Projeto Kom Biblioteca
Depoimento de Tula Pilar Ferreira
Entrevistado por José Santos e Jonas Worcman
São Paulo, 30/04/2015
Realização Museu da Pessoa
KOM_HV007_Tula Pilar Ferreira
Transcrito por Karina Medici Barrella
P/1 – Bom dia, Tula.
R – Bom dia!
P/1 – Pilar, bom dia, Pilar. Queria começar a entrevista você falando o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Tula Pilar Ferreira. Nasci em Leopoldina, Minas Gerais.
P/1 – E qual o nome dos seus pais e que atividade que eles fazem ou faziam?
R – Ah, meu pai chamava José Ferreira, eu nunca conheci meu pai, não. Eu sei que ele chamava José Ferreira, sei que ele parecia com o Milton Nascimento e trabalhava de lavrador, é isso, na roça. Trabalhava na roça. E a minha mãe, Antônia de Souza Ferreira, era cozinheira desde os sete anos de idade, ela era uma senhora cozinheira, e lá em Minas, em BH as pessoas buscam ela na porta: “Dona Antônia, pelo amor de Deus! Vai ter uma festa assim, assado, com tantas pessoas e é a senhora que vai me salvar”. E a minha mãe ia e fazia a comida pra quantas pessoas fosse preciso ali. Aí a minha mãe falava: “Então a senhora me compra isso, aquilo, o que a senhora quer que faz?” “Eu quero tal prato”, e aí ela já ajeitava tudo. Sempre sozinha, ela gostava de trabalhar sozinha. Até que eu comecei a ir trabalhar com ela nos idos dos meus sete anos, como ela começou com sete, eu também comecei com sete, a trabalhar junto e ajudar ela na cozinha. Eu lavava as panelas, limpava o chão. Eu lembro que ela era gordinha e eu subia para limpar algumas coisas em cima, aquela coisa do fogão que fica engordurado, os vidros, onde tinha que subir eu subia na escadinha pra limpar pra ela. E isso a gente ficou muitos anos juntas, muito junto da minha mãe, eu fiquei por muitos anos porque eu fiquei ajudando ela durante muito tempo nas cozinhas.
P/1 – E Pilar, você tem irmãos?
R – Somos sete mulheres, irmãs.
P/1 – Ah, é?
R – É.
P/1 – Casa das sete mulheres?
R – É. Uma é de criação, que é a Neide Aparecida, a mais velha de todas. Minha mãe não podia ter filhos e ela adotou a Neide. Por isso meu nome é Tula Pilar, o Pilar ela fez uma promessa pra Nossa Senhora dos Pilares (fala imitando carioca), como ela falava, que ela era carioca. E ela fez uma promessa que desse tantos filhos, fez uma promessa pra Santa Rita, que minha irmã chama Rita de Cássia, Santa Rita de Cássia, e por este filho que ela queria ter. Aí ela começou a ter um monte de filho e tem sete agora.
P/1 – E todo mundo nasceu em Leopoldina?
R – Não, não, não. Eu tenho uma irmã que nasceu em Petrópolis (fala como carioca), que é a minha irmã mais nova. Eu falo assim porque eu fico brincando porque minha mãe falava: “Ai, Petrópolisss”, às vezes eu puxo um carioquinha pela convivência com ela. Então, a minha irmã Núbia Maria nasceu em Petrópolis, eu nasci em Leopoldina e a Rita de Cássia, que é a minha irmã mais velha do que eu também, deve ter nascido em Leopoldina também. A Neide. Já as minhas três irmãs mais novas nasceram em BH, que aí eu já lembro delas, que é a Nádia, a Joice e a Shirlei, essas três nasceram em Belo Horizonte. Eu lembro dos pai delas também.
P/1 – Então olha só, você viveu pouco tempo em Leopoldina?
R – Sim, bem dizendo assim eu fui pra Belo Horizonte com dois anos de idade e nunca mais. A minha mãe falava: “A gente teve que vir”, porque ela se separou do marido, aconteceram umas coisas e ela foi procurar os parentes em Belo Horizonte. E aí eu fui com dois anos e nunca mais eu voltei.
P/1 – Então a sua vida toda, infância, adolescência, foi toda em Belo Horizonte?
R – Em Belo Horizonte. Quando eu estava com uns 19 anos eu vim pra cá, mais ou menos, 18, 19. Primeiro eu fui pro Rio de Janeiro, trabalhei como babá lá um ano, no Rio, quando a Samanta tinha uns quatro anos porque eu olhava uma menininha no Rio e tinha essa conexão com a Samanta, eu falava: “Vou deixar minha filha pra olhar a filha dos outros”, mas era a nossa condição, depois eu vim pra cá.
P/1 – Então vamos falar um pouco da sua infância em Belo Horizonte. Que bairro que vocês moravam na sua infância?
R – Aí, a gente morou em tanto lugar, meu Deus do céu! A gente já morou em Goiás, já moramos nesse Cataguases, minha mãe falava muito de Cataguases (imitando sotaque carioca). Eu achava engraçado, Cataguases, que nome estranho. Depois a gente morou um tempinho em Goiás porque ela arrumava os empregos como cozinheira, então determinado restaurante era em outra cidade. E depois que ela fixou em Belo Horizonte na casa de uma irmã, que ela foi morar de favor na casa da minha tia Rosa.
P/1 – Que era onde, você lembra?
R – Era num bairro em Belo Horizonte, agora eu não vou lembrar o nome desse bairro.
P/1 – Mas em que lugar de Belo Horizonte você tem mais lembrança de infância?
R – De infância? Ah, São Benedito, o bairro de São Benedito, que é próximo à lagoa do Jockey Clube de Minas Gerais. Ali a gente brincou muito, naquela lagoa, aprendi a nadar na lagoa do Jockey. Era uma lagoa perigosíssima, mas a gente era criança, criança não tem juízo, né? E minha mãe batia na gente, mas a gente vivia fugindo, puro mato, era um mato enorme, e a gente gostava de ir praquela mata, ia caçar as coisas, catar coquinho. Tinha uma época que a gente catava lenha com a minha tia, porque a minha tia, a minha segunda mãe é a minha tia Otília, ela catava lenha com a gente no mato e tinha umas bicas também que a gente ia lavar roupa com ela na bica. Então eu lembro muito disso, a gente brincando na beira enquanto ela lavava roupa, a gente escorregava nas pedras, e mergulhava naquela aguinha, ajudava ela a ensaboar e a gente gostava daquela vida. E dessa coisa de catar lenha também porque cada uma de nós levava um feixe na cabeça. E eu lembro que eu era maiorzinha e eu queria levar um feixe muito grande, minha tia falava: “Menina, é muito pesado”, mas eu queria levar. No meio do caminho o negócio caía, as lenhas iam caindo e ela me batia: “Eu falei pra você que você não dá conta”. E ela arrumava, amarrava e tinha o negócio da rudia, né? Eu lembro muito dessa rudia, dessa coisa. E hoje que eu estou estudando as coisas, as histórias das lavadeiras, tem uma poesia de Cora Coralina que me remete muito a isso, que ela falava: As Lavadeiras do Rio Vermelho.
P/1 – E como é, você lembra um pedacinho?
R – “Ah, saudades da lavadeira do Rio Vermelho/ as mulheres da minha terra/ água, espuma e sabão, filharada e sabão/ espumas de sabão”, alguma coisa assim. E é muito linda a poesia, é bem longa, mas de vez em quando eu declamo ela no sarau com uma propriedade e as pessoas até ficam emocionadas, porque me lembra essa época.
P/1 – Lembra da sua vida.
R – É.
P/1 – E você com tantas irmãs, de que vocês brincavam?
R – Ah, a gente brincava demais! De muita coisa! Rouba-bandeira eu lembro, eu adorava brincar de rouba-bandeira. A gente brincava muito de pula corda, tem uma poesia que eu estou colocando isso hoje. A gente brincava muito nas cachoeiras, lagoas, onde tinha água a gente estava. E a gente não tinha medo de afogar, a gente pulava lá de cima, das pedras, mergulhava. A gente brincava de pipa, a gente brincava muito. Tinha uma brincadeira que todo mundo dava a mão assim: (canta) “Olha a corrente que mata a gente; quem tem medo sai da frente”. Eu ensinei isso pras minhas crianças, até hoje eu vou na rua brincando. Elas: “Mãe, você está louca! Vão pensar que você está louca”. Eu falo: “Vai Dandara, dá a mão aí”. Quando a gente está voltando de madrugada do sarau, está de madrugada, ninguém está vendo. E a gente sai andando, pulando e cantando. Então a gente brincava muito de amarelinha, que era com pedacinho de telha, caquinho de tijolo, era muito lindo, muito gosto. Na rua. Aquela criançada brincando na rua, isso está muito próximo de mim até hoje, às vezes eu escuto o barulho da criançada, como se eu estivesse ali. E eu acho que eu passei muito isso pros meus filhos, os meus filhos são muito felizes. E a gente brincava de contar história, brincava de ser cantora.
P/1 – Ah, é?
R – É! E a gente cantava música de muitas cantores no rádio, naquela época o rádio era muito gostoso. E a minha tinha um radião, tenho até hoje o rádio dela lá em casa. Aqueles rádios antigos? E ela falava: “Olha, esse é o Lupicínio Rodrigues”. Aí tinha um que ela falava: “Evaldo Braga, adoro Evaldo Braga!”
P/1 – Evaldo Braga, “Sorria, meu bem”.
R – É!!! E a gente ficava ouvindo aquilo e a gente cantava depois brincando: “Faz de conta que a gente é o rádio da tia”. E a gente ficava brincando de cantar, fazia um microfone de cabo de vassoura (risos). Era muito gostoso. E a gente brincava muito mesmo, eu e as minhas irmãs, então acho que das mazelas que a gente vivia, porque teve um lugar que a gente morou também muito feio, que eu lembro muito desse lugar, que é a Favela Alto do Minério. Hoje eu estou trabalhando a Carolina Maria de Jesus e em comparação a história dela com a minha. E ela na Favela do Canindé, aquela miséria, aquela fome, e eu lá na Favela Alto do Minério, eu chego a comparar essas duas favelas e essas duas situações. Só que eu era criança ainda, mas é muito forte aquela coisa da fome, esgoto.
P/1 – Conta como era essa Favela Alto do Minério.
R – Ah, era muito feia, muito feia, muito perigosa, muito miserável. Tanto é que dizem que hoje não existe mais.
P/1 – É num morro?
R – É num morro lá no Alto do Minério. Alto do Minério porque em volta eles tiravam minérios dali. Tirava argila. Eu lembro que passava um monte de caminhão ali, a gente criança ficava olhando, com argila, pedras e tinha umas outras coisas que eles arrancavam dali, daquele solo. Por isso a Favela do Alto do Minério. E as pessoas foram se instalando, acho que chegava, não tinha casa: “Ah, tem um terreninho ali, um barraquinho”. Aí fazia um barraquinho e era barraco mesmo. E esse lugar foi muito forte.
P/1 – E como era esse barraco que vocês moravam? Tinha quantos cômodos?
R – Eu lembro que era um barraco grande, era cheio de cômodos, porque o homem volta e meia alugava parede e meia, sabe? Dividia um quartinho, alugava. E como a minha mãe, aí eu lembro que a minha mãe arrumou um marido, que é o pai da minha irmã mais nova. Nessa época ela resolveu pegar o barraco todo, então teve uma época que nós ficamos morando nesse barraco todo, devia ter uns quatro cômodos. E eu lembro que ela ficava num quartinho com esse homem e tinha um outro quarto que não podia entrar ali, fechava, eu lembro de uma porta fechada, eu acho que aí já era uma parede e meia. E tinha um lugar que a sala, eu lembro que a gente dormia no chão. Nós não tínhamos cama, não tínhamos colchão. E a minha tia forrava as roupas, de noite forrava as roupas, fazia aqueles retalhos que hoje é chique, tem o maior valor e eu não aprendi a fazer esse trem, meu Deus. Fuxico, aquelas coisas de fuxico assim, de retalho, a minha tia forrava aquilo e em cima forrava as roupas. E a gente dormia. E tinha uma irmã minha que dormia no caixote. Era um caixotão assim de fruta e minha mãe fez um, um senhor lá fez um berço pra ela, ela ficou muitos anos dormindo – que é a minha irmã Joice. Até hoje a gente fica tirando sarro dela: “Você dormia no caixote!” E ela não gosta muito disso não (risos). E aí tinha esse caixote que a minha irmãzinha ficava num cantinho e nós tudo, pequenininhas, ali em volta da minha tia e da minha mãe. Mas como ela arrumou um homem ela dormia com o homem lá. Então devia ter uns três cômodos, dois cômodos, tirando a cozinha. E volta e meia voltava para esse mesmo dois, que era o quarto que a minha mãe ficava com o homem e a sala. Eu lembro muito disso. Lembro da televisãozona velha, televisão grande, preto e branco, e tinha uma tela colorida que era caríssima aquela tela, mas a minha mãe se esforçou, comprou a tela, televisão está colorida, mas a tela era colorida!
P/1 – Ah, a televisão era preto e branco, mas era uma...
R – Uma tela de plástico.
P/1 – Uma tela de plástico que você colocava e ficava umas cores assim.
R – É!!! Eu lembro disso nitidamente. E a gente: “Ai, vamos assistir de cor!”, e a minha tia falava (fala imitando tia): “Quietas, meninas! Estou assistindo a televisão colorida. Está colorido, está bonito, menina!” Porque a minha tia conversa meio assim, eu imito minha tia até hoje (risos). O povo fala: “Não existe essa sua tia” “Existe, vai lá e Minas que você conhece ela”.
P/1 – Como é que chama essa tia?
R – Otília.
P/1- Ah, Otília, que é Tila o apelido.
R – É, a gente chama ela de Tila. E a gente lavava a roupa com ela na bacia também, lembro nesse barraco um dia a minha mãe ficou brava com a gente, bateu na gente que a gente aprontou muito, a gente aprontava muito, né? Aí a minha mãe tinha uma bacia de pneu, que os caras faziam pra minha tia, de pneu de carreta, uma baciona enorme! E quanto mais roupa você colocava dentro daquela bacia, mais roupa cabia. E ela botava, porque a minha tia tinha uma fissura pra lavar roupa, ela gastava todo o sabão, tinha o sabão em pó e tinha o sabão de barra, ela gastava tudo e a minha mãe brigava com ela. Então a minha mãe muito brava mandou a gente lavar aquela bacia de roupa que quanto mais a gente tirava roupa mais roupa tinha. Porque como a bacia era assim, pneu fazia pra dentro, então as roupas enfiavam ali dentro. E aí estava muito cheio de roupa, (fala com voz chorosa): “A gente não vai brincar hoje porque não acaba essas roupas”. E nós esfregando. E a gente, assim, três, a Rita, minha irmã mais velha, eu e a Neide, que era a mais danada de todas, que é essa de criação, era muito danada. E a gente esfregava, falava: “Vocês que pensam que não vou pra rua, eu vou daqui a pouquinho, a hora que a mãe sair”. E daí a gente esfregando ali: “Eu vou fugir”. E ela fugia mesmo, essa minha irmã. E a gente esfregando roupa e chorando: “Eu quero brincar, mas não vai dar pra brincar” “Ajuda, então você faz tal coisa que eu faço tal coisa”. E a gente entrou num acordo: “Então você torce, aí eu esfrego, esfrego as peças menores” “Esfrego as coloridas e você esfrega as brancas, que as brancas vão ficar para amanhã, tem que pôr de molho”. A gente tentou fazer tudo, mas quanto mais roupa a gente esfregava mais roupa tinha. E foi um dia bem, bem difícil pra nós. Mas minha mãe falou: “Tá vendo? Eu não mandei vocês aprontarem, agora vocês vão ficar aí, não podem brincar”. E nisso o dia foi embora, ficou de noite e a gente não pôde brincar, não. Aí tomava banho, depois que a gente lavava roupa a gente tomava banho na bacia também. “Então vamos encher de água!”, aí como era grande: “Ah, esquenta mais água, esquenta mais água!”. Eu lembro que a gente esquentava muita água, enchia e cabia três de nós assim. Aí a gente tomava banho e brincava, deitava assim e ficava dentro daquele vão, era muito gostoso. E o fundo desse negócio era de madeira, era uma tabuona grade, colada assim. Não sei como eles faziam aquilo, sei que vivia mexendo minha tia estava atrás dos caras lá. “Ah, vou pedir ao seu Fulano pra fazer uma bacia pra mim que essa já está ficando ruim”, e o cara arrumava outra bacia pra ela. Não sei se a minha mãe pagava por essa bacia, mas eu lembro muito disso. Foi uma fase muito boa da nossa infância, essa bacia. Quando o sol estava muito quente a gente botava ela lá porque nós não tinha quintal, já saía do barraco já saía na rua. Então quando o sol estava muito quente a gente botava ali na porta da casa essa bacia, enchia de água pra brincar no sol, tomar banho. Mas de roupa mesmo, porque nós estávamos na rua. E lembro que a casa atrás da gente, porque esse barraco tinha porta pra tudo quanto era lado, tinha uma porta daqui, tinha uma porta pra lá que se quiser sair. E nessa porta assim, onde ficava a televisão, tinha uma janelinha, a portinha era sempre fechada porque era o quintal do outro, e aí tinha uma cerca e morava umas meninas gêmeas. Umas meninas gêmeas, eu lembro dessas meninas porque elas eram branquinhas, com os cabelão assim. Elas viviam sujas, com o nariz escorrendo assim e a gente era sempre limpinho, porque tem muito isso lá em Minas: “Ah, vocês são pretas, mas vocês são limpinhas, né? Essas filhas da dona Antônia são sempre limpinhas”. Minha mãe: “Minhas meninas são limpas mesmo”, com aquele orgulho dela, né? Tanto é que a gente foi parar nas casas das patroas por causa disso, por a gente sempre limpinha, educadinha, cada patroa pediu: “Ah, dona Antônia, eu fico com a Rita e ajudo a pagar a roupa e dou escola”. E essas mulheres eram professoras, essas duas patroas que adotou, não adotou, falavam que nós era da família, mas é mentira, a gente trabalhava mesmo que nem burro de carga. E aí uma levou a Rita, a outra me levou. Mas quando a gente via, voltando nas meninas suja, e elas acordavam de manhã, ficava aquela marca de...
