somos conhecidos como arré, “gente de verdade”. O meu nome não está no registro civil, mas eu sou chamado de Tangareí, que é um pássaro que só tem na floresta montanhosas, no Karipuna tem esse pássaro. E por incrível que pareça, é o pássaro mais bonito que tem na floresta. As pessoas, às vezes, confundem, o “pássaro bonito”, o nome não significa o “pássaro bonito”, esse é um dos pássaros mais bonitos da selva. E esse nome é dado pelos anciãos. Mas aí eu não sei explicar, porque a nossa cultura é um pouco diferente, porque quem passa o ensinamento para os homens, são os pais, os pais que eu digo é do gênero masculino, e a mulher ensina as meninas do gênero feminino. Então eu sou muito, é… como é que se diz… deixa eu corrigir aqui… como algumas coisas eu não sei explicar, porque eu não tenho o outro lado. O outro lado que eu digo é assim, eu não tenho pai, eu só tenho padrasto, mas não é do meu povo, eu só tenho mãe. Então a minha mãe tem limite de me explicar algo, porque eu não sou mulher, pela minha cultura. E ela explica para minha irmã no caso, porque aí sim. Mas isso não deixa de eu ser o Adriano Karipuna indígena. Ah, só lembrando que eu sou falante do povo, eu falo a minha língua, escrevo ela e eu aprendi. Não é dizer assim: “Minha mãe me ensinou”. Eu aprendi porque convivia. Convivia, porque agora, atualmente, estou na cidade, sou acadêmico no curso de Direito, mas não significa que eu deixei de ser indígena, só para desmistificar esse olhar. E eu ainda sou falante do meu povo, escrevo, sou acadêmico do curso de Direito e ainda falo um pouco de espanhol. Mas só que eu nunca estudei, mas eu entendo, compreendo, eu escrevo, porque foi necessário na minha existência política internacional e estou me esforçando, com muito sufoco, para entender o inglês. Futuramente eu vou dominar também essa língua. Então, falando sobre a língua e como funciona, geralmente o que acontece é que quem dá o nome são, ou os anciões ou as anciãs. Geralmente vem de algum animal ou de um ser da floresta muito resistente. Para nós, a cobra sucuri é a serpente mais resistente da floresta, a onça que é um… o morcego e a tempestade, que é o relâmpago né, que nós chamamos de Tupã. Tupã para nós não é Jesus Cristo, tá? É a tempestade, ou seja, relâmpago. Então há uma diferença muito grande. E além disso, a minha mãe me ensina quantos povos existem no Brasil. Há uma situação que eu sempre falo: quando eu olho o grafismo e o cocar eu sei de qual povo é, por mais que eu não veja o povo, mas é só eu olhar o grafismo eu já sei de qual povo. A minha mãe já sentou comigo e me explicou isso, como é o povo, como outro povo vive, como é o artesanato deles e o grafismo. Inclusive, a palavra água, nós chamamos de _________, tem o povo que fala _________, tem o povo que fala _________. Então eu sei quando… eu compreendo quando o outro povo fala “água”, porque minha mãe já me ensinou, ela já sentou comigo e já me ensinou. E quando eu vejo esse grafismo, ou os parentes falando no grupo né, falando de WhatsApp, já na questão da outra cultura que é do não indígena, eu observo muito como eles falam. Por exemplo: Kunhã é uma terminologia de mulher e vários outros povos falam “Kunha” ou “Kunhãtã”, ou “Kunhãinha”. E eu percebo isso, porque minha mãe já me ensinou, sentada, na aldeia, no entardecer. Hoje minha mãe já está idosa, teve AVC, mas ela ainda continua muito resistente. Falando em resistência e ensinamento, por conta desse desmatamento que está havendo no território indígena Karipuna e em outros territórios, isso ficou como plano C, porque ela não tem mais tempo. Questão de precaução e prevenção também, porque nós já sofremos ameaças de morte, os invasores em alguns momentos já tiraram todo mundo a força, e essa força é com arma de fogo. Então a minha mãe, hoje, não senta mais, pelo menos comigo. Eu, como não estou lá, é claro que ela não senta mais comigo, mas com os meus irmãos, no pátio, ou seja, na aldeia, ficar conversando. Toda vez ela fazia isso, quando não tinha invasão no nosso território. Então o desmatamento não só destrói a questão ambiental, mas ele destrói também a questão da cultura. Por exemplo, hoje nós não praticamos mais a fabricação de nossas armas, que é o arco e flecha, porque nos lugares onde tinham os arcos e flechas foram destruídos por desmatamento e queimadas para formação de pastoril. E também nós fazíamos a festa da castanha verde, que é _________, em outro povo falam, _________, mas nós falamos, _________. Porque muitas castanheiras foram destruídas, e nós, pela consciência e a simplicidade, nós percebemos que uma castanheira leva muito tempo para se formar uma adulta e dá a primeira safra, enquanto os ditos civilizados, ditas economistas, dito protetores de desenvolvimento, que não são, na nossa visão, eles destroem tudo isso sem perceber que não estão só destruindo a floresta. Estão destruindo vidas, cultura, língua, crença do povo, mito, grafismos… lugares sagrados estão se destruindo. É preciso ver isso com muita cautela, com grandes especialistas, com pesquisadores, antropólogos, biólogos, ambientalistas, sociólogos… o quanto a destruição da floresta, das nossas florestas, do nosso povo, como é destruidor! Ah, lembrando também que tem que ter um psicólogo ou um psiquiatra, porque nós vivemos sob ameaças que causam terror psicológicos, causando danos mentais e psicológicos. Então é preciso envolver esses especialistas. Vou repetir de novo, biólogos, engenheiros florestais, agrônomos, agrônomos que estão a favor da nossa luta, essas pessoas que eu estou falando, que estão a favor da nossa luta, porque a destruição da floresta causa tudo isso que eu disse: o terror psicológico, impacto ambiental, social, cultural… então é preciso envolver esses profissionais especialistas para que possamos ter uma reparação histórica. Claro que não vai pagar, mas pelo menos dá para cobrar do Estado brasileiro o que esse tipo de desenvolvimento e essa economia, que eu considero como economia sangrenta, esse desenvolvimento assustador e destruidor está nos causando, causando para os povos indígenas e para os povos tradicionais, que, de fato, vem e estão protegendo hoje, e desde sempre, a floresta Amazônica, a Caatinga e o Cerrado.
(29:35) P/1 - Muito bom, Adriano! Muito importante tudo isso que você está trazendo para gente, partilhando a sua vivência, a sua experiência de luta. Você poderia me falar um pouco mais onde e quando você nasceu e se te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Pois bem. Eu nasci em Porto Velho, na zona urbana, no hospital de base, que é o Ary Pinheiro, em 1986. Segundo o meu pezinho, que é aquela comprovação que tinha de natvivo né, que isso já é uma questão do direito civil, é nativivo. Então hoje, quando você nasce, teve uma mudança imensa, você já sai com seu CPF, pelo menos o número ou o nome. Então me falaram que eu nasci muito desnutrido, segundo a minha mãe, e eu causei inúmeros problemas para ela antes do parto e pós parto. E por aí a gente percebe que a pessoa já nasceu com espírito de guerreiro. Na minha infância, lembrando aqui do meu mapa mental, eu pegava muita malária e eu não tenho vergonha de dizer, na época a Funai era forte, era conjugado com a saúde indígena e eles me botavam muito para tomar tacura, da malária, o medicamento cloroquina e quinino, era assim o nome, não sei se ainda é. E aí como eu tinha inúmeras malárias e tinha que fazer o tratamento, era tão fortíssimo esse tratamento que eu tinha o dente preto, porque até os ribeirinhos que moravam lá próximo do território, do outro lado do rio Jaci Paraná, me chamavam de gongo, que é uma espécie de larva que é comestível e vem do coco babaçu, aqui da Amazônia. Mas eu não levava isso para o lado pessoal, não. E com o passar do tempo eu fui crescendo e comecei a continuar nessa luta, como até hoje continuo e não pretendo parar. E por conta disso, hoje eu sou muito vulnerável, como eu tomei muito medicamento, futuramente claro que ele causa sequelas, e eu tenho… eu acho, eu não sou especialista nessa área, hoje eu tenho intolerância à lactose, tudo que tem leite eu passo mal, não é mal de ir para o hospital não, mas eu evito. Não sei se foi por conta do efeito disso. E também eu fiz um exame depois do Covid, que eu tive duas vezes, e o doutor disse, o médico que cuida dos ossos, lá no… eu esqueci a função dele agora… ortopedista; que os meus ossos estavam meio que fracos, ele até me perguntou: “Você tomou muito medicamento, antibiótico?". Eu falei: “Não doutor, quando criança eu tomei muito remédio para malária, porque na minha região tinha muita”. Hoje, por inúmeros trabalhos, não têm, raramente aparecem. “Eu tomei muito medicamento de malária”. Ele falou: “Ah, pode ser isso”. Daí ele disse assim: “Ó, você tem que evitar comer alguma coisa que possa fragilizar seus ossos”. E eu vejo que foi por conta desses medicamentos que eu tomei há muito tempo. Porque de verdade, malária era uma em cima da outra e naquela época era o bum da doença tropical, que ainda é uma doença. Então malária matava, na época, como tuberculose, coqueluche e outros tipos de doenças. E a minha mãe, no passar desse tempo, quando criança ela ficou muito doente, como é até hoje. A minha mãe é uma anciã muito resistente. Ela vivenciou o contato em 1970, viu os meus ancestrais sendo mortos por conta das doenças transmissíveis, como coqueluche, sarampo, tuberculose, hepatite, pneumonia, e assim vai esses vírus. Na época não tinham vacinas. E ela vivenciou também a enchente de 2014, vivenciou e vivencia a invasão do nosso território, já passou por três cirurgias para a remoção de cálculo renal, por conta de muita pressão sobre mina de ameaça e de ameaça do território. Há dois anos atrás ela sofreu um AVC e hoje ela está fazendo fisioterapia. Então para mim ela é mais resistente do que eu, porque ela viu tudo isso. Viu meu pai partindo dessa para outra vida, ou seja, falecer. Viu o meu avô falecer. Eu acho que é muito triste para uma neta ver o avô morrendo. Mas tudo isso é uma sequela causada por esse tipo de contato. Por isso que eu digo e vou mencionar mais uma vez nesta nossa reunião, nessa live, que os indígenas isolados têm o direito de ficar isolados, porque o contato nunca deu certo. Percebemos, para nós que já somos contactados, que nós temos pouca acessibilidade nas políticas públicas. Então esse contato também vem trazendo inúmeros massacres. E esses massacres e esses assassinatos não são só com armas de fogo, e sim também com doenças, como eu disse anteriormente. E inúmeras situações que não falam, pelo menos eu tenho isso como relato e caso concreto, que está havendo muito suicídio de indígenas, e as pessoas não visibilizam isso, é preciso visibilizar. É preciso visibilizar isso! E os profissionais da saúde, eu estou dizendo da saúde do Estado e da iniciativa privada, ela não tem experiência de lidar com esse público, dos indígenas que estão se suicidando, principalmente os jovens. Há casos também de depressões, que é doença psicológica cientificamente reconhecida que é uma doença, e é uma doença. Então é preciso visibilizar isso. O que está causando esse tipo de doença para os jovens, adolescentes, idosos e esse público que tem? Então é preciso visibilizar a questão psicológica que os povos indígenas estão sendo afetados com isso. E inúmeros indígenas que têm sido diagnosticados com CA, que é o câncer. Nós sabemos que esse CA vem vindo de inúmeras contaminações de agropastoril. Por exemplo, o território indígena Karipuna é tomado de inúmeras invasões. Aquela área lá que você conhece, Márcia, do outro lado do rio não tem mais floresta, ali só é pasto agora. Ali bem em frente mesmo. Então toda a chuva que chove no tempo do inverno Amazônico e da estiagem, todo o agrotóxico vai para o rio. E o rio é cheio de peixes e os indígenas Karipuna e outros povos também consomem os peixes, e assim vai a contaminação. Em outros territórios, por exemplo, Yanomamis, que tem relatos da Fiocruz, a fonte real, caso concreto, que o mercúrio está indo no rio deles, dos povos Yanomamis. E aí o peixe pega o mercúrio e os indígenas consomem o peixe, e aí vai a contaminação. Por isso que Rondônia… o Brasil é um país muito alto na questão do câncer. E aí quando eu falo câncer, não é só câncer em um só segmento, é para todo o público, seja indígena ou não indígena. Mas é um país que tem muito câncer. Então esse dado está na Fiocruz, que inclusive as pessoas não acreditam na ciência, eu acredito! Porque eu sei que a ciência… é preciso investir mais na ciência. Ainda mais com essa conjuntura atual que as pessoas ficam duvidando da ciência, pondo e colocando remédios sem poder de cura para Covid. Por isso que houve e está havendo inúmeros mortos por Covid-19 e por outras doenças, porque o governo atual não priorizou essa terceira questão de investimento na ciência, nas universidades privadas, nas universidades do governo. Então é preciso visibilizar tudo isso, principalmente no que eu estou dizendo na questão dos indígenas com doenças psicológicas e suicídios que estão havendo.
