PCSH_HV0917_EMANOEL_ARAÚJO
Entrevista de Emanoel Araújo
Entrevistado por Karen Worcman e Day Rodrigues
São Paulo, 17 de setembro de 2020
Projeto Conte Sua História – Vidas Negras
Entrevista número PCSH_HV0917
Transcrita por Selma Paiva
P/1- Então, eu ia te fazer um pedido que eu tenho feito ultimamente, tá bom? Que é fechar um pouquinho o olho e... respirar um pouco.
R- Hmmm. (riso)
P/1- Porque aí eu vou te pedir, Emanoel, pra você, dentro de você mesmo, tentar, respirando, lembrar assim só pra você, as primeiras lembranças da sua vida, que você tem. Pode ser imagem, pode ser um cheiro.
R- Hmmm. Ai, eu não sei. Eu...
P/1- Mas assim, aí só fica aí um pouquinho, que aí eu vou te perguntar.
R- A minha primeira... as minhas primeiras lembranças são que eu fui um menino muito mimado, que eu fui o primeiro filho. E a gente, meu pai, naquela época, isso em quarenta, né? Meu pai... a gente tinha, era um tratamento muito especial, de brinquedos feitos pra mim, tal, tal, tal. E a gente teve uma vida muito... porque o meu pai não era de Santo Amaro, nem a minha mãe. Os dois eram migrantes. Em Santo Amaro, né? Então... mas eu não tenho muito lembrança, não. Tenho lembranças já de outras épocas, talvez. Mas eu me lembro de uma coisa, que uma vez, até, uma pessoa, um amigo meu fez uma árvore, uma árvore, né, de... como é que chama isso mesmo?
P/2- Árvore genealógica.
R- Não. Não era genealógica. Era uma, uma... era uma coisa de horóscopo, né? Um...
P/2- Mapa astral?
R- Hum?
P/2- Mapa astral?
R- Um mapa astral. E, nesse mapa astral, ele me contou uma coisa muito engraçada: que eu tinha caído do sótão onde eu morava, que eu tinha nove anos, tinha oito e pouco ou oito anos. E eu sabia disso, porque era um comentário, entendeu? E isso era um sótão de um sobrado que, por acaso, tinha aquele alçapão, eu caí lá embaixo, no meio de bacia, de coisas velhas guardadas e tal. E não tive nada, entendeu? Uma coisa tão engraçada. Isso ficou marcado, assim. Quer dizer: como é que você teve, caiu de três andares, três metros ou quatro metros e não teve absolutamente nada? Não tive. Mas a minha infância foi muito complicada no sentido... complicada não foi. Foi ótima, num certo sentido. Depois foi complicando, na medida em que você vai ficando mais velho, vai aproveitando na vida. Aí, a imagem que mais percorre a minha vida é da minha professora primária, a Dona Carminha. A Dona Carminha tinha sido, era a professora que tinha sido mais... que tinha sido a professora de todas as pessoas importantes de Santo Amaro. Era uma senhora já, avançada, eu acho. E era uma escola dela. E ela tinha... e a gente... e todo mundo tinha em torno de quatro a cinco anos, talvez seis. E a escola... e Dona Carminha era uma bruxa, uma mulher terrível, né? E o método de ensino dela era absolutamente medieval. Então, ela tinha banco pra você ficar ajoelhado. Tinha... ela olhava por debaixo dos óculos, via se você estava escrevendo direito. Tinha uma forma de corrigir a caligrafia. E que, quando ela via que o menino estava com a caligrafia, escrevendo a caligrafia assim e não assim, ela vinha e apertava com o dedo, o lápis com o dedo, o dedo com o lápis. Então, ela era uma pessoa terrível. E eu sempre quis dizer em minha casa que Dona Carminha (risos) não prestava, mas eu não tinha argumentos pra dizer, pra passar, né? Mas eu, depois, saí da Dona Carminha e virei o menino mais terrível de Santo Amaro. E aí eu fui pra escola primária. E vivia no meio da molecada. A gente ia caçar passarinho, a gente fazia todas as coisas (risos) daquela, dessa... jogava bola, entendeu? Era um grupinho de moleques, né? Podia ser os moleques lá de Jorge Amado, né? Então, era um grupo de moleques. E aí, meu pai me pegou um dia e disse: “Você não vai virar vagabundo! Você vai tomar jeito!” (risos). E eu disse: “Tá bom”. E aí ele me botou numa oficina, numa oficina de marcenaria.
P/1- Emanoel, antes da gente continuar, dessa oficina, eu queria voltar e perguntar um pouco da sua família. Quer dizer, primeiro o nome inteiro do seu pai e da sua mãe. E se você... dos seus avós.
R- A minha mãe chama... o meu pai era Vital Lopes de Araujo, né? Chamava Vital Lopes de Araújo. Minha mãe, Guilhermina Alves de Jesus. Eles não eram casados, porque o meu pai tinha sido já casado com outra pessoa, com outra senhora. Ele já tinha tido duas famílias anteriores à nossa. E minha avó chamava Andressa de Jesus.
P/1- Essa por parte de pai? Paterna?
R- Parte de mãe.
P/1- Mãe.
R- De pai eu não sei nada.
P/1- Nada?
R- Eu sei que meus tios eram também ourives, Zé Binho e tinha um outro. Mas a gente, eu nunca...
P/1- Você não convivia com essa família?
R- Não. Não era, sei lá. Não fazia parte, digamos, desse tipo de descoberta.
P/1- E eles não eram de lá, você falou, né, de Santo Amaro?
R- Não. O meu pai era do sertão, lá do... como é que chama aquele lugar, mesmo, lá? É da terra de Tom Zé, até. O Tom Zé é de lá. De...
P/2- Irará?
R- Irará!
P/2- Irará.
R- Minha mãe era de São Gonçalo e o meu pai de Irará. E o meu pai veio pra Santo Amaro porque ele, como ourives, tinha aquela coisa da safra. Meu pai trabalhava muito em função da safra, ou da cana ou do cacau, entendeu? Porque é quando tinha dinheiro na cidade. Então ele veio do sertão, já que ele também vinha de uma família de ourives. O meu avô, o meu bisavô, todos eles eram ourives.
P/1- Você consegue me explicar um pouquinho melhor essa ideia da tradição do ourives, de onde isso veio? Você sabe?
R- É uma tradição muito antiga, né? Quer dizer: era uma tradição... na Bahia, ou melhor, em Salvador era uma tradição muito importante. Mas era muito mais o ourives da prata, o prateiro, entende? O meu pai era uma espécie de ourives que fazia anéis, brincos. Ele tinha uma clientela. Aliança. Ele consertava também relógios. E ele tinha, fazia anéis de formatura. Teve uma época que era muito comum esse anel de formatura, né? Então ele fez, fazia muito anel. Até ele... no final ele tinha uma clientela muito grande de ciganos.
P/2- Lá em Santo Amaro?
R- Que vinha aqueles ciganos todos. Sempre tinham ouro, pra fazer aquelas argolas, aquelas coisas. Mas... então... e o meu avô chamava Tiburcio Alves Barreiros, que era um... fazendeiro, agricultor.
P/1- O seu avô era um fazendeiro?
R- É. E a minha avó foi criada pela primeira mulher dele, de Tiburcio. E Tiburcio... e minha avó teve cinco ou seis filhos, filhas, sobretudo, com ele, mas ela nunca quis casar com ele. Eu nunca entendi por que, mas ela nunca quis. Tanto que ele, aos setenta anos, casou novamente. Casou, quer dizer. Casou dessa vez com uma amiga dela. Mas ela nunca quis casar com ele.
P/1- Ela era o que, amante dele?
R- Ela era o que se chamaria hoje de concubina, né? Era mais do que isso, era a mulher de Tiburcio Alves Barreiros. Só que na eram casados. Não era amante. Ele não tinha outra mulher. E tinha as filhas todas.
P/1- E ela era a mãe de seu pai?
R- Não. Mãe de minha mãe.
P/1- Mãe de sua mãe. Essa era a família da sua mãe.
R- O meu pai eu não sei. O meu pai, eu não tenho a menor idéia de quem eram os pais dele.
P/1- E você sabe como eles se conheceram? Nada disso? Não se contava essas coisas?
R- Essas coisas não se contavam, não. Não tinha... não se verbalizava essa coisa dos encontros, tal. O meu pai era músico também. Ele tocava clarineta. Mas também largou. Com o tempo ele foi largando, largando, largando. E ele teve um grande _____(12: 45), ele teve. Ele teve, porque ele produziu muitas joias para a safra do cacau. E ele deixou com um amigo dele, guardado, essas joias todas que ele tinha feito. E ele... e esse depósito, desse dono dessa coisa de cacau, pegou fogo e ele perdeu tudo. E ele ficou um homem muito, muito ressentido com essa perda, vamos dizer assim. Então, ele era um homem meio, um homem meio duro, eu diria.