P/1 – Remela.
R – Remela, aquela coisa. E a gente ficava nervosa: “Ah, deixa a gente pentear seu cabelo?”, porque elas não penteavam o cabelo, elas tinham um cheiro de xixi, elas eram muito fedidinhas. E aí a gente falou: “Vamos pentear o cabelo”, aí a gente penteava o cabelo delas, amarrava. “Ai, rasga um pano!”, aí rasgava um pano, amarrava aqueles cabelão delas, lavava o rosto delas. “Agora lava o rosto. Agora vocês vão lá e trocam de roupa, põem uma roupa que não está cheirando xixi” “A gente não tem roupa limpa”, aí nós ia lá, pegava roupa nossa e vestia nelas, porque nós tinha muita roupa, a minha mãe ganhava muita coisa. E aí dava. “Agora vamos brincar”, aí a gente ia pra rua brincar. Aí começava com essa (cantando): “A corrente que mata a gente, quem tem medo sai da frente”. E teve um dia que a gente combinou assim, fazer a fechar a rua toda. Era uma rua longa, porque era tudo desmedido, nada tinha medida ali. E todo mundo: “Vamos até fechar! Quando vier carro a gente solta”. E todo mundo deu a mão e a gente fez uma fila enorme de crianças assim e fechou. E foi até lá embaixo, ia até lá embaixo e voltava: “A corrente que mata a gente...”. E era muito gostoso. E essas meninas gostavam muito de brincar com a gente. E eu lembro quando a minha irmã mais nova nasceu, a Nádia, elas gostavam muito de ficar com a Nádia no colo, só que aquele cheiro delas passava pra minha irmãozinha (risos). Quando a minha mãe chegava, minha mãe ia beijar todo mundo e a gente tinha que beijar a mão da minha mãe. “Bença mãe, está boa? Como foi o dia da senhora?” “Ai minhas filhas, como é que vocês estão?”. E aí a minha mãe pegava minha irmãzinha: (fala berrando) “Mas Tila, essa menina está com um cheiro horrível, meu Deus do céu! Dá um banho nessa criança” (fala imitando a tia) “Brincou com aquelas meninas catarrentas, eu já falei para não brincar com aquelas meninas” (risos), minha tia falando. Aí ia dar banho na minha irmãzinha. E minha mãe falava: “Vocês estão limpinha” “Não, mãe, mas a gente deu banho nelas”, nas meninas. “Ah, eu não quero que vocês brinquem com essas crianças, não. Ah, mas vai fazer o quê. Ô meu Deus, tenho culpa se a mãe delas não dá banho nelas?”. E ficou muitos anos a gente brincando com essas meninas.
P/1 – Pilar, então você falou um pouco da brincadeira, mas você disse que com sete anos você já estava trabalhando.
R – Já. Porque era assim: essa minha irmã mais doida, ela era mais velha do que nós um pouquinho, então a minha mãe pôs ela primeiro nas casas.
P/1 – A Neide?
R – A Neide. Como ela era muito danada, a minha mãe começou a levar ela, e ela começou a ficar muito revoltada. Então a minha mãe começou a levar a gente também, só que virava e mexia a gente estava em casa. Então a gente ficava com essa patroa a semana toda e no final de semana a minha mãe pegava a gente. Só que nós tinha uma coisa que a gente transitava, eu lembro quando eu tinha oito anos, que eu fixei mesmo depois dos dez anos, numa casa sem a minha mãe, ficou eu e a Rita.
P/1 – Vocês moravam lá, dormiam lá?
R – Dormia lá. É, a partir dos dez anos: “Agora vocês estão grandinhas, vocês já podem ficar nas casas”. E aí a gente ia a cada 15 dias pra casa, assim. Mas dos sete até os nove, assim, a gente estava sempre na nossa casa, porque eu lembro que eu ficava pensando: “Nossa, tão bonito tudo aqui na casa da dona Fulana”, mas eu queria ficar na nossa casinha. “Em casa a gente pode brincar, pode fazer isso, pode fazer aquilo, aqui a gente não pode fazer nada”. Não podia fazer barulho, não podia falar alto, não podia não sei o quê.
P/1 – Essa patroa que você foi lá com dez anos era em que lugar de Belo Horizonte?
R – Era no bairro, eu lembro que na Avenida Olegário Maciel, perto da Rua dos Timbiras, eu lembro muito dessa referência da Rua dos Timbiras.
P/1 – Da Rua dos Timbiras.
R – E aí a gente já morava no Alto Barroca. Que o Alto Barroca, eu lembro que tinha uma sequência, seguia, seguia, seguia a pé e saía no Alto Barroca. Pegava essa Avenida Olegário Maciel, tinha um lugar que passava, era uma praça grande, era algum órgão do governo, não sei se era Assembleia Legislativa, passava por ela, ia andando e chegava na nossa casa a pé. A gente tinha muita mania de andar, até hoje eu tenho essa mania, sai andando. Eu gosto de andar, conhecendo o lugar, acho que é da infância também um pouco isso.
P/1 – E qual era a sua rotina trabalhando lá na patroa? Você era pequena, você não podia fazer tudo.
R – É. Não, mas eu lembro, eu fazia o serviço de limpar, varrer a casa, passar pano, tirar a poeira dos móveis, nessa primeira casa, que a mulher dava escola pra nós. Eu lembro que de manhã a gente ia pra escola. Tanto é que quando a minha mãe na segunda-feira não podia levar a gente, minha mãe botava a gente no ônibus e falava, a gente pequenininha: “Vocês têm que descer na escola João Pinheiro”, eu estudei na escola João Pinheiro. É escola João Pinheiro ou Avenida João Pinheiro, perto da Liberdade, Palácio do Governo.
P/1 – É Avenida João Pinheiro.
R – Então, naquela escola que tinha ali. Eu estudei muitos anos ali naquela escola. De manhã eu ia pra escola e chegava, essa mulher morava no centro, perto ali da João Pinheiro porque eu lembro do apartamento, mas eu não lembro da rua. Tinha uma loja Sears do lado, nessa rua que a gente morava, uma loja chique. De tarde essa patroa sempre levava a gente lá pra comer uma pipoquinha. Eu lembro muito daquele cheiro daquela pipoca frita na manteiga. Ia pra essa loja Sears e todo mundo me olhava, tipo: “A negrinha está na loja”. Tinha uma diferença nos horários pra mim, mas eu estava ali com a minha patroa, com as crianças da minha patroa, então eu era como da família.
P/1 – Você já percebia isso?
R – Já percebia muito. E muitas vezes a vendedora falava, alguém falava: “Mas a negrinha vai entrar?”, minha patroa falava: “Ela está comigo, é da minha família, ela brinca com as minhas meninas na minha casa”. A minha patroa falava, eu lembro muito disso. Sempre era segurança, era alguém perguntando: “Ah, mas a negrinha vai?”, então fica muito forte isso na gente, essa coisa de não poder entrar, de passar pela porta do fundo. “Ai, não pode entrar na piscina”, nos clubes, “ah, não pode não sei o quê”. Hoje eu trabalho muito isso nos saraus e essa coisa do preconceito racial. Porque hoje é camuflado, né? Naquela época esse ódio que tinha dos negros era ao vivo...
P/1 – Escancarado, né?
R – Escancarado. Hoje falam que acabou, mas não acabou, não. Aqui no Brasil não acabou o racismo. Ele é camuflado, ele é falso, mas ele está aí em alta ainda, infelizmente, né? E quando eu conto isso minhas crianças não acreditam. Porque essa patroa também teve uma coisa que chegou uma época na escola, nós começamos a tirar notas muito boas. Eu e a minha irmã Rita, a gente sempre tirava notas muito boas na escola. E a patroa um dia falou pra minha mãe: “Mas como pode, dona Antônia, vocês moram lá naquele buraco, a senhora não tem condição nenhuma, minhas meninas têm tudo aqui do bom e do melhor e as suas filhas tiram nota melhor do que as minhas”. Minha mãe falou: “Mas como? As minhas meninas são inteligentes, a senhora pensa o quê?”, é que eu não quero falar o nome das mulheres, quero esquecer. Aí falou: “A senhora pensa o quê? Minhas crianças são inteligentes”. E a gente sempre tramitava uma com a outra, final de semana a gente lia livros.
P/1 – Então, vamos falar um pouquinho da leitura. Você aprende a ler na escola.
R – Sim, eu fiz até a quinta série com essa patroa, fiquei com ela bastante tempo.
P/1 – E quais os primeiros livros que chegaram no seu colo?
R – Ah, os primeiros livros que eu li, que eu lembro com nitidez... Ah, então, nessa casa que a gente vai, que dos dez anos eu fico lá até os 14, tinha a biblioteca da mulher. E era uma sala assim, enorme, tinha aquela estante enorme cheia de livros, livros, livros. Ali eu aprendi inglês, porque eu tinha uns livrinhos de inglês que eram muito legais, eu ficava lendo e via as imagens, né? Airplane, aí eu gravava. Só que eu não sabia a pronúncia, eu lia tudo errado. Aí horse, e tinha a imagem e eu gravava. E nisso a mulher tinha uma sobrinha americana, me lembro, o nome da moça eu vou falar, Martha, que eu tinha muito carinho por essa Martha, a sobrinha da mulher, porque teve uma outra Martha na minha vida que era empregada dessa primeira casa, quando eu tinha sete anos. E essa Martha, americana, via e falava assim: “Você é muito inteligente. Oh, my God! Você é intelligent!”, aí ela começou. E eu perguntava pra ela: “Como que lê?”, e ela foi me ensinando, que ela via que eu já sabia o livro todo, eu conhecia o livro todo, aí peguei assim e mostrei pra ela, ela ficou passada quando eu sabia do livro. Mas eu lia todo dia, eu ia limpar e ficava lendo. E aí falava: "Mas essa menina demora demais pra limpar, gente, não é possível! Vai lá ver o que essa menina está aprontando!” (risos) e eu estava lendo. Ali eu li todos os negócios do Monteiro Lobato, tinha.
P/1 – É mesmo?
R – As Reinações de Narizinho, não é isso? Eu li tudo isso. Eu li Ali Babá e os 40 anos, Cinderela, todas as princesas que tem aí eu li. Tudo Walt Disney, tinha a coleção Walt Disney inteira, eu lia. Só que eu não sabia, Walt Disney pra mim era o desenho, depois que eu fui saber que era um autor e era uma sequência. Mas eu li tudo isso.
P/1 – E te chamou a atenção no Monteiro Lobato você ver que tinha um personagem negro?
R – Então, que hoje falam que o Monteiro Lobato é racista, tem muito esse discurso. Só que eu vejo assim, tinha a Tia Nastácia, o Tio Barnabé, tinha o Saci-Pererê, que eram negros mesmo, regional, que ele está falando de pessoas que existiam. E a minha mãe, muita gente chamava ela de Tia Nastácia, por causa da relação com a comida, o lenço na cabeça. Muita gente: “Ai, Tia Nastácia!”, as criançadinhas. E a minha mãe fazia um negócio, que ela fazia pastel e aquela massa do pastel que sobrava ela picava assim, fritava e botava açúcar com canela, chamava tiririca. “Dona Antônia, faz tiririca pra gente? Pra gente tomar de lanche”. Porque lá em Minas tem muito essa coisa do lanche da tarde, do café. E aí a minha mãe fazia essa tiririca, aquela vasilhona. “Ai, Tia Nastácia, Tia Nastácia, faz tiririca pra gente!” “Ai, Tia Nastácia, faz pão de queijo”. Minha mãe fazia tudo fresquinho ali, então a gente tomava o café, tudo fresquinho. Eu sempre comilona, aproveitava, que na minha casa não tinha comida, na casa da patroa tinha muito. E eu chegava em casa e ficava contando pras minhas irmãs: “Ai, lá na casa da dona Fulana tem isso de gostoso pra comer”. E as minhas irmãs que ficavam em casa falavam: “Ai, traz pra gente quando você vier!”, e eu sempre dava um jeito de roubar uma comidinha pra levar pras minhas irmãs. Eu tenho muito isso até hoje, eu vou num lugar, eu levo uma coisinha pros meus filhos, porque a minha mãe tinha isso com a gente, sempre levava coisinha pra nós, porque ela era cozinheira, então aí sobras, ou não, que sempre a cozinheira dá um jeito de sobrar bastante mesmo e ela levava pra gente. Então tem essa coisa, essa relação com a Tia Nastácia, essa relação com a comida, de levar pro outro, de deixar pro outro. Nós tínhamos que deixar, comer o nosso e deixar pro irmão, ai da gente se comesse, o couro comia, né? Minha mãe batia (risos), ela batia mesmo: “Ah, você comeu do outro? Por quê? E o outro vai chegar com fome, cansado e tal”. E batia. E aí eu lembro disso nitidamente, dessa coisa, me perdi um pouco.
P/1 – E a sua mãe que era cozinheira, o que ela fazia de bom que vocês gostavam?
R – Tudo. Nossa. Tinha uma época que nós fomos trabalhar numa fazenda, hoje a gente mora lá em Ribeirão das Neves, aí foi a parada final. Rodamos, rodamos, Belo Horizonte inteira, minha mãe resolveu ir pra Ribeirão. Porque a gente começou a crescer e a ter contato com os meninos, e ela foi ficando com medo disso, ela falou: “Esse monte de mulher vai ficar tudo embuchada aqui nessa cidade louca, então vou pra roça”. Aí foi pra Ribeirão das Neves, que é tipo Taboão da Serra aqui, né? Aí foi lá que eu arrumei a barriga, porque aí eu conheci o pai da Samanta (risos), que ele trabalhava na prisão, lá tem uma prisão. E a gente ia pra mata da prisão, olha que doideira! A gente frequentava as cachoeiras, que tinha umas cachoeiras lá dentro. O guarda deixava a gente passar, a gente passava e ia lá pra dentro das matas. Brincava na cachoeira, ia pegar goiaba. Então, você perguntou o que ela fazia que a gente gostava, nessa região tinha uma fazenda também que a minha mãe trabalhou muito e ela fazia muita geleia de goiaba, goiabada, ela fazia queijo nessa fazia, fazia geleia de amora, que é de temporada, muito cheia. E ela fazia uns doces deliciosos, ai, me dá água na boca até, de manga, compota de manga, pêssego que tinha lá também. Tinha uma outra coisa que ela fazia. Requeijão. Então essa época a gente comia bem, muito bem, eu era comilona, então eu era gordinha, né, porque além de eu ajudar ela, depois ainda levava pra casa. E quando chegava em casa aquele queijo mineiro mesmo, que é o queijo curado. Ela fazia, tinha umas forminhas de madeira, eu lembro das forminhas mas eu devia ter aprendido com ela, né? Mas não aprendi, não via o processo, não via como é que era, porque ela ficava lá pra trás com o caseiro e quando ela voltava: “Os queijos estão na forma, depois é só desinformar”. E depois eu via ela embalando os queijos, usando o queijo, mas eu não via o processo de fazer.
P/1 – Mas você aprendeu a cozinhar com ela?
R – Aprendemos. Todas nós cozinhamos muito bem, só tem uma irmã minha que é meio preguiçozinha, que é a Joice, que a gente chama ela de Joi, ela é a única que não cozinha muito, não gosta mesmo. Não gosta de cozinhar, não gosta de criança, não gosta de nada.
P/1 – Você foi morar em Ribeirão, conheceu esse seu namorado.
R – Namorado? É.
P/1 – Ou casou com ele?
R – Não, é uns peguinhas mesmo.
P/1 – Uns peguinhas e aí você engravidou.
R – Engravidei. Foi uma paulada na cabeça, uma pancada feia.
P/1 – Você tinha quantos anos?
R – Ah, eu tinha 15 pra 16. E a minha mãe: “Ahh meu Deus, mas agora? Você vai abrir a porta pra todas, vai encher a casa de criançada, não sei o quê”, aquela coisa. Ah, minha nossa senhora, foi aquela loucura! Foi uma doideira, o moço que contou pra minha mãe, eu lembro era um pai de santo lá, que nós ia no centro dele e ele que contou pra minha mãe porque eu não tinha coragem. Ele que desconfiou e ele contou pra minha mãe porque eu não tinha coragem. E ao mesmo tempo que ele contou ele aconselhou pra minha mãe não fazer nada comigo, não sei o quê. Naquele tempo batia, espancava gente. Minha mãe: “Não, não vou fazer nada, não”.
P/1 – Mas você não casou.
R – Não, nunca casei na minha vida.
P/1 – Você resolveu ter a filha sozinha, foi isso?
R – A Samanta na época? Na época eu tive apoio da minha mãe, da minha tia.
P/1 – Não, estou dizendo sozinha sem o pai.