P/1 - Adriano, nossa eu fiquei aqui impactada de saber que lá do outro lado rio não tem mais aquela floresta. Então eu acho que quando eu voltar, se eu voltar lá um dia, tiver a oportunidade de voltar lá, eu vou ficar muito impactada, porque a imagem que eu tenho é daquela época que a gente ia lá fazer trabalho de assessoria pedagógica.
Mas deixa eu te perguntar uma coisa. Eu percebo a importância que tem a tua mãe na tua vida, você está sempre trazendo ela presente na tua fala, os ensinamentos que ela te passa e essa resistência toda, enquanto das mais velhas, a última mulher Karipuna que se manteve viva após o contato. Também tenho uma admiração muito grande pela Katicai, ela é uma grande guerreira. Eu gostaria, se for possível, que você me falasse o nome dela novamente e me fizesse uma descrição. Como você descreveria sua mãe, além daquilo que você já falou?
R- Então, a minha mãe… eu a descrevo como uma mulher forte, muito preparada psicologicamente, por mais que ela sofreu isso, esse AVC, ela é muito meiga, é muito familiar. Inclusive ela quer que os netos fiquem perto dela. Eu disse: “Mas mamãe, você… já chega de ter responsabilidade, vai curtir o seu marido!”. Que eu falo que é o meu padrasto né. “Não, mas quando você tiver um filho, ou um netinho, traz para mim!”. Eu falei: “Não, já chega já! Eu cuido!”, “Não, você já cuidou de nós já. Hoje nós somos todos barbados, já somos adultos! Você tem que viver sua vida, curtir aí com o meu padrasto, durma até tarde, acorda a hora que quer, curte o seu esposo”. Então além do que ela já sofreu e vivenciou, tudo isso que eu disse anteriormente, ela é uma mulher muito familiar, muito amiga, muito extrovertida, gosta de fazer amizade. Eu me recordo quando a imprensa, BBC de Londres esteve no Karipuna, e aí eles fizeram uma pergunta muito profunda. A pergunta era: "Quantos vocês eram e por que vocês diminuíram? O que foi que aconteceu para vocês estarem nessa quantidade que vocês estão hoje?”. E aí ela começou a falar das mortes. Ela falou: “Olha, me desculpem, mas eu não vou falar não, meu filho!”. Ela falou para mim. E o pessoal da BBC: “Não, vamos falar, vamos conseguir!”. A entrevista, todos os trabalhos da imprensa sobre voou, sobre denúncia, sobre invasão, era de duas semanas. Você acredita, Márcia, que ela levou quatro dias para me dar uma posição favorável? Porque ela não queria falar. Eu até compreendo, porque é uma situação muito delicada e dolorosa. Só de ouvir dói, imagina para quem viu isso acontecendo? E ela falou: “Vou falar, mas só que se eu me emocionar, chorar, vocês respeitem isso”. Então o que eu quero dizer, ela é muito forte emocionalmente. E quem deu o nome dela de… o nome dela na língua é Apikai, e como a Funai era SPI, não consegue falar Apikai, aí colocaram como Katicai. Mas o nome dela é Apikai. E as mulheres Karipuna, segundo [o que] ela me disse, elas trocam de nome e adolescência para a pré adolescência, quando ela começa a ter… se formando da fase de adolescência para mulher. Que não é a minha seara, não tenho muita profundidade para falar nisso. Elas vão trocando de nomes. Então ela trocou vários nomes no decorrer desses tempos de criança a adolescência, da pré adolescência até virar mulher. E quando casa também troca o nome, tem essa questão. Isso é o Karipuna né, o povo Karl Arriba, eu não sei os outros povos. Então como a nossa cultura indígena é muito imensa, é preciso se atentar por cada cultura, cada etnia e cada povo, porque todas são diferenciadas. E sobre a minha mãe, nós temos que dar guarida para ela psicologicamente, porque ela já é uma idosa. Inclusive ela está na cidade hoje, esse mês até dia quinze, porque ela está fazendo fisioterapia e ela vai retornar com o neuro, porque ela recentemente sentiu muita dor forte na cabeça e o neuro pediu para que ela retornasse para ver o que é que está acontecendo e possivelmente vai passar uma ressonância da cabeça para ver. E mesmo com essa sequela que ela tem, ela é animada! Um dia desses foi tão engraçado, que eu fui no médico com ela e falei: “Vou te levar na cadeira de rodas”. Ela levantou da cadeira e falou: "Não, eu quero andar, eu quero voltar ao normal”. Andar consegue, mas o braço ainda continua com a sequela por conta da Covid. Falei: “Deixa que eu te levo mamãe, não precisa andar não”. Ela falou: "Não, eu quero continuar andando, isso sim! Isso aqui é o de menos, coisa que eu já vivenciei meu filho, você nem aguenta!”. Eu fico calado né, eu respeito, não falo nada. Então são coisas que ela vivenciou e eu vejo que é resistente, e eu sou filho dessa resistência, eu sou o seguimento dessa resistência, eu sou a continuidade da luta dela. Porque ela lutou emocionalmente para superar tudo isso. Então não deixa de ser uma luta. Então eu respeito muito! Lembrando que também tem o meu tio, meu tio Aripã. Meu tio Aripã também está idoso e também vivenciou isso. Mas assim, ele não teve sequelas de saúde, essas coisas todas. Claro que ele vivenciou a mesma coisa que a minha mãe vivenciou, só que assim, ele foi mais resistente, não ficou doente, ele não passou por cirurgia, ele é mais na dele, é mais fechado. Não sei porque, é o comportamento do homem Karipuna, masculino, é desse jeito, talvez pode ser isso. Porque geralmente para nós, os homens são mais para o combate. Porque nosso território, como todos bem sabem, foi atacado pelos invasores, então os homens eram preparados para o combate. Mas na dele, não se envolveu muito em problemas internos da aldeia para não ficar fragilizado durante um combate ou um ataque. Então ele tinha que estar tranquilo emocionalmente, talvez seja por isso. Mas ele vivenciou também tudo isso que eu estou falando, que vem se passando e que se passou, desde o contato com o SPI que é, Serviço de Proteção ao Índio, que era no governo militar.
P/1 - É… quantos irmãos você tem? E como é a relação de vocês?
R - Então, nós somos dois irmãos e três irmãs. Meu irmão vive na aldeia, que ele é cacique, o André. E uma das minhas irmãs mora na aldeia também. E as duas irmãs minhas moram na cidade. Uma mora aqui em Porto Velho, e uma mora em Itapuã do Oeste. A minha relação com eles, elas são de irmão, como todas as famílias são, mas eu tenho mais proximidade com minhas duas irmãs, as mais velhas. Porque eu tenho irmãs mais velha do que eu. De idade que eu estou falando, que é a Angélica e a Elizangela. E com meu irmão, a gente conversa muito, até por conta da questão da aldeia e sobre a questão das estratégias da nossa luta. E essa estratégia fica comigo. A questão na zona urbana. E éramos para ser mais, segundo a minha mãe, ela disse que nós éramos para ser cinco homens e cinco mulheres. E aí um dos meus irmãos foi morto por doenças no tempo do contato. Era para eu ter um irmão de… hoje… acho com 59 anos, um dos meus irmãos era para ter. E a minha mãe foi muito sábia, porque nós temos uma diferença muito grande de idade. Por exemplo, a minha irmã, a mais nova tem 25 anos. O outro tem 21 anos, o outro tem 26 anos… vinte, não. Perdão. 29. E eu tenho 36. A minha irmã tem 44. E a outra tem 49 anos, vai fazer cinquenta. Então a minha mãe foi muito sábia de… questão de… é, aumentar o grau de família dentro do… enquanto outros dos meus parentes, não. Os filhos são tudo bem próximo de idade, e ela não, ela pensou diferente. Segundo ela, ela disse que meu pai falava: “Não. Deixa o filho crescer primeiro, deixa se formar adolescente, aí a gente vai pensar em ter outro bebê”. Era assim que ele falava. Assim ela me disse. Então a gente tinha uma diferença muito grande de distância de idade, e eu tenho muita relação boa com meu irmão, com as minhas irmãs. E acho que tem que ter uma relação boa com a família.
P/1 - Adriano, você gosta de ouvir histórias? Você ouviu muitas histórias? Quem te conta… contava, e quem te conta histórias?
R - Eu gosto de ouvir histórias principalmente do meu povo. Hoje eu tenho cobrado muito. Eu falo cobrar, porque ele é muito fechado. Eu cobro muito do meu tio, porque ele, por ser do gênero masculino… só que eu não sou filho dele, essa é a questão, esqueci de mencionar. Ele só tem direito de explicar isso pro filho dele, no caso, pro Batiti. O Batiti tem muita história viva, porque o pai dele chama e conversa. Então, na nossa cultura o meu tio não tem a obrigação de me contar, porque eu não sou filho dele, eu sou sobrinho, mas ele não tem obrigação. E se eu quiser, eu tenho que ir até ele, e se ele quiser contar a história, ele conta, se não, eu vou… como diz o ditado na nossa língua, na língua portuguesa: ‘‘A gente vai dar de cara na porta, mas não custa tentar’’. E a questão da minha mãe, é porque ela tem limite para falar as coisas, porque o assunto dela é mais voltado para a Andressa. Eu não posso perguntar da Andressa, coisa de mulheres do povo Karipuna. Então, como eu disse, existe uma lacuna, a questão de conhecimento cultural do meu povo. Porque para estar 100%, eu tinha que estar com meu pai vivo, e os dois sentassem e falassem comigo. Mas eu não tenho pai. Até porque, ele foi a óbito quando eu tinha seis anos de idade. Então eu tenho essa lacuna de história do meu povo, porque quem tem essa história viva mesmo é o Batiti. Só que ele é muito receoso de ficar falando. Até falei para ele: ‘‘Escreve um livro, grava isso’’. ‘‘Ah, mas eu não consigo’’. Mas eu não posso, porque se eu for com ele ouvir a história do meu tio, o meu tio não vai comigo presente. Isso é norma do Karipuna, isso é cultural. Vai falar só os dois, ou seja, a sós. Eu não tenho nem obrigação de estar lá, eu não tenho nem um ‘‘por quê’’. Se ele falar: “Venha escutar comigo’’. Eu posso ir, mas se não. E se ele estiver conversando e eu passando por perto, se ele falar: ‘‘Venha e escute a história’’. Eu vou. Se eu ver ou ouvir, eu tenho que passar ali, ou então se eu quiser ouvir… tem um monte de detalhes que é preciso seguir, falar: ‘‘Titio, eu posso participar da história e ouvir?’’. Se ele falar: ‘‘Não’’, simplesmente tudo bem, eu vou embora. E eu só posso entrar na história, ou ouvir a história, se eu for convidado. Então são esses detalhezinhos que tem na nossa cultura que são difíceis de explicar, só culturalmente. Doutor e expert PHD em Antropologia, voltado na questão da cultura indígena de fato, nem eles sabem explicar, mas é assim que funciona.