P/1- Como é essa sua lembrança de ele ser um homem duro, assim? Ele trabalhava em casa?
R- Trabalhava em casa. A oficina dele era a sala da casa. A sala de visita.
P/2- Como era essa casa? Você consegue me descrever?
R- Uma casa antiga. Uma casa de sala de visita, sala, que é uma coisa muito comum na Bahia, que é uma casa assim, que é uma casa, depois tem um corredor e os quartos. E no final tem...
P/2- Solo de madeira?
R- Ahn?
P/2- Solo de madeira?
R- O chão eu não sei se era madeira. Não, não era madeira. Eu acho que era tijolo. Sei lá. Depois, aí vinha a sala de almoço, ou de jantar e tinha a cozinha.
P/1- E quem, na casa, cuidava assim do dia-a-dia da casa?
R- Minha mãe.
P/1- Sua mãe.
R- Minha mãe é uma heroína. Teve onze filhos e cuidava da casa.
P/1- Então, você estava me contando um pouco o que significava ele ser duro.
R- Eu acho que a vida. Essas pessoas, naquela época, não tinham, sei lá, acho que não tinham... sabe, uma relação familiar é muito complicada nessas pessoas, de pessoas como o meu pai e talvez de outras pessoas também, né? Era uma coisa dura. As coisas foram empobrecendo a cidade. As pessoas foram desaparecendo, aquelas que consumiam as coisas que ele fazia. Então, era complicado por tantos filhos que ele tinha, tem que por pra escola, roupa, aquela coisa toda. Então, eu tinha duas irmãs, Letícia e a Olga foram estudar num convento. Nos humildes, que era uma escola tradicional. Depois a Letícia se formou em professora, a Olga em historiadora. Depois aí veio mais gente. Depois a minha mãe teve um derrame cerebral. Ficou dezesseis...
P/1- Então, você teve quantos irmãos? Porque ele teve outros filhos com outras, as primeiras mulheres.
R- Ele teve... é. Ele teve uma, a primeira mulher, a filha dele chama, chama... ai, como é o nome dela, meu Deus? Não vou lembrar agora, não. Mas mora aqui em São Paulo. Depois teve Noelia e Nilson, da mesma mulher. Depois teve uma terceira mulher, que teve o Romérico, esse menino. A minha mãe é a quarta mulher.
P/1- A quarta mulher.
R- É. Mas não foram concomitantes. Foram em tempos diferentes, né? Mas meu pai era, eu acho que um pouco isso, família é uma coisa... ele, com a sensibilidade que tinha de músico, de ourives... ourives é uma profissão muito sensível, porque lida com coisa, com ouro, lida com pedras preciosas, lida com... entende? E antigamente a ourivesaria era uma coisa muito, muito... era delicado o que se fazia, mas era muito bruto o ofício, entendeu? Porque o ofício, tinha que puxar o ouro, tinha que derreter ouro no carvão, aquelas coisas que tinham, inerentes da profissão de ourives. Hoje não, a ourivesaria é toda mecanizada. Entendeu?
P/1- E ele fazia tudo isso na sala da sua casa?
R – Da casa. Era. No corredor estava o banco de puxar ouro. E ele tinha a banquinha dele de ourives, que ele trabalhava sentado, fazendo coisas.
P/1- E você podia entrar?
R- Podia, mas ele não queria que os filhos... ele não queria, sobretudo, que os filhos fossem ourives.
P/1- Ele não queria que você fosse ourives?
R- Não queria que ninguém. Mesmo o meu irmão mais novo, que era o Vitalzinho, que era um dos últimos, tem o nome dele até, ele não deixou ser ourives. Ele não queria, achava que já era muita gente, muitas vezes ourives na família dele. Ele nunca quis. Mas ele era um homem muito... ele tinha comigo, eu tinha uma relação com ele muito difícil. O que eu tive uma relação infantil maravilhosamente com ele, a minha relação de adolescente foi muito difícil com ele. Nós tínhamos...
P/1- Na infância era boa?
R- Na infância foi uma maravilha. Mas nós tínhamos uma... ele tinha uma certa encrenca comigo, ele vislumbrava uma coisa homossexual que ele não gostava.
P/1- Então, eu ia te perguntar isso muito mais pra frente, mas eu vou perguntar...
R- Ele não gostava. Eu tinha certeza que ele não gostava. Ele tinha aquilo como uma coisa que não cabia na cabeça dele como sertanejo (risos), né? E ele não... além de que eu fui muito rebelde como pré-adolescente, né, eu fui muito rebelde, porque eu tinha ainda mágoa daquela escola da Dona Carminha. E eu, sempre que podia, era expulso da escola. E até o dia que ele disse: “Não. Você vai trabalhar e não vai mais estudar”. Mas ele, uma vez, por exemplo... aquela época era muito interessante, né? Porque era uma época que não é tão longe, né, tão longínqua, mas era uma época, as relações eram muito difíceis. Eu tomei surras homéricas.
P/1- Dele?
R- Dos dois. De minha mãe e de meu pai. E algumas surras assim, os dois juntos batendo: tá, tá tá. Puxavam aquela corda do banco de ourives e pá! Mas era uma coisa assim traumatizante. (rindo) E era engraçado que eu... por isso que eu digo: pancada não conserta ninguém, nem tampouco aleija ninguém, né? Porque eu tomei tanta surra.
P/1- Você lembra o que você sentia quando você tomava uma surra?
R- Porque a gente era moleque, entende? Então estava na rua, alguém jogava a bola, quebrava a vidraça de alguém, aí vinha: “’Seu’ Vital, o seu filho quebrou a vidraça da minha casa”. Aí pá, pá, pá. “’Seu’ Vital, está na rua jogando bola, caiu no rio”. Aí começa aquela coisa, entendeu? Era uma coisa assim, então a gente vivia um pouco solto, né? Depois eu fui trabalhar com o Eufrásio Vargas nessa... que não era... a oficina... quando eu cheguei na oficina, ele virou pra mim e disse assim: “Olhe”, ele era meio surdo e era um grande marceneiro da cidade. E ele virou pra mim e disse: “Eu fiz uma palmatória pra você. Começa com seis...” - e tinha aqui uma palmatória, escrita Emanoel (risos) - “começa com seis, depois multiplica”. (riso). Mas eu nunca deixei ele me bater, então, nunca tomei. Eu também me compenetrei, de que eu não era mais um moleque, que eu estava... porque ele já tinha me dado oportunidade, ele tinha me dado a possibilidade de pegar as ferramentas dele, que de mestre de marcenaria ninguém pega ferramenta, né? E ele me dava as ferramentas. Era uma época de móveis entalhados, que chamava chepandê. Eu não sei por que chamava chepandê, (risos) mas eram uns móveis que tinha, umas cristaleiras, que tinham no meio aquela... uma espécie de divisão, quer dizer, né, de madeira. E aqui era uma porta de vidro, aqui outra porta de vidro e geralmente eram entalhes de flores e tal. E aquilo tinha um debuxo, que se debuxava na madeira e ia fazer o talhe. Depois daquilo lá, eu fui pra trabalhar na Imprensa Oficial.
P/1- Me conta um pouco essa sua relação com a madeira. Você gostou? Porque você tinha raiva da escola, né?
R- Eu tinha raiva da escola. Não era raiva, propriamente. Eu era moleque. Eu, por exemplo, a escola tinha uma coisa... eu acho que os professores também não tinham paciência comigo, porque eu sempre inventava, fazia uma segunda voz no hino. Porque tinha esse maldito hino quando começava a aula. “Hoje é o Hino da Bandeira, hoje é o Hino da Marinha”. E tem esse Hino da Marinha (risos), nesse hino eu sempre fazia uma segunda voz e eu era expulso da sala. (risos).
P/1- Como é? Você lembra desse hino?
R- Esse hino, outro dia eu... esse hino quem canta é Dalva de Oliveira. (rindo) Descobri um disco que ela canta esse...
