Projeto: Indígenas Pela Terra e Pela Vida
Entrevista de Paulo Mendes Tikuna
Entrevistado por Tiago Nhandewa
Entrevista concedida via Zoom (Curitiba/Brasília), 13/04/2023
Entrevista n. º: ARMIND_HV037
Realizado por: Museu da Pessoa
P/1 - Primeiramente gostaria de agradecer o parente Paulo por ter aceitado dar essa entrevista pro projeto do Museu da Pessoa, Indígenas Pela Terra e Pela Vida. Então, o nosso objetivo é que o senhor possa contar hoje a luta, a história de vida, trajetória, as origens. E pode ficar muito à vontade para poder falar. Eu acho que… aqui a gente não exige que seja, de acordo com as perguntas mais… o que o senhor tiver no coração para falar. Parente, primeiro gostaria que o senhor se apresentasse, falasse o nome, o nome português, se tem um nome indígena, Tikuna. Também o povo que o senhor pertence e o ano que nasceu e onde nasceu? É uma apresentação.
R - Ok! Já podemos? Ok! Primeiro lugar eu quero dar um bom dia a todos, a juventude que está aí na frente. Eu me chamo Paulo Mendes, sou conhecido como Paulo Mendes na minha região. Mas eu sou da etnia Tikuna, eu tenho um nome Clã, sou Clã Avaí, Avaí é uma fruta. Meu nome indígena é Memanky, que é uma rama bonita, um caminho que significa para nós. Eu nasci no dia três de julho de 1958, hoje eu tenho 65 anos, vou fazer agora no dia três de julho, se Deus quiser, seu caminho. E sou falante da minha língua, eu mantenho a minha tradição, meu costume, minha crença. Eu uso, meus filhos, minhas filhas, tudo usam nome indígena meu ________. A minha mãe é da nação de Japó, ela é do Clã de Japó, nome dela é Mukitina, e nome em português é Madalena Honorato. Meu pai se chama Francisco Mendes, da nação de Avaí , clã de Avaí . Nome dele é _______, o nome indígena. E eu to aqui, Tiago, tô disposto as perguntas. Ainda hoje eu continuo na luta. E pra mim é uma alegria vocês estarem me entrevistado hoje, porque o que faltava muito para a gente era...
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Entrevista de Paulo Mendes Tikuna
Entrevistado por Tiago Nhandewa
Entrevista concedida via Zoom (Curitiba/Brasília), 13/04/2023
Entrevista n. º: ARMIND_HV037
Realizado por: Museu da Pessoa
P/1 - Primeiramente gostaria de agradecer o parente Paulo por ter aceitado dar essa entrevista pro projeto do Museu da Pessoa, Indígenas Pela Terra e Pela Vida. Então, o nosso objetivo é que o senhor possa contar hoje a luta, a história de vida, trajetória, as origens. E pode ficar muito à vontade para poder falar. Eu acho que… aqui a gente não exige que seja, de acordo com as perguntas mais… o que o senhor tiver no coração para falar. Parente, primeiro gostaria que o senhor se apresentasse, falasse o nome, o nome português, se tem um nome indígena, Tikuna. Também o povo que o senhor pertence e o ano que nasceu e onde nasceu? É uma apresentação.
R - Ok! Já podemos? Ok! Primeiro lugar eu quero dar um bom dia a todos, a juventude que está aí na frente. Eu me chamo Paulo Mendes, sou conhecido como Paulo Mendes na minha região. Mas eu sou da etnia Tikuna, eu tenho um nome Clã, sou Clã Avaí, Avaí é uma fruta. Meu nome indígena é Memanky, que é uma rama bonita, um caminho que significa para nós. Eu nasci no dia três de julho de 1958, hoje eu tenho 65 anos, vou fazer agora no dia três de julho, se Deus quiser, seu caminho. E sou falante da minha língua, eu mantenho a minha tradição, meu costume, minha crença. Eu uso, meus filhos, minhas filhas, tudo usam nome indígena meu ________. A minha mãe é da nação de Japó, ela é do Clã de Japó, nome dela é Mukitina, e nome em português é Madalena Honorato. Meu pai se chama Francisco Mendes, da nação de Avaí , clã de Avaí . Nome dele é _______, o nome indígena. E eu to aqui, Tiago, tô disposto as perguntas. Ainda hoje eu continuo na luta. E pra mim é uma alegria vocês estarem me entrevistado hoje, porque o que faltava muito para a gente era isso. Deixar um legado bacana para a história de vocês que são jovens na minha frente hoje. Eu já tive essa idade que vocês têm hoje. E a vida segue.
P/1 - Muito bem parente! Muito bem! A data, o dia do nosso nascimento, parente, é um dia muito especial e por detrás desse dia tem muitas histórias que nos contam, como foi esse dia do nosso nascimento. A mãe do senhor, ou o pai do senhor, ou os avós, os mais velhos, contou como foi esse dia do nascimento do senhor?
R - Contou, contou. Eu nasci numa aldeia, no rio Assacaia, no município de São Paulo de Olivença, nasci lá no mato mesmo, lá na casa tradicional, do nosso jeito, de palha, de paxiúba. E o umbigo meu foi cortado sem tesoura, foi com aquelas flechas que a gente tem, a gente faz muito isso, a gente mantém ainda hoje. Porque para nós, hoje ainda, cortar com tesoura, cortar com negócio assim de ferro, pra nós faz mal. O bom para nós é quando a gente usa aquilo que é nosso, hoje nós mantemos muito isso ainda. Eu nasci lá no igarapé, uma casa sozinha, casa do meu avô. E assim!
P/1 - Muito bem! O senhor falou da mãe do senhor, falou do pai. Eu gostaria que o senhor contasse mais um pouco sobre sua mãe, quem era ela, se ela gostava de contar muitas histórias? Se o senhor pudesse contar um pouco sobre ela.