P/1 - É porque quem sabe explicar é o próprio povo, que é o Karipuna. Mas, assim, você tem alguma história que você ouviu na infância ou ouviu depois de grande, que você gostaria de compartilhar com a gente, que não diz a respeito do seu povo?
R - Ah, a história que eu mais gosto, inclusive, eu esqueci de mencionar, eu tenho um livro escrito ‘‘Da Floresta para o Mundo’’, que está na Amazon, Kindle. A história que eu gosto de ouvir até hoje é a questão da criação do mundo. Segundo a história, nós não temos essa marca na mão?! Deixa eu mostrar na tela para vocês. Tá vendo esse risco na mão? Então, para nós é quando teve um dilúvio. Eu até fico olhando, acho que a igreja de CNPJ, as igrejas pentecostais, acho que pegou nossa história e colocou na bíblia. Porque é muito parecido. É parecido, na verdade. Então essa marca que nós temos é quando teve um enorme dilúvio, que existia a palmeira, que é o coco, que na Amazônia tem, o coco babaçu. E muitas pessoas, para escapar, seguraram na palmeira do coco e rasgou por conta da… por isso a gente tem essa cicatriz até hoje, na mão, segundo a nossa história. Consegue ver? Todo ser humano tem, nós todinhos temos. E na época, [há] milhares de anos não existia nenhuma planta comível, que é mamão, milho, pimenta, tudo isso foi contaminado. E para nós, um dos pássaros que disse o que era para comer, e o que não era, é o Japinim. Não sei como é o nome dele biologicamente e cientificamente. Você conhece que lá na sua região tem, Márcia. Então até… e no entanto, ele hoje é um pássaro que imita inúmeros outros pássaros, imita até onças turrando, cotia. Então esse pássaro que nos destinou o que deveria comer e o que não deveria comer, após o dilúvio. E o que eu quero dizer com isso, que eu acho que igreja de alguma forma, pegou isso e colocou na bíblia, porque é igual. Só que, a diferença é que não era camelo, zebra, como diz na bíblia. Os nossos eram animais, onça, deixa eu ver o que mais, porco selvagem, mambira tamandua, que estava nesse… que sobreviveram. Não sei se você já ouviu falar, Márcia, que é uma espécie de flamingo, que só tem na Europa, geralmente tem em Maldivas, aquele flamingo de lá é rosa, aqui é preto, que é o coró-coró. Então esse pássaro também que disse para nós, após a enchente do dilúvio, que tinha terra, para que os Karipuna fossem nessa terra, que lá era uma terra muito boa para viver. E uma casa imensa que virou um barco… muita resistência para que a força da água não a destruísse, na época. Então essa é uma das histórias. Inclusive, eu quero escrever um livro sobre isso. Só que essa história que já me contaram sobre o dilúvio e a criação do mundo, ela são quatro horas de história, então acho que vai dar umas oitocentas páginas só esse livro. Mas eu não tenho condições financeiras para poder fazer isso. Porque para fazer um livro… você que já escreveu um livro, Márcia, sabe, acham que é fácil, mas não é. Então precisa divulgar, precisa converter para Kindle, precisa fazer exemplares. E essa situação que muitos indígenas tem dificuldades, mas tem muitos indígenas que têm suas histórias, só que, como divulgar? Até porque, ineficácia o financiamento disso, ou apoio financeiro para poder divulgar as nossas histórias. Mas nós temos as nossas histórias. Márcia tem a história do Muro, Karipuna tem a história do Karipuna, e assim vai. Mas só que a gente não tem apoio financeiro. Então, existe muita história de vários povos viva, mas não tem como divulgar, porque a gente não tem apoio. A gente não tem apoio de fazer um documentário, de publicar, de escrever um livro, isso requer recurso, e aqui na região amazônica, no norte do Brasil, uma publicação disso, uma mão de obra disso, de documentário, escrever um livro, publicar, é muito caro. Por isso que nós somos muito invisibilizados, é preciso investir nessa cultura de visibilizar a luta dos povos indígenas, a história do povo, para que nós possamos ser reconhecidos cada vez mais. E que não sejamos conhecidos só como povo de atraso, povo que quer muita terra, que nós também temos coisas lindas, e sempre tivemos, dentro da nossa cultura. Mas os preconceituosos distorcem tudo isso dos povos indígenas.
P/1 - Adriano, quem contou essa história para você?
R - Quem contou essa história para mim foi o Batiti. E uma parte foi a minha mãe.
P/1 - Vamos conversar um pouco agora… um pouco mais sobre a formação das culturas. Quais são as funções culturais e institucionais da sua família?
R - Eu não entendi, Márcia, que cortou.
P/1 - É, quais são as funções que a sua família ocupa dentro do território, ou mesmo, qual é a função atribuída para cada um, tanto _________, quanto também as funções repassadas de geração em geração que são funções culturais?
R - Então, a questão cultural é muita coisa, Márcia, ela vai desde a infância, da adolescência, da gravidez para o pai, tanto pai para mãe da criança. Mas assim, a função, hoje, que nós temos é sobre proteção territorial e vigilância, essa é a função dos homens, as mulheres ficam mais na parte emocional. E a questão de ir para o roçado, por exemplo, muitas pessoas tem… é bom, eu vou citar isso, não é a minha seara, mas eu tenho propriedade para falar isso. Estão dizendo… inclusive, eu sou o contrário de algumas falas, de algumas parentas, que está havendo a cultura, que o povo considera cultura, de machismo, dentro do território. Não é bem assim. Por exemplo, o povo indígena hoje, primeiramente, quando eles se casam, passam por um ritual, e esse ritual é sagrado. Ou seja, é divido as tarefas, no que vamos fazer. Por exemplo, eu vou dar um exemplo, eu estou falando dentro da cultura, para as pessoas que vão assistir, para eles compreender o que eu estou querendo dizer. Quando os esposos vão para o roçado, preparação de roçado, tradicional, vão os dois. Então ali eles dividem tarefas. Um faz a cova para plantar as manivas, o pedaço… a tala de agre de mandioca para futuramente virar a mandioca. Então há uma divisão. Os homens cavam a cova e as mulheres vão atrás fechando, colocando e fechando. Mas nas visões dos desatentos, dizem que os indígenas estão obrigando as mulheres a trabalhar, e não é bem assim. Uma outra situação, isso é para a preparação, no momento da plantação. Quando os homens vão preparar o roçado... eu falei da plantação, agora eu vou falar da… eu inverti, mas tudo bem. Preparar o roçado quem são só os homens, fazer a limpeza do lugar onde vai ser plantado. E aquilo que, por exemplo, precisa corrigir alguma limpeza desse lugar, quem faz é a mulher. ‘‘Ah, mas esses homens estão sendo machistas, obrigando as mulheres indígenas a trabalhar’’. Como eu vi muitas indígenas falando: ‘‘Ah, eu estou sendo obrigada a fazer isso’’. Não, não é obrigada. Primeiro lugar, se você for um casal, eles passaram pelo ritual. E quando vai fazer o beiju, que é a farinha de mandioca, as mulheres que vão buscar água, e os homens pegam na parte mais pesada. Que não, todo serviço é pesado. E coloca para… hoje nós usamos a prensa. Também já usava prensa, mas era tudo manual. E a mulher que acende o fogo, a mulher ajuda a buscar a lenha para poder fazer a farinha, o beiju. E as pessoas estão dizendo que isso é opressão para as mulheres indígenas. Principalmente… muitas indígenas falam isso. E aí eu fico observando. É preciso ter… não estou contra a luta, tá, só corrigindo. É preciso ter muito cuidado com o que vai falar, porque o que as pessoas vão pensar, os não-indígenas, que não conhecem a nossa cultura, vão achar: ‘‘Os indígenas são perversos com suas esposas’’, ‘‘Ó, os indígenas são perversos com as indígenas’’. Então é preciso tomar cuidado, porque se não, Márcia, e os demais que nos assistem, vão ficar assim: ‘‘Poxa, eles falam tanto em cultura, tanto em grafismo, tanto de proteção ambiental’’. Mas quando chega por esse lado há uma crítica profunda com isso. Eu observo como um indígena, que é preciso priorizar a nossa cultura, porque isso é uma das nossas identidades. Sabemos que muitos povos não têm mais a sua língua falada, porque foram roubados a língua, foram proibidos. Então muitos parentes, hoje, não tem sua língua falada, e muitos estão resgatando. Nosso território está acabando. E aí nós falamos tanto de nossa cultura, mas quando chega nessa seara, há um controverso sobre isso. Então é preciso ter muito cuidado para explicar isso para sociedade não-indígena. Porque se não vai caracterizar que nós somos muito perversos, principalmente o gênero masculino indígena, que nós somos ruins com nossas parentas, e não é bem assim. E é preciso esclarecer isso para a sociedade. Porque um dia desses eu ouvi um acadêmico me dizendo sobre isso, não vou citar o nome da pessoa, mas que uma indígena de Porto Velho disse que estava sofrendo opressão pelo esposo, por conta disso, disso e disso. Eu fiquei sem responder, fiquei calado. Eu falei: ‘‘Não, eu acho que…’’. ‘‘Eu não sei’’. O argumento que eu disse: ‘‘Eu não sou desse povo, não convivo no meio deles, eu sou de outro povo. Se acontece isso lá eu não sei, é preciso avaliar e tomar cuidado, eu não sei do que se trata, então eu não tenho nem propriedade para falar isso’’, o argumento que eu disse foi esse. Mas eu conheço a cultura desse povo e sei como é a forma de casamento. Aí eu já conversei com a minha mãe há muito tempo atrás sobre como era o casamento desse povo. Bati, ou seja, é igual, diante que o povo falou.. para… o povo me disse, e o que a minha mãe me disse também era igual, então. E aí, estão dizendo que os indígenas estão massacrando as indígenas. Então é preciso ter muito cuidado, muito cuidado ao dizer que os indígenas são perversos com as esposas, ou com as mulheres do seu próprio povo. Porque senão, nós vamos mais uma vez atropelar e como diz o ditado: ‘‘Nadar, nadar, e morrer na praia’’. Porque as pessoas estão olhando pra gente, indígena masculino, e nós somos perversos. Volto a dizer, não sou contra a luta das mulheres indígenas, é preciso ter muito cuidado no que vai dizer, e na explicação, porque o que eu observo, Márcia, não é no seu povo, mas tem muito povo aí, aqui na nossa redondeza… a cultura está em quarta… tá no plano C. Estão priorizando muito a cultura do não-indígena. Não estou dizendo que não é para conviver nas duas culturas, têm que conviver, sim. Mas assim, a questão cultural é sagrada, você sabe disso, nós temos isso há milhares de anos, milhares de tempos, ela não está mais como prioridade. E aí falam tanto em cultura, só na fala, mas na priorização e na prática é outra. E eu volto a dizer: não sou contra a luta das mulheres, geral, e muito menos das mulheres indígenas. Mas é preciso ter cuidado com o que as nossas indígenas falam para a sociedade, porque dentro da nossa cultura existe um momento sagrado. Porque, sabe o que eles estão pensando, Márcia? Que tudo é violência, tudo é violento. ‘‘Ah, os indígenas são violentos’’. E não é bem assim. Porque estão repassando para a sociedade essa visão, já não basta que os povos, no contexto geral, já são vistos como pessoas ruins ou que nem poderiam existir como seres humanos.