“Qual cisne branco, que em noite de lua Vai navegando no mar azul O seu navio também flutua Nos verdes mares de norte a sul”
Aí tinha: “Qual...”, aí eu fazia a segunda voz: “Qual aquarela...”. Aí eu fazia a segunda voz. E ela: “Fora! Fora! Seu moleque”. E ia pro meu pai, né? “Seu filho, mais uma vez, cantou o hino errado. Debochou do hino”. Porque nessa época tinha a aula de... como é que é essa coisa? Moral e Cívica. Essas coisas que tinha antigamente, (rindo) que até faz falta hoje, né? Porque, se tivesse hoje, seria bem melhor. Mas tinha todas essas aulas. Mas essa coisa do hino, eu não... (risos) eu já achava o meio pra fazer isso, ser expulso e ir pra bola.
P/1- Que aí você era expulso e ia jogar bola.
R- (risos) Eu cheguei a fazer um time de futebol. E esse time de futebol foi muito engraçado, porque eu pegava os jornais, vendia. Meu pai era craque de pagar jornal, tinha jornal, né? Juntava o maço de jornal e ia vender, pra fazer... comprar camiseta de futebol. (riso) E outro dia eu encontrei um amigo meu que estava dizendo: “Você tomou uma bolada e você desmaiou”, porque eu era goleiro. (rindo) O dono do clube, do time era eu, entendeu? E tudo ninguém sabia lá em casa, que eu tinha o time, entendeu? (riso) Era uma coisa, era um segredo meu. Então... mas eu tomei muita pancada, por isso. Mas isso... uma vez, pra você ver como ele tinha... a minha mãe era, além de ser a dona da casa, ela também o ajudava. Por exemplo: comprar ouro em Salvador, ela vinha comprar ouro, comprar pedra, essas coisas que precisavam para realizar alguma coisa, fosse uma joia, fosse um anel de formatura. Então, a minha mãe vinha comprar ouro, platina na cidade. E eu era o mais velho, ficava responsável pela casa. E, numa dessas coisas, eu comprei uma carne, que antigamente também tinha uma coisa que não tem mais hoje, né, que era carne sem osso e carne com osso. Outro dia eu estava lembrando que a gente, nesse tempo, é tão incrível, porque tinha... o feijão tinha bicho, o arroz, tinha de catar tudo isso, né? Era tão engraçado isso. E ele me disse: “Mas eu mandei você comprar carne e você trouxe carne com osso”, pá, na minha cara. A carne... tem até marca, até hoje, entendeu?
P/1- Ele jogou a carne em você?
R- Ele jogou a carne em cima de mim, com o osso. E eu... porque imagina se eu vou me preocupar se tem osso ou não tem osso, não era (rindo) a competência da gente, né? Mas ele não tinha, não perdoava. Mas eu tive uma época muito difícil com meu pai. Eu só me apazigüei com ele, o dia que ele morreu, que ele morreu no meu colo. Aí nós fizemos as pazes. (risos) O restante, não. Tão engraçado isso. Diferentemente da minha mãe, porque a minha mãe tinha uma certa cumplicidade comigo.
P/1- Então, como que era? O que era assim? Como era a relação com a sua mãe?
R- Minha mãe, era uma relação muito estranha. Porque a nossa relação, que eu deduzo até, eu não gosto dessas coisas, de falar, mas eu tenho impressão que essa coisa do signo e a minha mãe era do signo de câncer e eu de signo de escorpião. Então, sempre a gente tinha uma cumplicidade, os dois. Na hora de bater, batia, mas depois que virou já adolescente, já mais velho e resolvi estudar, foi ela que me possibilitou eu ir estudar. Eu disse: “Não. Agora eu quero estudar”. Então, eu já tinha dezesseis ou dezessete anos.
P/1- Você voltou?
R- Voltei a estudar. Tinha uma professora particular, que me fez subir até a admissão. Porque naquela época tinha admissão no ginásio, né? Então... e ela me ajudou muito. Foi ela que conseguiu me livrar daquelas circunstâncias todas, pra que eu estudasse.
P/1- Então, eu ia perguntar um pouco sobre isso, o que você lembra, assim? O estudo, a leitura, como era? Eles achavam isso importante? Você estava falando um pouquinho da sua mãe, né? E um pouco dessa coisa de estudo. Primeiro vamos falar do estudo. Depois, um pouco, se tinha alguma coisa com arte.
R- É. Tinha uma coisa muito interessante: minha mãe, quando me botou na escola, eu conheci uma professora chamada Dida. E a Dida era uma moça que tinha se perdido. (rindo) Dizendo essa coisa que tanto se usava naquela época: “Fulano de tal se perdeu”. E ela começou a dar curso particular, em casa. Então, eu tinha um curso particular com Dida, com a professora Dida, que era uma pessoa maravilhosa. E que me fez fazer o vestibular e passar no vestibular e tal, tal, tal. No vestibular, não. Na admissão, né? No curso de admissão. E fui pro ginásio. Agora, você me perguntou outra coisa...
P/1- Eu perguntei um pouquinho do estudo, se eles achavam importante?
R- Não. O meu pai era um... o meu pai também era uma coisa muito interessante. O meu pai fazia parte do Círculo do Pensamento Universal. Então, ele era um homem que tinha uma formação religiosa e também uma formação erudita, vamos dizer assim. A minha mãe, não. A minha mãe era uma mulher mais... uma mulher da casa, que tomava conta daqueles filhos todos, dar banho, não sei o que, pra trocar roupa de cama, fazer cama, fazer roupa. E, em Santo Amaro, tinha uma coisa muito interessante, que era, no Dois de Fevereiro, todo mundo tinha que ter roupa nova. Então, os rapazes tinham que ter roupa nova, as meninas também. Então, nós tínhamos paletó e tal. Então, roupa pra festa da cidade, né, festa da padroeira.
P/1- Dois de fevereiro?
R- É. Então, tudo isso era competência da minha mãe, até de juntar dinheiro pra fazer isso, pra vestir todo mundo, entendeu? Eu me lembro tanto de uma roupa que eu tinha, de panamá. Era uma época que tinha esse tecido chamado de panamá. (riso) Lembra disso? É um tecido...
P/1- É um linho?
R- Hein?
P/1- É um linho, assim...
R- É. Não era um linho, não. Eu acho que era um linho misturado com nylon, talvez, né? Era uma coisa que caía, né? (riso) Tão engraçado. Essas coisas são reminiscências de um passado recente e que desapareceu, praticamente, né? Como o catar feijão, catar arroz. E a gente comprava o arroz numa beneficiadora de arroz. Então, a gente comprava um arroz com... ainda com aquela pividizinha vermelha do arroz e tal, porque hoje é arroz à moda, né? (riso)
P/1- E a comida ela que fazia?
R- É.
P/1- E era alguma coisa assim típica?
R- Não. Era comida, tinha de tudo. Tinha bacalhau, tinha bacalhoada, né, que chamava bacalhoada. Tinha macarronada, essas coisas. Tinha cozido. Dependendo muito do (riso) tutu que tinha disponível. Mas era, era... ninguém morreu de fome. Todo mundo se alimentava.
P/1- Essa coisa que você falou, que vem de uma família pobre. O que é que significa uma família pobre, naquela época?
R- Pois é. Eu acho que todo mundo era pobre em Santo Amaro, né?
P/1- Não tinha uma família mais rica?
R- Não. Tinha uns ricos. Mas uns ricos que não eram ricos, que eram mais tradicionais. Que eram muito mais famílias tradicionais de Santo Amaro, que vinha daqueles barões do açúcar, né? Mas toda aquela gente era muito decadente, já. Já na década de quarenta já era decadente. Eu me lembro muito, muito uma coisa que nunca me saiu da cabeça, que era uma passeata dos trabalhadores da Usina Santa Elisa, que já não era mais um engenho, era uma usina de açúcar. E tinha um sujeito que vinha na frente, mas era um homem de dois metros, eu sempre achava que ele tinha dois metros e meio, (rindo) porque a gente não tem noção, né? Mas era um homem enorme. Ele vinha com aquela coisa. E atrás dele vinha um lençol pra gente botar dinheiro lá dentro. Porque era período mesmo do açúcar, né? A coisa do açúcar. E havia essa coisa da greve. Da greve, quer dizer, não era uma greve, era uma reivindicação salarial daquela gente. Eu me lembro muito desse homem, que ele era uma espécie de, meio bronzeado, era meio como se fosse um índio, mas era um homem enorme, ele tinha, um bicho, uma bitela enorme. E ele era amigo de meu pai. E ele parou na frente de casa e a gente deu dinheiro pra eles. Meu pai deu. Antes eu não podia, antes eu não mexia em dinheiro. E ele deu. Mas essas coisas que são... havia gente branca, gente, quer dizer, poderosa, mas poderosa de um passado que tinha acabado, né? Por exemplo: aquele Barão de Aramaré, que foi o pai do Teodoro Sampaio e tinha um sobrado lindo na beira do Rio Subaé. E elas chamavam (garapial? 35:18), porque eram umas mulheres muito altas. E uma dessas meninas foi minha colega de ginásio. E era uma gente... quer dizer: havia, na realidade, uma família importante, que era a família de Sinhazinha Batista, que era uma mulher branca, que houve uma época que houve um leilão de todos os mobiliários, todas as alfaias da casa e tá, tá, tá. E foi um bochicho em Santo Amaro, enorme. Mas essas coisas, não tinha, assim, coisas externas de riqueza, entendeu? Não existia. Eu acho que não existia. Existia a Festa de Purificação. Existia aquelas famílias que cuidavam do andor, da santa, dos andores dos outros santos, da missa. Tinha missa, tinha uma orquestra, tinha coro. As novenas eram dedicadas a certas famílias. Mas a gente nunca participou disso.