R – Minha mãe falou: “Como ele não gosta de você”, porque minha mãe chamou ele para uma conversa, ele não foi, se borrou todo e não foi. Minha mãe falou: “Ele não gosta de você, não te respeita, então não vou obrigar você a casar com ele. Nós vamos te ajudar, vamos cuidar de você e dessa criança que está vindo aí, uma criança segurando outra criança, mas você não vai me arrumar mais barriga, pelo amor Deus, hein menina? Tula Pilar!”, que quando ela ficava brava falava: “Tula Pilar!”, e quando ela falava Tula Pilar eu gelava, porque eu sabia que o couro ia comer. E eu apanhava muito porque eu era muito danada. A minha filha agora, Dandara, a minha filha mais nova, tem dia que eu não aguento ela, eu penso: “Meus filhos são tão calminhos, tão bonzinhos”. Quando eu vi a Dandara agora que ela está com nove anos eu estou meio borrando. Então quer dizer, a gente tem essa coisa de ser a mulher levada, a danada da casa. E eu sempre fui a líder das minhas irmãs: “Vamos fazer tal coisa, vamos fazer tal coisa”. E quando a gente foi namorar a primeira vez, até eu conto isso pras minhas amigas e elas ficam embasbacadas. Eu falei: “Eu quero ficar com algum homem, vamos ficar com um homem? Ah, eu não quero mais ser criança, eu quero ficar com um homem”. E as minhas irmãs: “Mas como assim?” Porque eu e mais a minha irmã, a gente lia muito e a gente lia uma enciclopédia que chamava Amar, que era da Editora Abril, um negócio assim, e a gente lia aquilo, lia aquilo e ela trazia muito essa abordagem sobre o corpo, o sexo, a primeira vez, tãnãnã, camisinha, tudo, e a gente ficava fascinada. Eu falei: “Gente, eu quero transar para ver como é que é!” Não é transar, a gente falava dar: “Eu quero dar, eu quero dar, eu quero dar! E vamos dar”. E as minhas irmãs: “Não, mas a gente é moça, se a gente ficar barriguda” “Ah, a gente faz de um jeito que não fica barriguda, tem jeito”. A gente sabia porque a gente lia. “E se a gente ficar barriguda a gente toma um chazinho das velhinhas”. E era toda uma trama. Eu sei que um dia nós estava no Alto Barroca ainda, voltando, a gente ainda não tinha ido pra Neves, aí a gente combinou. Aí tinha uns pedreiros, perto da nossa casa tinha uma obra, na Rua Viamão, o nome da rua, do lado do Hospital Santa Terezinha, ó como eu lembro. A gente morava ali, só que a gente era os únicos pretos que moravam ali, então ficava essa coisa: “Ah, mas essa mulher com um monte de filho”. Tanto é que correram com a gente dali também, porque hoje me parece que lá é uma empresa de carro, não tem mais casa, eram umas casas bem feias, já eram velhas naquela época, então tinha que desmanchar porque já estava caindo as casas quando a gente morava lá. Enfim, aí nessa rua tinha uma obra lá em cima, assim, a gente subia até o final da rua, andando, a gente inventava moda, aí como diz a minha mãe: “Vocês ficam inventando moda”, aí conhecendo essa peãozada que estava na obra. E tinha um peão lá que eu falei: “Nossa, é aquele, vou querer aquele homem”. E a minha irmã gostou de um outro que era um índio, um tal de um índio. Aí minha irmã se apaixonou por esse índio, esse índio pela minha irmã, porque a minha irmã era bonitinha também, porque depois ele não quis mais nada, só queria mesmo, como diz, desvirginar a gente. E aí eu sei que esse moço a gente fez um acordo, aí ele falou: “Moça, mas garotinha, você é louca mesmo”. Eu falei: “Não sou louca, eu quero ser mulher. Eu quero você pra ser mulher”. E ele ficou impactado assim. A gente combinou tudo, eu falei pras meninas: “Então, eu vou ser a primeira, vou lá, vou dar e vou contar pra vocês como é que é” (risos). E as minhas irmãs falando: “O que é isso”, e assim foi.
P/1 – Então isso foi a sua primeira vez e depois você foi pra Neves.
R – Isso.
P/1 – Aí em Neves você teve a Samanta, sua filha, não é isso?
R – Isso. Aí eu já era grandinha, mais moçona e tive a Samanta.
P/1 – Tinha 15 anos, é isso?
R – De 15 pra 16 ou 17, já estava.
P/1 – E aí você então ficou com ela lá, criando ela.
R – É, na verdade minha mãe que criava. Porque a minha mãe, ela chamava a minha mãe de mãe, ela não me chamava de mãe, ela me chamava de Tula, junto com as minhas irmãs. Ela via minhas irmãs me chamar de Tula. A minha mãe para ela era avó dela.
P/1 – E você voltou a trabalhar?
R – Vou sempre, sempre trabalhar. Nisso eu já era diarista, eu já não era mais de ficar na casa dormindo, porque eu queria dormir em casa pra cuidar da minha filha. De noite eu cuidava dela, chegava, tomava banho, arrumava o cabelinho dela. Muitas vezes a minha tia trançava, muitas vezes a minha tia tinha os afazeres da casa, não dava e eu mesma trançava. E aí eu já era diarista, trabalhava como diarista. E como era boa de serviço, como diz o povo, era uma disputa de patroas me querendo, eu tinha muitas patroas porque eu era boa de limpeza. Eu era lerda, porque eu ficava lendo as coisas.
P/1 – Tinha livro você dava uma olhadinha.
R – Dava uma olhadinha. Fotos, eu gostava muito de ver fotos, aí achava aqueles álbuns das mulheres, das casas, adorava aquilo, aí ficava vendo as fotos: “Olha como a dona Fulana era, nossa! Aí, hoje ela está mais velha, hoje ela está bonitona ainda”. E ficava olhando as fotos e analisando a vida dos outros. Mas a minha leitura tem muito dessa coisa da estante, principalmente nessa casa que eu fiquei, que essa moça que me ensinou inglês também.
P/1 – Lá da Rua dos Timbiras.
R – Da Rua dos Timbiras, no centro da cidade de Belo Horizonte. E aí eu trabalhava, então, nessa casa eu não era diarista, eu morava lá, eu e a minha irmã Rita, a gente morava lá e a velhinha era pão dura. E ela não dava comida pra gente. A minha irmã fazia a comida e tinha que por lá, tinha um móvel comprido, a minha irmã botava a comida ali em cima, que chama bufê, tenho trauma desse bufê aí! A minha irmã botava em cima, ela ia lá, via, analisava tudo e puf, dentro do armário. E trancava com a chave. E eu lembro que uma vez nós achamos a chave, eu e a minha irmã, nós roubamos, a gente descobriu onde ela botava a chavinha, a gente roubava tanta comida, tanto que chegou uma hora que ela percebeu.
P/1 – Mas vocês faziam a comida e não podiam comer da comida?
R – Não podia comer. E ela botava outra comida pra gente comer. A gente passava fome na casa da mulher. Ela botava outra comida pra gente comer, uma comida ruim. E ela tinha um quartinho assim, a casa dela era muito grande, tinha um quintalzão e lá no fundo tinha uns quartinhos, que era um quarto a gente dormia, um outro quarto tinha uma velhota, que a minha mãe falava, uma velhota, que estava com ela há muitos anos, meio doida a velhinha, dormia num outro quartinho. Tinha um outro quartinho que tinha a Alzira, uma negona doida, nós pintava e bordava com essa negona, mas ela gostava de nós, era empregada também dessa velha. E no outro quartinho ela tinha um escritório, um tal de escritório. E aí, nesse escritório ela tinha um freezer e ela armazenava comida ali. Quando aquela comida do freezer estava vencida, vencendo, ela botava pra gente comer. Aí um dia a minha mãe foi visitar a gente, chegou lá e a gente estava comendo comida vencida. Minha mãe quase bateu na mulher. “Não, a senhora está dando comida estragada pras minhas crianças” “Não, não estou não, dona Antônia, essa comida está boa”. E lembro quando ela deu um saco de torrada pra minha mãe, eu vejo a torrada assim, a torrada estava com teia já, o pão estava com uma liga assim. E minha mãe falou: “A senhora não está vendo isso aí, ó? Está com bicho já” “Não, a senhora leva pras suas crianças. Eu estou comendo, ó!”, e ela comia assim, na pontinha do beiço, como dizia a minha mãe: “Está bom, eu estou comendo, se estou comendo está bom pras suas crianças comer” “Não, a senhora não vai me dar isso, não”. Aí minha mãe pegou... e a minha irmã mais velha, nós arrumamos tudo na sacola, deixou assim no meio da rua. “Vou deixar isso aqui que nem os ratos querem comer isso”, com aquele ódio. E minha mãe falou assim: “Não minha filha, não fica com esse ódio, não fica assim. Tudo bem, você jogou fora, deixa aí, concordo que isso aí está com teia de aranha. Essas outras comidas, quando chegar lá na favela a gente põe no lixo, mas não guarda esse ódio não. Deixa ela, que Deus vai tomar conta dela”, minha mãe falava isso pra nós. Porque nós era criança, né? Enfim. E aí tinha muita comida. E no dia que nós abrimos o armário, nossa, tinha uns biscoitinhos. A minha irmã fazia aquele quebra-queixo, é um biscoitinho gostoso, eu devia ter aprendido a fazer aquele trem, eu não sei fazer, não. Mas aí a gente viu aquela vasilhona, tinha compota, tudo coisa que minha irmã tinha feito. Às vezes minha mãe ia, ela fazia congelamento, é isso que ela guardava no freezer, quando estava vencendo ela botava pra gente comer. Aí a minha mãe um dia falou não: “Quando ela tirar as coisas vocês não comem”. E minha mãe ia lá e lavava comida pra nós, ela passava no mercado, comprava chocolate, ela tinha essa mania. Quando a gente veio pra São Paulo ela ainda manteve essa mania aqui também. E um dia a velhinha foi lá no quartinho, que ela mancava assim, mancava e a gente ficava imitando ela. E essa minha irmã mais velha imitava ela o dia inteiro. Teve até um dia que ela chegou e eu assim, e a mulher atrás dela, e a minha irmã. Aí eu falei: “Ah então, a senhora chegou, né?” (risos). Foi muito engraçado. Aí ela olhou assim, a minha irmã: “Ah não, então, é que de vez em quando a senhora não anda assim, né? Deve doer, né?”, minha irmã falando assim, eu lembro muito disso. E o dia inteiro a minha irmã, e ela chamava a minha irmã de Rita Maria, e andava assim o dia inteiro e a gente ficava tirando sarro.
P/1 – E Pilar, antes da gente passar pra São Paulo, que daqui a pouco então vocês vão mudar pra São Paulo, né? Mas então você foi crescendo, o que você foi lendo? Você descobriu a poesia, então foi em Minas?
R – Foi em Minas. Eu escrevia muita coisa. Nos idos que eu estava ali: “Mas ela está demorando muito pra limpar”, aí iam atrás de mim, foram várias patroas que iam atrás de mim. E eu lembro que tinha uma patroa que rasgava, ela rasgava tudo assim, eu retrato isso também na poesia da Carolina Maria de Jesus, que eu escrevi pra nós duas, né? Ela rasgava assim: “Você está escrevendo?!”, aí ela lia, primeiro ela lia, ela lia. “Mas quem escreveu isso aqui?” “Eu, eu estou escrevendo” “Não, você não tem que escrever, você tem que limpar, você veio aqui pra trabalhar, você não veio aqui pra ficar escrevendo. Você tem que dar graças a Deus que você está numa casa boa, com comida boa, não está naquela favela horrorosa que você mora, e fica escrevendo? Você está gastando o seu tempo na minha casa”, rasgava tudo.
P/1 – Deixa eu entender, você ia limpar, mas você tinha os papéis e você ficava...
R – É, porque eu achava bonito determinada coisa que eu lia ali, me inspirava e eu escrevia o negócio e ia guardando. Eu tinha um caderninho de versos, aí eu escrevia versos, “ninguém está olhando”. Eu não queria atrapalhar, eu queria escrever (risos), mas eu tinha que limpar. Então tinha determinado cômodo que eu ia da mansão lá, limpava e não tinha ninguém, não tinha nada pra limpar, a mulher mandava limpar, mas estava tudo limpo. “Eu enrolo aqui, escrevo um pouquinho e depois eu falo que eu estava limpando”. Aí limpava os banheiros, tudo. E uma vez por semana tinha a faxinona pesada, nos banheiros principalmente, mas nos outros dias não tinha nada para limpar e eu fingia que limpava ali e ficava lendo. E aí eu escrevia e essa patroa rasgava tudo. E falava assim: “Você tem que trabalhar, vou te dar serviço agora!”. Aí tirava aquele monte de prata, e as pratas já estavam limpa. “Você tem que limpar prata. Limpa a prata, limpa os cristais, cristais, eu quero tudo brilhando”. Aí tinha uns lustres: “Agora você vai limpar os lustres” “Mas dona Fulana, eu limpei tudo tal dia” “Não, limpa de novo. Está empoeirado, ó!”, passava o dedo. “Em vez de você fica escrevendo, gastando tempo aí, vá trabalhar”. Aí botava um monte de coisa para eu fazer.
P/1 – E Pilar, quais foram os primeiros poetas que você teve contato de ler?
R – De ler? Então, eu lembro que eu escrevia muito versinho, né? Que eu joguei o caderninho fora, eu tenho uma dó, ô como eu tenho dó que eu joguei aquele caderninho fora. Desde a época que a Samanta nasceu eu tinha um caderninho. E quando ela ganhou as coisinhas de jornal eu tinha tudo anotadinho, dona Fulana deu isso, dona Sicrana deu aquilo. Que o enxoval tudo foi as patroas que deram, né? As patroas da minha mãe, minhas patroas. E aí, depois a gente vai pra casa de uma mulher muito bacana, que é essa mulher que deu essa casa pra minha mãe, onde a minha mãe mora agora. Deu a troco de trabalho, né? E lá também tinha muitos livros. E lá eu lia também coisas boas, tinha uma sala assim. E ali eu lembro que tinha aqueles livros que eu lia muito, era uma coleção pra adolescente. Eu li toda aquela coleção Vagalume.
P/1 – É mesmo?
R – Tudo. Eu lembro até hoje. Um que era lindo, que era na beira do rio São Francisco, que era um velho com umas crianças. Ai gente, até há pouco tempo eu lembrava o título, era muito bonito. Eu li o Assassinato de não sei o quê, que aí já é aqui em São Paulo. O Caso do Escaravelho do Diabo, uma coisa assim. Escaravelho vermelho.
P/1 – É do Cony. É do Carlos Heitor Cony, não é?
R – Agora eu sei que Marcos Rey, que tem a Biblioteca Marcos Rey lá perto de casa, aí lendo a biografia dele o Pedro falou: “Mãe, tal livro é Marcos Rey”.
P/1 – É, o Marcos Rey fez vários dessa Coleção Vagalume.
R – Eu falei: “Gente, eu li esse homem todo na minha infância”, mas não tinha nem noção do tipo de autor. Eu gostava de ler as histórias. Eu lia muito as histórias românticas. E eu lembro que uma vez eu estava lendo um livro, Amante Indócil, e era um livro que tinha uma capa indecente assim, que era a mulher com o pescoço assim e o cara com a boca no pescoço dela. Era muito erótica aquela imagem. Minha mãe me pegou lendo aquilo, minha mãe me deu uns tapas assim: “Você está lendo isso? Isso não é coisa pra criança, isso não é coisa pra sua idade, pelo amor de Deus, joga esse livro no lixo!”, mandou eu jogar o livro fora. E eu fiquei num sentimento, eu chorei tanto. Eu chorei de noite, escondidinha: “Mas a mãe não devia ter jogado fora, o livro é tão bonito”. E eu estava no auge da história, eu falei: “Eu não vou jogar o livro fora, como é que eu vou terminar de saber como é que a mulher...”, era a fazendeira rica com o cara domador de cavalo, assim. Era linda a história, eu falei: “Não vou jogar esse livro fora”, aí escondi o livro muito bem escondido, tempos depois eu terminei de ler. Aí eu tive acho que o primeiro contato forte que eu lembro muito dessa história. E lembro muito também dessas coleções, era outra, famosa também, que era mais adolescente que lia, mulher solteira, é uma coleção famosa, tem até hoje nas bancas, existe isso até hoje. Li mil livros daquela coleção também. E todo mundo falava assim: “Já sei, você é assim, assado, você lê tal coisa”, que era essa coleção. Aí eu falei: “Nossa moça, como é que você sabe?” “Ah, é o seu jeito. Você lê tal coisa”. E nessa coleção que eu lia, que era muito famosa, tinha escritores que iam pra casa nas montanhas pra escrever, a casa de inverno, outros iam pra fazenda não sei onde, então o escritor se retira. Eu falava: “Será que um dia eu vou ser uma grande escritora e vou me retirar pra escrever um livro, vender e ficar rica e famosa?”, porque todos eles são muito ricos, têm fazendas, têm mansões.
P/1 – É, eles vão pra casa do lago escrever, não é?
R – É, vai pra Veneza, vai pra Roma, aquela coisa toda. Eu tenho muito essa coisa na cabeça, mas tenho muito o pé no chão, né?
P/1 – E como é que vocês resolvem mudar pra São Paulo? Foi você sozinha ou veio a família?