P/1 - É muito importante tudo isso que você está trazendo, para poder se refletir. Muito importante.
Adriano, dentro do seu povo, da sua família, as funções que assumem, por exemplo, geralmente têm alguém da sua família que assume algum papel na educação, na saúde, alguém que é responsável pelo saber… o sabedor cultural que assume essa responsabilidade, dentro do território. Esses papéis são estabelecidos dentro da sua família?
R - Então, o saber, sabedor… no caso o sabedor aqui é minha mãe e o meu tio Aripã, que ele ensina alguns tipos… mostra que tipo de remédio serve para cura, e esse é o papel dos sabedores. Só que a questão do medicamento nosso, muitos pesquisadores já procuraram a gente só que a gente não mostra, porque a gente sabe que nem todos, a maioria dos não-indígenas só querem se aproveitar, tirar proveito disso para escrever seu doutorado, tese, artigo. E fica por isso mesmo, e não dão retorno de nada. “Ah, Adriano, mas você está falando em dinheiro”. “Tá, mas quando você fez seu artigo, fez seu projeto, envolveu dinheiro. E por quê eu não posso ter acesso ao retorno disso?”. Ou dizer na tese ou no seu artigo, no seu doutorado, mestrado, na sua pesquisa que esse povo na qual ele fez a pesquisa precisa de uma política pública. Na educação, na saúde, na questão… hoje que é um fato mais alarmante, proteção do território, proteção física daquele povo. Isso não aparece, Márcia, eu já vi muitos artigos escritos, e não só do Karipuna, mas de outros, não aparece a questão da política pública daquele povo. Por isso que eu sou o contrário para as pessoas que vão escrever sobre o Karipuna, porque não dão retorno de nada. Esse retorno não é financeiro, pode ser também da política pública. Vou dar um exemplo: nós de Karipuna de Rondônia, nós entramos cinco anos na justiça pra poder ajeitar, dar manutenção na estrada de 13 KM, e mesmo assim o estado negou, negou, negou, fez, estão fazendo com muita dificuldade. Estão fazendo porque é pedido da justiça. E já existia a estrada, essa é a questão, era só pra dar a manutenção. Enrolaram cinco anos, Márcia, por quê demora essas políticas públicas? Porque tem muitos artigos… doutores, pós doctor, PHD, não aparecem. O que de fato esse povo necessita? O quê eles precisam futuramente, hoje e depois? Não tem, né. Não tem. É preciso colocar isso, é por isso… é por isso que eles colocam, por exemplo: “Karipuna é um povo ‘lá, lá’, que sofreu, desde 1978, ‘pá, pá, pá’, perdeu seu território, quarenta mil hectares. Hoje com 153 mil hectares ‘pá, pá, pá’. Adriano Karipuna, o povo é tanto, vem discutindo ‘lá, lá, lá’, tanto desmatamento”. Lá no final “esse povo precisa de políticas públicas na educação, nisso, nisso, nisso, nisso, nisso”, porque aos olhos das pessoas que vão ler, já olham falando: “Nossa, os caras estão na resistência, são protetores das florestas, mas eles precisam disso aqui também”. Então quando eu falo na questão do medicamento, nós não passamos, nem… nós não mostramos, já chegou uma pessoa dizendo: “Mostra que eu vou lá bater foto”, sabe? Porque tem aquele aplicativo que é o Google Lens, bateu foto, coloca na internet para dizer o nome da planta, ou foto de alguém assim, algo desse tipo. Tecnologia muito inteligente nessa área. Então a gente não mostra. Mas a mamãe e meu tio… ela mostra. Eu sei quais são os medicamentos, eu olhando, eu sei, mas não passo para ninguém, porque… por conta de não haver o a proveito dos nossos conhecimentos. Porque nosso conhecimento, Márcia, é nosso, não deve ser passado para ninguém, isso é a consciência que eu tenho.
P/1 - Sim, Adriano, eu concordo. É, não era para falar mesmo, era só para falar se tinham essas pessoas que ocupavam essa função. E aí tem alguém que assume a saúde, como agente de saúde, alguém que assume como professor, dentro da sua família, dentro do território. Alguém que, no caso, você é a liderança que assume fora, esse diálogo entre a sociedade não indígena e o seu povo. Se tem esses papéis estabelecidos entre vocês na sua família?
R - Então, temos sim. Hoje a minha irmã é agente de saúde, é subcontratada pela saúde indígena, é uma empresa privada que contrata essas funções nas aldeias, não é só em Porto Velho, é no Brasil todo. Mas aqui é o Distrito Sanitário Especial Indígena, que é vinculado ao Ministério da Saúde, vinculado à Secretaria de Saúde Indígena, que é a SESAI. E temos agente de saúde, temos a AISAN, que é o agente de saneamento, que é o Eric, filho de Batiti. E o Batiti, hoje é o atual professor pela Secretaria Estadual de Educação da SEDUC. E esses três, esses dois que eu disse há pouco são da questão da saúde pela Secretaria de Saúde Indígena, mas assim, da saúde eles só fazem o básico. No caso de continuar o tratamento de uma paciente, pós cirúrgico, outro tipo de patologia que o paciente tenha, o agente de saúde faz isso. Agora o AISAN, que é na questão do saneamento básico, a função dele é dar manutenção nas águas encanadas que tem na aldeia, água potável. Quebrou um cano, ele vai lá e emenda, para isso ele tem capacitação, ele é capacitado. E fazer produção, e ver… monitorar a água, mesmo que seja potável, para mandar afins de relatório, para DSEI de Porto Velho, e esse relatório vai para o Ministério lá em Brasília. E a educação, é a educação, dá aula, no caso do Batiti, da aula para as crianças, e ensinar também um pouco na língua, que é importante dizer. Eu até dei uma dica de um novo método para ele desenhar um porco selvagem e colocar na língua do lado o nome do porco para que os jovens tenham isso em mente, assim no mapa mental. Ah, sim, isso é, _________ por exemplo, que é porco do mato, e coloca o porco caititu, que é… tem um risco assim, nessa região aqui da pá, _________ então tem que diferenciar. O porco selvagem é maior, e o porco do mato, porquinho, o caititu que nós falamos aqui na região, é um pouco menor. E aí ele está fazendo isso para que as crianças tenham conhecimento de como se fala o nome desses animais na nossa língua. Além disso, aquele projeto que você fez há dez anos atrás, se não me falha a memória, está prevalecendo o método diferente de ministrar a aula, de levar os alunos para pescar, então é um método diferente e inclusivo. A educação de Rondônia não reconhece isso, mas para nós é uma educação, porque é assim que nós somos ensinados culturalmente, o quê a educação quer, a educação que não é da nossa cultura… indígena que eu estou falando, o aprendizado que não é da nossa cultura, só corrigindo. É que o professor tem que ministrar, é importante ministrar a aula, Matemática, Geografia, Ciências, e assim vai. É importante, mas também é importante reconhecer as nossas línguas, reconhecer os tipos de animais que ainda existem, então para mim é uma dificuldade o que o professor passa. Inclusive, é preciso implantar um ensino médio no Karipuna e ter mais professores nesse segmento, já que o governo estadual está cobrando isso, porque não adianta só cobrar, mas não ter o subsídio ou mão de obra para essas funções.
P/1 - Adriano, agora eu vou fazer uma pergunta para você que vai trazer um pouco do… De alguma coisa lá da sua infância. Vocês… quais as brincadeiras que vocês faziam quando eram crianças? E qual… que brincadeira você gostava mais quando era criança?
R - Então, eu nunca gostei de brincar. Depois que eu cresci, tudo bem. Eu gostava de fabricar flechas, como até hoje eu sei fabricar. Eu ia flechar os peixes, essa é uma das brincadeiras que eu mais gosto, gostava, e até hoje quando eu vou para a aldeia, eu faço essa prática. Claro, fazer flechas não, como eu disse, que não tem mais, mas as flechas que tem eu pego e vou pescar, e pesco assim, até hoje, muito raro eu usar madeira, linhada, essas coisas, mas eu pesco ainda de flecha, então isso é o que eu tenho como… de lembrança. Por exemplo: flechar para mim era uma brincadeira, mas os peixes que eu pegava da época, eu trazia e minha mãe assava, que nós não tínhamos geladeira na época - hoje tem - assava e guardava na palha de bananeira ou na palha de coco babaçu para comer no dia seguinte, assim não desperdiçada. Então eu ia treinar flechando e essa é uma das brincadeiras que eu lembro, e essa brincadeira eu tenho praticado e trazido para minha vida até hoje, que é a questão de pescar, e o uso da flecha que é nossa arma tradicional.
P/1 - Adriano, você lembra da casa em que você morava quando era criança, e onde ficava essa casa?
R - Lembro, sim. A casa onde nós morávamos era uma… era um pouquinho alto, em uma serrinha, e era de palha. Ficava na direção do rio, só que hoje não tem mais, porque foi construído o posto de saúde nesse lugar. E a casa de palha era muito boa, porque ela é muito… um frescor natural. Até porque o telhado era feito de palmeiras, a matéria prima. Mas o único trabalho que dá é que você tem que trocar a cada ano, porque como é matéria prima os insetos, como cupins e outros insetos atacam essa palmeira e aí fica frágil, e quando chove ela goteja, ou seja, entra água. Mas tirando isso é muito gostoso ter uma cobertura de palha, porque ela segura o calor, o calor não transpassa. É isso, eu não sei explicar porque não é minha área, mas é gostoso ter uma cobertura de palmeira de palha. Então essa é a lembrança que eu tenho…
P/1 - Adriano…
R … E, outra lembrança que eu tenho…
P/1 - Pode continuar.
R - Outra lembrança que eu tenho é que nós assávamos carne de caça e também assávamos peixe, ainda nós praticamos isso, mas é diferente, são as lembranças que eu tenho. Lembranças boas.
P/1 - Ah, sim. Desculpa ter te interrompido, achei que você tinha terminado essa parte. Mas vamos seguindo então. Você disse que nasceu na maternidade na cidade, mas você se criou dentro do território, certo? É, gostaria… se você pudesse situar melhor para a gente onde que fica esse território, e como que… hoje onde você vive e como é essa relação sua de estar na cidade e estar se relacionando com o território. E aí, situar geograficamente mesmo o lugar do seu território e o lugar que você vive hoje.