R - Muito bem! A minha mãe conta que quando eu nasci, eu nasci de manhã, aí quando foi no outro dia de manhã, já foi banhando no rio de Assacaia. Assacaia é um rio, lá no mato. E ela nunca me banhou com água quente, sempre foi água fria, que água de igarapé é fria. E ela disse que quando a gente banha as crianças assim, ela nasce já com a força da água, que a água, os peixes, todo animal vem visitar aquela criança que nasceu naquele dia. E aí todos os animais vem olhar, tudo quanto é força do mato fica naquela criança, então por isso que eles banham. E eles banham também… até hoje nós usamos umas folhas, umas folhas que são chamadas _______, aquele, o alho brabo, todo esse banho para evitar doenças. Então essa é a história que a minha mãe contava. E minha vó também contava. E usava muitas cascas de árvores, pata de animais, fazia chá, cozinhava aquilo para banhar, para evitar doenças. Então essa é a história que a minha mãe contava. E que nós não podíamos estar cortando árvores de qualquer maneira, porque aquela árvore ela diz que é remédio. E tudo que nasce aqui na terra, ela disse que serve para remédio, só basta a gente ter o conhecimento dos mais antigos. E para manter aquilo, entendeu? E todos meus irmãos, hoje eles são saudáveis, minhas irmãs são saudáveis, a gente não tem quase… a gente não pega doença. E assim que são meus filhos. Hoje a gente mantém aquilo que é nosso, entendeu? A gente usa mais aquilo que é nosso. E outra coisa, minha mãe usava aquela unha de tamanduá-bandeira, que é grande, e riscava o braço da gente para ser caçador, para ser um líder forte, para ser inteligente, entendeu? Tudo isso minha mãe falava. Tudo que o animal tem, que tem que usar para ficar no corpo da gente, para ser inteligente, para ser um lutador. E essa é a palavra que ela me contava. E quando a gente era grande, minha avó contava também muita história, que a gente tem que olhar para trás, vê o passado, para a gente seguir para a frente. E comparar com os passados para a gente fazer o melhor. E a gente não discutir de uma forma ilegal com os outros para ganha amizade, entendeu? Chamar atenção das pessoas. Essa é a história da minha vó. Então, o meu avô dizia assim, que não era só isso que tinha que fazer, que tinha que saber pescar também e caçar. E para saber caçar e pescar, tinha que usar o remédio tradicional nosso. É umas folhas que ele usava lá, não estou lembrado o nome, mas era umas folhas lá. Banhava a gente antes da gente ir para o lago. Então todas essas coisas ele ensinava a gente, aquilo que é nosso. Então, por isso que eu tenho essa luta, o espírito de luta, porque já trouxe dos meus avós, do meu avô, minha mãe me trouxe e hoje eu estou passando para os meus filhos, como que é a luta. Então assim, a gente tem esse espírito de defesa pela floresta, pela água, por isso, porque água é vida hoje, porque aquela água bebia e servia para lavar o peixe e tomar o caldo do peixe, a gente não podia sujar. Então são essas coisas que minha mãe me falava. A minha vó também falava isso: “Você não joga, não estraga, amanhã vai servir”. É assim!
P/1 - Muito bem! Só para a gente registrar, qual era o nome da mãe do senhor?
R - Nome dela é Madalena Honorato, português. E indígena é Mukutinã. Mukutinã, da nação de Jacó. Porque nós também temos esse negócio, o clã com clã para nós não é bom, para nós quando tem uma pessoa que é casada clã com clã, para nós, nós consideramos bicho, bicho que não conhece parente. Então a gente não casa com qualquer uma, tem que procurar nação de pena, com nação sem pena. Eu sou sem pena, sou de Avaí, já faço família do Avaí, da onça, do _______, entendeu? Essas coisas. E de pena já vem o Jacó, vem o _______, vem nação de galinha, vem um monte só de pena. Com essas pessoas que pode acontecer o casamento. E quando cruza nação com nação, para nós aquela criança não é considerada como gente, até hoje existe isso. Porque assim, aquele pessoal da família sem pena, eles são considerados irmãos, irmãos. Por exemplo, você está lá longe daqui, você pode estar lá em outra cidade, você não conhece o indígena, você não conhece o parente. Aí a primeira coisa que nós fazemos, quando alguém diz assim: “Ali tem um parente, o teu parente”, às vezes o pessoal informa para a gente. A primeira coisa que nós, Tikuna, fazemos é perguntar dele, falamos a língua e perguntamos a nação dele, qual é o clã dele. “Qual é tua nação?” Aí, por exemplo, ele diz que é nação de Avaí, que é o meu clã, aí ele já é considerado meu irmão, vou perguntar dele quantos anos ele tem, o pai dele, tudinho. Aí na hora a gente já capta se ele é meu tio, ou se ele é meu irmão, que é primo na língua do branco, que é primo. Então essa família, embora o pai diferente, de longe, eu não conhecia, conheci naquele momento, eles são irmãos. E mesma coisa é o pessoal da nação de Pena, primeira coisa que ele pergunta: “Qual é tua nação?” “Sou nação de Mutunga, de arara, de outro”, “Também sou”! Então você é minha irmã, minha tia. Aí por acaso a mulher de Pena pergunta: “Qual é tua nação?” Ela encontra a nação de Avaí, que é sem pena, aí diz assim: “Então tu é irmã do meu marido, porque meu marido é tua nação”. Aí se aproxima, se comprimenta já falando a língua e dizendo que já é irmão. E por isso que não é bom a gente ficar com o mesmo clã, considera irmão como tivesse de um pai e de uma mãe só para todos. E isso que mantém ainda hoje muito, embora ele ali com a religião diferente, que hoje tem muita religião não indígena, mas nós indígena, a gente nunca esquece isso aí. Sempre a gente mantém isso aí. Porque sempre eu falo assim, que nós não somos irmãos de religião não, nós somos irmãos de coisa antiga nossa mesmo, de indígena, de irmão. Na realidade, pela bíblia, eu sempre falo: nós somos irmãos da natureza. E quando a gente é irmão, é irmão mesmo de verdade. Diferente do não indígena, o não indígena é irmão porque está naquela igreja, lá na ata dele tem o nome do frei, irmão. E quando sai daquela religião, pra ele já não é mais irmão. Para nós não, nós somos irmãos desde quando nasce, quando morre, ele é irmão. É assim! Por isso que a gente tem esse negócio que a gente mantém. Tem coisa muito interessante para nós.
P/1 - Muito bem! Boa explicação! O senhor falou da mãe. Gostaria que o senhor falasse um pouco mais sobre o pai do senhor, o nome dele, qual é a linhagem dele, a origem do pai do senhor, quem foi ele?