P/1- E como era essa coisa assim, negros, brancos? O que era...
R- Não. Não tinha.
P/1- Não tinha nada disso?
R- Não, não tinha. A primeira vez que alguém me chamou de negro foi aqui em São Paulo.
P/1- Até então, você não tinha vivenciado nada desse tipo?
R- Não tinha vivenciado. É tão engraçado isso, porque outro dia tinha... eu conheci o Sidney Amaral, um artista que eu gostava muito dele e ele... e eu ajudei muito, o que pude, ele, comprei muita obra dele. E ele tinha um irmão chamado Carlos, que tinha pros Estados Unidos, trabalhou lá e tal. E aí eu chamei o Carlos, quando o Sidney morreu. Morreu recentemente, que ele pegou um câncer de pâncreas, foi rápido, ele tinha vinte e poucos anos, quase trinta, trinta e poucos, talvez. E eu chamei o Carlos pra conversar sobre a coisa de negro. E ele não sabia absolutamente nada, ela era um alienado total. Engraçado, né? Ele, nunca passou na cabeça dele, certas questões. O pai e a mãe negros mesmo, não são, não eram mulatos. Ele era casado com uma senhora branca, os filhos são aquele tipo “barriga suja”, como se chama, como se diria na Bahia. (riso) Mas era assim. Então, não tinha essa coisa. Mesmo as garapial, que eram as descendentes do Barão de Aramaré, eram... depois tinha uma família, outra família que era uma família negra, que a mãe tinha sido casada, a avó tinha casado com um barão também e tal. Essas coisas mestiças do Brasil, mesmo. Essa coisa mestiça brasileira, que vale tudo. Mas não tinha, que eu me lembre. Tinha o Bembé de Santo Amaro que era uma festa do candomblé, dos candomblés, que Santo Amaro tinha, que também a gente não se envolvia com isso.
P/1- Vocês eram católicos? Sua mãe era católica?
R- Éramos. Mas católicos... minha mãe era com o meu pai, do Círculo do Pensamento. Mas não era... minha mãe nunca foi à igreja, que eu me lembre, o meu pai tampouco. Mas eu fui batizado, fiz Primeira Comunhão, toda aquela lengalenga, né? Mas minha mãe não tinha essa questão religiosa lá, não. Nem com a minha avó. Meu pai sempre dizia que, quando a minha avó vinha de São Gonçalo dos Campos, que ela morava em São Gonçalo, que eles são lá de São Gonçalo, meu pai dizia: “Quando Andressa chega aqui, tudo muda”. Porque a minha avó tinha essa coisa, ela parecia uma negra mina, grandona, grande, de cabelo curto e tal. E ela tinha esse poder, um pouco, de encantamento, sei lá o que era. Mas a gente adorava a minha avó Andressa.
P/1- Ah, vocês tinham... o que era fascinante nela?
R- Era ela fascinante, que era uma pessoa... primeiro, era muito alta. E, sei lá, era uma espécie de matriarca da família, né? Porque tinha a família toda de mulheres. Tinha um tio que era homem e os outros todos eram mulheres, cinco ou seis mulheres. Então, ela tinha essa... um poder, uma coisa mágica que existia nela. Não sei. Ela também devia ser já descendente de escravo, mesmo ou talvez muito próximo, talvez, né? Mas eu me lembro que se falava que ela tinha sido criada pela primeira mulher do meu avô. O meu avô teve várias mulheres.
P/1- E ele era fazendeiro?
R- Ele era fazendeiro.
P/2- Isso que eu queria entender.
R- Ahn?
P/1- Ele era negro?
R- Não.
P/1- Ah, ele era branco?
R- Aliás, outro dia uma prima minha me disse: “Seu avô era mulato”. Eu digo: “Não era mulato. Porque ele não tem... eu tenho uma fotografia dele e ele não consta que é mulato”. Não consta, quer dizer, pela fotografia. Mas a fotografia sempre embranquece no Brasil, você sabe. Então, tem uma foto que tinha, aquelas fotos que se fazia antigamente, ovais, né e que tinha a minha avó e o meu avô. E ele era praticamente bem branco. Coisa... então, essa minha prima, que é filha de uma... como é que era? A Dulcinha Cardoso que era filha dessa senhora que conheceu, inclusive, a minha avó. Então, a mãe da Dulce conheceu a minha avó. E era filha do Tiburcio, entendeu? E agora, os filhos dele, eu tinha... todos lá em casa eram como a minha família hoje, a minha família agora, quer dizer: lá tinha preto, amarelo, azul, vermelho, entende? Cada um tinha uma cor. Ou nascia, a Clara, por exemplo, nasceu clara, loura, (riso). A Lúcia que nasceu preta. Então, tinha essa coisa de família mestiça, né? Tinha todas as cores na família.
P/1- E isso era falado: ”A Clara era mais bonita”, por exemplo?
R- Não. Não sei. Acho que não. Havia só um problema com o meu irmão que eu tinha... que era o Luis, que era o segundo, não, o terceiro ou o quarto, o Luiz, que esse era bem sarará. Então, a gente gozava ele como sarará. Mas sempre tinha aquela coisa de: “Fulano é negro. O outro entende? Havia sempre essa conversa, mas não era uma conversa, era uma coisa natural, vamos dizer, né, em uma cidade do interior e de uma família mestiça daquele jeito. O meu pai era meio caboclo, meio, meio cabo verde. Ele era preto de cabelo liso, né? E a minha mãe é mulata.
P/1- Aí, Emanoel, vamos voltar. Você estava lá com o marceneiro, trabalhava com ele um tempo, com a madeira.
R- É. Aí depois eu fui pra Imprensa Oficial.
P/1- Você que quis ir? Alguém te arrumou?
R- É, depois eu saí da madeira, porque eu achei que já era uma coisa que eu queria experimentar outras. E foi muito engraçado porque, indo pra imprensa, eu fazia composição gráfica, fazia... era um outro tipo de profissão, outro tipo de aprendizado, entendeu? Tudo isso era aprendiz, né? Nunca fui profissional. Então, eu fui pra Imprensa Oficial da cidade, que editava o jornal, o diário, o jornal, o diário da... como é que é? Municipal, né? E então eu fui pra lá, aprendi a fazer composição. E foi tudo engraçado, porque as duas coisas que eu aprendi quando criança, quando jovem, quando ainda, né, antes do ginásio, me serviram a vida toda, né? Foi a marcenaria e foi as artes gráficas.
P/1- A marcenaria porque você acha que ?
R- É. Porque a gravura é na madeira. Quando eu fui estudar em Salvador, que resolvi fazer o curso de Belas Artes, eu fui fazer o vestibular e tal. E eu fui para a madeira. E depois eu comecei a fazer artes gráficas, fazer cartazes. Aí tem um monte de cartaz que eu fiz na década de sessenta e setenta.
P/2- Isso tem a ver com a monotipia, agora?
R- Hein? Era, isso já era uma tendência que eu acho que é intuitiva, uma coisa assim, né? Uma tendência de aprender, de trabalhar, de... como que diz? De criar dentro de uma coisa que eu conhecia, que era a tipografia e a marcenaria. Que a gravura é marcenaria, né? Você tem que entalhar, cortar, tal. E aí os cartazes eram uma coisa tipográfica. Depois eu fui trabalhar muito numa... no departamento de turismo de Salvador, quando eu já estava em Salvador, né? E aí eu fiz muitos cartazes. Eu sempre fiz cartazes. Fiz cartazes pro Carlos Lacerda. Fiz cartazes pra Rio de Janeiro, pra Salvador. Porque era uma forma, inclusive, de ganhar dinheiro.
P/1- Então, só retomando ali, você voltou. Por que você decidiu: “Eu quero estudar agora”? Você lembra disso? O que aconteceu?