R - Então, eu convivo hoje em Porto Velho, Rondônia, na Zona Urbana. E eu saí da aldeia para estudar na cidade há seis anos atrás. Até porque eu não tinha concluído o meu ensino médio, e aí eu tentei por dois anos concluir, e consegui, nesses dois anos. Em seguida, em 2019 eu fiz o ENEM, 2018 não me sai bem, em 2019 fiz e passei. E aí, em seguida, fiz o vestibular para a faculdade de Direito, aqui em Porto Velho, e eu estou aqui desde… há seis anos, já. Claro, eu vou na aldeia quando aparece brecha, para poder ir de carona, porque geralmente eu tenho uma consciência que eu não posso tirar a vaga de ninguém. Por exemplo: se vem alguém da aldeia, mesmo que o carro venha… venha alguém, e para voltar tenha só uma vaga, então eu vou priorizar as pessoas que estão na aldeia. Mas assim, a minha vivência é na aldeia e aqui, mas só que eu estou mais na cidade recentemente por conta da faculdade. Mas durante esse tempo eu vivi na cidade e na aldeia. O território Karipuna fica localizado no município… em Rondônia, e abrange três municípios do Estado de Rondônia, que é Buritis, Rondônia; Nova Mamoré; Porto Velho. Porém, esses três lugares são atacados pelos invasores. Porque há distritos fundados por invasores que… uma delas é a União Bandeirantes, quem quiser puxar depois na internet… União Bandeirantes de Rondônia, porque tem a União Bandeirantes em Mato Grosso. Cuiabá, se eu não me falha a memória. Nova Dimensão e Jacinópolis que é fundada por Buritis. Nova Dimensão é fundada por Nova Mamoré. Então o território indígena é atacado por esses distritos, porque nesses distritos há empresas madeireiras a todo vapor, em funcionamento, e aí vem o desmatamento e a pecuária também, na terra indígena Karipuna. E assim, eu tive que me adaptar na cidade, porque aqui eu tenho hora para dormir, tenho hora para acordar, tenho hora para ir pra faculdade, tenho hora para… Perdão. Eu tenho tempo para entregar meus trabalhos, seminários, palestras. E lá na aldeia não, eu fazia o meu horário, eu ia pro roçado, trabalhava até a hora que eu queria e a hora que eu não queria mais eu ia embora. Se eu quisesse ir pescar, eu iria, à noite ou de dia, e a natureza me oferecia. Aqui, não. Eu tenho que ficar atento com os horários. “Ah, será que o mercado está aberto?”. Se passar daquele horário não tem. Então eu estou me adaptando, mas eu não consigo ter uma rotina assim, que… eu dependo de aula. Essa é a minha visão: eu que tenho que fazer o meu tempo. Por exemplo: lá na aldeia… inclusive, vou dar um exemplo: hoje eu tive que acordar às 7h30 para entrar nessa reunião. Se fosse lá na aldeia não era preciso acordar às 7h30, acordava às 10h e ia pro roçado, a hora que o sol esquentasse eu vinha embora. Por exemplo: terminando aqui eu vou ter que entrar para fazer uma pesquisa do trabalho sobre… trabalho da faculdade, que é para apresentação de seminário. Se fosse na aldeia eu não tinha isso, não. Não tinha que ficar preocupado com horário. Além disso, eu tenho que ajudar aqui nos afazeres em casa. Então eu estou me adaptando. Mas eu já convivia com isso, só que hoje tem aumentado, porque eu estou mais concentrado, mais na cidade. E em seguida, às 14h, eu vou preparar um trabalho que vou apresentar na UNI presencial, dia 28, na verdade, fazer o Card, né, corrigindo. Então, essa adaptação eu tenho que conviver, não deixa de ser um choque cultural, porque lá eu tenho uma outra vivência, o meu momento, o meu horário, o meu tempo, tudo é meu, tudo está na minha mão. E aqui, não. Aqui eu tenho que me adaptar com o horário do ônibus, com o horário de chegar na faculdade, com o horário… Perdão. Os dias para entregar o meu trabalho da faculdade. E essa adaptação é muito puxada para mim. Mas a gente vai se adaptando, assim como outros povos indígenas também vão se adaptando com essa cultura que não é nossa, o não-indígena.
P/1 - E qual é a comida que você tem alguma lembrança da infância, que marcou na sua vida?
R - Ah, eu gosto de comer peixe, por incrível que pareça. Ainda é peixe escolhido. Eu gosto de comer Jatuarana e Pirapitinga. Piau, que tem aqui nossa região, esse é o peixe que eu tenho de lembrança e até hoje eu gosto de comer.
P/1 - E na sua cultura, seu povo… você foi preparado para assumir alguma função específica dentro das atribuições culturais do seu povo? E essa atribuição foi dada para você, você assume essa atribuição?
R - Então, eu fui escolhido para ser o líder. Até porque eu tinha… eu tenho até hoje um passo a mais, e eles me observaram: “Não, você vai ser agora... porque você tem que ser, você é o preparado”. Então essa atribuição foi escolhida. Não foi eu que me auto escolhi. Porque tem povo que se auto escolhe. No meu caso não foi, eles que me escolheram. Até por questão cognitiva na conversa, melhor preparação para poder falar e cobrar aquilo que é necessário para o povo. Então foi isso que o pessoal observou e me indicou para ser o líder, representante e o porta voz do povo. Então essa atribuição, eu tenho ela ainda, como responsabilidade que eu carrego comigo. Se disser: “Não quero mais que você faça parte”. Aí sim. Mas eu creio que essa palavra: “Não quero mais que você faça parte”, está muito longe de eu ouvir. Eles que vão dizer: “Continue! Continue!”. No entanto, todas as agendas são: “Adriano. Adriano. Adriano. Adriano. Adriano”. Chega até ser cansativo: “Adriano”. “Ah, tem uma intervenção fora do Brasil?! Adriano!”. “Por quê? Porque ele fala um pouco de espanhol, então ele consegue”. “Adriano é mais preparado, não tem vergonha de falar em público, não tem timidez". Acontece. “Adriano, reunião na… Adriano!”. Então é isso. Mas assim, eu gosto. E eu fico só um pouco com receio por conta da faculdade, porque essas agendas de mostrar para os não-indígenas buscar a política pública, que não deixa de ser para o Karipuna, eu tenho me ausentado da faculdade. Mas eu estou fazendo o possível para repor a minha ausência, porque os dois são necessários, os dois são importantes, tanto a luta quanto o conhecimento acadêmico, na questão do curso de Direito, na qual eu estou cursando.
P/1 - Se você fosse escolher, você gostaria de estar fazendo outra coisa ou você faria exatamente isso que você está fazendo?
R - Na questão do curso ou da atribuição?
P/1 - Da sua atribuição que foi dada para você pelo seu povo.
R - Ah, eu gosto muito de descansar, dormir até tarde numa rede, ler um bom livro, pescar. Eu gosto disso, eu escolheria isso. E a questão da faculdade… a faculdade, eu acho que é uma escolha que a gente faz, mas ela requer muito tempo. Compreendo que é necessário o conhecimento acadêmico, mas assim, é uma visão que as pessoas têm, quem não tem faculdade ou quem nunca cursou nenhum nível superior, é uma pessoa meio que esquecida. E até mesmo quando vai exercer uma função no trabalho, essa categoria: conhecimento acadêmico, somam muito. Mas assim, eu acho que a faculdade é uma escolha da gente, cada um faz o seu, cada um se sai melhor, cada um se aprimora naquilo que pensa em almejar, em fazer. Mas o privilégio que eu gostaria de estar uma hora dessas era na beira do Rio Jaci, do Paraná. Depois que terminasse meu trabalho, aí eu fosse pegar minha flecha para ir pescar, depois assar um peixe, comer ele assado, depois dar uma boa deitada e mais tarde ir pro assado de novo, aí na hora que não desse mais vontade, aí voltava para casa. É isso que eu queria fazer. Amanhã, acordava às dez horas e iria para o trabalho. E assim, isso era o privilégio que eu gostaria de estar agora. Mas como eu disse, conhecimento acadêmico é necessário.
P/1 - Adriano, você já falou sobre essa formação na escola. Você falou que estudou na aldeia e também estudou na cidade. Você pode falar para a gente como foi a educação na aldeia… como foi essa experiência com a escola dentro do território e como foi fora do território? Como foi para você isso?
R - Na escola, dentro do território é muito bom porque é uma outra rotina. Claro, tem que entrar às oito horas e sair ao meio-dia, e assim vai. Mas, só que assim, é uma experiência muito boa, porque você está estudando na sua casa. Agora, uma experiência que eu não digo boa, eu tive de ruim, quando eu estudei na cidade, porque até hoje… mas hoje são mais, assim, é um pouco fechado. Mas assim, aquela época tinha muito a questão do bullying. Eu era o único diferente ali da turma. Diferente por ser tradicional, um povo indígena. Ou seja, um indígena. Perdão. Corrigindo. Então eu passei por muitas situações ruins, muitas piadinhas que na época não eram conhecidas como racismo. Hoje é. Que bom que isso veio com políticas públicas também. E as pessoas jogavam muitas piadinhas: “Ah, o seu lugar não é aqui, você tem que ir pra floresta”. Inclusive, eu cito isso no meu livro: “Você tem que ir pra floresta, tinha que ser indígena mesmo”. Uma vez… quando a gente erra na fala ou erra até mesmo no trabalho de escola, na época. “Tinha que ser indígena mesmo” Depois: “Ah, não, foi brincadeira”. Como tem… com o tempo as pessoas fazem, reproduzem o racismo e o preconceito. E quando eu entrava na sala de aula, vou fazer até gesto, porque geralmente a porta sempre fica atrás dos alunos e a professora fica na frente, assim. Aí quando eu entrava, as pessoas faziam assim: virava para trás: ‘’Oh, quem tá chegando”. Algo desse tipo. E eu ficava… aquilo me constrangia. Faziam inúmeras perguntas, perguntas horríveis, não quero nem mencionar aqui. E também… hoje está mais tranquilo. Porque eu vejo que as pessoas me olham assim, na faculdade, ficam me olhando, mas não falam nada. E assim, como eu tenho o domínio do português, não sou linguista nessa área, mas assim, quando tem um trabalho em grupo ou um trabalho individual, eu sempre dou o melhor de mim para poder sair. E aí as pessoas ficam assim: “Mas como assim?”. Por exemplo, eu fiquei ausente esses dias da faculdade e aí pintou um monte de trabalho da faculdade, seminário, prova individual, prova avaliativa, presencial na sala de aula. E aí eu sempre me saí bem, inclusive, estou ganhando uns pontos na faculdade. E as pessoas ficam me olhando. Aí as pessoas… teve uma pessoa que me falou semana passada: “Mas como assim? Eu fiquei aqui, não viajei, fiquei toda semana na sala de aula estudando e não consegui pegar o que o professor falou”. E aí eu fico assim: “Poxa, como eu já passei por questão de preconceito e inveja na… quando eu estava na cidade, no meu ensino fundamental, eu fico com receio”. Inclusive, sobre a educação que eu estive no passado, eu quase fiquei com doença depressiva, porque eu passei por muita situação ruim na escola. Eu cito isso no livro. E para mim sabe o que era, a educação na escola pública, para mim, não era lugar para se educar, e sim de mutilar o outro com palavras e ofensas. Inclusive, eu não tenho vergonha disso aí, eu fui expulso da escola, porque eu agi de outra forma, na época, porque não dava mais. Tem um ditado que diz: “Um elefante passa na garganta da gente, mas tem dia que uma mosca não passa”. Então aconteceu isso comigo, que a mosca não passou mais na minha garganta e eu tive que agir do meu jeito, onde eu fui expulso da escola, e eu fiquei com muito receio de estudar. No entanto, eu terminei meu ensino médio em 2017 para 2018. Então eu fiquei todo esse ano. Quando eu olhava assim… quando eu passava na frente da escola e eu ouvia barulho de criança, isso era na minha cabeça, eu falava: ‘’Não, aqui não é lugar para a gente aprender a educação, aqui é um lugar de racismo e preconceito”. Porque eu passei por isso na porta da escola, dentro da escola, na época. E por eu sempre me sair bem, desde quando eu estava no meu ensino fundamental, as pessoas começavam a me invejar, começavam… na fila da merenda as pessoas jogavam arroz quente. Na colher, jogavam assim, só para me provocar. Porque as pessoas tinham inveja de mim. Então até hoje, mas isso é coisa da minha cabeça. Eu estou até desapegando e estou desconstruindo isso na minha mente. Mas a pessoa: ‘’Nossa, Adriano, mas como você consegue fazer isso?”. Eu fico assim: “Será que não é inveja?”. Eu fico assim: “Mas isso é coisa da minha cabeça”. Então eu levei muito tempo para eu tirar isso da minha cabeça. E eu observo e observei por muito tempo que a escola não era um lugar para se educar, e sim para mutilar o outro com palavras, e um lugar de racista e preconceituoso. Eu tinha essa visão, e hoje eu não tenho mais essa visão. Ainda existe esse segmento de racismo e preconceito. Preconceituosos dentro da universidade, dentro da escola pública. Então eu tenho muito cuidado, e eu sei o quanto o racismo e o preconceito doem. É uma dor incurável, então a cicatriz não cura assim tão fácil, é preciso ter muita preparação psicológica para superar isso. Eu sei o que é racismo, eu sei o que é passar por racismo e preconceito, eu sei o que é isso. Dói bastante e é preciso desconstruir isso. Só para finalizar essa minha parte agora aqui. É preciso que as mães das crianças eduquem as crianças dentro de suas casas dizendo que do outro lado… quando eu digo do outro lado, nas escolas, eles vão lidar com outro povo, com outro segmento. E essa visão de: as mães e os pais ensinarem os seus filhos que não é… que é preciso respeitar o próximo, isso não está acontecendo. Porque a maioria das mães e dos pais - isso é uma atenção que eu chamo - acha que é função do professor ter que educar, e não é bem assim. Nós temos que educar nossos filhos dentro de casa, dizer: “Você tem que respeitar o segmento do outro”. Porque muitas crianças não nascem racistas, ensinam eles a serem racistas. “Ah, indígena não presta”. Eu já ouvi isso. “Ah, indígenas são preguiçosos”. “Ah, negro é assim”. Então ensinam a pessoa a ser preconceituosa, ensinam a criança a ser racista. Eu acho que tem que desconstruir. Principalmente o Brasil que tem muito disso. É preciso desconstruir isso. Porque quando ele vê, essa criança vai na escola e vê um negro ou um indígena ou um povo de outro segmento, ele vai: “Ah, minha mãe me disse… Ó, meu pai me disse que esse pessoal aí não presta. Ó, roubam”. É isso que as pessoas têm, essa visão. Então é preciso que as mães ensinem seus filhos desde pequenos, porque não é só na escola que a educação se começa, e sim, também, dentro de casa. Por isso que existe muito racista e preconceituoso com povo indígena, negro, com LGBT, e assim vai.