R - Tá! O meu pai é o Francisco Mendes, ele é da nação de Avaí, o nome dele na minha língua é ________. Então a trajetória do meu pai, também foi um dos lutadores contra os seringueiros na época, os seringalistas na época, eles nunca aceitaram a opinião dos patrões que chamavam na época, entendeu? Sempre eles foram contra, sempre eles quiseram ser independentes, não ser mandados pelos não indígena, entendeu? Então, essa luta hoje, ela tem uma comunidade onde meu pai nasceu, se chama Urique. Então ele sempre foi contra os patrões, que chamava na época, sempre eles não aceitavam muito a opinião do patrão. E depois eles convidavam alguns não indígenas que moravam ali por perto, que também era explorado, a mão de obra deles, na exploração da seringa. Ai dizia que a gente tinha que trabalhar para nós, não para o patrão, entendeu? Essa era a fala dele. O pessoal gostava muito do meu pai, chamava ele de Chico. !Chico, o cara ta fazendo isso, bla, bla, bla!. Conversava com ele… “Tem que parar, nós tem que… nós estamos trocando…” Naquela época ainda não tinha dinheiro, era troca de mercadoria com a borracha. Então ele contava muito essa história. Nunca ele aceitou a opinião do não indigena, sempre ele foi contra, sempre ele debatendo. Tudinho os meus tios, tenho quatro tios, e sempre eles debatiam isso, as minhas tias. Então assim, essa é a luta deles, eles nunca favoreceram. Sempre a terra tinha que ser mantida, tinha que ser cuidada por aquele povo que morava naquela região, não era bom os outros virem, porque se não os outros iam tomar terra dele, e tinha os filhos dele para morar, aí vinha neto. Essa era a fala que ele falava. Até hoje ele ainda fala, que meu pai ainda é vivo, tem 94 anos, hoje meu pai, e ele ainda fala isso aí: “Cadê a luta de vocês hoje? Vocês que estudam, vocês que tem tecnologia, vocês que não sei o que… Não tem nada! Vocês estão deixando o não indígena entrar. Eu com essa idade ainda tenho força de dizer não para o não indígena, para ser independente desses camarada”. Ele fala dessa maneira, meu pai!
P/1 - Parente, senhor está falando a respeito do pai do senhor, que até hoje ele ainda dá conselhos, que é para continuar lutando. O senhor estava finalizando, falando sobre ele. Como ele está hoje? Os mais jovens têm ouvido ele?
R - Sim, sim! De vez em quando as sobrinhas dele, as netas, que sempre vão lá com ele, pergunta. Ele fala até da política partidária, como era antigamente. Sabe, tudo isso ele lembra bem hoje para a gente, ele conta. Tem algumas músicas que ele canta, como que os partidos se desafiavam até dentro da música, e como que era bem rígido na época, dava morte, brigavam, pior do que hoje. Conta toda essa história. Mas ele nunca foi muito a favor do não indígena, as ideias, as ideias do não indígena para ele não prevalece muito. Então é assim! E a luta tem que continuar para fazer a nossa defesa. Isso ele fala muito para a gente hoje: “Vocês hoje são jovens, vocês não sabem se defender, vocês tem que saber se desviar do inimigo, com é que você tem que fazer jogo de cintura”. Isso que ele fala hoje para a gente, entendeu? E quando a gente vai a luta e para vencer, e quando você perde, você não desiste, você tem que continuar. Essa é a maneira, a guerra que não tem morte, não tem vitória, ele fala para a gente, entendeu? Então é por isso que também luta pela floresta, é por causa dos meus pais, as minhas netas hoje estão nesse caminho, minhas filhas.
P/1 - Parente Paulo, assim como o pai do senhor orienta os mais novos, orientou o senhor. O senhor poderia falar dos irmãos do senhor, qual a orientação que ele passou? Se o senhor pudesse contar, o senhor tem irmãos, irmãs, quem são eles?
R - Tenho irmãos! Eu tenho dois irmãos hoje, eu tenho duas irmãs, também estão nessa mesma luta, lutando. Tem uma que é professora, que luta pela educação. E tem outro que é professor também numa escola indígena na nossa aldeia, ele tem essa luta pela direito da educação, como educar os nossos filhos comparando com a educação ocidental que é do não indígena, entendeu? Comparando a nossa educação… para nós não esquecermos aquilo que é nosso. E porque assim, nós assistimos muito a ocidental, do não indígena, a gente diz: “Se a educação do não indígena é essa, então nós temos que manter aquilo que é nosso”, entendeu? A universidade própria, a história própria, contado por nós. Então é isso aí que a gente trabalha muito hoje. Meus primos, os filhos dos meus tios, eles têm essa mesma mentalidade, entendeu? De lutar pelo nosso direito, fazer a defesa para nós e para proteger aquilo que nós temos. É assim!
P/1 - O senhor falou sobre escola, sobre formação. Eu gostaria que o senhor contasse também a trajetória do senhor na escola, como foi entrar numa escola, se era escola indígena, se não era? E até que ponto o senhor estudou, até que nível? Se o senhor pudesse contar essa história do senhor na escola.
R - Ok! Então, eu comecei a estudar na escola do não indigena, até hoje eu lembro o nome da escola, que se chama Duque de Caxias, numa cidade, num município onde a gente mora hoje. Então, comecei a estudar quando eu tinha dez anos. Aí com dez anos, com dez anos eu não sabia ler e nem escrever o meu nome. Mas eu me interessava por querer aprender algumas coisas. Aí quando eu comecei a ler, já me deu uma mentalidade que não era assim. E quando eu ouvia falar que o índio comia gente, aí eu também já fiquei meio ruim, que eu nunca comi gente. Eu fazia gente, mas comer não! Aí quando no livro eu via que o índio vivia das raízes, aí também tudo já era o contrário pra mim. Aí o meu pai disse assim: “Olha, meus filhos, vocês vão aprender a ler o ABC…” Eu aprendi a assinar o meu nome. O meu professor só dava nota para quem soubesse escrever o nome dele bonito, letras bonitas. “É assim eu quero que vocês sejam. E quando vocês aprenderem, tem que escrever a nossa língua, o americano fala a língua dele, o japonês fala a dela, o alemão fala a dela, o peruano fala a dele, outro país fala a língua dele, eles tem o livro dele, tem a história dele. E porque nós vamos aprender agora, então nós vamos ter que escrever a nossa história para deixar para os filhos, porque as coisas estão mudando”, ele dizia. Eu ainda alcancei o bolo, naquela época, até hoje eu lembro também da palmatória, chamada Maria Cheirosa, a gente ia para a sabatina, a gente era meio bom de Matemática, então alcancei. Naquele ano, foi em 68, se eu não me engano, eu