R – Ah não, eu vim sozinha. Assim, eu era faxineira, né? Aí eu forrava, tinha que forrar jornal no chão pra limpar aquelas coisas engorduradas lá, porque mineiro adora um bife, né, pelo amor de Deus! Tenho trauma de bife, eu não faço em casa não, por causa daquela gordurada que sobe. E aquilo dava um trabalho, aquele tal de exaustor, tenho um trauma, se botar um negócio daquele na minha casa eu taco fogo. Eu tenho uns traumas, muitos eu já superei, graças a Deus, mas esse aí do exaustor e daquele do azulejo cheio de gordura eu não superei, não. Na minha casa você vai lá e não tem gordura, minha casa é toda pã, que eu não faço muita fritura, não gosto, porque tem que limpar e dava trabalho. Então tinha que forrar o jornal no chão. E eu lia o jornal, muitas coisinhas eu lia. Eu não gosto muito de ler jornal por causa do cheiro, mas eu lia a manchete, gosto de ler a manchete. E às vezes eu li a manchete e o resto da notícia já assim, você acostuma tanto a ler que você já sabe o que está acontecendo, em determinados assuntos, né? Aí quando eu forrei assim, estava bem grande assim o cartaz: “Vá para São Paulo e ganhe tanto”, e era um número estrondoso o salário. “Seu salário será: babá, cozinheiro, arrumadeira, tal”. Eu falei: “Arrumadeira? Que diacho é isso?”, e eu não sabia que eu era arrumadeira, porque lá em Minas não tem essas divisões, pelo menos não tinha, não sei hoje. Eu ficava: “Arrumadeira? Que diacho que é arrumadeira?”, aí comecei a pesquisar o que era arrumadeira, eu falei: “Pra quem é estudado sabe”, aí comecei a perguntar. Aí uma casa que eu fui, que eu trabalhei com uma senhorinha, que eu tenho até um açucareiro que essa mulher me deu até hoje, uma panelinha, tinha uma mulher de São Paulo, uma parente dela lá de São Paulo, ia nessa casa dessa mulher. E essa parenta de São Paulo toda, e ela falava: “Ah, na casa da Fulana tem arrumadeira”. Aí eu fui saber o que era arrumadeira, porque essa mulher tinha arrumadeira, tinha governanta, tinha não sei o quê, tinha babá. Eu falei: “Mas tudo isso numa casa pra trabalhar? Nossa, e aqui a gente faz tudo”, e fiquei com aquela coisa. Ah, e é assim, ela não fala com as empregadas. As empregadas também eram tudo metidinha, assim. Eu: “Mas meu Deus, essas negas tudo pé rapada, tudo nessa metideza, gente?”, porque trabalhava na casa da mulher, então era outro tipo de gente. E aí, ela não fala com as empregadas não, tudo era no interfone, tudo é no bilhetinho. Deixa o bilhete lá e você tem que fazer o que ela quer. Minha mãe: “Mas como assim? Como não fala? Chegue o almoço que ela quer que eu faça” “Não, ela deixa lá escrito, ou então ela vem falar com a senhora de manhã, fala o que ela quer e depois ela vai trabalhar e a senhora não vê ela”. Minha mãe ficou assim, estranha com aquilo. Mais tarde eu conto a outra parte. Aí, enfim, eu descobri o que era arrumadeira, falei: “Gente, mas eu já sou arrumadeira, então vou pra São Paulo como arrumadeira. Ou como babá”. Eu queria ir pra São Paulo, só que eu não queria mais olhar criança, não. Porque aí eu já não mexia mais com criança, eu já era diarista. Porque eu fui babá também, eu fui tudo o que você pensar, nessa vida. E eu não gostava daquelas crianças que eu olhava, eram umas crianças chatas, não comiam, você tinha que ficar contando historinha pro menino comer. Imagina, a gente passa fome na favela e tem que ficar contando historinha... e a comida ia toda pro lixo. E aqueles bifes picadinhos e eu falava: “Meu Deus, lá na favela minhas irmãs com fome, tem que jogar esse prato de comida fora”. Eu tinha dó, tinha vez que eu era comilona e eu guardava para comer escondida, para comer depois. Porque aquela comida a gente não podia comer. E a criança que a gente olhava não comia e tinha que jogar a comida fora. Eu ficava com uma raiva daquelas crianças, uma vontade de, sabe, espremer. Eu falava: “Meu, se Deus vai me castigar que eu quero espremer essas crianças, quero bater nessas crianças”. Aí de noite eu ia rezar, que eu era religiosa, e pedia perdão a Deus: “Deus, me perdoa, que eu queria espremer o menininho, mas ele é tão chorão, Deus, me perdoa”. Eu ia na igreja confessar e falava: “Padre, eu dei um beliscãozinho no menininho”, com aquele remorso (risos). Porque o menino era muito chato! As crianças chatas, chorando, eu tenho trauma até hoje de criança, aquelas bonitinhas, tem umas que eu gosto no meu coração, são umas, é outro esquema, já tem identificação com a gente. Mas essa coisa de ser babá, nossa senhora, pra mim nunca mais. Enfim, e aí, perdi?
P/1 – Aí você vem pra São Paulo.
R – Vim pra São Paulo.
P/1 – Você veio parar onde?
R – Lá no jornal estava escrito, arrumadeira. O que eu faço? Eu fiquei: “Gente, eu vou pra São Paulo”. E aí a gente já tinha um trauma de São Paulo porque ninguém gostava de São Paulo. A gente ouvia falar de São Paulo, Deus me livre, aquele lugar eu não vou nunca. Nunca na minha vida eu vou pra São Paulo. Já tinha que São Paulo era violento, São Paulo tinha muito crime, que não sei o quê, São Paulo é muito frio, São Paulo é muito distante. É muito caro. E a gente tinha aquela coisa, nunca vou pra São Paulo. E a gente já tinha ido pro Rio, no Rio não me dei bem com aquelas mulher lá também, achei as cariocas muito doidas assim. E essa minha patroa era meio louca, sabe? Do Rio. E depois a minha irmã foi pra lá e eu achava o Rio, as mulheres muito livres. Eu era conservadora, sabe, babaca. Hoje eu acho maravilhoso o jeito que elas andam, tudo pelada mesmo e é isso mesmo. E naquele tempo eu achava assim, ficava impactada. Eu ia pros lugares e sempre com aquela coisa da babá, eu usava minha roupa branca, eu era babá. Então qualquer lugar que eu entrava eu era babá, então não tinha muito o que fazer comigo. Diferente de Belo Horizonte que eu entrava normal, com a roupa normal: “Ah, a nega não pode entrar aí”. E lá já não tinha isso, então a nega automaticamente já entrava porque eu estava com a roupa de babá. Enfim. E no Rio, não sei, sei que a aventura lá não foi muito legal.
P/1 – Não deu muito certo.
R – Não deu muito certo, aí voltei.
P/1 – Aí resolveu vir pra São Paulo.
R – É. Aí um ano depois, mais ou menos, eu falei: “Meu, não posso ficar aqui nessa vida”. E em Belo Horizonte a gente sofria muito, trabalhava muito, as mãos sempre calejadas de limpar, limpar e o dinheiro nunca rendia. E tinha um sistema na minha casa muito ruim também, que eu não gostava daquilo. Eu falava: “Mãe, nós nunca vamos ficar bem na vida, eu quero ser bem um dia na vida, ter um dinheirinho sobrando, comprar umas roupas boas, poder arrumar o cabelo, fazer uma unha, nunca fiz unha na minha vida”, sabe aquela coisa? Minha mãe: “Ah menina, para com esses sonhos altos, você sonha alto demais, minha filha! Põe seu pé no chão, menina!”. Eu falei: “Ai mãe, um dia eu quero ser artista, eu vou pra algum lugar, eu vou ser artista, vou ser cantora, eu vou ser qualquer coisa”. Minha mãe: “Ai meu Deus, começou com as doideiras dela”. E todo mundo falava que eu era doida, né? Essa coisa de cantar, de dançar e a gente dançava, dançava nos grupos lá em BH, fazia jazz. Aí eu li e comecei a planejar: “Vou pra São Paulo, cansada de sofrer aqui”. E tinha um lance com o pai da Samanta que eu falei: “Meu, vou embora daqui, nunca mais na minha vida eu vou olhar na sua cara”. Ele falava: “Você vai pra onde?”. Minha mãe: “Minha filha, não desfaz do rapaz, o rapaz é ruim mesmo, mas você fica humilhando o coitado do homem”. Eu falei: “Mãe, mas ele fez tal coisa comigo”. Eu tinha muita raiva dele por ele dar as costas pra mim, ele deu as costas pra mim quando ele me viu barriguda, ele saiu correndo de mim. E eu fiquei com aquele trauma, eu queria ir embora, principalmente por causa dele. O que eu fiz? Eu olhei assim e falei: “Eu vou pra São Paulo”. Aí encasquetei. Virava e mexia eu falava com a minha mãe, minha mãe: “Meu Deus do céu! Otília, essa menina está louca, ela encasquetou”. Eu fui juntando um dinheirinho, escondido da minha mãe, porque se ela soubesse que eu tinha dinheiro, ou alguém soubesse que eu tinha dinheiro na minha casa, acabou. E eu dava o dinheiro da minha mãe, fazia as compras e guardava um dinheirinho. Só que estava escrito assim: “Vá com tudo pago”. Eu falei: “Mas eu tenho que ter um dinheirinho, chega lá preciso comprar um abajur, uma coisinha, um desodorante”. Enfim, aí eu resolvi ligar. A mulher falou assim: “Ah, você está interessada? Venha aqui”. Era no centro da cidade isso daí. No centro da cidade, na Praça Sete. “Vem aqui na Praça Sete, tal dia, tal hora”. Aí eu fui lá conversar com a mulher. A mulher já me olhou: “O que você sabe fazer?”, aí foi anotando. “Nossa”, já vi que a mulher gostou. “Não, vou arrumar vaga pra você, você vai como arrumadeira”. Porque eu falei: “Olha, qualquer coisa eu vou até de babá, mas se você puder arrumar não de babá. Eu cozinho um pouquinho”, igual a minha mãe, não né? Porque na leva que eu vim, veio nove cozinheiras, com esse salário estrondoso que estava escrito ali.
P/1 – Era mesmo o salário?
R – Imagina! Aquele salário ali era comissão da agência, porque dali a patroa ia pagar tanto, mas tanto era deles. E aí descontava a passagem que te trouxe, descontava os dias que você ficava lá naquela pocilga, que era um lugar lá na Santa Cruz – acho que até depois descobriram e denunciaram. A gente ficou lá, até pulga tinha no negócio, um lugar era um lugar.
P/1 – Perto da estação Santa Cruz?
R – É. Tinha umas caminhas, aí alojava a gente naquelas caminhas, o banheirinho precário, aquela coisa. Então, desse salário que estava escrito elas tiravam tudo isso. “Ah não, mas tem que tirar a passagem, você ficou tantos dias, você comeu, você jantar, tomou café”, o pãozinho de manhã, sequinho, com cafezinho com leite, eles descontavam. Eu vi um negócio disso numa série dos borracheiros que passou na Globo, o homem fala com os borracheiros: “Não, você veio”, o fazendeiro leva eles lá...
P/1 – Trabalho escravo, né?
R – É. E aí eu lembro dessa passagem minha. Enfim, minha mãe falou: “Minha filha, pelo amor de Deus não vai pra esse São Paulo, não vai, não vai, não vai”. Nisso arrumei tudo, combinei com a mulher. A mulher falou: “Você me dá tanto para arrumar sua passagem, a partir do momento que você me der o dinheiro e um documento assim, assado, você está pronta pra ir pra São Paulo”. Foi o que eu fiz, eu falei: “Mãe, eu vou pra São Paulo”. Minha mãe disse: “Você não vai”, eu falei: “Vou, já estou lá. Encasquetei, vou e depois eu levo a senhora e levo as meninas”. E aí eu fui. Nesse dia, eu fui no mês de julho, agosto. Um frio, aquela cidade cinza. Eu falei: “Meu Deus, será que eu vou viver aqui?”, um frio, um frio, que a gente passou um frio na viagem, a gente pegava as roupinhas da mala e jogava assim. Aí vi uma menininha branquinha, que a menina já estava roxa assim, coitada. Peguei um monte de roupa minha e joguei em cima dela. “Cadê suas roupas?” “Não, eu trouxe só uma roupinha básica, vai que não dá certo eu vou voltar”. E aí você tinha tipo dois, três dias pra voltar, naquela mesma passagem. Era uma coisa muito doida. Só que eu falei: “É assim mesmo que eu vou pra São Paulo, eu vou”, e decidi, porque eu sou assim, se eu decidir eu pego e faço (risos).
P/1 – Mas Pilar, aí você veio e você trabalhava de diarista dentro dessa agência?
R – É, eu vim como arrumadeira. A mulher falou assim: “Dá pra você ir como arrumadeira. Você chega lá, você fala que você é arrumadeira”.
P/1 – E você ia cada dia para uma casa, era isso?
R – Não. Aí chegou aqui no dia, eu fui uma das primeiras que, só eu arrumei emprego no dia que eu cheguei, você vê que a força da gente é tão, a certeza de querer os trens, como diz. E eu lembro que a gente estava tudo sentadinha assim, aí nós já tinha tomado banho, trocado de roupa, descansado um pouquinho da viagem, que nós chegamos de manhãzinha, essa mulher esperando a gente aqui levou nós pra esse lugar. Aí eu lembro que a gente estava sentadinho esperando. Ele já tinha vagas para algumas, e aí começaram a ligar pras patroas. Eu lembro que a mulher falando assim, ela olhando pra mim: “Não, eu tenho uma aqui que é a cara da senhora, a senhora vai adorar! Arrumadeira boa. Experiente, sim. E uma carinha boa, mineira. Ah, mineira”, a mulher pedindo pelo amor de Deus não mandar baiana pra ela. Mas chegou lá, eu descobri por quê. Ela já tinha uma cozinheira baiana e a velhinha era osso duro de doer, a cozinheira dela. Já estava lá há muitos anos. Eu fiz amizade com essa senhora e ela falava: “Nossa, mas a minha cozinheira está rindo”. Um dia a mulher chegou na copa, nós estávamos contando caso. E a mulher quáquáquá quá quá. E eu contando as minhas pataquadas, porque eu aprontava. E ela quá quá quá, ela ria. E a mulher: “Você está rindo?”, a mulher perguntou pra ela. “Mas que gosto ver você rir”, com aquela cara assim. “Há quanto tempo eu não vejo um sorriso em você!”, falando com a cozinheira. E ela quá quá quá. “Mas essa menina é engraçada demais”. Ela tinha um defeito assim na fala, não sei se era a dentadura dela que ficava batendo assim. “Essa menina é muito divertida, essa menina”. E ria e ria e ria. Aí essa mulher ficou apaixonada por mim porque eu fazia os outros rirem. E ela viajava e deixava a casa na minha mão, assumia, como se fosse uma governanta, até ela voltar dos States lá. E a homarada ficava me assediando, mas eu: “Não, aqui é o nosso local de trabalho”, eu sempre ali, firme. Porque eu sou uma pessoa muito correta, né? Eu sou levada (risos), mas em determinado momento eu sou muito correta. Então: “Meu, isso aqui não é meu, é pra ficar, é pra ficar aqui. E ai de você se no meu comando você mexer, né?”.
P/1 – E esse lugar, essa casa, era onde, em que bairro? Você lembra?
R – No bairro do Morumbi. Jardim Guedala.
P/1 – Jardim Guedala. Então era uma casa de rico.
R – Era uma casa assim que eu falava: “Meu Deus, pra que esse povo tem uma casa desse tamanho?” A mulher fazia cooper no jardim. Eu falava: “Pra que, meu pai? A gente vai de ônibus naquela miséria, esse povo com essa casa! E tinha ala, assim, tinha a ala dos quartos lá e tinha outra ala, era outro quarto, lá era cozinha. A casa era separada por alas: “Você vai limpar a ala tal”, que era onde era os quartos dos filhos da mulher. Eram três, quatro filhos, limpava três, quatro quartos. Saía dali, passava pela sala, a parte da sala eu não limpava, era o copeiro que fazia salas de visita, essas coisas. E aí eu passava lá por outro caminho, lá pro quarto dela, quarto do casal lá em cima e mais, se não me engano, quarto de hóspede. E enfim, aí limpava pra lá. E o meu quartinho era do lado do quarto da mulher, aquela coisa: “Ah, se eu precisar de uma água você vai pegar, eu bato na sua porta”. A mulher batia na minha porta meia-noite: “Leva água no meu quarto?”, eu: “Sim, senhora”, levantava assim, ia lá na cozinha, que era lá no calabouço, lá embaixo, pegava água. “A senhora quer mais alguma coisa?”, na maior paciência, vontade de falar: “Vou dar um soco na sua cara”.
P/1 – E Pilar, tinha biblioteca, tinha livros?
R – Li. Então nessa casa, aí é que tá! Lá tinha aquele livro lindo da série lá, A Cor Púrpura!
P/1 – Ah, da Alice Walker!
R – Li A Cor Púrpura, li o Negras Raízes.
P/1 – Ah, do Alex Haley. Negras Raízes.
R – De Alex Haley. Fiquei: “Ai meu Deus, por que eu li esse livro? Por que eu li?”. Eu não queria terminar de ler, só que eu falei: “Não, tenho que terminar de ler pra ver o que acontece com o Kunta Kinte”. E chorava, chorava, chorava.
P/1 – Kunta Kinte! (risos) É isso mesmo.
R – E chorava o livro todo, e chorava, e chorava. E lembrava do meu povo lá em Minas e chorava, chorava. Mas eu li. Mas nunca mais na minha vida eu vou ler esse livro, não. Nem assistir o filme. Eu tenho o maior trauma. Porque é muito forte, né? Mas é a história. E aí eu tive contato com essas literaturas mais clássicas. E aí eu começo a escrever de novo, porque aí ninguém rasga. Eu lembro que eu escrevi muitas coisas, comecei a escrever o diário. Eu sempre escrevi meu diário, eu tenho muita coisa da minha adolescência, ainda tenho uma beirinha que eu não joguei fora que era uma agenda que eu anotava muita coisa. Tenho as anotações do Rio de Janeiro quase todas, da patroa. Dona Fulana me pagou tal, tem anotação em URV, né? Não tem uma época que o dinheiro era URV?
P/1 – É.
R – “Hoje dona Fulana me deu tantas URVs”, que era uma mulher chata que eu trabalhei também na Cidade Jardim, tem um parque famoso lá agora, que era da mansão dessa mulher aí. Um pouco depois do Jardim Guedala, Avenida do Bosque, não sei o quê do Bosque.
P/1 – Praça do Povo, não é? Perto da Cidade Jardim?
R – É, por aquelas bandas ali. Trabalhei ali também numa mansãozona, e a mulher era chique maravilhosa. Aí um dia o copeiro faltou e falou assim: “Hoje você vai levar o café da dona Fulana”. Quando eu entrei no quarto eu fiquei assim com a bandeja procurando a mulher, dona Fulana. E eu falei: “Mas onde que eu ponho a bandeja?”, mas não é a mesma dona, que dona feia, meu Deus, que dona esquisita (risos). Eu levei um susto, a mulher era muito esquisita sem maquiagem, sem nada, na penumbra do quarto, né?
P/1 – Você estranhou.
R – Eu estranhei. Eu falei: “Gente, eu vou sair correndo, vou deixar a bandeja cair”. Então: “Dona Fulana, onde que eu...”, aí quando ela falou, que ela tinha uma voz muito forte, que essa mulher era carioca. Eu gostava muito da voz, da sonoridade da voz dela, quando ela falou: (fala imitando carioca) “Ai, tu põe ali!”, aí eu: “Ai, é ela mesma” (risos).