P/1 - É muita resistência, né meu parente, para a gente poder chegar até onde a gente está. Não é fácil, mas é por isso que a gente é guerreiro e guerreira.
Então, nessa sua trajetória toda de tantos enfrentamentos, no espaço escolar, você teve alguém, alguma pessoa que marcou na sua vida escolar? E, tipo, você tem aí algum professor que foi referência para você, seja na escola lá da aldeia, seja na escola fora da aldeia? Se você tem, porquê ela foi marcante, ou não? Teve alguma matéria, alguma coisa da escola que você gostou, que foi da sua preferência?
R - Então, da aldeia é o meu primo, que é o Batiti. Eu acho ele muito legal, quando ele começa a dar aula, com pouca experiência, na época. E onde eu aprendia algumas… alfabetos. E isso é uma das lembranças boas. E na cidade, eu tenho como… a minha ex-madrinha, quando eu morava ali no Areal Centro, ali perto do Tucumanzal, que ainda é, não sei se, se ainda é assim o nome do bairro. Eu estudava no Getúlio Vargas, que é a professora Efigênia, inclusive não está mais em vida. E toda vez que eu passava por esse tipo de preconceito e racismo na escola, eu não contava para ela. Eu chegava e me trancava no quarto, não fazia minhas tarefas, não fazia nada, e ela vinha me perguntar: “O que foi, filho?”. Eu não falava, eu ficava calado. Como até hoje, quando eu fico com raiva eu não falo com ninguém. Eu não falava com ela, não respondia, não. E as meninas que eram minhas irmãs de criação, e tinha uma menina também: “Ah, ele é preguiçoso, vai estudar, menino”. Mas só que ela falava para o meu bem: “Vamos estudar, eu te ensino”. Eu não queria nem saber. No entanto, hoje, a minha irmã de criação é superintendente do Banco da Caixa Econômica, hoje. E a outra, minha irmã de criação é superintendente, acho que dá Embrapol, acho que lá… aqui de Rondônia. Mas ela atua em Rolim de Moura. E aí um dia desses eu vi, olha aí… ela falou assim: “Cada um escolhe…”. Só que assim, agora depois de grande, né, depois que eu fui falar para ela: “Sabe por que eu não estudava naquela época? Isso e isso…”. “Por que você não falava pra gente tomar uma providência?”. Falei: “Porque para mim, como sua mãe era professora ela não ia bater de frente com outra professora, porque para mim os professores e outros... - minha visão na época -, eles se protegem. E aí, olha, a gente hoje está formado, a gente tem a vida já arrumada financeiramente”. Ela falou: “Mas tudo bem, se eu soubesse disso na época, nós íamos cobrar da mamãe para ela cobrar os professores". Falei: “Pois é, mas isso foi há 26 anos atrás, isso”. Então a lembrança que eu tenho é isso. E agora, na atual, na faculdade, eu tenho muito apoio dos professores. Porque assim, a faculdade onde eu estou abriu muitas portas para mim, por exemplo, para mim, apresentar quem eu sou, para onde eu vou, o que minha luta faz. Porque assim, eu sou o primeiro indígena nessa faculdade privada, que é a Faculdade Católica de Rondônia. Eu sou o primeiro, eu não sei se teve anteriormente. E aí eu sou uma pessoa que sempre estou apresentando trabalho, não voltado para questão indígena, mas assim, eles abriram três portas para mim. Por exemplo: quando eu estive recentemente na Europa, eles fizeram uma matéria, e, inclusive, tem no site deles. E eu apresentei já seminários, tive uma live já, com a participação de todos os alunos da minha turma e de outra turma, e de outra disciplina, Psicologia, Teologia, que é o curso que tem Teologia, Administração, Sociologia, que tem, e Direito. Então eles me abriram a porta com relação a isso. Então as pessoas, hoje, lá na faculdade, eles têm muito respeito por mim, mas tem uns que ficam meio assim, falam comigo, mas respeitam. Até porque a Faculdade Católica… a visão da faculdade é diferente, porque ela oferece para as pessoas menos favorecidas. Porque lá também têm segmentos LGBT, têm segmento quilombola, têm segmento ribeirinho, que são acadêmicos. Eu não conheço eles, mas o diretor da faculdade já me disse. E eu sou o indígena que estou ali, porque a Faculdade Católica tem me aberto muitas portas, para visibilizar mais a minha luta, visibilizar quem eu sou, o que eu faço. Claro que preciso de mais visibilidade. Inclusive, eles já me disseram: “Adriano, tem bolsa para você fazer… escrever o seu artigo. Você tem que escolher um dos artigos”. Todos os professores já me disseram, mas eu não parei e pensei em qual que eu vou escrever. “A Faculdade Católica tem uma bolsa para você escrever sua tese. Futuramente, se quiser fazer doutorado, a porta está aberta, a faculdade oferece”. Disseram isso ontem, disseram isso ano passado e disseram há seis meses atrás, esse ano, para mim. E aí eu não parei e pensei. Porque assim, preciso escrever alguma coisa mesmo porque, principalmente na questão do Direito. Como eu ainda não estou formado… mas eu vou escrever algum rascunho, porque é preciso visibilizar muito a questão… o que diz no… dos direitos garantidos para nós indígenas, para os indígenas do contexto urbano, para os indígenas que estão em busca de homologação do seu território, de reparação histórica, dos indígenas que tem já o território homologado, mas isso não garante a seguridade, nem a segurança para eles, porque estão sendo roubados. E eu não achei caminho… como escrever isso, porque eu tenho que escrever, segundo eles me disseram: “Você tem que escrever na língua jurídica, porque quem vai ser seu público para ler sua tese ou a sua dissertação ou isso se transformar em livro, vai ser magistrado, promotor de justiça”. E aí eu estou com receio, porque a linguagem jurídica é muito complexa, é muita coisa. Tem coisas que são em latim, eu não domino muito bem o latim. Principalmente no Direito Civil, tem muita palavra em latim.
P/1 - Adriano, na cultura do seu povo, você passou por algum ritual de passagem, de menino para homem? Como foi, pode falar?
R - No meu povo não tem. Ensinamento que tem é assim, por exemplo: não tem aquele ritual, o ensinamento é você ir caçar no mato e como se pega os animais com flecha, pescar, ensinar a pescar, são essas coisas. Mas não é que nem em outro povo. Tem outro povo que fica em casulo um mês, dois meses, três meses. No nosso povo não é assim. A menina moça, sim. Mas eu não tenho propriedade para falar isso, quem tem que falar isso, no caso é a minha irmã. Mas eu sei como é que funciona. E a preparação da menina moça, lembra que eu falei anteriormente, é um preparo para que ela seja uma boa esposa, para respeitar a sua família, ajudar nos afazeres, no futuro esposo que ela tiver. Então passa por esse ritual. E como eu disse anteriormente, que muitos parentes estão dizendo: “Não. Eu estou sendo judiada, massacrada”. Então, mas passou pelo ritual. Porque muitos povos fazem esse ritual da festa da menina moça, assim que é o nome.
P/1 - Adriano, qual foi o seu primeiro trabalho? Quando foi que você começou a trabalhar?
R - O meu primeiro trabalho foi como agente de saúde, há muito tempo atrás, quando o salário mínimo era 250, olha só. E aí eu comecei a trabalhar registrado. Mas assim, eu sempre trabalhava com minha mãe na aldeia. Fabricação de farinha, plantando roça e no extrativismo da castanha. Até antes de vir, eu trabalhei no extrativismo da castanha, que foi, isso foi há nove anos atrás.
P/1 - Há alguma mudança no uso do dinheiro, quando é um trabalho na aldeia e quando é um trabalho na cidade?