vi quando os caras chegaram na sala de aula, disseram que era a palmatória, que não ia ter mais o castigo, sabatina, aquele milho que o pessoal botava para você ajoelhar, para aprender. Então eu alcancei, eu estudei nessa época. Aí melhorou para a gente, entendeu? E aí então a gente começou a formar, fiz meu terceiro ano, quarta série. Eu estudei meu ensino médio, mas eu gosto mais da área do meio ambiente, uma coisa que a minha mãe me falava muito, sobre a natureza. Então por isso que eu tenho esse negócio assim, eu sou bom nesse negócio do meio ambiente. Então o que meu pai dizia: “Vocês vão aprender a escrever a nossa língua. Quando vocês saírem por aí, é para vocês falarem a língua, nossa língua, vai embora, vai caminhando, vai conversando. A gente vai usar a língua portuguesa para se comunicar com aquele que não entende a nossa língua.” Essa era a educação de casa, que meu pai ensinava. E lá na escola, eu briguei muito lá na escola, porque os outros me chamavam de índio, e eu achava ruim, sou índio, pô! Por que eu sou índio? Aí depois eu comecei a entender o que era índio. Aí eu briguei muito, dei pedrada nos outros, cacetei os outros, os outros me cacetaram e assim por diante, entendeu? Dentro da escola, na sala, eu sempre fui o querido pelos colegas lá, porque eu falava muito e enfrentava tudo. Era briga contra o racismo, que hoje é chamado de racismo, naquela época a gente não falava em racismo. Mas falava de discriminação, entendeu? Mas eu enfrentei tudo isso. E isso aí foi um aprendizado pra mim. Eu aprendi porque comparava o índio sempre lá embaixo, entendeu? Eu dizia: “Não, eu sou índio, mas sou igual a vocês, eu sinto fome, eu sinto dores, eu tenho mentalidade, eu tenho inteligência”, assim falava com os colegas. Esses colegas hoje, que estudaram junto comigo, Tiago, uns são advogados, são professores. Então essas pessoas, hoje, são meus amigos. Às vezes quando a gente se encontra: “Lembra que a gente brigava assim?” “Lembro, lembro mano, porque que a gente não lembra!” Isso foi um aprendizado. Você olha para trás, pô, o cara me discriminou dessa maneira, achei ruim, um lado foi bom, outro lado foi bacana, entendeu? Então, outro, meu pai sempre diz assim: “Meu filho, quando alguém te critica, você tem que analisar se tá te ajudando, tem coisa que ele vai te falar que você nem pensa que vai servir para você. E quando a pessoa te elogia, você tem que agradecer, também é uma aula. Os dois lados são uma aula, positivo e negativo. Você não tem que ficar com raiva daquele que te critica, de bom e de ruim, entendeu?” Então, essas coisas, Tiago, que meu pai me ensinou hoje. Então minha trajetória na escola foi isso. Depois fiz um curso de técnico de meio ambiente. Eu sou técnico de meio ambiente, uma área que eu gosto, falei antes. Então eu comparo hoje isso aí. Eu comparo educação do não indígena e educação indígena, é quase igual quando se fala em meio ambiente, porque o meio ambiente é para todos, para todos, o não indígena e o indígena, porque nós estamos vivendo num país, numa região, num local, onde se desmatar vai prejudicar todo mundo. Então, essas coisas que a gente tem que… E hoje, lá dentro da região onde eu moro, a gente se comunica muito com o não indígena, a gente explica para ele que o direito que o índio tem e o direito que o não indígena tem. E vamos estar todo mundo junto cuidando, a água, os animais, principalmente a floresta, né? Que hoje eu moro numa fronteira, entendeu? É uma área pequena, pequena porque nós somos muito, a comunidade nossa é bem grande, hoje tem aproximadamente uns sete mil indígenas. Então é assim, então essas coisas que eu gostaria de falar para você, que essa educação não indígena é boa por um lado, por outro lado não, só não é bom às vezes a política, mas não a política assim de briga, que o pessoal traz…
P/1 - O senhor tocou no assunto, a respeito do território, que ele é muito pequeno, tem muita gente. E como tá isso, vocês tão lutando por uma ampliação? É uma área de conflito como a gente tem visto os Yanomami sofrendo por garimpeiros, invasão dos territórios. Como tá essa luta aí do território do senhor? Meio ambiente também.
R - Tá! Hoje a nossa luta, hoje, é briga pela ampliação, hoje, entendeu? Devido ao crescimento populacional indígena, que são muitos. E quando nós começamos a luta, tinha vinte comunidades, hoje ela tem 273 comunidades, são setenta mil indígenas só da minha etnia. E aí lá dentro tem os Kokama, tem os Kambeba, tem os Kaixana, Witoto, tem os Marubo, esse pessoal todo. Então hoje nós estamos querendo ampliação para essa terra, entendeu? Então, os colegas nossos que não são indígenas, que diziam que a demarcação deles é lote, é por quintal, hoje eles estão abrindo o olho que não deve ser assim, tem que ser uma área grande, entendeu? Principalmente ali na área de fronteira onde nós moramos. Então é uma área que nós estamos fazendo um acordo. Nós não temos essa invasão grande, Tiago, mas não temos invasões grandes lá na minha região. Só que Roraima, os Yanomami, ficam próximos da gente, fica próximo, é fronteira também ali. E aí a exploração lá é entrada de entorpecente, droga, é esses negócios ali, que é Peru e Colômbia. Mas nós não temos nada a ver, eles lá, nós no nosso canto, entendeu? Tem alguns indígenas presos hoje, estão no presídio hoje por causa de droga, mas não é morador de lá. E porque tem uns Tikuna no Peru e Colômbia. Então, quando saí do Peru ele vai para o Brasil, aí é aprendido lá, ele usa qualquer comunidade nossa, entendeu? Ai que se reúne quem não é de lá, então. E da Colômbia também, ele vai para o Brasil, ele vai preso, na hora da entrevista, ele joga: “Eu só lá da comunidade tal”. Então essas coisas. Nós estamos atentos, graças a Deus nós não temos nenhum indígena do Brasil preso por entorpecente. Não tem! Tem de outro país que é parente nosso, é fronteira ali. Então são essas coisas, Tiago. E a gente está se protegendo dos dois lados, e defendendo dos dois lados, indígena e o não indígena, fazendo entender os direitos, o direito e feito para todos, eu falo assim para eles. E naquela região ainda tenho liderança, o pessoal ainda considera eu como líder maior dessa região, muita consideração pelo pessoal.
P/1 - O senhor falou que o senhor é uma liderança importante, tem um respeito por todos lá. Como foi se tornar liderança, como começou isso, alguém indicou o senhor? Foi votação? E como tá sendo essa experiência para o senhor?