R- Não. Eu achava que tinha passado essa fase, mesmo, de...
P/1- Aí você tinha quantos anos?
R- Eu tinha catorze anos.
P/1- Ai você falou: “Eu quero voltar pra escola”?
R- E aí a minha mãe disse: “Você quer mesmo estudar?” Aí me botou na escola, nessa escola de Dida.
P/1- De lá que você foi, voltou pro...
R- De lá eu fui pro ginásio, o ginásio chamava Teodoro Sampaio. Mas eu nunca tive... essa coisa é tão engraçada, né? Porque eu nunca me ocupei de Teodoro Sampaio. Só fui me ocupar de Teodoro Sampaio depois de muito tempo, né? Mas antes não. E ele era uma figura notável, né? Mas era uma coisa também que a gente não... não se discutia isso: quem era negro, quem não era. Porque havia muita gente negra importante em Santo Amaro. Eu me lembro, tinha um sujeito que morava defronte de casa, ele chamava Piçu. Piçu (riso). O ‘seu’ Piçu era um negão enorme. Tão engraçado. E a casa dele era de um chiquê, a casa! A casa tinha opalinas, pintura na parede. E eles eram... tinham uma mãe negra, não sei se era... e eles eram negros. O irmão do Piçu... o Piçu era pintor de parede e o irmão era marceneiro... então, o Piçu, a casa do Piçu era de um chique total. E a gente, quer dizer, hoje... (risos) tinha a filha do marceneiro, que tinha uma filha chamada Alba, eu acho, que era minha colega de ginásio e por causa dela eu tive um aperreio, como se diz em Pernambuco, né? Porque eu estava fazendo prova, prova de meio de ano, né, que fazia em junho ou julho, sei lá, antes do feriado, antes de São João. E ela estava fazendo lá no auditório. E foi uma coisa que eu estava... era uma aula de... era uma prova de Ciência. E era sobre a grande circulação do sangue. E eu comecei a explicar pra ela (risos), lá, de cá de baixo e ensinar pra ela, né? Fazia... e aí o professor pegou. Esse cara me perseguiu! Isso era quarta série. Ele me perseguiu o que pôde. Na prova final, de final do ano, eu caí pra uma outra professora que estava fazendo a prova, ele disse: “Não. Esse aqui é comigo”. (risos). “Esse aqui é comigo”. Elizete era a professora de Francês. Mas aquelas coisas de prova final, os professores ajudavam os outros, né? Quando eu caí nela, eu digo: “Puxa. Aí está moleza”. (risos) Nada. “Esse aqui é comigo”. Era tão engraçado. Mas eu passei. Ele me deu a nota mínima pra passar. Ele nunca gostou daquele meu... daquela minha ajuda pra... ele a chamava de Dançã (risos). Dançã (risos). Ai, Jesus Cristo! Você está me fazendo voltar aos tempos tão pretéritos! Que horror! (risos) Ai, ai. Mas era muito engraçado. Mas Santo Amaro era uma cidade pacata, era uma cidade... mas também era uma cidade que tinha uma coisa perversa. Toda cidade do interior é meio perversa, né? E uma vez teve um show de uma cantora, essa era Valnízia Nunes, que era da Rádio Sociedade da Bahia e Jorge Randam, que era um locutor que tinha uma voz linda e ta ta ta. E eles foram fazer um show em Santo Amaro. E eu mandei (rindo) uma carta pra ela. (risos) Olha, essa carta me custou, (rindo) porque eu virei Valnízia Nunes em Santo Amaro. Essa carta me custou (risos) o desespero. Até na sala de aula a professora me chamava de Valnízia Nunes.
P/1- Você mandou e ela leu alto?
R- Ela leu alto e aí dizendo: “De Santo Amaro. O Emanoel de Santo Amaro mandou essa carta pra mim e tal ta ta ta ta”. Pronto. Todo mundo ouvia essa Rádio Sociedade e eu fiquei na boca do povo. Vocês sabem? É tão engraçado. Eu fui colega de Caetano, né, de quarta série. E, numa das minhas exposições na Galeria Bonino, no Rio, a Dedé deve ter tomado um pifão, dizia: “Agora, Valnízia Nunes!”. (risos) E todo mundo ficava assim, olhando: “O que é isso?” e dava aquela manchete. E eu disse à Canô: “Pega essa menina, porque ela vai me esculhambar aqui”. Depois de velho, Valnízia Nunes. Ela sabia dessa história, né? Porque era corrente em Santo Amaro. Mas depois esqueceram também. Como tudo, né? (rindo) Esqueceram da Valnízia Nunes. Só porque eu escrevi uma carta pra Valnízia Nunes. Engraçado, né?
P/1- É.
R- E essas coisas ficam na cabeça da gente, rondando assim, né?
P/1- É.
R- É. Como um fantasma, né? E essas coisas de cidade do interior. Cidade do interior tem uma... Santo Amaro, especialmente, é uma cidade muito perversa. Eu não sei se as pessoas empobreceram muito mal, mas Santo Amaro é uma cidade que nada escapa à língua das pessoas. (risos) Tão engraçado isso. Então, por exemplo, eu nunca, não tenho uma identidade. Quando eu vou a Santo Amaro, eu não tenho uma identidade, eu sou o filho de Vital. Não adianta, ninguém sabe quem é Emanoel Araújo. (risos) Só porque eu sou filho de Vital. Então, é tão engraçado isso, que é uma coisa... é como Maria Bethânia, que passa por lá, todo mundo fecha a janela, pra não ver a Maria Bethânia.
P/1- Ah, é?
R- É.
P/1- Por quê?
R- Eu não sei. Porque, sei lá, acham que ela é boçal, ou acham que ela é sei lá o que. Então, as pessoas... Santa Amaro é muito perversa. É uma cidade perversazinha. É tão engraçado.
P/1- Você foi colega de Caetano no início, assim?
R- Fui.
P/1- Isso foi alguma coisa marcante na sua vida?
R- Não. Foi engraçado porque ele tinha... ele gostava de pintar também, né? E ele sempre diz que foi ele que me ensinou a pintar. E eu sempre digo que fui eu que o ensinei a cantar. (risos) E Caetano, nós éramos muito colegas, porque eu era a única pessoa que entrava no quarto de Caetano, pra acordá-lo. Porque Caetano, até hoje, é um sujeito que acorda quatro horas da tarde. Não adianta. Ninguém consegue acordar esse carinha, na hora do... então, eu entrava no quarto, era a única pessoa que ele permitia que o acordasse, porque senão, ele não acordava. Então, eu o acordava, a gente ia pro ginásio. E a gente fazia coisa junto. Porque a gente inventava baile naquele auditório. Caetano pintava as paredes. Caetano sempre teve um talento muito grande pra desenho, ele era muito bom desenhista. Era uma época de Melindrosas, lembra essa época de Melindrosas? Ele fazia As Melindrosas, a gente sempre fazia... porque a nossa turma era de juntar dinheiro pra fazer uma viagem a qualquer lugar. Então, no final, conseguimos juntar o dinheiro pra ir à Sergipe, (risos) Aracaju. Foi tudo o que fizemos. Mas Caetano não foi. Não foi porque o pai de Nicinha, que era uma filha adotiva, tinha morrido e Canô não o deixou ir.
P/1- Mas a mãe dele, a Dona Canô, era uma figura importante em Santo Amaro?
R- Não.
P/1- Não.
R- Ela virou.
P/1- Ela se tornou importante?
R- Ela se tornou, com os filhos já. Ela se tornou, na realidade, por Antônio Carlos Magalhães, né? Porque a Dona Canô é uma senhora dona de casa, né? Ela não tinha... mas ela, os filhos... a Maria Bethânia e, sobretudo... Caetano não, mais ela, a Maria Bethânia... e ela terminou ficando a figura mais extraordinária em Santo Amaro. Ela não tinha nenhum apito, não fazia nada. Bem, eu também saí de Santo Amaro, né, depois não acompanhei mais a questão da cidade, a evolução da cidade, das pessoas. Toda vez que eu volto à Santo Amaro, me dá uma imensa tristeza. Porque a cidade, já quando eu morava em Santo Amaro, que eu ia... quer dizer: que eu morava em Salvador, quando eu ia à Santo Amaro, e Santo Amaro foi aos pouquinho se transformando em cidade-dormitório. Porque era perto de Mataripe, da Petrobrás. Então, todos os santo-amarenses eram funcionários da Petrobrás. E todos trabalhavam e vinham pra Santo Amaro. Saíam na segunda e voltavam no sábado, na sexta, eu acho. Então, a cidade era muito ligada a essa gente. E a cidade foi caindo, caindo, caindo, caindo. Toda vez que eu vou, agora... a última vez que eu fui em Santo Amaro... a última não, há muito tempo que eu não vou a Santo Amaro... que outro dia eu brinquei com Caetano, dizendo que a estética era dele. Ele deve ter ficado puto comigo. Porque os sobrados todos caíram. Tinham muito sobrados daquelas famílias importantes, todas caíram, tudo caiu. As casas viraram... sabe o que é banheiro, azulejo azul, cor de rosa de banheiro? E também inventaram um tipo de grade, que é assustador, entendeu? Então, primeiro, todas essas casas perderam a sala de visita, porque eram sempre casas muito compridas, né? E são garagens. E essas garagens são sempre essas malditas grades horrorosas, tubulares. Mas muito feias, uma estética desgraçada de feia. E a cidade ficou assim, infelizmente. Em compensação, Cachoeira ficou preservada, como patrimônio. Santo Amaro não teve esse cuidado. Tem as igrejas, que são bonitas ainda: a da Purificação, a da Amparo. Mas as coisas foram uma derrocada muito grande.