R - Ah, sim, sim. Hoje tem mudado muito, porque assim, o dinheiro que a gente pegava, ou pegam lá na aldeia, é fruto do trabalho do extrativismo e da fabricação de farinha. Por exemplo: hoje nós temos energia solar na aldeia, então você não precisa pagar energia. Outra coisa… mas você tem que comprar o gênero alimentício, que é o arroz, o feijão, que nós não fazemos isso. O tempero. Que além da nossa comida tradicional, a gente come esses grãos, que não deixa de ser grão. E óleo, ou então quando não faz óleo, faz do gongo, que é natural, é muito delicioso. Então, a gente… o dinheiro que pega é para comprar essas coisas, fruto do extrativismo. Mas aí não paga energia, mas tem suas contas. Por exemplo: tem pessoas que compram a prestação seu eletrodoméstico. Por exemplo: geladeira, TV. No caso, na aldeia, tem que ser TV com antena parabólica, porque não pega lá. E assim vai. Tem que… tem gente que tem telefone móvel ou internet. Quando vem aqui na Funai, que é a casa do índio, tem que pagar. Mas assim, todos pagam imposto, independentemente se é assalariado ou não assalariado. Isso é para todos os cidadãos, e aí não é só o indígena que não escapa disso. E a diferença de mim que estou na cidade, o recurso que entra, o dinheiro que entra, eu tenho que pagar energia, colocar crédito no meu celular, colocar crédito no meu vale transporte. Quando não dá, eu tenho que pagar o táxi aplicativo, e assim vai. Então é uma diferença muito grande. Tenho que pagar a manutenção… pagar a água. E tem que sempre deixar uma sobra para uma emergência, caso tenha que ir para o hospital ou para aquisição de medicamentos. Porque medicamentos, muitos deles não tem na rede pública e é preciso comprar, e para comprar você tem que ir ao médico, e para ir ao médico, você tem que ter recurso, mesmo que seja no SUS. Porque as clínicas e os postos de emergência… pronto socorro. Agora, sim, achei o nome. Os prontos socorros estão distantes do nosso bairro, geograficamente falando. Então é uma outra dinâmica. Porque até mesmo, eu sempre digo, hoje, para mim, para minha família, para minha esposa, eu falo: “Hoje, para ficar doente é luxo, porque, cara, o medicamento é muito caro, o tratamento é muito caro, né?". Exemplo: eu tive duas vezes Covid. Eu paguei quase três mil reais só de ressonância. Porque um foi novecentos reais do pulmão. E o outro foi mais completo, foi 1600 reais. E aí eu estava trabalhando e parcelei isso no cartão de crédito. Ou, hoje, como eu sou só bolsista, eu fico até pensando, se eu ficar doente, Deus o livre, é muito complicado. Então essa categoria não existe no SUS. É por isso que eu digo: “Hoje, ficar doente é luxo, porque tudo é caro. Medicamento é caro, tratamento é caro”. Fora os exames que eu fiz, que detectou que eu estou com cálculo renal. Inclusive, eu tenho que fazer a cirurgia. Foi novecentos reais, todos os exames completos que eu fiz, porque eu sentia muitas dores, eu fiz para detectar o que eu tinha de fato, porque eu sentia dor nas costas e eu achava que era outra coisa, e aí detectou que eu tenho cálculo renal. Então eu, no total, gastei quase quatro mil reais só de exames, fora o medicamento. E aí, foi assim, foi muito complicado. Então essa rotina é diferente. Viver na cidade é muito caro, principalmente para nós, indígenas, e para mim indígena. Se fosse na aldeia não tinha todo esse prejuízo. Claro que eu ia… doente eu iria ficar, mas eu não ia gastar com energia, não ia gastar com mercado. Eu ia gastar somente com… quer dizer, não ia gastar com mistura. Eu ia gastar com mercado, sim. Mas é por mês, ao contrário daqui. Porque aqui tem que comprar quase toda semana. Então é uma rotina diferente, que também não deixa de ser um impacto cultural, um choque cultural, conviver na cidade para um indígena.
P/1 - Adriano, essa questão da televisão e do rádio. Tu sabe me dizer quando é começou no território de vocês?
R - Então, a televisão e o rádio começaram desde 2007. Só que era muito ineficaz. Hoje cada um tem o seu. E agora chegou a energia elétrica, agora que eles vão comprar mesmo. Mas foi muito bom, porque as pessoas ficam atualizadas. Tem até internet. O pessoal usa o Wi-Fi, fica acompanhando a notícia através dos links.
P/1 - É, só mais… sobre a questão do… se você se sentir à vontade em falar… sobre casamento, filhos e cotidiano. Como que tem… você tem algum relacionamento, você se casou dentro da cultura do seu povo, ou não? É, já vou fazendo logo as perguntas, aí você fala, se você se sentir à vontade, tá?! É, como foi, se você pode contar, ou não…? Como você conheceu sua namorada ou sua esposa? Vocês tiveram filhos? Quais são os nomes dos filhos que escolheram? O que significa? Se você tiver como falar sobre como é a paternidade. Porque a maternidade, como você disse, cabe às mulheres, não é passado isso para vocês. Mas se quiser comentar. Como foi ser pai? No caso, você vai falar sobre a paternidade. E aí, como foi ser pai? E se você puder contar um pouco, como está a sua família, como são os momentos de lazer na sua comunidade, ou na sua família? Aí você fala aquilo que você sentir à vontade.
R - Então, eu fui pai muito novo, com dezessete anos. Foi com uma não-indígena. Sou pai de três filhos. Então quando eu fui pai pela primeira vez, a minha mãe foi um pouco contra, porque eu era muito jovem. E aí, em seguida, ela passou os ensinamentos. Ela me disse que alguns tipos de animais eu não poderia comer, algum tipo de coisa que eu fazia… por exemplo, de atrocidade, de caçar e ficar batendo em árvore, porque isso prejudicava o meu filho, e a minha esposa ia sentir dores. E realmente acontece, algum tipo de… aves eu não poderia mais tocar. Uma a gente já não toca, que é o tucano. Mas ia ser muito mais rigoroso para mim, não tocar nessas aves. E aí quando a criança nasce, eu passei por um ritual de tomar água morna durante um ano e seis meses. Até a criança se formar. Do zero dia até um ano e seis meses. É horrível. Mas porque, para a criança ter… para eu não ter, por exemplo, pesadelos. E eu passei por isso, pelos meus três filhos. A primeira vez que eu tomei essa água morna eu achei horrível. Ninguém toma água morna, em primeiro lugar. Então, ser pai não é fácil, não. Para os não-indígenas é fácil, mas para os indígenas, não. E também eu tinha que obedecer inúmeras situações, durante o parto, durante o pós-parto e durante esse um ano e seis meses, que tinha que tomar a água. No lugar da água gelada ou da água natural, água morna. Poderia estar o sol escaldante, água morna. Por isso que até hoje os meus parentes falam: “É, Adriano, por isso que você não quer ser pai”. Eu falei: “Eu não quero ser pai de jeito nenhum mais”. Então eu passei por isso, porque minha mãe me ensinou a fazer essa prática. E a mãe dos meus filhos não é indígena. Eu estou no segundo casamento, também não é indígena. Porque a professora Márcia sabe. Márcia sabe que lá não tem mulher, tem muitos homens nascendo cada vez mais e as mulheres que existem são de grau parentesco muito próximo, sobrinha, neta, e na nossa cultura não é permitido casar com parente consanguíneo muito próximo. E o meu povo não… minha mãe nunca quis que eu casasse com outro povo, porque o outro povo são maioria. Por exemplo, eu ia para outro povo e aí o povo Karipuna ia ficar com fragmento de pessoa. Por exemplo, meu tio Kaipu é casado com Varara ali _________ de Paraná, ele convive já há trinta anos para lá, ele vem só uma vez por ano para passear no território dele e fica por isso mesmo. Por isso que o meu povo Karipuna e minha mãe nunca quiseram que nós casássemos com outro povo. Desde que o povo… “Não, eu vou casar com você, Adriano, ou com o André, eu vou para a aldeia”. E essas não-indígenas… a mãe dos meus filhos, por exemplo, conviveu comigo muito tempo na aldeia. Então é por esta razão que o povo Karipuna não… não é que é proibido, casa com outro povo desde que o outro povo vá morar lá no Karipuna. Porque Karipuna está precisando de povoação, como dizem. E os meus filhos estão atualmente na cidade, concluindo o ensino médio. Porque não tem, como eu disse anteriormente… Mas eles são Karipuna, no entanto, os nomes deles tem Karipuna no final, para detectar que eles são de um povo. Agora os nomes deles eu não sei na língua, confesso. Mas eles têm o nome na língua, tá.
P/1 - Mas você não sabe dizer o nome então?
R - Aqui de cabeça, não. Porque tem um que é igualzinho o do André, eu posso falar errado. Porque eu posso falar o nome do André por um dos meus filhos, porque é quase parecido. É só por conta disso, um deles.
P/1 - Tudo bem. Vamos já para os… já estamos indo para os finalmentes. Você já falou de algumas questões sobre o Covid, mas você poderia falar mais especificamente, como que vocês, Karipuna, fizeram para se proteger do Coronavírus? Alguém chegou a falecer na sua família ou na sua comunidade? E como o Coronavírus impactou a sua vida, pensando nos aspectos culturais, profissionais, e também nos pessoais, na rotina, no dia-a-dia de vocês?
R - Então, a Covid afetou financeiramente. Uma delas foi o financeiro. Segundo, foi social. E o terceiro foi ambiental. Porque eu digo… primeiro vou pelo ambiental. Durante a Covid o território foi muito invadido. Enquanto os políticos estaduais e federais estavam priorizando isso através das PL, Projeto de Lei… e na questão da economia, é porque caiu justamente na época da safra do açaí e da castanha, do extrativismo e da fabricação de farinha. Então a gente tinha o produto, mas não poderia trazer para a cidade, porque estava em lockdown. E quando trazia, os mercados estavam fechados. Então isso foi um dos ‘afetamentos’ que teve. E outro ‘afetamento’ que teve, é que os Karipuna foram contaminados. Meu tio Aripã foi internado. Eu tive, também. Só quem não pegou foi o André Karipuna, porque ele ficou preso na aldeia. Ele falou: “Não vou agora, de jeito nenhum. Só vou se for uma emergência mesmo”. Mas os Karipuna… meu tio pegou, Batiti pegou, meus filhos tudinho pegaram. Esse que pegou mesmo, porque estava na cidade. Eu peguei porque tinha que ir pro trabalho. Minha irmã pegou. Só quem não pegou foi o André Karipuna e minha mãe também não pegou, e o seu Manoel, que é o meu padrasto. Então a gente ficou… depois disso, da primeira contaminação, o pessoal ficou tudo com mais receio. Não entrou… não deixamos mais ninguém entrar na nossa aldeia. Ninguém. Só se fosse emergência. Até mesmo a saúde indígena, nós proibimos. E outro impacto é que tiveram muitas pessoas que usaram o nome dos povos indígenas e aí arrecadaram inúmeros recursos financeiros. Mas pouco chegou na nossa aldeia. Quem tem nos ajudado, eu falo com toda segurança aqui, a questão de levar alimentação, que é a cesta básica, combustível, medicamento, não é o papel dessa instituição. Foi o ________. Mas outros parceiros não conseguiram. E também a SOS Rondônia, me parece que também nos ajudou. E aí eu andei descobrindo que teve inúmeras instituições que usaram o nome do Karipuna, que arrecadaram muito recurso, e esse recurso não chegou. Eu tenho provas disso, porque me passaram todas as cópias de transferência bancária. Nacional e internacional. E isso me chocou muito, porque nós tivemos que nos virar por conta. Ajuda daqui. Das pessoas mesmo que se sensibilizou a nossa causa e do momento da Covid, enquanto vieram inúmeros recursos altíssimos e esses recursos não chegaram em Karipuna. E só quem nos ajudou foi o Semi Uni. Porque eles foram lá e: ‘‘Olha, nós vamos pegar vocês de novo, como filhos. Como a gente já vem fazendo. A gente vai… não vamos deixar vocês na mão’’. E isso foi um impacto. E um impacto de saúde ainda ficou… por exemplo, eu sinto dores até hoje por conta dessas duas contaminações que eu tive. E muitos dos meus parentes ficaram com sequelas. Tem pessoas que sentem dor de cabeça ainda, mesmo que… não tinham isso. Corrigindo. Eu sinto dores no corpo, eu não tinha isso. E outras pessoas que pegaram dos Karipuna… tem pouca lembrança, você tem que falar mais de duas vezes, porque não consegue lembrar. E outros tem perda de paladar, mesmo que não esteja com Covid, mas de vez em quando sente isso. Então a causa e o impacto ambiental da saúde ficou muito grande após Covid para os indígenas. E aí é uma outra situação. O governo não priorizou a vacinação em tempo _________. Por conta de muita cobrança. Sociedade civil ajuizou uma ação para que acelerasse o processo. Mas se não, o governo mesmo não estava nem aí para os povos indígenas, e muito menos pro povo brasileiro. Se tivesse contido isso, com vacinação, lockdown e distanciamento social, não teriam morrido muitos indígenas. Eu não sei quantos… a quantidade agora exata, mas morreram muitos indígenas. Exemplos que… morreu três Karitianos… dois Karitianos com Covid, porque não priorizaram o lockdown, e também o distanciamento social. Priorizaram o projeto Antiambientais e Anti Indígenas durante a Covid-19.