R - Uma boa pergunta, essa pergunta é importante! Essa luta começou assim, no tempo… isso foi em 78, eu não lembro nem qual foi o presidente da república, na época, que dizia que ia acabar com indígena. Aí eu cheguei em casa e disse para o meu pai, meus tios também que moravam junto. Disse que o governo vai acabar com nós. Ai meu pai disse: “Eu tenho arma aí, só se o cara vier me matar”, “Vai acabar com nós? É direito, é lei”, eu falava para ele. Ele dizia que queria estar perto desse que estava falando isso, acho que era o Fernando Henrique, não era o Fernando Henrique não, era outro, eu não lembro. Então bora se reunir! E naquela época a FUNAI, logo que mudou de SPI, para FUNAI. Aí o cara da FUNAI, o cara que era militar, que mandava prender o índio. E quando a gente via o cara da FUNAI prendendo índio, a gente se revoltava, ia lá no posto para defender o parente, para não ir preso. Que a gente não podia falar muito, inclusive eu fui um dos que várias vezes fui chamado no quartel do exército, na época, e que se defendeu: “Não, a terra é nossa, nós nascemos e moramos ali, não estamos fazendo nada de mau”. E dentro do militar, tinha um que sempre apoiava a gente, entendeu? “A luta é essa, vocês tem direito e tal”. Ai comecei a reunir três caciques, Pedro Inácio, um colega famoso, que já faleceu; o Adelson Custodio, lá de Campo Alegre de São Paulo de Olivença. Eu chamei eles: “O que nós vamos fazer? Agora o governo disse que vai acabar com nós e nós vamos ter que reunir para nos defender e a demarcação das terras”. E aí nós começamos com três pessoas. Aí comecei a viajar nas comunidades, explicando que nós não podíamos deixar o branco acabar com nós e nem tomar a nossa terra, entendeu? Comecei com os três, dos três nós fomos para cinco, de cinco a gente foi… se meteu polícia militar no meio para prender a gente, nós enfrentamos, entendeu? Enfrentamos várias discriminações, sabe? Assim! E nós vencemos a parada, inclusive aquele morte que teve no capacete, foi por causa dessa luta. E essa luta trouxe melhores coisas. Logo depois do massacre, nós tivemos a demarcação das terras. E aí o pessoal disse: “Não, nós temos que eleger um cacique geral para falar por nós”. Aí os colegas disseram: “Não, que vai escrever para nós… - naquela época eu fazia a quarta série - Vai ser o Paulo - que era eu -. Ele vai ser o nosso colega que vai fazer a nossa frente”. Aí comecei a conhecer o pessoal. Como eu já estudava com os não indígenas, eu comecei a fazer contato. Aí o pessoal, uns diziam… minha avó era indígena, meu avô era indígena, eu sou indígena, “nós vamos estar junto!” Aí eu fui indicado numa assembleia, dizendo que eu tinha que ser o líder dos caciques, que o capitão que a gente chamava na época. “Você vai ser líder dos capitães”. Aí nós fizemos grandes reuniões, fizemos em Porto Alegre, fizemos em Vendaval. Vendaval é uma turma natural até hoje, ainda tem tudo natural nosso. E aí eu me tornei o líder, me tornei conhecido, ia no jornal na época, na época era crítica, a notícia, tinha lá no jornal, governo batia uma coisa, eu ia lá e debatia. E aí nós sofremos muitas discriminação por causa disso, chamando nós de besta, de leso, para que nós queríamos terras? Nós não produzíamos nada, que nós não fazíamos nada para o país. Eu respondia: “Não, ninguém produz nada não para vocês, mas para nós, nós produzimos, nós comemos, nós bebemos, você tem um monte de dinheiro e não vai comer”. Essa era a minha resposta. E se nós tivermos peixe, as nossas frutas, nós vamos comer. Então, essa é uma disputa que até hoje eu carrego, o Tiago, até hoje. É uma disputa de poder, que eu sempre falo para a turma: “Ah não, vamos ter que disputar o poder, se o camarada tem um carro blindado deste ano, do ano, vamos ter que comprar também, mas sem deixar de ser aquilo que a gente é, e aquilo que a gente pensa, tem que manter a postura da gente como liderança”. E por isso eu me tornei líder reconhecido pelo meu povo, Tiago, assim. Até hoje, entendeu? Eu estou com o celular desligado agora, para fazer essa entrevista, senão fica perguntando como estão as coisas, passo informação, entendeu?
P/1 - Bom, falando dessa representatividade que o senhor tem e o respeito pela comunidade, tudo começa, a luta, a construir isso no nosso mundo, no mundo indígena. Como foi para o senhor, sair do mundo indígena pro mundo e ir para o mundo não indígena, da cidade, como foi esse contato, essa experiência de estar nas grandes cidades. Hoje o senhor está em Brasília, que é a capital do poder do nosso país. E hoje nós temos indígenas também ocupando espaços de poder na FUNAI, no Ministério dos Povos Indígenas, na saúde. Como é essa relação com o mundo de fora da comunidade e hoje esses indígenas também no poder. Como o senhor vê isso?