P/1- Emanoel, antes de a gente ir pra Salvador, eu queria chegar lá, eu queria voltar um pouquinho nessa história que você falou de sexualismo. Que horas que isso surgiu em você? Como foi isso numa cidade pequena?
R- Ah, eu acho que a gente nasce homossexual, né? Então, eu acho que... acho que se nasce. Sei lá. Porque toda a minha... apesar da minha malandragem, apesar de jogar futebol, de fazer time de futebol, de ser goleiro do meu time, (risos) eu tinha uma certa atração por pessoas da mesma, por pessoas... a gente nunca realizava, vamos dizer assim, não, nunca realizou verdadeiramente, com aqueles meus colegas. Era sempre uma coisa platônica. Mas é certo que havia um chamamento pra essa história. Agora, o meu pai, por raiva, dizia que eu era afeminado. Ele não me chamava de veado, nem de gay, que não se dizia, naquela época, isso. Mas ele dizia: “Esse menino é afeminado, Guila”. Guila era a minha mãe. “Guila, esse menino é afeminado”. E essa coisa era um jargão que ele usava, toda a vez que eu aprontava alguma coisa pra ele. Mas isso foi mudando com o tempo. Eu, quando saí de Santo Amaro, fui pra Salvador, já foi em outra escala. Na realidade, eu não tinha nem muito contato com ele, porque ele estava lá em Santo Amaro. E a minha mãe vinha pra Salvador, me encontrava na Escola de Belas Artes. A gente se transava, mas em Salvador. E... mas ele... meu tempo de formação, ele foi muito ruim pra mim. Eu acho que ele foi muito perverso. E por uma razão muito intuitiva dele. Porque, nessa época, ninguém ajudava filho nenhum, a nada, né? Você virava, se formava na rua. Mesmo das famílias importantes. Não tinha essa coisa educativa, vamos dizer, né? Ou psicológica. Ou que trata de um assunto. Não, não tinha isso. Tinha, tinha... era o esculacho mesmo, dele. Mas isso não... tanto que a minha primeira relação sexual, eu fui ter em Salvador. Antes eu não tinha. Não tinha tido.
P/1- Antes você não tinha tido nenhuma experiência?
R- Antes dos dezoito anos, não. Experiência, não. Eu até fui apaixonado pelo meu sargento do tiro de guerra. (riso) O sargento Barreto, era. (risos) Apaixonado, mas era platônico, porque eu... o sargento, aquele sargentão do Exército. (risos) Aaai, era tão engraçado. Mas é... essa coisa de... e olha, eu só caí nessa esparrela porque eu encontrei uma pessoa que foi muito, muito carinhosa, vamos dizer assim, né? Nós éramos colegas do turismo. E ele um dia me deu um poema do Drummond de Andrade, Campo de Flores, que é aquele poema: “Deus me deu o amor, no tempo de madurezas”. Você conhece esse poema, que é lindo?
P/1- Fala pra mim. Você lembra?
R- Eu não sei o poema todo, não. Só sei desse pedaço. ”Por Deus ou por Diabo”. Que ele se indaga, toda essa questão amorosa, né? E junto desse poema, tinha uma barra de chocolate. (risos) Tão engraçado aquilo, né? E aí eu percebi a coisa toda. Primeiro eu relutei muito, porque eu morava com a minha tia Marta, que era uma pessoa (risos) muito invocada. E a minha tia Marta me controlava. Porque, na realidade, a função de morar com a minha tia era essa: “Você controla esse moleque, aí. Controla esse cara”. E ela me controlava. (risos) Mas depois ficamos... nós éramos muito amigos, eu com tia Marta e tal. E ela sempre teve uma coisa comigo, de mãe, né, já que eu estava em Salvador e tal. Nos primeiros anos eu fiquei muito com ela, né? Morava com ela. Mas essa coisa surgiu assim, né? De uma maneira meio... ele era um etnólogo.
P/1- Como é que foi? Você foi vivendo, aí você teve um caso com ele?
R- É. Nós trabalhávamos juntos. Trabalhávamos juntos no turismo. Ele era etnólogo. E ele era ligado também com o candomblé. Porque ele era... ele também era antropólogo. Mas ele era uma pessoa muito, com a formação muito original e muito erudita, vamos dizer assim. Então, ele era uma pessoa erudita. E era muito mais velho do que eu. Então eu, num certo sentido, me encostei pelo fato de ter uma pessoa, uma defesa, né, que era ele. Mas foi muito legal, porque eu não padeci desse tipo de iniciação, né? Então, foi uma coisa que foi natural, leve, boa, num certo sentido. Foi bacana.
P//1- E aí, dali, você namorou? Você teve...
R- Não. Nós ficamos juntos durante muitos anos.
P/1- Com ele?
R- Eu acho que mais de dez anos.
P/2- Ah, é?
R- É. Ficamos morando juntos. Não. Não morávamos juntos. Ele morava na casa dele. Eu morava na minha. E depois as coisas foram mudando e ele foi morar comigo, que aí foi o começo, praticamente, do final do relacionamento. Porque ele estava ainda muito na minha, eu já não estava mais.
P/1- Ele se chamava?
R- Waldeloir Rego.
P/1- Ah, sim.
R- Ele escreveu um livro muito importante chamado Capoeira de Angola. É um livro fundamental pra o estudo da capoeira.
P/1- E aí, nesse momento, a família, você já tinha assumido o seu homossexualismo e todo mundo sabia? Vocês eram apaixonados?
R- Era. Já era uma coisa assumida. Minha mãe sabia e tudo o mais. Meu pai também sabia, né? Mas não era mais... eu já era um homem, né, então... e tão engraçado, que eu tinha um irmão, um irmão mais velho do que eu, que era o Nilson, que era Nilson , que eu falei com você, daquela mulher do meu pai. E que ele, um dia, virou pra minha mãe e falou: “Você sabia que o seu filho é veado?”. E a minha mãe veio falar comigo. Eu digo: “Ah”. Acabou. “É isso mesmo”. (risos) Eu acho que mãe nunca realiza a questão, entendeu? Mas uma vez o meu pai estava já doente e ele... porque eu cuidei da minha mãe durante dezesseis anos, ela teve vários derrames. Eu tomei conta dela até o final. E ela... eu estava aqui, mas ela estava lá, mas eu cuidava, tinha enfermeiras, enfermeiros e tudo. Que eu nem sabia como eu tirava o dinheiro pra isso, né? Mas o certo é que eu tirava. Eu acho que até a natureza ajuda, o universo ajuda, né? Então, ela tinha enfermeiras, tinha enfermeiros, tinha... não sei. Foi tanto tempo que teve enfermeira, que morreu em casa. E toda vez que ela ficava muito mal na UTI, eu chegava e ela ficava boa. E os médicos diziam: “Mas como? Dona Guilhermina ia morrer! Como é que ressuscitou?” (risos). Eu disse: “Não. Eu cheguei lá. Eu conversei com ela. Ela ressuscitou”. (risos) A gente, eu... ela, quando vinha à Salvador, eu sabia. Nunca minha mãe esteve em Salvador sem que eu não soubesse. Eu sabia. Ou ela ia lá no ateliê na Escola Belas Artes, ou ela ia em casa, me esperava. Eu sabia. Eu ia pra casa, eu sabia: “A minha mãe está em casa”. Então, era uma relação muito visceral dos dois, né? Era uma coisa tão extraordinária isso. E ela tinha isso comigo. Ela teve duas ou três vezes pra ir embora e eu não deixei. E ela só morreu porque eu não estava lá, eu estava aqui. Quando me chamaram, eu cheguei lá e ela estava morta. Se eu estivesse lá, ela não teria morrido. Foi muito penoso. Mas também foi uma coisa muito estranha, porque como eu não tinha... eu eduquei minhas irmãs por causa da minha mãe. Então a Clara, a Olga, a Virginia, todas elas ajudaram, me ajudaram a cuidar da minha mãe. E enquanto isso elas estudavam na universidade. A Clara se formou em Enfermagem. A Olga se formou em Filosofia. A Virginia se formou em não sei o que. A Lucia se formou em outra coisa. Mas todas essas quatro foram, assim, anteparo para a minha permanência lá, aqui.