P/1 - Morreu Mura também, só que aí não entrou na estatística indígena de Rondônia. Mas vocês usaram remédio tradicional da cultura de vocês para se protegerem contra a Covid-19?
R - Então, nós usamos o para gripe, só que não sei se tem força para poder destruir esse vírus tão perigoso. Onde evitou muito, também. Ou seja, aquilo que queria te afetar - falando do vírus -, ele não afetava porque tinha a proteção. É preciso ter cuidado, porque ele não cura, ele protege para não pegar.
P/1 - Adriano, já para fazer as perguntas conclusivas. Você, se quiser falar o que você faz hoje... Quais são as coisas mais importantes para você hoje? Quais os seus sonhos? O que você gostaria de deixar como legado? Você poderia falar? E aí dizer, depois, além disso que eu perguntei, se você quiser acrescentar algo mais, contar mais alguma história que não pode contar durante a entrevista, fica à vontade.
R - Então, o que eu penso futuramente para os meus filhos e os meus netos é que é preciso caminhar na luta dos povos indígenas para conter esse desmatamento. E também cobrar do Brasil, mesmo que nós sejamos brasileiros, porque o Brasil precisa cumprir com o que ele diz sobre as discussões mundiais sobre mudança climática, de frear o desmatamento, até 2030. Estava pensando assim: ‘‘Frear até 2030, acho que as pessoas vão me compreender quando ouvir e escutar essa reunião’’. Porque até 2030 eu acho que não vai ter mais floresta. Porque todo ano estão destruindo a floresta. Lógico, até 2030 vai frear, porque não vai haver mais floresta. Isso que eu vi… Eu estive observando muito atenciosamente, prestei atenção, pensei, pensei… e também é preciso, já na questão da Europa e outros países, parar o financiamento de mata secundária que: ‘‘Ah, nós vamos fazer o REDD+ 2 para emissão de carbono’’. Porque a mata primária não está tendo valor. E se você for observar a mata secundária está na mão dos destruidores de floresta, ou seja, de iniciativa privada. E eles estão sendo beneficiados. Eles destroem e são beneficiados com esses recursos. E os povos indígenas, que a muito tempo estão protegendo a floresta amazônica, não têm acesso a esses recursos. Isso é uma situação.
O legado que eu quero deixar é da minha luta. Apesar que essa luta minha é muito perigosa, muito vulnerável. A gente sofre ameaça de morte. E eu estou fazendo esse curso, porque eu pretendo… isso é meu, e já estou até costurando isso. Eu pretendo ser um diplomata indígena. Mas eu preciso me especializar em inglês para representar meu povo do Brasil na ONU. Essa é uma das minhas perspectivas. Se eu não conseguir isso, eu pretendo me preparar para concurso, para o… para área de jurídica, Procurador Federal, Delegado da PF, isso é um dos meus sonhos, que eu pretendo. Porque o judiciário, hoje, nessa conjuntura atual, tem trabalhado bastante, tanto a favor dos indígenas quanto contra. Então o judiciário teve muito trabalho. Durante a Covid, quem trabalhou muito foram os médicos, enfermeiros e os técnicos de enfermagem. Então cada segmento vai ter suas atribuições dentro do seu tempo. Mas os médicos… voltando a falar dos médicos trabalhando… não poderia ser assim, com essa catástrofe que teve no mundo. E sobre… na questão de segmento da lei, que é os Guardiões da Constituição, não deveria ser dessa forma. Tem muita ação em ajuizado, contra e a favor dos indígenas. E outras ações que tem. Então são dois segmentos que trabalharam muito mesmo. E eu, como eu disse, meu sonho é estar na ONU, ser um presidente daquela comissão lá, representando os povos indígenas. No entanto, eu estou me esforçando, estou vendo uma brecha para começar a estudar inglês. Porque eu já tenho… Já sei como é a rotina de lá. Só que eu não tenho… Como se diz?… ainda a indicação para estar lá. Mas esse é o pensamento lá para 2029, daqui até lá eu tenho [que ter] terminado já a Faculdade de Direito. E daqui até lá também já consigo dominar bem o inglês. Então isso aí é o do meu sonho. É preciso. Porque já tem muitos advogados indígenas no Brasil e são muito desconhecidos, pelos racistas e preconceituosos. Claro que é muito importante eles estarem atuando. Então eu penso no, algo maior. Eu sempre, desde pequeno, sempre pensei grande. Não é ser maior que os outros, nem ser metido, não é nada disso. Porque é preciso. Sabe por que eu digo isso? Em todos os países, Márcia - por mais que não vá ser - tem um representante indígena. Só no Brasil que não tem. Eu fui ao Equador, fui numa aldeia chamada Aikodan do povo terra indígena Sinangue, fui falar com uma pessoa. “Mas eu sou secretário de tal segmento dos Direitos Humanos, assim e assim, do meio ambiente na ONU’’. Aí ele mostrou a credencial dele. Aí eu estive agora na Europa, um Peruano: ‘‘Não. Eu sou do segmento tal, do segmento indígena, assim e assim’’. Aí mostrou o credenciamento dele: ‘‘Eu trabalho na ONU, eu estou aqui, mas eu vou para ONU mais tarde. Pego meu voo que tem a conferência das Nações Unidas, em Genebra, na Suíça. Então eu sou um dos palestrantes’’. Falei: ‘‘Oxe. Aí tem todo... E por que não têm indígena, né?’’. É por isso que eu falei: ‘‘Não. Vou ter que estudar mesmo. Vou terminar meu curso de Direito e vou estudar inglês, para eu estar aqui ocupando essa vaga do segmento indígena Brasil’’. Porque tem, Márcia, em todo lugar tem representante dos negros, tem representantes da África, tem representante… e assim vai. Só não tem do indígena. Assim, que fique lá levando todas as questões problemáticas do seu país. Tem assim, que o indígena vai, cada ano, cada povo vai um, vai dois, vai três, fazer as suas denúncias para o mundo. Mas não tem um que fique exclusivo lá para levar todas as problemáticas do Brasil, da questão do segmento indígena. Então é isso. E eu sei que é difícil, tanto para mim quanto para outros indígenas que estão na cidade cursando ou fazendo faculdade, qualquer faculdade que seja. Seja de Direito, Medicina, Enfermagem, Antropologia, e assim vai, é difícil. Mas eu peço que ele não desista, porque é preciso nós ocuparmos os nossos espaços. Porque muitos não-indígenas já ocuparam nossos espaços e não deram retorno de nada para nós indígenas. E eu estou na luta, defendendo a floresta e sempre vou defender, porque é preciso manter toda a biodiversidade viva. E a floresta para os povos indígenas e para todo mundo, para que não aconteça mais catástrofe e muito menos aquecimento global, porque nós já estamos sofrendo. Nossos rios estão secando. Rios contaminados. Muitas espécies de árvores e aves estão desaparecendo por conta dessas economias, desse desenvolvimento destruidor e dessa economia sangrenta.
P/1 - Adriano. Meu parente, Adriano Karipuna. Vou te perguntar agora, pra gente finalizar. Como foi para você contar essa história de vida? A sua história de vida, que a história de vida também do seu povo.
R - Ah, está sendo muito bom. Porque as pessoas vão saber quem é o Adriano, o que ele faz, o que ele pretende fazer. Para não ficar só uma questão, como muitos acham, da luta do Karipuna ou de outros povos. ‘‘Ah, tá aí, é mais um para gringo ver’’. Então para desmistificar esse olhar, porque por trás dessa nossa luta, não queremos a floresta destruída. Nós sabemos o porquê nós queremos a floresta em pé. Eu disse um exemplo e vou mencionar de novo. Por exemplo: vamos pegar uma grande metrópole, São Paulo ou Rio de Janeiro, tá, pega as duas, quem conhece o Rio de Janeiro sabe que ali tem lugares turísticos, por exemplo, Aterro do Flamengo, Botafogo, Shopping Center, Copacabana. Então, se as pessoas tirarem esses centros turísticos dessas grandes metrópoles, será que vai ser uma capital viva? Não! Então nós precisamos, como indígenas, do território inteiro. Porque nós temos nossos lugares sagrados, temos nossa cachoeira, temos nossos lugares onde nós escolhemos nossas frutas. Então o que eu quero dizer com isso, se tirar tudo isso que eu falei, a praia do Botafogo, do Aterro do Flamengo, e do Rio de Janeiro tirar o calçadão de Copacabana, e Copacabana Palace, será que vai ser o Rio de Janeiro? Vai ser uma zona, uma capital, lógico, mas não vai ter diversidade para os cariocas ou outras pessoas de outras cidades, ou de outros países visitarem. Vai ser uma cidade morta. Então se tirar o nosso território, como diz o Marco Temporal, que é diminuir, vai ser um território morto. Vai existir povo, mas vai ser um território morto. Por isso que nós dissemos: ‘‘Não queremos esse tipo de projeto genocida, antiambiental, e antipovos indígenas, por isso nós queremos o território inteiro. E chega de dizer que é muita terra para os povos indígenas, muita terra para pouco índio. Porque a palavra índio é a palavra preconceituosa. Então tem que tirar isso. Então para saber quem é o Adriano precisa vir aqui na live, e quem quiser saber mais sobre mim, entra no google e pesquisa para ver a luta do Karipuna. Não vou dizer a luta do Adriano, porque eu não estou sozinho, por trás de tudo isso existe meu povo, tem os apoiadores, apoiadores na divulgação. Então para saber sobre a luta do Karipuna pesquise, eu tenho o Instagram, tenho Facebook, eu tenho Twitter, e tem muitos links sobre a minha luta no google, o que eu faço, e como acadêmico, curso de Direito. A gente tem que expandir a luta do Karipuna, e expandir também outras lutas dos povos indígenas. Porque os povos indígenas estão sendo assassinados, estão sendo mortos. Muitos estão sendo ameaçados por conta dessa conjuntura atual, vindo de força política, esse desmatamento da floresta Amazônica, da Caatinga e do Cerrado.
P/1 -_________! Muito obrigada! Foi um grande aprendizado estar aqui contigo, te ouvindo, e isso só faz eu aumentar ainda mais a admiração que eu tenho por você. E também por ver um pouco do seu crescimento, tanto físico como na política, espiritual e tudo mais, por inteiro. Essa sua formação enquanto um homem Karipuna. Eu estou muito feliz de ter tido esse momento de conversa e de ter te ouvido. Muito obrigada, Adriano!
R - Eu que agradeço! _________, na nossa língua que é ‘‘muito obrigado’’. E nós seguimos na luta, viu?!
[Fim da Entrevista]
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