R - Muito bem! Eu vou dar exemplo de mim Tiago, de mim. Eu morei com uma família não indígena, devido à escola eu fui estudar numa escola, o Duque de Caxias que eu estava falando antes. Aí comecei a me entrosar com não indígena, aí dentro eu vi o não indígena a favor do indígena e eu vi o não a favor do indígena, entendeu? Aí comecei a viajar, eu comecei a conhecer São Paulo do Sul, naquela conferência, Primeira Conferência dos Bispos do Brasil, em 80, se não me engano. Aí comecei a me entrosar com o pessoal do Mato Grosso, com Marcos Terena, na época, Domingos Veríssimo, o Djahuri, que já faleceu.. Martinelli, o finado Mario Juruna, entendeu? Eu conheci o Lula, primeira vez quando ele foi prefeito, e aí comecei a me entrosar com esse pessoal todinho. E aí essa luta, a gente juntou com o pessoal do norte, sul, que é o Xavante, eu conheci esse pessoal quase todo. Aí eu comparei os problemas, problemas de terra, problemas de atendimento de saúde e problema de educação, que não era diferente, não era diferente, o que a gente sofria lá, o pessoal sofria junto, essa ideia todinha. Aí nasceu essas crianças, eu conheci a Francisca _________, que ela é professora até hoje, acho que já é aposentada. E conheci a Sônia Guajajara, eu tive em Mato Grosso, e foi uma das candidatas que eu falei para os Guajajaras que ela tinha que conhecer a nossa região, que era Amazonas. Ela foi lá e trabalhou com a gente. Então o que eu falava, Tiago, na coisa, em todo canto, repartição do governo, tinha que ter indígena lá para discutir a nossa questão não só deixar o índio falar por nós, mas nós falarmos para os não indígena, que é aquele pessoal que cria lei, que cria um bocado de coisa lá, nós tínhamos que estar dentro para ele nos ouvir, não fazer do jeito que eles querem. E isso percorreu o Brasil inteiro, entendeu? Aí a primeira coisa que nós fizemos, nós fizemos vereadores, meus vereadores, primeiro fizemos um, de um nós queria subir para Deputado Estadual. E depois eu fui um dos candidatos em 86, para abrir espaço para a juventude e continuar. Aí foi eleito Mário Juruna, na época, como Deputado Federal. Não com voto indígena, porque o indígena não tinha muito título na época. E aquilo ficou na história, se um Xavante foi Deputado Federal, por que não para Governador, para Senador, não para Presidente da República um dia. Então é isso aí que me trouxe essa luta, entendeu? Então essa minha trajetória dentro do não indígena, foi só olhar para eles, ver o que eles falam a favor e o que eles falam contra a gente, isso é, para mim, uma aula. Não é uma aula em sala, mas uma aula de consciência mesmo, entendeu? Então, isso aí! Hoje para nós uma indígena é presidente da FUNAI, uma advogada, que nós pedíamos também na época, que nós tínhamos que ter advogado para conhecer o nosso direito, para brigar por nós, entendeu? Então para mim isso é uma vitória muito maravilhosa! O que está faltando hoje, Tiago, somente um atendimento, o presidente da FUNAI conversar com nós, sentar com com a gente, ouvir nós hoje, entendeu? Essa é a coisa que eu sempre falo: “Nós vamos ter que fazer diferente do não indígena, comparando com as leis que estão aí, que são nossos direitos, conhecer realmente os nossos direitos, puxar sardinha para o nosso lado”. Então isso que eu vejo. Não fala muito hoje branco, eu falo não indígena, porque alguns são descendentes de indígena, nós tivemos ministro hoje já descendente de indígena, mas ele não se identifica, com medo de dizer aquilo que ele é. Eu sou diferente, Tiago, eu não tenho medo de dizer o que eu sou, eu não tenho medo de dizer onde eu estou, por onde andei, o que eu faço, eu não tenho medo, porque eu tenho um dom que carrego comigo. Eu não sou contra o não indígena, eu sou contra atitudes deles, eles fazem a lei, eles desfazem a lei, ele vota na lei e depois desfaz, entendeu? Uma parte que traz mal exemplo para a gente, mas uma parte traz o abre mente para a gente, para comparar a nossa luta. Eu tenho esperança hoje, Tiago, de nós sermos alguém na vida. Hoje, vocês que eu falei que vocês são jovens… Hoje um indígena me entrevistando, e antes era o não indígena me entrevistando, era aquela câmera grandona que tinha para fazer essa entrevista. Então, isso fez eu me incluir dentro da sociedade não indígena, entendeu? Então, é assim! Eu me sinto orgulhoso, que muita gente hoje me procura, o não indígena mesmo, entendeu? Eu tenho que receber os colegas, colegas que admiro, eles me admiram também, não posso perder esse contato. E aí, eu quero pedir para você, Tiago, que você entreviste mais gente, a gente tá aí para contribuir mesmo com vocês, entendeu? Porque tem muita gente nossa, do passado, que já faleceram, que não deixaram muita história por escrito. E aí outra coisa, Tiago, que nós trazemos também as religiões, entendeu? Eu sou a favor da religião, eu tenho a minha religião natural, nós usamos o nosso remédio tradicional, a gente mantém muito isso, a gente batalha para não terminar, para não acabar. São essas coisas.
P/1 - Muito bem! Só para o senhor tomar o cuidado, que a gente tende ir um pouco para frente, depois cortar um pouquinho, manter um pouquinho para trás. Isso! Assim tá bom!
R - Outra coisa, Tiago, para terminar. Depois eu fui professor, fui professor, dando aula na minha língua, escrevia algumas palavras na minha língua, e mostrei para um coordenador da escola: “Isso aqui que eu escrevi parecia bonita, vai ter que escrever a língua de vocês”. Um professor de São Paulo, aí, São Paulo do Sul. “Isso é bom, isso é bonito, você tem que dar aula.” “Não, eu tô dando aula na minha língua!” E hoje nós temos livros nossos na língua, nós temos bastante desses livros, traduzidos. Então, quando nós começamos a escrever a nossa história, verdadeira, que nós que conhecemos as nossas histórias, não de antropólogo, entendeu? E hoje nós temos antropólogos indígenas, inclusive, minha filha, hoje ela é antropóloga, hoje ela está na FUNAI, ela é uma das diretoras. É uma alegria para mim, é uma luta, é uma semente. Tenho filhas técnicas de enfermagem, professores, tudo falando a língua, tudo conhecedores da língua e da história. Então, tudo isso, Tiago, eu falo para vocês, que vocês mantenham isso, se alguns indígenas não falam a língua, mas que resgate, aprenda a língua, para a gente ter daqui mais mil anos para frente, para a gente não esquecer aquilo que é nosso. É essa trajetória, né Tiago, do pessoal que está introduzindo hoje lá no ministério. E tem já os políticos partidários, contra o ministério, já querendo tirar, não pode, tem que acabar a FUNAI, não sei o quê. Mas assim, a minha resposta é: “Se acabar a FUNAI, o índio não vai acabar, o índio vai continuar morando, vai resistir a luta e tudo”. Então essas coisas. Tá bom?
P/1 - O senhor tocou aí num assunto das filhas, uma na FUNAI e os outros estudando. Eu gostaria que o senhor falasse agora desses aprendizados que o senhor tem em toda essa trajetória, se o senhor repassa isso para os filhos, para os netos. Gostaria que o senhor contasse um pouco dessa família, da esposa do senhor, se o senhor tem filho, filhas, netos, os genros?