P/2 –E você dormia na casa mesmo?
R – Morava nas casas. Quando eu vim pra cá eu morava no serviço, já vem pra morar, o contrato já era ali, você vinha pra morar.
P/2 – Então, Pilar, você estava dizendo que lá no Jardim Guedala, eu queria saber como era a sua relação com São Paulo nessa época, se você saía muito ou se você só ficava por lá, o que você conheceu?
R – Ainda não. Depois eu trouxe a minha mãe, trouxe as minhas irmãs, elas ficaram pouco tempo. Não, a minha irmã mais velha ficou bastante tempo, mas ela numa casa e eu em outra. A minha mãe ficou um ano só, não gostou daqui, do sistema daqui, falou que o povo aqui era louco, era frio e ela foi embora muito chateada e doente, ela ficou muito adoentada porque, como eu saí dessa casa, a patroa, a minha mãe continuou na casa da filha e a mulher falava: “Ó, sua filha não pode mais entrar porque ela não é mais da família, ela não trabalha mais com a gente”, e não deixou a gente entrar pra visitar minha mãe, minha mãe achou isso um absurdo, falou: “Esse povo aqui é louco”. Ela ficou muito chateada e ela quis ir embora. Mas nessa época eu não saía muito e um pouco depois que a minha mãe embora, eu falei: “Eu vim pra cá pra melhorar a minha vida, eu tenho que fazer alguma coisa”, e fui procurar cursos. Aí eu ouvia rádio, ouvindo no rádio: “Faça seu curso de Técnico de Informática”, nem falava direito essa palavra. E “Ganhe diploma, certificado”, aquilo foi me interessando. “Últimas vagas”. Eu perguntei pro cara: “Onde é a rua tal?”, Jacinto Corrêa. Aí me explicaram. Foi uma das primeiras vezes que eu saí assim, pra ver esse curso. Por fim já estava fazendo o curso. E a mulher falou: “Mas como assim? Você nem conhece São Paulo, você é muito ousada, menina!”. Tem até a música Garota Ousada, né, que eu fiz, depois eu conto pra vocês (risos), em cima disso. “Você é muito ousada, você nem conhece, como você já vai fazendo o curso assim?”. Eu falei: “Não, mas eu vim pra melhorar, é uma oportunidade e eu vou fazer o curso”. E aí eu começo esse curso de Windows, essa coisa toda, e também pra ver que eu estou fazendo alguma coisa. E ela já fica com raiva, porque daí eu começo a sair, eu já conheço pessoas, começo já a ir pra baile, aí já vou em baile, já começou a paquerar uns camaradas aí. E eu lembro dessa mulher falar: “Mas a gente procura e você não está”. E lembro que um dia eu cheguei tarde ela queria que o guarda não abrisse o portão pra mim: “Deixa ela aí fora pra ela aprender, ninguém manda ela ficar saindo”.
P/1 – Mas ela queria que você trabalhasse o dia inteiro?
R – É.
P/1 – E a noite toda?
R – Mora lá, tem que ficar lá. E à noite: “Ah, eu quero água, você tem que pegar água” “Ai, eu preciso de você pra abrir as cama e você não está pra abrir as camas”. E nessa casa, um dia, eu na minha simplicidade, entrou triunfantemente assim a tal da Maluf lá, a Sylvia Maluf. Toda emperequetada. Eu: “Nossa, que mulher exótica, linda, chique”. Eu achei coisa do outro mundo aquela mulher entrando, parecia filme americano. E eu vinha com os baldinhos, com as vassouras, la la la lala lala, sempre cantando, alegre. Quando a mulher vai entrando assim: “Oi, tudo bem com a senhora?”, cumprimentei a mulher e passei. E a mulher assim, me olhou com aquele jeito, com aquele cabelo vermelho, aquela coisa, né? Me olhou assim, eu falei: “Ai, que dona sem educação, nem me cumprimentou”, e passei. Pra que gente? Depois a mulher me chamou e falou assim: “Eu só não vou te mandar embora porque você é muito boa, você é muito simplória, mas aqui em São Paulo não se cumprimenta as pessoas, só se você for cumprimentada, se direcionar a palavra a você”. Meu, aquilo acabou comigo, acabou comigo. Eu falei: “Como assim? A senhora quer me mandar embora porque eu cumprimentei a dona?” “Não, você tem que esperar ser cumprimentada e ela responde se ela quiser”. Eu falei: “Tá bom, então não cumprimento mais ninguém, não atendo telefone”. E fiquei com esse trauma, sabe? Mas aí eu já não queria mais ficar lá, não. E depois do dia que ela deixou eu dormir lá fora, um frio. Aí o guarda falou: “Não faz isso, não, dona Fulana, que é isso, a moça é boazinha. Não senhora, a senhora me desculpa, eu trabalho pra senhora há muitos anos, mas eu não vou deixar a moça lá fora, não. Isso não se faz, a senhora me desculpa” “Ah, então abre pra ela, mas a responsabilidade é sua! Vai que ela vem com bandido seguindo ela aí você vai tomar conta de tudo”. Aí eu entrei e ela falou: “Você não pode mais sair pra estudar”, me proibiu. E eu fiquei com aquele trauma. Numa dessas reuniões dela de chá da tarde, essas pataquadas todas, eu conheci uma outra prima lá. Não, a minha irmã vem e fica na casa de uma prima, a minha irmã na casa da filha e a minha outra irmã no Ibirapuera na casa de outra prima dessa mulher. E lá a minha irmã falou: “Ó, a irmã da minha patroa está precisando, vem pra cá. E lá é melhor, boba, é um lugar melhor, tem um parque perto, a gente pode ir”. Porque essa mansão era meio obscura, assim. E o quartinho? Era desse tamanho. Eu falei: “Gente, uma casa dessa tamanho com um quarto da empregada que parece um banheiro, o banheiro deles assim”. Era absurdo e aí eu fui mudando. Eu saí da casa dela pra ir pra casa da prima pra ganhar mais, aí virou ódio, ela ficou com muito ódio de mim. O que acontece? Depois eu não consigo mais arrumar emprego. Por quê? Toda patroa que essa mulher falava, ela falava que eu saía, que...
P/1 – Ah, as famosas referências.
R – Exatamente. Quando ia pegar minha referência: “Ah, ela é ótima, de confiança. Eu viajava, deixava a casa na mão dela, ela se dá com todos os funcionários. Mas ela tem um grande defeito: ela gosta de sair, é um tal de estudar, fazer curso. E você procura ela pra abrir as camas, pra levar água no quarto, ela não está, porque ela está fazendo curso. Não pega ela pra trabalhar, não”. Aí ninguém me pegava. Meu, aí foi osso, eu fiquei numa situação horrorosa.
P/1 – Mas aí você estava morando na sua casa.
R – Nisso eu já, como a minha mãe veio a gente alugou uma casinha lá nos cafundós do Macedônia, Casa Branca, aqueles cantos lá. E depois a minha mãe vai embora e eu alugo um quartinho pra mim sozinha porque eu fiquei muitos anos nesse quartinho sozinha.
P/1 – Onde?
R – Num corticinho aí perto de onde eu já estou, Taboão da Serra. Aí eu já estou em Taboão. Porque eu vim andando por dentro, ‘ah, tem um quartinho ali assim, assim e assado’. Fui andando por dentro, Jardim Roberto, tal. Sei que eu vim pelo Marabá, cheguei aí onde eu estou até hoje, nesse pedacinho que eu moro, Maria Rosa, Parque Albina, que era tudo meio mato, hoje tem shopping, tem um monte de coisa.
P/1 – Pilar, mas aí a sua filha continuava em Minas?
R – Com a minha mãe. A minha filha veio bem depois, quando eu engravidei do Pedro Lucas que é o meu filho de 18 anos.
P/1 – Ah, isso em 96.
R – É.
P/1 – Mas você veio pra cá em 80, não é isso?
R – 89.
P/1 – 89.
R – É. Nesse engravidar, e a minha irmã estava aqui que a minha irmã, pouco depois disso ela vai pra Buenos Aires, ela não mora aqui mais. Ela está em Buenos Aires já faz 20 anos. E a gente se encontrou agora, 16 anos depois, nessa viagem que foram esses poetas todos pra Feira do Livro de Buenos Aires.
P/1 – Ah, você foi também
R – Fui também. Chiquérrima.
P/1 – Depois você vai contar disso!
R – Isso. Aí nisso eu reencontro essa minha irmã, aquela coisa toda. Mas nessa época ainda estava sofrida, não tinha estudo e ainda arrumo um filho. Aí o bicho pega, né? Só que eu falei: “Meu, quer saber de uma coisa? Estou tão sozinha nessa vida, eu vou ter esse menino”. Porque o pai também não quer, aí o cara dá no pé, aquele sofrimento todo. Aí nesse quartinho eu falo: “Isso aqui não é um lugar digno pra ter uma criança, vou ter que arrumar uma casa melhor”. E nisso aí eu já estou nessa, como a mulher não... com muito custo eu arrumei uma patroa louca lá no Pacaembu, aí a louca me aceitou (risos). Porque aí eu fui ser babá de novo. Quando a mulher vai me entrevistar as crianças gostaram muito de mim. Só que eu não fui por agência porque eu chegava na agência e a mulher falava assim: “Não sei o que você está fazendo aqui, você sabe que quando falar com aquela sua patroa lá você não vai arrumar nada mesmo, então você nem vem mais na minha agência porque eu não vou mais perder tempo com você”. E aí já é o segundo pé no traseiro. E eu fico triste, deprimida, penso em me matar, um monte de coisa. Enfim, eu falei: “Gente, matar é pra quem é fraco, para! Eu? Como eu sou, gosto da vida. E a minha filha, se eu me matar? Quem vai cuidar dela? Como eu vou ver ela de novo? E a minha mãe?”, minha mãe ainda estava viva, minha mãe já foi embora desse plano. E aí eu resolvo enfrentar essa parada. Nisso eu vou nessa casa no Pacaembu, as crianças gostam de mim e eu começo a trabalhar de novo. Eu já não estou, porque eu ficava no quartinho, nisso eu vou pro centro procurar trabalho, e fica aqui, fica ali. Ia pras reuniões do Sindicato das Empregadas Domésticas, nunca deixei. Não sei como eu descobri, eu sou uma das primeiras que lutou por esses direitos todos aí. E no sindicato eu descubro que eu tenho direitos, que eu tenho, e começo a brigar com a patroa também. Aí nisso eu estou na Umbanda, brigo com essa patroa do Ibirapuera pelo direito de ir no centro espírita de noite, que aí eu sou copeira e também não posso sair à noite. “Ah, mas de manhã assim que acordar os meninos pra escola”, seis horas tinha que estar de pé. Eu falei: “Mas a senhora pode ter certeza que o meu serviço eu vou fazer”. E como eu fazia tudo direitinho, acordava, a mulher deixou eu ir, que ela também era do terreiro, como fala, então ela permite que eu vá. E descubro uma série de direitos que já estavam, se a gente peitasse a patroa e ela gostasse da gente rolava mais ou menos um acordo. Porque daí também depois tem uma época, negócio do uniforme, a mulher quer que a gente pague o uniforme, uma lei do Sarney, não sei o quê. Eu falei: “Não, mas eu uso o uniforme que a senhora quer que eu uso, então não uso uniforme e não vou pagar nada. Não vou pagar, a senhora não vai tirar do meu salário, não, então vou trabalhar com a minha roupa”. E brigo com a mulher: “Então tá bom”. Então ela vê que eu não vou abrir mão. Falei: “A senhora quer me mandar embora?” “Não!” E a mulher já acorda no outro dia: “Não, vamos conversar”. Não me manda embora porque como elas falavam, era difícil achar empregadas do nosso tipo, né? Com a nossa educação, com a nossa honestidade, com a nossa responsabilidade. E essas mulheres acabam meio que negociando algumas coisas com a gente. Essa do Ibirapuera também negocia muita coisa com a minha irmã, inclusive o salário. Que a minha irmã é porreta assim: “Ou a senhora me paga ou vou embora agora”. E a cozinheira do nível da minha irmã, que a minha irmã era como a minha mãe, ela aprende a cozinhar com 13 anos e ela tem uma linhagem de cozinheira, forno e fogão. E aí a mulher negocia com ela e ela fica numa boa, há inclusive aumento porque não ia conseguir outra pra ganhar o que ela ganhava, né? E elas falavam pra gente: “Vocês são muito meninas pra brigar desse jeito, pra peitar a gente desse jeito. Vocês são tão simplórias, mas têm essa ousadia, vocês são muito ousadas, abusadas e tal”, mas aí entra nesse acordo. E aí depois, nessa casa do Pacaembu, aí já é mais livre, porque lá eu saio no final de semana, eu só fico até sexta-feira à noite, sábado e domingo eu começo a caçar coisa pra fazer. Então eu começo a ir pros bailes, aí já conheço pessoas. E tem um lance que eu começo a ficar amiga das empregadas e ter esse contato com a outra empregada, a ir pra casa. Aí já vou pras vilas, já conheço outro tipo de gente, não fico só mais na mansão. Aí eu começo a ampliar meus horizontes dos estudos.
P/1 – E como é que você conheceu esse pessoal da poesia?
R – Então, bem depois, aí eu já não sou só doméstica, aí eu já sou passadeira, que eu trabalhei também bastante tempo como passadeira, né? E nessa coisa da falta de um emprego, porque daí também eu brigo com essa patroa que eu sou babá e saio fora. Eu falei: “Meu, chega de casa de família, eu não aguento mais”. Eu não sei o que eu vim fazer pra essas bandas aqui da Zona Oeste, eu passei na frente de uma lavanderia e estava escrito: “Precisamos de passador”. Falei: “Passador, mas eu sou passadeira”. Sim! Aí eu vou pra Granja Viana, uma mansão lá na Granja Viana e lá a mulher me contratou como passadeira, não vou lembrar detalhes. Eu fico só passando e lá é uma lavanderia industrial, então eu trabalho com aquelas máquinas industriais, todo aquele esquema, e tinha que cuidar da roupa do patrão. Aí vem me chamar de Pilar, porque a Tula some, porque nessa casa o patrão quis, falou: “Olha, Pilar é um nome muito bom pra mim. Eu morei na Espanha muitos anos, lá tem muita Pilar. A senhora sabia que na Espanha tem muita Pilar? É como Maria aqui”. Eu falei: “É mesmo, doutor Fulano? Que bonito”. Lá ele me conta essa história: “Então posso chamar a senhora de Pilar?”, falei: “Tudo bem, como o senhor preferir”. E já rola uma empatia entre eu e o velhinho lá. E ele tem os pés doentes, então tem toda uma forma pra cuidar da roupa dele porque ele tem diabete, vive sangrando e aquela coisa toda. E nessa casa, já é Granja Viana, já é um outro lugar, eu conheço uma senhorinha, dona Iria, minha amigona assim, porque eu sempre fico amiga da cozinheira, aquele link com a minha mãe, sei lá. Em várias mansões que eu trabalhei eu era muito amiga da cozinheira. E aí com essa dona Iria ela falava: “Mas você está certa, você tem que estudar mesmo, tem que fazer coisas mesmo”. E eu começo a fazer cursos aqui, cursos ali, de vez em quando eu acho certificado em casa.
P/1 – Cursos de quê?
R – Fiz muito curso desse negócio de informática, fiz curso pra negócio de vendedora. Falei: “Ah, quero ser vendedora”, aí fiquei muito tempo. Negócio de marketing, né? Mas era tudo pataquada, que hoje eu vendo Ocas na rua sem curso nenhum (risos), mas também tive uma base boa. Obrigava a ler O Maior Vendedor do Mundo, lê esse livro, Seja uma Grande Vendedora, e eu naquela ilusão, eu vou ser uma grande vendedora. Aí começo a trabalhar com plano de saúde, não gostei de vender plano de saúde. Depois vendo o negócio das revistinhas Vá ao Teatro. Aí fui ver as peças e falei: “Ah, meu, vou ficar vendendo isso pros outros”, algumas coisinhas não eram muito legais, tinha peça boa, mas tinha umas peças que estavam ali porque era... e era uma enganação. Eu falei: “Não vou fazer isso com as pessoas, eu nunca gostei de ganhar dinheiro fácil dos outros”. Sei que nisso eu já fico aí pela rua. E tem uma época que eu descubro, começo a escrever e vender poesia na rua. Eu e a Samanta. A Samanta desenhava, que a Samanta também foi poeta, nós principiamos lá no Garajão, no Taboão, que é do lado da minha casa. Nisso aí eu já não sou mais só doméstica, eu já tenho uma outra amplitude e já estou em lavanderia. Porque quando eu venho da Granja Viena eu passo, vejo essa placa, e vou lá, converso com o homem, falo: “Eu trabalho assim e assado numa lavanderia”. E não era, era casa de família, mas eu tento até que a mulher coloca, mas a mulher coloca, sou passadeira, aí mostro a carteira de trabalho e ele: “Ah, você é passadeira, então vem aí fazer o teste”. Faço o teste, o homem me... eu disse: “Pronto, saí de casa de família”, naquela ilusão, vou ganhar melhor. Só que aí o homem me engana. Porque eu falei: “Se eu aprender a passar igual passador o senhor vai me pagar mais?”, aí ele não me paga, ele fala: “Não, o seu piso salarial de carteira é o piso de passadeira, vou te pagar salário de passadeira”. Eu falei: “Por que o senhor me enganou?”, aí começo já uma briga com o homem. E brigo, brigo, brigo com esse homem, falo: “Quero meus direitos”. Aí a mulher do homem, eu lembro que ela falava assim: “Mas você é tão bonitinha, tão boazinha quando a gente vê você, mas você é muita revoltada, muito brigona, tudo você briga. Você não devia ser assim”, e fica ali no galpão, assim, coçando. E eu brigo muito com esse povo também que no final do ano não tinha serviço, eles botam a roupa dele pra gente passar e não quer pagar! Eu falei: “Não, o serviço da casa é separado”. E brigo, brigo, brigo, brigo. E aí eu saio desse homem e eu volto pra rua pra vender papel. Nisso eu já conhecia esse Garajão, a gente começa a frequentar.
