Muitos nordestinos indígenas são forçados a sair da sua terra por expulsão. Então, a gente é expulso das nossas terras e meu nascimento espiritual se dá então em Palmeiras dos Índios. Meu pai migra, junto com vários Xukurus, quase 80 Xukurus, vem pro interior de São Paulo, onde conhece a minha mãe, que é uma Kaingang, casa com a minha mãe, tem uma passagem pela Bahia onde eu nasço, nasci lá na Bahia, mas não teve o registro, demorou-se a registrar, foi parto caseiro, quem fez o parto foi minha avó e aí eu fui registrado aqui em São Paulo. Nessa migração, forçada novamente, veio morar aqui no bairro da Penha de França, na zona leste, perto do rio Tiquatira. Esta história que eu estou narrando é a história de vários povos indígenas, nordestinos, do interior de São Paulo, do interior do Paraná, de Minas Gerais, que vai ter que morar em Recife, Salvador, nas grandes capitais. Aqui a gente morou em uma colônia indígena. Nós mantivemos a nossa tradição, a nossa língua, a nossa fala. A gente fala tupi, a gente é da tradição tupi, nós temos a cultura tupi. Nossa religiosidade se manteve, fumamos o cachimbo, fazemos a roda, a cantoria e ainda tinha muito da língua. A língua que a gente falava, ainda é, né? É muito nasal, não bate muito a língua no céu da boca. Então, essa história é a história de um povo. São Paulo, pelos dados estatísticos, é a quarta maior cidade do Brasil, indígena e quase 70%, 80% desses indígenas de São Paulo são índios nordestinos, expulsos de suas terras. Garrincha era um índio Fulni-ô, também vem dessa trajetória, expulso da terra. Aqui a gente manteve a cultura e manteve a tradição e eu me lembro que quando a minha mãe me colocou na escola não indígena, na cidade de São Paulo, a professora me colocou na sala de alunos especiais, por conta que ela cortava meu cabelo tigelinha e como eu não falava muito com a língua batendo na boca, eu só podia falar com um pregador...
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Muitos nordestinos indígenas são forçados a sair da sua terra por expulsão. Então, a gente é expulso das nossas terras e meu nascimento espiritual se dá então em Palmeiras dos Índios. Meu pai migra, junto com vários Xukurus, quase 80 Xukurus, vem pro interior de São Paulo, onde conhece a minha mãe, que é uma Kaingang, casa com a minha mãe, tem uma passagem pela Bahia onde eu nasço, nasci lá na Bahia, mas não teve o registro, demorou-se a registrar, foi parto caseiro, quem fez o parto foi minha avó e aí eu fui registrado aqui em São Paulo. Nessa migração, forçada novamente, veio morar aqui no bairro da Penha de França, na zona leste, perto do rio Tiquatira. Esta história que eu estou narrando é a história de vários povos indígenas, nordestinos, do interior de São Paulo, do interior do Paraná, de Minas Gerais, que vai ter que morar em Recife, Salvador, nas grandes capitais. Aqui a gente morou em uma colônia indígena. Nós mantivemos a nossa tradição, a nossa língua, a nossa fala. A gente fala tupi, a gente é da tradição tupi, nós temos a cultura tupi. Nossa religiosidade se manteve, fumamos o cachimbo, fazemos a roda, a cantoria e ainda tinha muito da língua. A língua que a gente falava, ainda é, né? É muito nasal, não bate muito a língua no céu da boca. Então, essa história é a história de um povo. São Paulo, pelos dados estatísticos, é a quarta maior cidade do Brasil, indígena e quase 70%, 80% desses indígenas de São Paulo são índios nordestinos, expulsos de suas terras. Garrincha era um índio Fulni-ô, também vem dessa trajetória, expulso da terra. Aqui a gente manteve a cultura e manteve a tradição e eu me lembro que quando a minha mãe me colocou na escola não indígena, na cidade de São Paulo, a professora me colocou na sala de alunos especiais, por conta que ela cortava meu cabelo tigelinha e como eu não falava muito com a língua batendo na boca, eu só podia falar com um pregador no nariz, para poder me comunicar com as pessoas
Em uma comunidade indígena - espero que os meus parentes entendam - as mulheres são fundamentais. Além do ancião, são as mulheres que davam grande parte da nossa educação. Vou lhe dar alguns exemplos: minha mãe disse: “Nunca dirija!” E eu não sei dirigir até hoje carro, automóvel. A minha mãe dizia: “Nunca ande de moto!” Eu não ando de moto, de forma alguma. E ela dizia: “Nunca jante antes de dormir”. Eu não janto antes de dormir. E eu não perguntava porquê. Por que eu não perguntava por quê? Por que o ancião, a anciã, o que ela fala é a normatização, é a regra, é a memória. Então está dada e isso é uma lição. Depois você aprende o porquê. Do carro e da moto é receio, mesmo, com essa coisa da modernidade, né? E do jantar é que não tinha comida, mesmo.