R - Tá, muito bem! Eu repasso, eu repasso para os meus filhos, para os netos: “Olha, vocês tem que conhecer a nossa história, manter a nossa cultura, manter a tradição, manter a nossa festa. Vocês tem que conhecer a história toda, para um dia vocês chegarem na universidade, vocês contarem lá, que na universidade vai ter provas que vão cair quem é o líder, quem foi o Cacique, quando começou, tem que conhecer a nossa história”. Não falar muito em Pedro Álvares Cabral, que foi invasor, que como diz na história que descobriu o Brasil. Não é proibido você conhecer, que é para você comparar a nossa história, os lutadores hoje, os batalhadores pelos direitos dos povos indígenas, tem história, tem história, entendeu? Nós temos livros, a minha filha que é antropóloga, doutorada, ela tá na FUNAI. E ela tem um livro, feito por ela. Aí tem uma outra que está se formando e tem um filho que tá no MB, fazendo uma outra área. Então eu passo essa história. “Você vai estudar, você vai usar tudo que o branco tem, a tecnologia, mas sem deixar o que você é”. Aí eu digo, no meu lema, meu filho, eu vou deixar aí um dia para vocês lembrarem os filhos de vocês, meus netos vão ver, “que você pode ser o que for, sem deixar de ser o que você é”. É isso que eu falo. Eu sou o que eu sou, sem deixar de ser o que eu sou. Posso ser o que for, sem deixar de ser o que eu sou. Então, essa é a coisa que eu falo. Eu passo bastante isso para os meus sobrinhos também. E a minha família toda tem essa história. De vez em quando a gente se reúne, só filhos, primos, tios, sobrinhas, nos reunimos bastante falando sobre isso daí, né Tiago? Então essa é uma coisa, para mim, muito válida, isso é valioso, entendeu? Agora mesmo em Brasília, encontrei um pouco de pessoas, filhos dos meus amigos que começaram a luta junto com a gente, estudando direito, advogado, tomando conta de repartições lá no governo. É uma alegria ter um indígena lá. Apesar de muito indígena, ter já aquela cabeça do não indígena já, entendeu? Mas eu falo: “Não, não, você é indígena, você não tem que fazer do jeito do branco, é comparar o poder, entendeu? Disputa de poder mesmo”. Hoje nós estamos ainda no mundo não indígena, mas é uma esperança um dia nós sair, pra nós mesmos, ser nós mesmos, tomando de conta daquilo que é nosso, entendeu? As leis quem faz hoje, ainda, é ou não indígena, e deve ter uma participação, acho que nós temos alguns indígenas Federal, tem uma participação de aprovar leis, que vai favorecer a gente. Então essa é a esperança. E para mim é uma alegria, a Sônia lá, a Joênia. Uma alegria, é uma fruta da luta, entendeu? Todos que estão lá são filhos de lutadores, neta, sobrinha de alguém que lutou. E está lutando ainda.
P/1 - Muito bem! Acredito que sim, é aquilo que foi plantado, são sementes que germinaram, cresceram, viraram árvores e estão dando os frutos. Parente, agora falando sobre uma coisa bem atual, nós estamos vivendo ainda uma pandemia, Covid-19, que atingiu também o mundo inteiro e chegou nos povos indígenas. Eu gostaria que o senhor pudesse falar como foi esse enfrentamento, os impactos, como vocês fizeram para se proteger? Se tiveram ajuda? As perdas? Se o senhor pudesse contar um pouco sobre esse assunto da pandemia.
R - Ok! Tiago, essa pandemia do Covid-19, na minha região morreram poucas pessoas, não morreram muitas, não tenho o número, que eu já mandei o colega fazer um levantamento, ele não me mandou ainda, mas morreram pouca gente. Para nos defender, nós usamos o nosso remédio caseiro, nós usamos muito aquele mel de abelha, aquela casa de mel de abelha. Cada comunidade defumava e tomamos muito chá, remédio caseiro mesmo, limão, folhas, defumava debaixo das casas, dentro das casas. E nós não ficamos com medo não. Não ficamos com medo! Nós protegemos, pouca gente usou máscara, bem pouco mesmo, mas porque estava dentro da comunidade. E houve um fechamento lá de polícia, não deixava ninguém sair e ninguém entrar, entendeu? Aí isso aí foi válido para nós, aí então, Tiago, nós nos protegemos com o nosso próprio remédio. E isso trouxe mais a conservação do remédio caseiro, hoje. Hoje o pessoal está plantando bastante, estão cuidando bastante, porque tiveram exemplo dessa pandemia. E fazendo com o coração, se a gente for fazer o levantamento de quem morreu mais, o indígena morreu menos, todos que foram para o hospital, Tiago, eles foram a óbito, os que ficaram em casa, estão em vida ainda, entendeu? Então são essas coisas, que nós tivemos essa proteção ótima, ótima mesmo, para nós. Hoje nós ainda falamos: “Olha, o branco trouxe uma doença para matar o índio”, mas foi ao contrário, eles trouxeram e eles mesmo se prejudicaram bastante, e morreu bastante. Eu não sei como está em outra região, que ainda vou conversar com o pessoal, onde morreu mais, onde morreu menos, para fazer uma somatória de quantos indígenas morreram por região, locais e estado, para a gente fazer uma comparação, como é importante o remédio caseiro nosso, chá quente mesmo. Inclusive, até hoje eu falo: “Minha filha, até água quente serve para tomar de vez em quando. Como a pandemia ainda não acabou, bora usar o nosso remédio”. Todo mundo bebe e tal. E se tiver um pedido para usar máscaras, vamos usar, não é muito bom, mas é um pedido que você tem que obedecer, principalmente nós que saímos para fora de casa, para ir para rua, para deixar um filho na escola, para fazer uma compra, vai no supermercado, entendeu? Então é assim que a gente vê isso daí. E nós estamos aptos para tudo, de se cuidar mesmo da saúde indígena.
P/1 - Muito bem! Eu estou percebendo que o senhor está sempre muito próximo da família. Eu gostaria de perguntar sobre a esposa do senhor, com todo respeito, o senhor falou do clã aquela hora lá atrás, com pena, sem pena. Como foi isso? Eu quero voltar um pouquinho para a gente fechar essa coisa da família, o senhor não falou dela, o senhor gostaria ou não, como foi essa relação?
R - Rapaz, essa relação foi tanta a gente andando pela comunidade. Sabe que mulher é enxerida, e o homem não é fraco, né? E o índio não namora muito, índio casa logo. Então assim, eu sou contra casamento, mas tanto eu ser contra, e na época que eu bebia, casei bêbado. Eu sou casado no cartório, não é do nosso jeito. Mas fazer o quê? E hoje ela tá aqui, tá comigo aí. Esse é o relacionamento meu do casamento.
P/1 - Tá certo! Tá certo! Mas casou uma vez só, né?
R - Só uma vez, rapaz, o índio casa só uma vez, não pode ser muitas vezes, não. Mas tem Cacique aí que tem um bocado de mulher, né? Os Xavante. É assim, mas fazer o quê. Macho mesmo, né mano? É mulher que quer, não é homem que quer, pô! Né?
P/1 - Parente, estamos finalizando, muito bom para descontrair. Bom, hoje, depois de toda essa trajetória que o senhor viveu, passou muitas experiências que o senhor nos contou hoje, quais são as coisas mais importantes para o senhor hoje? E também os sonhos que o senhor tem e o legado que o senhor quer deixar?