P/1- Ou seja, você estava aqui e daqui você ?
R- É. Administrava lá. É.
P/1- Sua mãe, então, ficou em Salvador?
R- E tinha também as enfermeiras. E o meu pai, quando ficou doente, veio morar comigo. Veio pra Salvador. E, em Salvador, tinha o médico dele, tal, tal, tal. Ele estava muito já doentinho e aí o médico disse: “’Seu’ Vital, o senhor tem que fazer o exame de próstata”. (risos) E ele foi pro hospital. Mas ele voltou com tamanha revolta. E ele não fez o exame. “Você pensa que eu sou veado como você? Ele queria meter...”. É uma coisa de baixo calão: “Queria meter o dedo no meu cú! Você acha que eu ia deixar?” E gritava, desesperadamente. “Não, meu pai. É natural e tal” “Nãoooo”. Era uma coisa engraçada isso, né? (risos) Essa coisa, é uma coisa... depois, logo em seguida... teve dois fatos muito engraçados e estranhos, né? Eu tive uma irmã, essa Olga, ela quando criança, nós tínhamos um bidê alto de mármore, em casa, que vinha na casa da minha avó e ela foi brincar naquilo. Ela era criança. E aquilo caiu na cabeça dela, entendeu? A Olga, pequenininha. Ela sempre foi pequenininha. E ela ficou com aquela marca, tal. Com o tempo ela casou, ta ta ta, ela começou a ter problemas de olfato, problema de visão, problema de coisas desse tipo. E ela se meteu em espiritismo. Eu estava aqui, eu não sabia muito bem essa coisa que ela tinha, ela já era casada, né? E ela se meteu nessa coisa espiritualista.
P/1- Espiritismo.
R- Espiritismo. E ela dizia o seguinte: “Não posso ser operada. Eu tenho que tomar esses remédios, que era mandado por não sei quem. Mas, se eu operar, eu não acordo”. E aí um dia eu chamei um amigo meu que era neurocirurgião, ele disse: “Você não quer fazer uma, uma...” - como é que chama? Não era tomografia que chamava, tinha um nome assim parecido - “da Olga?”. Ele disse: “Vou fazer”. Fiz. Ela foi internada, com o marido dela. Eu falei com ele, ele a internou no Hospital Português. E ela... não aconteceu nada. E eu achei aquilo muito esquisito. E depois eu encontrei com ele, ele ficou muito em silêncio. Aí ele me disse a mim: “Eu quero lhe dizer a você que eu não consegui botar a agulha na sua irmã”. Angiografia cerebral. “Porque a agulha caía. Toda a vez que eu tentei, caiu. Eu chamei o meu assistente e também caiu. Aí eu não fiz nada”. Aí ela foi pra casa. Estava o meu pai em casa. Ela vira pra mim e disse: “O Toninho quer...” - passado algum tempo, né? - “o Toninho quer...” - que era o marido dela - “que eu vá operar em...”. Não. “O Toninho quer eu vá fazer esse exame em Brasília”, no hospital lá do doutor... enfim, me esqueço o nome, não sei o que da Paz, no Sarah Kubitschek. E aí, ela disse: “Olhe, eu não quero ser operada. Se eu for operada, eu não acordo. Se eu morrer, eu venho buscar o meu pai e Letícia, minha irmã”, que eram as duas juntas, né, a Letícia e a Olga. E aí eu tinha passado por Brasília, mas não me dei conta de que ela estava no hospital. Não sei por que. Porque esse Doutor da Paz, sei lá como chamava ele, era amigo de uns amigos meus do Itamarati, então eu podia ter participado da coisa. Mas eles fizeram a anestesia e ela não acordou. E aí passou uma semana, o meu pai morreu. E a outra semana, a Letícia morreu. Engraçado isso, né? Estranho, né?
P/1- Que história!
R- Foi assim, uma... três dias no hospital. Ô, no cemitério, que parecia já uma brincadeira, né? Três pessoas morrendo assim, uma atrás das outras. Então, eu sempre fiquei pensando. Que dizer: eu não sou espiritualista, eu sou mesmo ateu, eu sou místico. Mas não a esse ponto de achar que...
P/1- Bom, eu vou finalizar esse bloco, mas você estava terminando essa história da sua irmã vir buscar...
R- É.
P/1- E aí você estava falando um pouco de você, sobre essa sua relação com o espiritismo ou não...
R- É. Eu não, eu nunca tive ligação com o espiritismo. Nunca. Mas Olga, eu não sei como é que ela entrou nessa história, porque a Olga foi criada num colégio de freiras, né? E eu não sei como é que ela debandou pra esse lado. Eu acho que da própria doença, porque ela tinha... essa batida gerou um tumor, benigno. Mas que tirava e crescia. Tirava e crescia. E, quando crescia, ela foi perdendo essas coisas, o olfato. Começou a perder... problema de vista. Foi aí que teve que tomar uma atitude, né? E ela ficou irascível em relação a essa questão espiritual. Então ela... eu não sei. Porque ela já era casada, ela estava aqui. Então, não dá pra administrar mulher casada, né, com filho e tudo. Então... mas a gente, lá em casa, a nossa família, uma família de pessoas desgarradas. Meu pai nunca conseguiu. Meu pai, eu acho que nunca quis tampouco, ou não quis. Mas ele nunca, não criou uma família unida assim, entendeu?
P/1- Pra vocês ficarem, né?
R- É. Alguma coisa assim. Até parecia que ele era americano: depois de algum tempo, rua, vai embora, né? Mas nem era pra ir embora. Era, o que era... ele era muito ocupado, né? Ele tinha muito filho, esses filhos todos. Ele era muito ocupado. Então, ele não... quem educou, na realidade, a gente, foi a minha mãe. Foi a mãe que educava.
P/1- E ela não queria que vocês ficassem perto dela? Ela não tinha essa coisa?
R- Não. A gente ficava, porque a gente ajudava. Eu, por exemplo, quando ela vinha a Salvador, ou quando ela tinha criança, quem tomava conta da casa era eu. Eu cozinhava. Tanto que eu aprendi a cozinhar por causa disso. Eu cozinho. Eu cozinhava. Eu fazia as compras, cuidava dos menores. Porque a minha mãe foi tendo filho, tendo filho. Era um horror. E, coitada, aí ela teve...
P/1- Quantos irmãos você teve?
R- Eu acho que são onze ou doze.
P/1- Da sua mãe?
R- É.
P/1- Ah, eu pensei que era onze com os outros casamentos.
R- Não. Dos outros não. Dos outros do meu pai são: Leontina, que é a mais velha de todas, que tem noventa e tantos anos. Tem o Nilson que já morreu. A Noélia também morreu. E o Romério está vivo. Então, na realidade, lá são cinco, eu acho. E tinha um outro também... ah, não. Está certo. Era Romério... Leontina, Nilson, Noélia, Dagmar e Romério. Cinco. E com a minha mãe doze, fazia dezessete.
P/1- Nossa, mas a sua mãe teve ?
R- Era uma família horrivelmente grande. Grande... não era tão grande. Era... pra gente juntava esses cinco, não tinha... cada um desses cinco já era...
P/1- E você foi o mais velho? Você era o primeiro?
R- É.
P/1- E as outras... Tem quantos homens? Quantas mulheres?
R- Tem... são seis mulheres. Deixa eu ver. (risos) Nem sei. Eu acho que são seis, sete mulheres e seis homens. Não! Sete, não. São seis mulheres e cinco homens.
P/1- É onze.
R- Ahn?
P/1- É doze.
R- É doze, né? Então, é sete e cinco.
P/2- Emanoel, sobre essa... quando você vai contando o seu trabalho, né, a gente vai - a gente até comentou aqui - entrando na cidade, vai entrando... eu conheço a cidade, eu pude visitar em algum momento. Mas eu fico pensando assim, de tudo o que você trouxe, eu queria te perguntar se você tem uma imagem de momentos de alegria, assim? Porque eu acho que esses lugares têm, né, essa...