P/1 – Ah, então você começa porque você conhecia o Garajão.
R – Sim. Que toda quarta-feira subia, era dia de quarta que eles se reuniam. E eu pegava o ônibus, que é embaixo no Campo Limpo, até hoje a gente pega, eu moro lá em cima no Taboão, a gente pega ônibus aqui no Campo Limpo. Aí o que acontece? Passava e eu via assim um povo reunido no microfone, eu falava: “Meu, o que esse povo fica fazendo aí”. E aí eu me achegava meio tímida, né? “Mas que bacana isso”. Aí um dia eu entrei. Entrei, pedi uma cerveja e fiquei, aí uma mulher estava falando. Eu pensei que a mulher era professora e estava falando pras pessoas. Eu: “Nossa, que bonito uma professora falando no microfone”, no meu entendimento era isso. Falei: “Nossa, que lindo, um dia eu queria ir nesse microfone”. Depois foi uma outra pessoa, um homem, falou. Eu falei: “Nossa, pode ir no microfone, um dia eu queria ir nesse microfone”. E fiquei com aquilo na minha cabeça. Mas a poesia era assim, o bar era dividido, aqui era tipo uma salinha, ficava o sarau, e no outro lado ficava o boteco, pra ninguém ficar conversando, não sei o quê. E eu ficava na portinha aqui do boteco olhando aquele movimento, né? E um dia eu passei lá pra dentro e sentei quietinha, mas ninguém me percebe. Eu estou sozinha e falo: “Samanta, tem um barzinho ali embaixo, vamos lá, quarta-feira que vem eu vou te levar, você vai gostar. Aí o povo vai lá no microfone” “Como assim, mãe? O que é isso, você é louca?” “Não, Samanta, é legal, vamos lá, quem sabe a gente canta uma música, qualquer coisa, vamos lá pra você ver como é que é. E vamos tomar uma cervejinha. Eu pago um refrigerante pra você, eu tomo uma cerveja”, a gente dura, com aquele dinheirinho contadinho. E nisso eu já tenho o Pedro, o Pedro está grandinho. “A gente deixa o Pedro dormindo e vamos lá. Aí a gente vai, eu sei que ele não acorda”. Porque o Pedro dormia, tanto é que uma época eu volto a ser doméstica e ele dorme o dia inteiro, eu faço o serviço, pego ele bonitinho, troca a fraldinha e vamos embora pra casa. Ele dormia o dia inteiro. Então a gente sabia que o Pedro ia dormir. As loucas, deixa o menino no berço e vamos. Fomos pro bar. Aí nisso, numa terceira vez o Pezão vê a gente. Não, ele sempre viu a gente. “Nossa, duas moças bonitas, duas irmãs, que bacana”. Eu falei: “Não, a gente não é irmã” “Não? O que vocês são? Primas?” “Não, filho, eu sou a mãe dela” “Como assim?” “Eu sou a mãe dela, Samanta, tal”. Aí já rola aquela amizade e tal e aí começa. Ele fala: “Você sabe escrever?”, eu falei: “Sei escrever, adoro escrever!”, ele falou: “Então, menina, escreve!” aquele jeito dele de falar. “Traz uma poesia aí pra gente na semana que vem. Volta na semana que vem e traz uma poesia. Você também!”, falou com a Samanta. “Gosta de escrever, Samanta?” “Eu gosto” “Então traz aí. Você está estudando?” “Estou, estou na escola” “Traz uma poesia pra gente”. Aí a Samanta escreveu um rap e eu escrevi uma poesia que eu falo como eu vim pra São Paulo, aí eu tenho um filho beiçudinho e com dificuldade estou para criar, nãnãnã nãnãnã, e a minha filha mais velha, a Samanta, moça vai ficar. Eu vou rimando assim, eu tenho guardado em casa isso aí, eu tenho é que achar. Até que o Sérgio Vaz falou uma poesia um pouco rudimentar, né? “Mas ela trouxe uma poesia”, naquela época. Aí eu leio e as pessoas gostam. Eu falei: “Meu, será que vai bater palma pra mim?”, eu fiquei naquela preocupação. Aí clap clap clap, todo mundo gostou muito, eu falei: “Nossa!!!”, aí você já cria, né? E a Samanta foi lá e mandou um rap, pa pa pa, com aquele jeitão dela, Samanta está com 15 anos, manda aquele rap com aquele jeito dela. Clap clap. “Nossa, vocês são fantásticas”, aí a gente já virou meio que, aquela coisa fervorosa, duas negras lindas, duas mulheres lindas, fortes, tal, e ficou aquela coisa e os caras assediavam muito a Samanta, a Samanta com os decotão sempre, que até uma vez dois gays peitaram: “Imagina amapoa, que isso aí não é silicone”. Ela falou: “Mas como, moço? Eu só tenho 15 anos, eu vou por silicone?” “Ah, tu quer me enganar, amapoa! Isso é silicone” “Não é, não, moço, é meus peitos mesmo”. E aí o cara: “Ah, deixa eu pôr a mão”, aí põe: “Mas nossa senhora, que lindo, ai que peito lindo! Se eu tivesse uns peitos desses”. E aí o gay está botando peitinho: “Ó, mas o peito dela é muito lindo”, eles ficam apaixonados. E aí onde que a gente chega chama muito a atenção, a Samanta com essa beleza desabrochando, sempre com aquele decote dela e a marca maior dela era o decote. Enfim, aí a gente começa a ser convidado, e não sei como a gente vai para no Samba da Vela, não sei como a gente foi parar lá. Sei que a gente chegou no Samba da Vela também. Ah, o Serginho Poeta! O Serginho Poeta é do Samba da Vela, com a poesia O Poeta da Lua, acho que é uma coisa assim, que o meu filho até declama muito essa poesia dele. Aí convida a gente, a gente chega no Samba da Vela e também aquele sucesso. Eu falei: “Samanta, a gente é artista, menina!”, aí eu já começo. E começo a criar. E nesse ínterim, eu crio a Poesia da Cachaça, que é famosa, que me fez ficar famosa essa poesia.
P/1 – Você lembra um pedacinho?
R – Amantes da manguaça. Ai gente, agora na emoção não lembro a palavra. Eu sei que no final eu fico bêbada. Deixa eu ver se eu lembro a parte que eu vou ficando bêbada assim. Aí, tomo saquê. “Saquê, cachaça japonesa, gargalhei que foi uma beleza/ Licores de Minas? Ah, doce como as meninas/ Cachaça do Nordeste, êta cabra da peste/ Conhaque com guaraná/ blablabla, blablabla, blablabla”, eu já estou caindo no chão. “Amarula, que loucura/ não encontrei o buraco da fechadura/ Fiquei na rua sentada na calçada/ cantarolando uma canção” bêbada, né? “Na embriaguez, conversei em inglês/ Hey darling, I am well and I like pinga com mel/ em espanhol, la emocíon viene de mi corazón/ me gusta una Cuba Libre!/ Cachaça do Caribe/ Ai, mas ai que caramba, muchacha/ Não consigo viver sem a danada da cachaça”. Porque aí eu tenho essa relação com a cachaça em Minas, alambique, a gente toma cachaça desde criança, desde que a gente tem cinco aninhos a gente é tudo pinguça lá em casa. Porque a gente morava perto de alambique, não tinha como nós não tomar. E a minha mãe tinha uma amiga que levava vinho, esse Vinho Dom Bosco, um vinho desses mais velho, só tinha ele naquela época. E a gente (som de quem está bebendo), a minha mãe: “Pelo amor de Deus, Dora, para de dar vinho pra essas crianças!” “Meus trambequinho gosta, meus trambequinho. Eu trouxe um negócio pros meus trambequinhos”. E nós (barulho de beber), aí a gente aprende a tomar cachaça, gosta, só teve uma irmã, a Núbia, que tomou um porre, ela tinha cinco aninhos. Tomou um porre, ela ficou ruim. E ela cai e rasga toda essa parte da perna aqui num barraco que nós morava, que o barraco era a janela, onde a gente passava que era uma porta era uma janela, e é muito alto. E a gente bêbada, no que a minha irmã foi passar a perna dela, ela raspou assim, arranca um tampo assim, aí a minha mãe proíbe nós de beber por uns tempos, mas agora já está no sangue, não tem jeito.
P/2 – Pilar, foi nessa época que você viu os postes também?
R – Os postes eu estava de doméstica ainda, nessa casa do Jardim Guedala, eu ia pro curso, quando eu pegava o ônibus pra passar ali da Eusébio Matoso, ele passava, saindo de onde chama Paineira, ali na Paineira tinha um poste, tinha um. Eu lembro que eu lia toda vez que eu passava, eu lia. Da Paineira, daí ele passa em vários pontos de Pinheiros da Teodoro Sampaio tinha. Então, lembra de um ônibus de dois andares que tinha antigamente? Parava bem em cima da poesia. Aí eu via assim e falava: “Nossa, mas quem é essa pessoa, meu Deus, que põe o negócio escrito no poste”, ainda na minha ignorância. “Escreve o negócio e põe no poste, que bonito”. Aí uns negócios bonitinhos, eu achava os versinhos bonitos. Eu falei: “Nossa, um dia eu queria conhecer essa pessoa. Ai como eu queria conhecer essa pessoa doida que faz isso”. Aí cara, o dia que eu conheci o Binho, nossa. Falei: “Você é o cara do poste!”, pô, uma loucura, arrumei um esparramo e todo mundo: “O que aconteceu?” Eu falei: “Moço, quando eu ia da casa da minha patroa pro curso eu via a poesia, eu ficava apaixonada, eu queria conhecer. É você!”, que daí eu conheço o Binho em um barzinho que ele começou a fazer a poesia dele lá no Campo Limpo, com as velinhas em cima da mesa, tal. Ali também eu levo a poesia erótica, aí eu fico famosa com as formas feminis, que é bem indecente, né? Não é indecente, é muito sensual. Naquela época as pessoas me tiravam: “Só você quer falar essas coisas, ficar borrando o sarau”. Eu falei: “Gente, mas é uma poesia”. E eu comecei até a ficar com medo de declamar, porque todo mundo... só que aí, nisso que a gente vai pro samba da vela, uma pessoa chega no samba da vela, me critica pra caramba, mas chega lá com uma poesia, assim, a minha era sensual, a dela era pornográfica. Eu falei: “Mas como assim?”, é aquilo que minha mãe falava, quem desdenha quer comprar. Eu falei: “Mas que linda poesia que você escreveu”, falei pra pessoa, né? “Mas a minha não era indecente? Mas e essa? Também é” “Não, mas é porque eu estava inspirando e não sei o quê”, e aí a pessoa já fica até meio amiguinha, já faz uma amizade comigo e tal e hoje é outro trâmite. Mas quer dizer, primeiro me desdenhou, depois foi lá e fez. E aí eu comecei a ver o poder, falei: “Porque se alguém copia você é porque é bom. Quer saber, o que eu escrevo é bom, é legal, que as pessoas aplaudem”. E no Samba da Vela a gente era muito aplaudida, a primeira vez que eu fui com essa poesia da cachaça, nossa. Aí eu, os aplausos, eu falo: “Gente, o aplauso pra mim é a paga do meu trabalho”, porque é muito gostoso, aquele enxame, parece enxame de abelha, vocês já viram a coisa da abelha? Aquele barulho. O aplauso pra mim tem aquele som assim, eu acho muito rico. E aí eu comecei a gostar mais e a produzir mais, aí eu falei: “Quer saber? Cada semana eu vou escrever um texto”. Aí eu começo a criar vários textos aí, aí começo a partir pra essa coisa do erotismo, porque como todo mundo gosta e adota esse sensual eu começo a falar. Aí nisso eu começo a vender ocas por quê? Eu já não sou mais passadeira porque aí eu já briguei com os patrões, tudo.
P/1 – Vender Ocas é o quê?
R – A Revista Ocas é esse projeto que tem esse dinheiro que é uma oportunidade de trabalho vender a revista. Ela não é emprego porque não tem vínculo empregatício, mas ela tem essa relação da geração de renda. E aí nisso, como eu estava na rua um dia que eu fui procurar um trabalho, sento no Masp e começo a chorar porque eu fui recusada na vaga como passadeira. Por quê? Chego lá e tem uma passadeira que já trabalhou comigo. Eu falei: “Pronto, estou queimada, já não vou”, e foi a minha última esperança, era aquele emprego. E era o meu último dinheiro aquele dia. Falei: “Dá pra comer, deixei o pão das crianças em casa e pagar passagem, quando eu voltar eu tenho que voltar empregada, senão eu e as crianças vamos morrer de fome, ou eu vou ter que voltar pra Minas”, e eu não queria voltar pra Minas. Voltar pra Minas na condição que eu estava ainda? Jamais. Com dois filhos nas costas, morta de fome, né? E eu sento e começo a chorar: “Meu Deus, não sei, essa vida”. Aí vejo um cara com um papelzinho, um coletinho. Eu falei: “Panfleto, é isso que eu vou fazer, distribuir panfleto. Deve dar um dinheirinho”. Aí eu vou conversar e ele: “Não, menina, isso aqui não é panfleto, isso aqui é Revista Ocas. Projeto social, internacional, tem em mais de 50 países. Pra quem está em situação de rua vender a revista”. Eu falei: “Moço, mas eu não sou morador de rua”, ele falou: “Você não é, mas você vai virar. Você não está me contando sua situação aí? A mulher já não te expulsou?”, e eu já tinha sido expulsa. “Seus meninos já não estão sem comida blablabla? Então, sai lá na Ocas, vai lá conversar, não sei o quê, não sei o quê”. Só que ainda demoro uns 15 dias, aí volto lá: “Ô moço, não sei onde que é o Brás, não sei onde é esse lugar” “Vou lá com você, menina”. Aí ele me leva. Nisso a Kênia, a moça que me atende, fala: “Não, a gente vai pesquisar a sua situação então”. Aí passa na psicóloga, Maria Alice, aí já me manda, já vou lá com a Maria Alice Vassimon, que é uma pessoa magnífica do projeto Getep, terapia ocupacional, essas coisas, terapia em grupo. Não, não é terapia ocupacional, é terapia em grupo, tem um nome isso, esqueci agora. Eles fazem lá no Centro Cultural São Paulo. Aí ela conversa e fala assim: “Mas você está por um triz, o projeto vai te aceitar sim porque você é uma menina bacana e você está com os seus dois filhinhos passando fome e você precisa de dinheiro, menina!”. E nisso a moça me dá as revistas, eu saio e vendo tudo, vendo, já volto, que tinha um prazo pra voltar. Ela falou: “Quando você vender tudo você volta”. E nisso, isso é uma segunda, na quarta eu já volto. “Moça, me dá mais revista!’, só que aí eu já tenho que comprar. Eu compro, aí nisso eu já começo a vender nos saraus, começo a vender aqui e ali e o povo, solidário, começa a comprar, o dinheiro começa a vir, eu vou botando no banco, porque aí eu já tenho uma poupança que eu abri numa das últimas patroas, eu já tenho minha poupança e vou guardando dinheiro, bababa, e tal. E nisso a Ocas publica um texto meu. Por que? A primeira vez publicou uma poesia, não sei se foi a Forma Essa Menina primeiro ou se foi a cachaça primeiro, a Amantes da Manguaça. Falam: “Nossa, esse texto é muito bacana”, e publicam. E todo mundo: “Nossa, essa revistinha?”
P/2 – Mas como eles descobriram o texto?
R – Porque aí na oficina de texto que rolava eu mostro que eu sou poeta. Ali começa a aparecer. “Nossa, mas a Pilar tem uma facilidade pra escrever as matérias”, porque aí os jornalistas do projeto sentam com a gente, criam texto, criam matéria, a gente fez matéria com o Seu Jorge, fizemos Rita Cadillac, matéria de capa.
P/1 – Eu tenho essa.
R – É?! Então, é capa nossa, do vendedor com o profissional, um fotógrafo e um jornalista. E aí eles descobrem que eu tenho aptidão pra escrever: “Pilar, traz coisas suas pra gente publicar na revista”. Aí eu trago a poesia. E eles: “Nossa, que bacana”, aí publica. E põe uma foto minha. E lembro que aí eu fico grávida da Dandara, mas aí eu já fiz EJA. Não, aí eu estou na EJA, já estou estudando.
P/1 – EJA é Educação de Jovens e Adultos.
R – Isso. Que foi numa lavanderia que eu trabalhei uma moça analfabeta me levou, ela mesmo não ficou, que ela disse que a cabeça doía e ela não conseguia aprender. Nordestina sofrida, sofrida. Ela falou: “Pilar, não cabe na minha cabeça essa coisa, esse monte de palavra dói”, ela chorava de angústia. Eu falei: “Então bonita, eu vou ficar”. Entrei na quarta série porque não tinha vaga mais na sexta, que eu tinha parado na sexta lá em Minas. Falei: “Vou entrar na quarta mesmo, vambora, alfabetização”, hoje eu sei que é alfabetização. E aí estudei lá sete anos. E nisso cada vez que eu vou estudando mais eu vou aprimorando, a minha escrita. Na aula de Português, aí a professora fala: “Essa moça é muito boa”. E os professores se dedicam muito a mim porque eles falam: “Você é muito boa pra aprender, você é uma menina muito corajosa”. E eles investiam muito em mim, professor de Matemática, História, e eu tirava muitas notas boas lá, nas provas. Daí lembro das patroas, eu falei: “Meu, então quer dizer, eu não sou favelada, continuo sendo pobre e continuo tirando nota boa”, que eu lembro da patroa falar com a minha mãe, né? E eu falo: “Minha mãe podia estar aqui para ela ver”, tirava dez em Inglês, tirava dez em Português. Matemática depois melhorou, tirava sete, então eu já estava muito bom (risos). E nisso, voltando lá pros saraus, aí publicam. Aí nisso que publicam eu já ganho uma forcinha, já começa a rolar um respeito. Só que tem determinado lugar que eu vou, quando eu chegava lá: “A gente quer a cachaça, a gente quer a cachaça. Pilar, declama aquela da cachaça!”, e era aquele burburinho. E aí a pessoa, infelizmente, começa a falar: “Aqui não é pra fazer barulho, não sei o quê”, eu falei: “Mas eu não estou fazendo barulho, eram as pessoas que vinham me abraçar”. Porque como eu estou na EJA, a EJA era aqui na Consolação. Até eu chegar lá nos cafundós do judas chegava tarde, atrasada, estava fazendo prova, não ia faltar à prova pra ir pro sarau. Mas eu não deixava de ir, chegava tarde e ficava na rua porque depois não tinha ônibus para nós irmos embora, nós amanhecia na rua, esperando o ônibus às cinco da manhã. E é onde a minha filha fica revoltada, que ela começa a falar: “Eu não vou mais com você pra esses cafundós, não tem ônibus pra gente voltar, eu fico com você na rua, e poesia não dá dinheiro. O dia que poesia der dinheiro eu volto pra falar poesia” (risos). Brava. Ela é adolescente.