Eu já morava ali. Eu esperava o segurança... eu me escondia nos banheiros, aí, quando o segurança fechava, eu dormia lá mesmo, na sala de aula, sem colchão, viu? Era tudo lá. E aí a gente vai: “Bora, ocupar isso daqui”. E aí a gente ocupou. Nós ficamos dois anos e meio, 25 pessoas. Comida coletiva, tudo da roda de conversancava muito no rio, jogando bola na várzea do rio, caçando rã, fazendo nossos próprios brinquedos, fazendo nossas próprias brincadeiras, correndo lá no meio do mato, andando no mato. O São João é uma festa indígena, na minha concepção, porque a gente fazia o plantio da maniba, para recolher a mandioca, a batata doce, fazia fogueira e a gente dançava em torno da fogueira, assava batata, mandioca, tudo na fogueira. A gente tinha a nossa própria criação. A gente criava porco, cabrito. Isso em plena São Paulo. A gente indianizou aquele pedacinho da cidade de São Paulo, inconscientemente
A gente fazia coisa erra nem porque a gente queria, as coisas. A gente fazia meio que como um protesto velado. De pegar tênis dos meninos lá e aí por diante. Então foi meio atrapalhado, eu não vou mentir, não. Foi difícil. Aí, quando a gente viu... naquele tempo era o esquadrão da morte que rodava a periferia. A gente via carro da polícia e saía correndo. Era ditadura militar. Eu fui adolescente na ditadura militar. Quando a gente vê muita gente perto de você morrendo e sendo preso, você cai e fala: “Poxa, vou lutar, vou fazer o quê? Vou estudar aqui. Mas estudar pra quê? Estudar pra tentar entender melhor isso que a gente estava....” Para não cair na criminalidadade como foram outros parentes meus eu fui pra universidade. E a outra pensando num sentido coletivo, para lutar pelo meu povo. Foi esse objetivo. Não foi uma decisão individual. Pra não cair nessa coisa da criminalidade e a outra foi pensando no objetivo do coletivo.
Aí eu só resolvi estudar, estudar, estudar, estudar, estudar. Foi porque na universidade mesmo, como é que eu vou conversar com as pessoas? Eu me enfiava no quarto lá e ficava estudando. Eu morei dentro da faculdade. Ah, eu esqueci de falar nisso. Quando eu cheguei lá sem dinheiro, eu não tinha nem dinheiro pra ficar em república, eu esperava a faculdade fechar. Eu ficava dentro da faculdade. Fiquei dormindo dentro da faculdade por um bom tempo. Aí falei: “Não tenho onde ficar”. Aí tomava banho lá mesmo. Arranjava comida lá. Naquele tempo não tinha alojamento, não tinha RU e eu me virava lá mesmo. Fazia bico lá na cidade. E aí, sim, eu organizei, junto com outros colegas lá, uma ocupação da universidade. Aí ficou dois anos morando com 25 pessoas dentro da universidade, porque a gente não tinha onde morar.
Mas a História é muito cruel. Ela não trata dos povos minoritários. Quer dizer, não trata dos povos indígenas. Na graduação inteira não teve questões indígenas, não tratou das questões indígenas. Não trata de nordestino. Só trata da história europeia, com exceção de vez em quando, tratava da questão negra. O que eu mais aproveitei mesmo foi a questão teórica. Eu comecei a ler os teóricos. Comecei a ler Foucault. Eu indianizei o Foucault. Isso eu sei. Tornei o Foucault um índio, um índio tupinambá. Aí, quando eu me formei, falei: “Eu vou tirar a limpo essa história de São Paulo. Eu me criei aqui, como que aqui só tem história de italiano?” Foi por isso que o livro é Nem tudo é Italiano.
Sempre falam que em São Paulo é tudo italiano, até o sotaque do paulistano. Esse sotaque de “tiiiinta”, “quiiiinhentos e cinqueeeenta”. Um sotaque que eu nunca tive direito. E aí eu falo: “Pô, não é possível que seja só tudo italiano”. Então, parte dessa inquietação familiar de índio, espiritual. Então vamos pesquisar! Aí fui e entrei no mestrado da PUC e fui desacreditado, na verdade. Só fui conseguir uma orientadora nos dois últimos semestres. Porque eu falava da pesquisa, mas ninguém acreditava. Não é possível. Esses já morreram, não tem fotografia deles. Eles não deixaram nada escrito. Eu falei: “Então, como é que é que eu vou encontrar o meu povo?” Eu vou encontrar o meu povo nos documentos de polícia. Tudo que a polícia negava estava o meu povo: vender raízes nas ruas, andar descalço. Então, o livro é uma tentativa de trazer para a história paulistana essa outra presença indígena, negra e consegui fazer com muita pesquisa a contrapelo. Pegando os documentos oficiais de polícia e relendo, relendo. E é aí você vai encontrando esses meus parentes. A indiaiada, a negritude, os caboclos, os caipiras. E resistindo, né? Na cidade que tinha um projeto de branqueamento na cidade. A elite queria branquear São Paulo, europeizar a cidade e o livro vai fazer a leitura contrapelo disso tudo, que resulta na tese. É 20 anos atrás. Tem esse percurso de dificuldade. Há 20 você não tem computador, você não tem celular, você não tem Google. Você tem que ir na biblioteca, fichar o livro que você vai usar na escritura do seu livro. Então eu falo isso com orgulho, não com orgulho individual, dando elogio à minha capacidade intelectual. Eu falo isso com orgulho porque é a necessidade coletiva de transformar uma história que é dada como a história desse país. A gente tem que reler a história do Brasil e a história de São Paulo. Desconstruir essa ideia de uma cidade só europeia, que esquece suas periferias. Três semanas atrás eu falei sobre o livro na Capelinha de São Miguel Paulista. É uma capela indígena, feita por índios na Praça do Forró. A igreja estava com 80 pessoas e pra mim foi um dos melhores momentos da minha vida
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