R - Ok! Então, Tiago, é assim, hoje, o meu sonho hoje, hoje está se realizando, o sonho grande que eu quero, hoje, é a gente ir mais adiante. Hoje pensar o Ministério Indígena, é um avanço grande. O sonho que não está sendo realizado ainda, porque nós ainda não temos indígenas ainda dentro do ministério voltado para a questão indígena, hoje ainda tem não indígena ali dentro fazendo a cabeça do índio, que o caminho, não é assim, você tem que fazer isso, entendeu? Ainda não tá bacana! Hoje o meu sonho é nós termos prefeitos, estaduais, ter tudo! Médico nós já temos, mas tá pouco, dentista nós temos, mas tá pouco, advogado nós temos, tá pouco. Então tá faltando hoje o desembargador, o camarada com estudo bem avançado para nós, esse é o meu sonho, de ter tudo aquilo que tá aí hoje nas mídias, tá no mundo hoje, mas o meu cuidado é não deixar de ser aquilo que a gente é, manter tudo. Por exemplo, eu tenho filhos professores, que eu tava falando, tudo que é passado pela festa, você pode ser tudo, mas não esqueça aquilo que é da gente, entendeu? Então esse é o meu sonho de manter tudo aquilo que é nosso, esse é o sonho que a gente tem muito cuidado. Pode vir a religião que vier, mas não deixe aquilo que é seu. Sabemos orar, apesar de branco dizer que a gente não conhece Deus, que nós não temos Deus. Tudo que nasceu tem Deus, Deus que deu essa vida, eu falo assim. E aí outro que hoje o sonho da gente é não deixar a nossa agricultura, hoje eu tenho uma casa na cidade, mas a agricultura está lá, está lá, eu tenho plantação, tenho tudo lá. Para que é isso? É para os meus filhos verem como a terra é importante, o que a terra dá, o que uma árvore faz quando o sol tá quente, que ela traz sombra, e o que ela traz de remédio. Então cada árvore, ela tem um ser lá de dar a vida, de trazer vida para gente, salvar vida. Então essas coisas! Então eu falo assim: “O cara que é lá Deputado Federal, Senador, não sei quem, ele tem a fazenda dele, grande, muitas cabeças de boi, quando tem pouco é cinco mil cabeças. E por que nós não mantemos aquilo que nós sabemos, do nosso jeito, sem química, que orienta muito essa sem química, aqueles venenos que o pessoal bota na terra, nós não usamos não, vamos usar aquilo que é nosso, do nosso jeito e mostrar que é melhor para ver onde está mais gostoso”. Então são essas coisas que eu deixo aqui para a turma, são mensagens, eu não quero perder nada. Um dia tu vai conhecer lá ao vivo. Nós temos um grupo de jovens comunicadores, que já conversei muito sobre o negócio das entrevistas, entrevistar as idosas, os idosos, como é que começou a nossa cidade? Quando foi que mudou as nossas casas para alvenaria? Por que está acontecendo isso? Entendeu? Então tudo nós temos que fazer aquilo que é nosso. A nossa notícia espalhada pelo mundo para o outro ouvir, para o outro entender como é cada local e cada região, por estado. Assim, Tiago.
P/1 - Claro! Um dia quero sim conhecer a comunidade. E vou estar em Brasília, no Acampamento Terra Livre, se o senhor tiver por aí ainda a gente vai se conhecer. Então a gente vai se conhecer. Parente, eu fiz aqui várias perguntas, segui aqui um roteiro, como a gente costuma fazer, mas talvez eu não tenha feito uma pergunta que o senhor gostaria de responder, talvez alguma coisa que eu deixei passar, sei que tem muitas, muitas histórias. Mas para essa entrevista que vai ficar registrada, o senhor gostaria de acrescentar alguma coisa que é importante também deixar?
R - Sim! Sim, Tiago, olha, fazendo toda a nossa entrevista de hoje, o que eu mais deixaria aqui para todos os indígenas que tiverem me ouvindo, vai ver a matéria, que não deixa o costume, a cultura, as pinturas, tudo aquilo que é nosso, que passe para os filhos, passe para os netos. E não deixe de usar, principalmente a nossa língua materna, todos têm que aprender a língua materna, ensinar a escrever na nossa língua, para o nosso povo, porque um dia ela vai servir. Como eu estava dizendo antes _________ escreve a história dele, porque não nós na nossa língua. Para um dia, não sabe quando, ter estado só indígena. E vamos chegar lá, eu não sei se eu vou ver, mas vocês vão ver, entendeu? São essas coisas que eu peço para todos os povos indígenas do Brasil, para não esquecer aquilo que é nosso. Na hora da luta todo mundo junto, vai ter hora que a gente vai se dividir, quando? Quando discutir uma questão de organizações daquela etnia, discutir lá, elege o prefeito, como é, o presidente, do jeito dele, o outro. Mas vai ter a hora que a gente vai estar junto, por exemplo, nessa APL agora, todo mundo tem que estar junto, falando uma só língua, uma lei serve para todos. E que vai ter momentos que a gente vai estar longe um do outro e vai ter momento que vai estar próximo um do outro, todo mundo falando uma só língua, fazer uma diferença dentro do Brasil, mostrando para o não indígena que nós somos unidos. E estudar mais sem deixar de ser aquilo que a gente é. Isso que eu deixo, Tiago.
P/1 - Muito bem, parente! O senhor já deve ter assistido muitas entrevistas, outras pessoas sendo entrevistadas. E só para a gente finalizar, a pergunta que eu faço aqui no final, é: Como foi contar a história do senhor hoje?
R - Foi bem! Foi bem ótima! Eu tô alegre, por isso. Eu tô alegre, por isso. E é uma entrevista… de vez em quando eu sou entrevistado, eu sou convidado na universidade para contar um pouco da história, então para mim foi ótimo. E espero mais entrevistas, na hora que precisar nós estamos aí pronto.
P/1 - Então tá, tá certo! Eu agradeço, foi uma entrevista maravilhosa, que vai ficar no acervo do Museu da Pessoa, junto com ________ hoje essa entrevista foi a de número trinta, então nós começamos entrevistando muitas pessoas durante ___________ desde o final do ano passado até agora. E o senhor fechou agora esse projeto com chave de ouro. E já agradecendo o senhor pela disponibilidade de ter vindo aqui. E vai ser um material muito rico de todos esses parentes que contaram suas histórias.
[Fim da Entrevista]
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