P/1 – Vem cá, você disse que você fez um livrinho com ela, você vendia na rua.
R – Isso. A gente faz um livrinho artesanal, ela desenha e eu escrevo e tem os textos dela também. Eu falo: “Esse texto seu faz um desenho assim”. E ela desenhava muito bem, Samanta é inteligentíssima, boa de tudo, de conta, de desenho.
P/1 – E qual é o nome do livro?
R – Ah, não tinha nome, a gente fazia e ia vender. Aí eu lembro, eu tenho até um em casa, guardadinho. Chega um momento que eu coloco aquela aspiral, levo na gráfica, o cara coloca e tudo. Só que nisso a Samanta começou a ser muito assediada na rua, e a gente encontra um senhor que gostava de sair com garotinhas. Aí ele me faz uma proposta da Samanta sair com ele, ele dá um dinheiro, que não ia faltar nada pra ela, que ele ia levar ela no shopping não sei o quê. Aí nisso ela fica mais revoltada ainda. E teve um dia que nós estávamos descendo a Augusta e os caras pararam assim: “Ai, e aí, quanto que é o programa?”, confundiram ela com garota de programa. Pronto, ela já ficou mais revoltada ainda. Ela falou: “Esse papo de poesia não me interessa”. Eu falei: “Samanta, vamos pra rua”, aí ela não quer ir mais pra rua vender. Eu falei: “Agora eu vou voltar a limpar chão” (risos). Porque aí eu não estou limpando o chão, eu estou vendendo poesia na rua, né? Eu falei: “Meu, não quero mais voltar a passar roupa”, porque trabalhava com ferro pesado. Eu falei: “Meu, se ela não for comigo eu vou ter que voltar a limpar chão”. Eu falei: “Não”. Nisso, quando a Oca publica os meus textos, que são mais ou menos a mesma... é uma fase diferente, mas é mais ou menos na mesma época. Aí eu falei: “Tá vendo, Samanta, as minhas poesias estão aqui, vou vender minhas poesias”, e aí eu começo a vender muita revista por causa do texto que eu declamava, todo mundo: “Ai que lindo, eu quero, eu quero”.
P/1 – Ah, você declamava pra pessoa...
R – E vendia. Tem até um vendedor que fala: “Mano, a Pilar tinha que ter um assistente, a hora que ela acabasse de falar esse negócio, tuf, a gente, e todo mundo ia sair ganhando. É incrível, quando ela acaba de declamar”, ele ficava maravilhado. Aí nisso eu já estou vendendo, eu tenho meus pontos, aí eu já começo a ficar conhecida porque eu ando muito. Começo a ir a muitos eventos, já assisto a peça de teatro, aí já assisto show. Aí nisso eu vejo tal coisa e começo a criar melhor, a minha poesia começa a melhorar muito também, vendo essas outras artes, né? E aí eu descubro também o mundo das Artes Plásticas, que eu adoro. Começo a visitar museus, exposições. Eu tenho casa os panfletos das primeiras exposições que eu visitava. Caixa Econômica, ali na Paulista, tem um outro lugar, o Itaú Cultural, sabe, esses lugares, que aí é ponto de venda também. E falava: “Deixa eu dar uma entradinha, meu, já que está fraco as vendas”. E começo a ir pra debates, participar, já começo a entrar nos movimentos sociais. Eu participei muito da Marcha das Mulheres, participei do movimento da população em situação de rua, por causa da Ocas. Participei de vários movimentos negros, da mulher negra, da população negra. Da moradia, participei com o MST. Só que assim, eu me decepcionei um pouco quando eu vi os dirigentes do MST, eu falei: “Meu, não vou seguir isso, não é isso que eu acho que é a solução, pelo menos pra mim, para eu ter uma casa. Eu quero ter uma casa, mas não quero entrar no que é dos outros”. Porque a minha mãe ensinava a gente que invadir: “Não invada nada que não é seu”. E eu começo a criar essa ideia e largo o MST.
P/1 – Nesse momento você já tinha material pra fazer o seu primeiro livro?
R – Não. Isso aí, nesse ínterim, entra uma moça na Ocas, uma professora da T.O., a Débora Galvani, maravilhosa, concluiu a tese dela antes de ontem na Psico, lá na USP, foi lindo, eu estava lá pra ver. Aí ela conclui e essa moça vai trabalhar no projeto lá na Ocas. Só que isso dentro da Ocas tem várias oportunidades, toda obra é aceita, aí tem a parte da tecnologia, tinha um programa lá que dentro que eles instalam em presídio, ontem tem morador de rua e tal, instalou uma unidade na Ocas e aí escolheu um educador pra estreia, e escolhe, que aí eu já estou na EJA, já estou com a letra boa, consciência e eu fico nesse projeto. E nesse projeto deslanchei, aí já começo a aprender. E nisso eu vou pegando as minhas poesias dentro dos computadores da Ocas mesmo, digitalizando. Aí o jornalista também, na oficina de texto: “Ó Pilar, é assim”, cada um ensina uma coisa e eu pegando. E eu já monto essa brochura e eu já faço uns livrinhos para eu mesma vender, com desenho da Samanta ainda. “Desenhar pra você eu desenho”, ela desenhava e eu vendia. Aí começa a ter aquela valorização. Nesse projeto ela vai e faz o Palavras Inacadêmicas. Ela fala: “Pilar, como você quer que o seu livro chame?”, do projeto dela com as alunas da T.O. “Pilar, tem tantas meninas, vão ficar, gente, tudo o que a Pilar precisar vocês vão ajudar”. Ajuda eu, ajuda outros meninos que moram no albergue, outros que saíram da cadeia, esse povo. O projeto dela era para ajudar essa gente excluída na sociedade. E aí a gente bola um livrinho Palavras Inacadêmicas, que eu vendi muuuitoo, ganhei muito dinheiro com esse livro. Aí eu falei: “Gente!”, aí eu começo a ir pra Flip, onde você em conhece, né? E lá...
P/1 – Só um momentinho, só para eu entender aqui. Nós estamos em 2015, você entrou na Ocas em que ano?
R – Tem 11 anos que eu estou na Ocas.
P/1 – 2004.
R – Isso. Porque aí a gente já está famosa, as duas bonitas, eu e a Samanta. A Samanta já está cantando, ela já está cantando com os meninos, um grupo que eles tinham, que era o Jairo, o Kênia, conhece o Kênia K?
P/2 – Conheço.
R – Então, eles montam um grupo, aí a Samanta também está cantando com eles e tal. Mas tudo ela quer dinheiro e ela vê que não ganha nada (risos). E a gente ralava pra caramba porque a gente andava, pra voltar pra casa era osso. E tinha dia que nós não tinha dinheiro pra tomar um negocinho, comer. Às vezes chegava com fome no sarau e aí ela começa a se encher disso tudo, daí ela começa também a sair pra trabalhar. Nisso ela trança meu cabelo, a pessoa me vê com o cabelo trançado: “Ah, quem fez?” “A minha filha” “Ah, manda ela trançar o meu”, aí ela começa a virar trançadeira. Ela vai na galeria, faz um teste: “Mãe, vou trabalhar”. Falei: “Samanta, sério?” “É, pra ficar trançando”. Aí ela vai pra galeria, começa a ganhar pouquinho, mas ela já está trabalhando. Aí as coisas começaram a melhorar pra nós, né? Dinheiro de condução, essas coisas não tinham nem dinheiro da condução, muita coisa a gente ia a pé.
P/2 – E você chegou a criar algum sarau?
R – Criei depois de muito tempo. Ah não! Em 2004 a gente criou o Vai Quem Quer. Eu e a Samanta, lá em Taboão, Vai Quem Quer. No primeiro dia foram cinco pessoas, porque gostava de nós. Aí tem o Preto J, que faleceu, ia até trazer a foto dele, mas falei não. Não vou mexer com essa saudade, né? Que eu não quero sentir dor. Eu só quero sentir alegrias, determinei isso pra mim a partir de muito tempo atrás da minha vida, chega de chorar o que já foi, vamos viver de alegrias e das coisas boas que estão vindo. Nesse sarau que a gente criou foram essas primeiras pessoas que gostavam da gente, mas a gente fez uns quatro sarauzinhos, viu? E foi gente. Eu falei: “Samanta, então vai gente” “Ai, mãe, esse gatos pingados!” “Mas vai, não importa”. E da minha esperança é que iam pessoas ver nós, participar. Aí microfone aberto. Aí o barzinho, depois esse barzinho fechou, onde nós fazia que era lá perto do Parque das Hortênsias, no Taboão, não lembro mais nem o lugar direito. Aí, a Samanta: “Lá vem a minha mãe com as loucuras dela”. Aí paramos um pouco. Eu retorno com esses saraus um tempo depois. Mas eu organizo coisa na minha casa, festa na minha casa, eu organizo uma coisinha aqui, uma coisinha ali e sempre participando com o pessoal. Aí faço, ali na Casa Amarela de Santo Amaro, Espaço Cultural Júlio Guerra, eu faço um evento lá. Eu fiz vários eventos por aí, assim, que acabou me dando um destaque como organizadora, agitadora.
P/1 – Eu te interrompi, você ia falar da Flip, que você foi à Flip.
R – Isso. Porque aí a gente vai pra Flip com a Ocas, vender a Revista Ocas. Esse mesmo vendedor que me levou pra Ocas vai pra Flip com a bolsa cheia, ele e um outro colega, e pode vender a Ocas ali. Aí eles vendem muita revista: “Menina, você tem que ir, é bom”, aí ajeitam e me levam. Acho que a primeira vez que eu fui... tem uns cinco anos que eu vou na Flip, completou ano passado. Eu começo a ir e começo a conhecer esse sarau de rua também, essa coisa de rua. E essa força minha na rua. E nisso eu já estou dançando afro também, porque aí eu faço um barulho com afro lá na Flip. Aí um ano eu levo um menino pra tocar tambor comigo, eu já tenho esse corpo dançante porque eu já estou estudando há três, quatro anos essa dança do oeste africano que eu estudo, estudei bastante, acho que estudo ainda. Mas hoje eu crio essa dança, não estou seguindo corretamente como ela é, eu crio minhas coisas, com a minha poesia, minhas performances. E estou ficando famosa com isso, com essa performance. “Ai, a Tula está criando”. Aí fui fazer um pouco de dança do ventre também, não essa dança do ventre arrumadinha. E aí, claro que eu trabalho com a sensualidade, começo a fazer sarau erótico, eu e o Binho. Aí fizemos o quê? Quando o Binho tem o bar, aí organizei sarau no Bar do Binho também. Ali a gente começa o sarau erótico também, dá outro enfoque pra nós. E as coisas vão mudando. Nunca mais é aquela Pilarzinha de antes, né, é a Pilarzona, o Pilar mesmo, a base.
P/1 – E fala do seu livro.
R – O Palavras Inacadêmicas?
P/1 – É, fala que tipo de temas você aborda no livro?
R – Então, ele era bem simplesinho. Ele é xerox, mas é o que a gente tinha. As meninas me arrumam esse papel, elas aprontam e a Professora Débora Galvani, uma época ela arrumava direitinho na gráfica, lá na USP. E aí ela: “Pilar, quantos você precisa?” “Preciso de 400, preciso de cem”, ela ia fazendo e me entregava e eu vendia. “Débora, acabou” “Não, vou fazer mais”, aí fazia mais. Pelo projeto dela da T.O. E aí ele aborda poesia, tem uma poesia erótica, tem uma sensual, tem a história da galinha que é fantástica, agora eu aprendi a contar história, eita! Que essa história da galinha é inspirada na minha infância. Minha mãe contava história pra nós, hoje eu conto a história pros meus filhos e eu falei: “Por que não uma historinha pra criança?”. Essa galinha é muito fofoqueira, é uma galinha muito fofoqueira, que quando eu tinha oito anos minha mãe me deu o couro porque eu contei um negócio da vizinha lá e minha mãe: “Não era para você ter contado! Nesse lugar que a gente mora, esse buraco aqui”, aí é Alto do Minério, né? “Os bandidos aqui tudo dá tiro, menina, você está louca! Você conta um negócio desses, os bandidos vêm aqui e matam a gente”, tal. E me dá um couro. E essa galinha que eu falo da historinha remete a minha infância. Porque essa galinha, os bichos dão um couro nela pra ela parar de fofocar. E ela fica toda feia, perde as penas bonitas, que ela é toda bonita, toda vaidosa. E ela fica toda detonada porque os bichos batem nela, dá com chinelo, pau, pedra, historinha pode, né? E aí eu contei domingo, inclusive, no Ibirapuera lá com a Kiusan Oliveira, um projeto lindo que ela fez esse primeiro, vamos ver o que acontece, na frente do Museu Afro, e ela chamou os contadores. Eu falei: “Ah, vou participar com você”. E aí eu contei. Que eu faço um teatro também. Eu sou muito teatral.
P/1 – Estamos vendo (risos).
R – E eu tenho muita mania de imitar os outros, igual eu imito minha tia, imito os outros falando, e é meio instantâneo, natural. E as minhas crianças gostam muito disso e mim, eu sou muito palhaça, sabe? E aí eu contei essa historinha, já contei em muitos lugares que eu vi como a criançada fica. E aí que eu acho bacana, que eu já contei essa história em um lugar com crianças ricas, chiques, elas não têm preconceito de cor de pele. Eu contei a historinha e elas ficaram felizes com a minha história. Eu falei: “Meu, é isso! Poesia não tem cor”, então eu tenho que trabalhar de uma forma... eu estou tentando também combater um pouco esse racismo besta. Porque antes: “Ah, eu vou me inscrever só pra coisa afrobrasileira. Tem que ser negro, negro, negro”. Não vou ficar escrevendo só pra negro. Então na minha poesia tem uma ou outra que fala de negro. E nesse livro que você perguntou tem uma poesia que é um caso que eu vivi com um cara, um negão, e aí eu coloquei na poesia, um romance. Só que quando eu falo que o cara é negro a decepção assim era geral no sarau, era geral. E aí um dia um cara falou: “Mas só um negro que pode? Não pode ser outro tipo de homem?” (risos) E eu fiquei muito sem graça com essa pergunta. Eu falei: “Nossa, é mesmo”, aí eu fiquei um pouco chateada porque eu falei: “Meu, eu não estou desmerecendo os outros homens que não são negros, é que eu estou falando de um homem negro que eu tive um caso com ele”. Mas eu fiquei chateada. Então agora eu tento não pôr cor na minha poesia, entendeu? Dos mais pra cá, que eu vou escrever. E essa poesia da mulher também, que a Ocas publicou que é a Formas Feminis, eu quis por Formas Feminis porque eu vi que em grego, hebraico, feminis é o feminino, né? Eu achei bonito, então eu acho que a gente lê tanto que você começa a inventar coisa. E aí eu coloquei Formas Feminis, que essa que é a polêmica, que eu quase apanhei. E eu falo, ela está todas as mulheres, ela não tem cor. Porque ela está falando da sensualidade da mulher. E aí um cara um dia falou pra mim assim: “Você fez uma ode às mulheres”, eu, “Ode, o que é isso?”, aí fui pesquisar. “Ah, uma ode às mulheres”, aí eu achei bonito. Eu falei, é uma ode às mulheres.
P/1 – Pilar, você é uma boa contadora de história, a gente passa o dia aí gravando porque tem muita história, mas nós estamos chegando ao final da entrevista. Mas eu queria que, o Jonas tem a pergunta dele de encerramento e eu queria que você contasse um pouquinho, resumidamente, o que é esse seu trabalho em cima do Quarto de Despejo, da Carolina Maria de Jesus.
R – Ah, então, porque foi o centenário dela em 2014, ano passado. Aí um pessoal começou a falar: “Pilar, centenário da Carolina, então vamos trabalhar sobre Carolina”. E a menina, a Jaque lá da USP, me emprestou o Quarto de Despejo, ela falou: “Pilar, é a sua cara essa mulher”.
P/1 – Ah, você não conhecia.
R – Não. Não conheci a Carolina Maria de Jesus em momento algum da minha vida. Quando eu li eu falei: “Meu Deus, sou eu essa mulher! Sou eu ontem!”, e aí eu fico pensando: “Será que eu poderia ser a reencarnação?” (risos) Mas não, quando eu nasço ela já tem uns 24 anos, eu acho, por aí, e ela já está em São Paulo, porque ela é mineira também, de Sacramento. E a gente é mineira, a gente teve três filhos com três homens diferentes, os três homens sacanearam com a gente. A gente passou fome, a gente morou na favela. A gente catou, porque teve um período que eu não contei, mas eu fui catadora em um determinado período, quando o Pedro era pequenininho, que eu resolvo não ser mais doméstica. E eu brigo com essa minha última patroa, saio da casa dela e falo: “Nunca mais vou limpar chão da casa dos outros, você é a minha última patroa”, falei pra minha patroa. Porque a filha dela brigou comigo enquanto a mulher não estava em casa e eu me enchi: “Chega de ser doméstica!”, aí eu descubro que eu tenho esse poder pra escrever. “Pra que eu vou limpar chão se eu posso manejar a caneta?”, tanto é que eu falo na poesia da Carolina: “Vassouras eu não quero mais/ porque agora a caneta é o meu troféu/ Borda as palavras no papel/ É tudo o que eu quero dizer/ Porque sou uma Carolina”, aí eu vou discorrendo assim. E as pessoas se emocionam muito com essa parte, tem um monte de amigas minhas que conhecem a minha história, choram.
P/1 – E você fez uma performance?
R – Fiz uma performance teatral, que aí eu me visto de Carolina e eu venho falando um pouco dela e de mim, ao mesmo tempo. Aí eu entro lá em 1968, Quarto de Despejo, aí falo um pedacinho do Quarto de Despejo, aí volto pra cá. 1980 chega a São Paulo, pá, volto pra mim. Aí o tempo todo são duas que tem horas que as pessoas falaram pra mim, não sabe quem é quem, mas sabem que eu estou contando uma história e é legal o final. Aí no fim eu falo: “Hoje estou de salto alto/ Vestido decotado, meio curto e com babado/ Estou na sala de estar/ No meu sofá aveludado/ Porque.../ Sou Carolina/ Feminia e poesia/ A negra, escritora, que foi do Quarto de Despejo aos programas na TV./ Sou Carolina/ Feminia e poesia/ Pobreza nunca mais/ Porque a caneta é meu troféu/ Borda as palavras no papel/ É tudo o que quero dizer…” E vou descorrendo por aí porque a Carolina falava que quando ela ficou bem e comprou o sítio dela, ela falava muito dessa sala de estar, sala de visita, né? A sala de estar que em Minas isso também tem um significado muito grande pra nós, a diferença de você poder sentar na sala. E a gente negra não podia sentar na sala de visita da casa da patroa, a gente só podia ficar na cozinha. Mesmo conversando, passava, conversava em pé com a visita, mas não podia sentar. Então essa sala, hoje estou na sala de estar, eu estou no meu sofá aveludado porque eu tenho o meu sofá na minha casa, o aveludado foi só pra incrementar, né? E a nossa história. E aí eu faço a performance, eu tenho um vestido que eu separei pra ela, amarro o lenço. O lenço que eu amarro pra Carolina, ele me remete à minha mãe um pouco também, então tem um pouco da minha mãe também aí nessa Carolina, essa mulher forte que era a minha mãe, aquela negra com lenço na cabeça eu lembro sempre. Eu tentei achar uma cor de pano que lembra os lenços da minha mãe. Eu ganhei um lenço que lembra o lenço da minha mãe na última performance que eu fiz eu estava com esse lenço, da última vez eu botei esse lenço que lembra. E aí eu boto e faço a Carolina e cato papelão também. Porque nesse período que eu catei papelão, latinha, a latinha tinha o preço em dólar, então valia muito dinheiro. Então eu consegui o dinheiro pra comprar fralda pro Pedro ali porque aí ele entra na creche e não pode mais usar a fralda de pano. Eu falei: “Com que dinheiro eu vou comprar fralda pra esse menino?” Nem eu virando prostituta, que eu não tenho coragem de ser, que eu já tentei, mas não é isso, não vou conseguir. E aí eu falei: “Meu, eu vou ter que fazer alguma coisa”, aí eu começo a juntar latinha, PET e papelão. E aí ia no ferro-velho e vendia, juntava, juntava, juntava, de noite eu venho. Aí quando eu volto dos saraus, eu vou subindo o morro e catando no lixo as PETs, aí faço aquele fardão de PET, amassa, arruma bonitinho, e era separada por cores também, então tinha um valor. E vendo. Então, quer dizer, eu também fui catadora, né?
P/1 – Entendi. Olha, você tem que avisar quando tiver essa performance pra gente assistir, hein?
R – Aviso sim. Vira e mexe nós vamos mexer com ela ainda porque ainda está recente.
P/1 – Que legal.
R – É. E no final eu termino, eu ponho um sofá lá, invento lá, jogo um pano, o salto alto e um vestido chique, que é pra Carolina. Aí termina assim, termina o chique.
P/2 – Eu queria que você contasse um pouco desse sarau que você faz, o Cadim de Coisa.
R – Então, resolvi fazer o Cadim de Coisa com relação com a menina mesmo, menina mineira, a minha mineiridade. E essa comida. Então, quando eu comecei na sala no projeto que eu estudava, Trecho 2.8, fotografia, pesquisa, pra pessoa em situação de vulnerabilidade social. E nessa sala a professora deu a oportunidade de fazer o Cadim de Coisa lá. A professora Grácia do projeto ajudou a bolar o Cadim de Coisa e mais essas meninas da T.O., da USP, também. Elas sempre elaboraram junto comigo. Aí foram várias palavras que a gente fala em mineiro.
P/1 – Mineirês.
R – É, mineirês. E o Cadim foi o mais bonitinho assim. O Cadim de Coisa, é isso mesmo. Aí vem um cadim de poesia e um cadim de comidinha. E aí eu servia sempre alguma coisinha, assim, simples, de eu fazer a carregar, porque a minha...
P/1 – Ah, tem comida no sarau?
R – Tem comida mineira.
P/1 – Ah...
R – A minha ideia mesmo, eu quero ampliar esse projeto, ainda tenho que ter recursos, talvez escrever um dia ele pra eu poder fazer mesmo com comida pras pessoas à vontade, eu tenho muita vontade de fazer o frango com quiabo ainda, que é um prato tradicionalíssimo, todo mundo gosta, né? Mas eu não tenho grana pra fazer isso. E eu comecei com farofão, menino! Lá no Paço Cultural Júlio Guerra, que era a Casa Amarela em Santo Amaro. Quando eu fiz lá, fiz um desfile afro, fiz o sarau com desfile, a Samanta chamou as coleguinhas, tem até a fotinho, queria até trazer. E a gente faz, chama essas meninas, amarra uns panos, bota uns negócios, pinta e faz o desfile. E eu falei: “Meu, vou levar uma farofa pra comer”. E essa farofa, minha mãe contava como minha avó preparava essa farofa pros homens irem pra roça trabalhar fortalecidos porque eles vão ficar o dia inteiro e ia voltar depois com fome, então minha avó fazia essa farofa com sustância e ela tem, bota couve, linguiça, que naquela época a linguiça era resto, algumas coisas, pros senhores, aí a minha avó fazia. E aí eu faço esse farofão. Eu falei: “Mas o povo vai rir da minha cara, essa mulher é farofeira mesmo, né?” Imagina! Comeram tudo! Eu falei: “Meu, a farofa é gostosa”. Todo mundo: “Pilar, que farofa boa!”. E aí o primeiro Cadim de Coisa que eu fiz eu fiz a farofa. Limparam o prato. Eu falei: “Nooossa”, e aí eu comecei a exercer esse poder também, da culinária, né? E juntar com a poesia. E aí a dança afro. Eu sempre faço a dança, aí eu chamo o cara pra tocar tambor, eu quero ampliar isso, quero ter grana pra chamar os caras que eu estudei com eles mesmo pra oficializar um pouco a dança porque eu faço o afro mas picadinho, de acordo com o tambor que tem. Mas o importante é botar esse corpo. E tem muita poesia que eu estou trabalhando com esse corpo. E aí a poesia que eu escrevi pra minha avó também. Que a minha mãe falava que a minha avó, quando a escravidão acabou a minha avó tinha 12 anos e ela tinha marca de chicote nas costas. Por isso eu falei eu sou danada, a Dandara é danada e penso que a minha avó era danada. Por quê? Pra ela ser uma criança com 12 anos com chicote, marca de chicote nas costas, no mínimo ela era muito malcriada. E eu era muito malcriada quando era pequena. Eu não era malcriada, eu era ousada, eu falava: “Não, por quê?”, discutia com a patroa, principalmente. E minha mãe: “Minha filha, você tem que ficar calada, dona Fulana tem razão”, eu falei: “Mãe, não tem razão, tudo a senhora aceita, não é assim”. E das últimas vezes eu mais a minha mãe brigamos muito por causa disso. Eu falei: “Tá vendo, a senhora aceitou tudo, agora a senhora está doente aí, ninguém deu nada pra senhora”. Ainda bem que essa mulher deu esse terreno lá, porque esse povo que ela trabalhou em Laranjeiras, que ela falava tanto, 35 anos pra uma família só ninguém deu nada pra ela? Eu falei: “No mínimo um pedaço de terra a senhora tinha que ter tido ali e uma fazendinha pra senhora”. Eu falei: “Comigo não, não vai ser assim”. Então desde criança que eu sou brigona, de brigar pelo meu espaço, pelo que eu quero, né? E eu sou assim até hoje, aí eu fico analisando. Esse é o meu jeito. E essa poesia mesmo, quando o pessoal começou a falar: “Ai, essa poesia, só você escrevendo esse tipo de coisa”, depois que a Ocas publicou: “Nossa, essa revista gosta mesmo de você, hein? Maior respeito”. Aí mudou, sabe? Tipo assim, não era indecente? Como que agora tem valor? Porque está publicado, né? Nesse sentido. E o Palavras Inacadêmicas tem essa poesia, tem a coisa da cachaça, tem a história da galinha. Ele tem 26 páginas, mas eu quero ampliar ele quando eu puder, que tem que ter grana, e para eu ter um grande livro pra vender e ganhar mais dinheiro (risos).
P/2 – A gente vai fazer as duas perguntas de encerramento, e ia perguntar qual foi a coisa mais bonita que a poesia te trouxe?
R – A coisa mais bonita que a poesia me trouxe, olha, que eu ainda acho é esse sucesso que eu sou hoje, que eu faço hoje, me tornar conhecida e respeitada, e ainda gosto muito dos aplausos (risos). Os aplausos pra mim, quando eu ouço aquele clap clap, porque já tem muitos lugares que eu fui aclamada de pé, né? E recentemente eu fui numa escola com o Sarau do Binho, e eu fiz essa poesia que eu conto da minha avó, minha avó chicoteada aos 12 anos de idade, apanhou por rebeldia, desobediência e vou, e me pergunto o que é a consciência negra na poesia, por que consciência negra, pra quê consciência negra? E era um grupo, tinha mais de cem crianças nessa escola, o Geraldo Magela do Brasil, lá do Taboão tocou tambor pra mim, o tambor comeu ali. E eu dancei depois pras crianças. Tinha uma professora negra que tinha escrito uma poesia também, contando dessa ancestralidade dela que casava um pouco com a minha e eu quis fazer essa homenagem pra essa senhora. E quando eu terminei, cara, aqueles aplausos, aquela meninada, assim, pirou. “Que linda! Você é maravilhosa”, e clap clap, aqueles aplausos, eu falei: “Meu, que louco!”, fiquei muito emocionada. E também na Fundação Casa um valor muito grande que eu entrei naquela sala e vi aquelas crianças trancadas, e aí numa sala com 40 crianças. E a pessoa que me levou mesmo não brilhou tanto, mas eu peguei uma poesia que eu escrevi pro meu filho, Se Liga Moleque. E falei: “Como vocês são tudo meninas, eu vou colocar no feminino – Se Liga Moleca!” e comecei a declamar a poesia pra elas no feminino. Meu, e elas ficaram tão emocionadas, e aqueles aplausos naquela sala fechada, 40 meninas mais os monitores aqui do lado, vigiando, né? E aquele aplauso, o som daquele aplauso. E depois essas crianças fizeram um rap, assim, baseado em mim ali na hora. “E aí tia, vou mandar pra senhora/ Tia não, senhora/ Essa aqui é pra senhora/ Senhora, essa aqui é pra senhora”. E fizeram uns raps pra mim e uma escreveu um negócio e me deu, está guardadinho. E esse valor, sabe? Esse valor de transformar a vida dos outros, acho que a poesia, a minha atuação, pelo menos, que eu faço nos palcos aí, muitos palcos, né, já fui aí por esse mundão de meu Deus. Porque lá na África do Sul eu também aprontei umas coisinhas lá, não tinha como eu falar poesia praquele povo em inglês, mas eu fiz um corpo lá com tamborzinho de um cara que estava lá. E quando eu estava junto com eles cantando Shosholoza lá. “Shosholoza, Kulezo Ntaba/ Stimela siphume South Africa/ Wen'uyabaleka/ Kulezo Ntaba / Stimela siphume South Africa”. Junto com aquele povo, aqueles negão assim, eu ali junto, foi maravilhoso. E a viagem pra Buenos Aires. Isso, meu, eu falei: “Estou aqui porque eu sou poeta! Sou artista!” E eu lembro quando eu falava: “Mãe, eu vou ser artista!” “Mas é louca, menina. Tomara que você não fique na casa dos outros limpando chão, mas artista, né?”. E lá em Buenos Aires, quando eu encontrei a minha irmã, 16 anos depois, que a gente se abraçou. E eu falei pra ela: “Então, você está vendo? Eu não limpo mais chão. Você lembra que você falava que eu ia virar prostituta porque eu tive um monte de filho? E que eu era muito simples e religiosa e não ia deixar de ser doméstica nunca? Então, agora eu sou poeta! Você está vendo? Eu estou aqui no hotel cinco estrelas e vim te visitar porque eu sou poeta”. Isso, dinheiro nenhum nunca vai pagar na vida, né? E aquela experiência que a gente viveu lá, e lá em Buenos Aires quando muitos poetas começavam a falar as pessoas levantavam e iam embora porque não estavam entendendo. E aí a Sheila, na hora que eu fui declamar falou: “Pilar, faz aquela da dança, por favor! Aquela, ‘Rufa os tambores’”. Eu falei: “Mas não tem o pano”. Ela tirou a echarpe assim: “Agora tem!”. Aí eu amarro a echarpe e o Geraldo com um tamborzinho desse tamanho, o Geraldo Magela do Brasil sempre abrilhantando meu trabalho, toca o tamborzinho e eu começo a fazer corpo. E foi juntando gente assim no stand, stand de Brasil, né? Brasil, la negra, la negra. E aquela coisa, né? Depois os aplausos. O som daqueles aplausos na minha vida foi hilário, não tem dinheiro que pague, jamais.
P/1 – Pilar, então pra terminar, uma pergunta que a gente faz pra todo mundo é o que você achou de contar aqui a sua história de vida pro Museu da Pessoa?
R – Ah, eu achei incrível! Porque acho que as pessoas vão me entender melhor agora (risos), muita gente fala que eu sou doida, outros falam que eu sou maravilhosa, e eu mesma estou me entendendo um pouco, porque você começando lá do comecinho da minha infância e tudo o que eu gosto de fazer está lá na minha infância. E tudo o que falaram ‘isso não é pra você’, hoje eu estou fazendo. Então quer dizer, é uma coisa que eu tinha dentro de mim e que eu sonhava, acreditava que eu vou fazer isso um dia e hoje contando a história eu estou vendo essa força, do você querer, do você poder. E sábado eu fui no Espaço Cachoeira, que até falei que aqui tem um pouco do Cachoeira porque o Cachoeira conta as histórias das culturas populares brasileiras. E eles fizeram os DVDs da Comunidade do Jabotá em Belo Horizonte, minha cidade. Quando eu vi aquele povo de Belo Horizonte, e eles dançando com umas Congas nos pés, assim. Ontem na biblioteca, que eu fui declamar com as crianças na brechoteca, um pé de latinha. Achei esse pé de latinha, que eu ganhei do senhor Geraldo da Comunidade Jatobá. Eu falei: “Moço, estou fazendo um trabalho com a minha poesia, me vende um trem desse” “Minha filha, isso aqui não é pra vender, não”. Aí começamos a conversar, ele falou: “E se eu te dar? Eu vou te dar pra você”. E era meu aniversário, dia 25 de abril, sábado passado. Aí ele me deu o negócio. E aí eu comecei a dançar e falei. Aí eu perguntei pra chefe, a menina da Congada: “Posso dançar com os caras?”, porque só tinha homem. E eu fui acompanhando eles assim. Então falei: “Meu, isso esteve presente na minha infância inteira”, que a minha mãe levava a gente pras congadas lá. E eu vi aquilo e hoje eu falei: “Eu ganhei uma conga, eu estou dançando! Eu estou fazendo dança, estou fazendo poesia”. E contando a minha história hoje eu estou vendo o quanto tudo isso já estava aqui dentro. Agora eu tenho oportunidade de desabrochar, o quanto as histórias, os livros que eu li na estante estão aqui dentro. E todo mundo sempre falou: “Isso não é pra você” “Larga essa caneta, menina! Seu negócio é a vassoura”. “Vassoura eu não quero mais/ porque a caneta é meu troféu, né?/ Borrar as palavras no papel”. Então, essa história pra mim, e hoje eu também estou cantando com os caras. E já fui comparada com Sarah Vaughan. Ella Fitzgerald, estou estudando a história dela, chorei muito, foi uma passagem difícil que ela teve aqui nessa terra, mas ela deixou essa música linda. E ouso cantar Ella Fitzgerald, principalmente pelo meu inglês, que eu aprendi lá na casa da patroa, mas hoje eu aperfeiçoei ele. Porque quando eu vim pra cá: “Ah, você não sabe conversar, você não vai sair comigo enquanto você não aprender a falar”. E hoje eu converso em inglês, eu fui pra África do Sul e falei em inglês com os caras, né?
P/1 – Que beleza!
R – E é isso. E contando a minha história tudo isso vem e, graças a Deus, eu só tenho a agradecer as boas forças da própria natureza que deu esse dom pra gente. Então o que é pra você ninguém tira, né? Tudo que não era pra mim, aí, está acontecendo.
P/1 – Bem, Tula, muito obrigado. E palmas para você (palmas).
R – Boa! Palmas pra nós (risos). E muito obrigada pela grande oportunidade.
FINAL DA ENTREVISTA
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