R- É. Eu acho que não sei. Tinha assim... porque a gente tinha uma vida muito alegre. Porque a cidade era, né, muito familiar, vamos dizer, né? Todo mundo se conhecia, todo mundo sabia de todo mundo. Então, era... a gente fazia aquelas festas no ginásio, que eram os bailes, uma coisa meio ingênua, pra juntar dinheiro. Mas juntou pra ir à Sergipe. (risos) Ridículo. Mas era uma cidade engraçada, tinha essas coisas. Quando eu era criança, eu fazia festa na rua mesmo, né? A gente fazia brincadeiras. Tinha... era uma cidade... as pessoas eram felizes. Quer dizer, claro que hoje é impossível alguém ser feliz numa cidade pequena, né? Porque está tomada pela droga. Santo Amaro, por exemplo, ficou tomada pela droga. Então, a cidade fecha às sete horas da noite. Isso, no meu tempo, não existia. A gente ficava horas, fazia serenata, fazia... né? Então, não tinha essa história. E como é que isso se transformou, né? Outro dia alguém estava me dizendo: “Olha, o Pai Periquito, que era um interventor, desses de droga, né, quando morreu, o enterro dele foi maior do que de Dona Canô, que era uma pessoa importante”. Eu disse: “O Pai Periquito?”. Ele disse: “Não. O Pai Periquito foi morto pela outra facção, né?”. Eu disse: “Mas em Santo Amaro da Purificação?” “Pois é”. Engraçado isso, né? Estranho. Quer dizer, essa coisa da droga é uma coisa tão daninha, mesmo numa cidade com poucos recursos, com poucas possibilidades que tem Santo Amaro, uma cidade pequena. Você conhece. E eu fico me perguntando como é que isso procede, essa questão de um sujeito matar o outro pra tomar conta do mercado. Então, O Pai Periquito foi o maior enterro da cidade. Eu digo: “Mas como, o Pai Periquito?”(risos) E as pessoas choravam o Pai Periquito, porque essas pessoas são protetoras da pobreza, né? Então, é muito complicado. Mas a gente tinha festas. A gente tinha... porque Santo Amaro tinha festa de todo tipo. Tinha festa de São João. Tinha a festa de Dois de Julho, que era dia de... porque Santo Amaro foi, participou da emancipação do estado da Bahia, né? Da expulsão dos portugueses. Então, tinha festa de todo jeito. E a festa mais poderosa era a São João. Fora da Purificação, né, porque era novena, depois é procissão, a missa sei lá o que. Mas o São João, não. O São João era uma festa extraordinária. Até um dia que houve o acidente com as barracas de ‘seu’ Aristides. Nós estávamos voltando do ginásio, eu e Caetano e fomos pra casa dele. E aí teve aquele estrondo: páaaaa. E eu saí correndo, porque era uma segunda-feira, que é o dia da feira, né? Então, aquilo foi uma coisa, assim, que parecia Hiroshima: as pessoas todas mortas, cavalo, coisa assim.
P/1- Houve uma explosão?
R- Uma explosão de casa de fogos. Ele tinha três barracas de fogos. E ele tinha encontrado um rapaz que era noivo da filha dele, que era um loiro assim, entende, todo queimado, todo preto. Mas foi uma coisa... e aí eu saí correndo, porque eu disse: “Vai ver que o Luiz foi fazer feira, nessa...” O meu irmão, né? E ele não tinha ido ainda. Mas foi uma coisa assim. Outro dia até eu, passado tudo... e aí, durante muito tempo, não se comemorou o santo de São João em Santo Amaro. Que era muito comum, todo mundo fazia festa. Você entrava de casa e saía de casa; tomava licor; comia bolo, bolo de canjica e bolo de não sei o que e não sei o que, entende? Então era... eu sempre acho que, comigo, uma coisa muito estranha, se explodir uma bomba, vai explodir do meu lado. Eu tenho uma capacidade de atração, não sei por que. (risos) Sempre foi assim. Eu, numa dessas festas de São João, alguém estourou uma bomba aqui. Eu fiquei durante meses, surdo, com o zumbido Trrrrrrrr uuuuuuuuuu. E era da festa de São João. Mas era uma festa muito engraçada, que eu me lembre da festa de São João, porque a cidade toda comemorava. Quer dizer, a cidade toda, não. A cidade depois da Praça de Purificação até o Bonfim, que era uma região mais pobre, né? Então, tinha fogueira em toda parte, tudo. Mas Santo Amaro era muito alegre. Tinha esse bembé do mercado, que era pra comemorar a abolição da escravidão, da Princesa Isabé. Então, todo mundo ia pra assistir aquele... armava, assim, um barracão. E aí batia candomblé pros sete dias, sei lá o que. Era muito engraçado, também. Então, tinha essas coisas em Santo Amaro. Tinha as coisas religiosas também, né? Tinha... tinha tudo. Santo Amaro era uma espécie de mini Salvador, porque é a mesma coisa. O Recôncavo. A riqueza era de Santo Amaro, por causa do açúcar, dos engenhos, da nobreza açucareira toda, os Wanderley Pinho, os outros e outros e outros e outros. O Barão de Aramaré. Então, era uma gente toda que ficou muito rica com escravo, com a escravidão. Por isso que tinha muito negro na baía de Santo Amaro. E Santo Amaro fica no fundo da Bahia de todos os Santos, né? Então, Santo Amaro tinha capoeirista muito importante, aquele Besouro foi um famoso capoeirista. Depois tinha outros e outros e outros. Tinha Gato, que também era um grande capoeirista. Tinha essa coisa popular negra, vamos dizer assim, né? Tinha o bonde puxado a burro, que era Popó com maculelê, que era uma coisa tipicamente de Santo Amaro. O maculelê eram pessoas batendo uma luta, como se fosse de espada. E era, o maculelê era esse Popó que dirigia o bonde puxado a burro. E ele era o que criou o maculelê, entendeu? Então, tinha tudo em Santo Amaro. Era muito... tanto que eu só fui em Salvador, chegar em Salvador, com dezoito anos. Ou quase dezoito anos. Eu nunca tinha ido a Salvador. Que aí eu fiquei em Santo Amaro. A gente tinha uma vivência de Salvador, nenhuma, entendeu?
P/1- Então, Emanoel, quando você chegou em Salvador, assim, que lembrança você tem, dessa sua chegada, aos dezoito anos?
R- Eu, quando cheguei em Salvador, eu cheguei com uma vontade. O meu pai não queria, né? Primeiro, não queria. E aí eu tratei de... eu tive muitas coisas em Salvador pra... tive que arranjar um trabalho. Eu estava estudando no colégio, no científico.
P/1- Em Salvador?
R- É. E aí era muito difícil arranjar um emprego que não fosse condizente com a minha escolaridade. E eu escondia e escolaridade, pra poder arranjar emprego. E o meu primeiro emprego foi numa empresa de secos e molhados. Esse emprego consistia em receber pedidos que vinham do interior e a gente formar o pedido.
P/1- Num armazém?
R- É, era um armazém que a gente, então, tinha ali, tudo, né? O sujeito vinha lá: meia dúzia de azeite doce, meia dúzia de não sei o que, quatro quilos de açúcar, dois quilos de arroz. Então, se separava tudo aquilo e aquilo ia pro embalador e ia embora. Mas quando o gerente, depois, soube que eu era do curso cientifico, me botou pra fora. (risos)
P/1- Por quê?
R- Porque ele achava que o trabalho não era condizente com a minha escolaridade. “Não, você está fazendo o curso científico. Está trabalhando, separando mercadoria aqui. Não pode. Vai embora”. E me tirou de lá.
P/1- Ou seja, você tinha muito, pro trabalho?
R- Era. Quer dizer, essa coisa que, na realidade, o salário era pouco, era um salário... eu nem me lembro mais que salário que era. Mas era, foi o que eu tinha conseguido para me manter, em princípio em pensão, depois em república.
P/1- Ah, você não foi pra casa da sua tia?
R- Não. Não fui direto. Fui depois. Então, aí quando eu vi que a barra era muito pesada, eu fui pra casa de minha tia, que morava num bairro muito distante, que era a Liberdade. Que era um bairro muito negro. Aliás, um bairro completamente negro. E morei com tia Marta, por quê? Em dois momentos. Tia Marta era casada com um sujeito que tinha um ônibus. (risos) Era muito engraçado, essa tia Marta. E aí tinha esse ônibus. Depois separaram. E ela foi morar na casa de minha... eu tinha uma tia chamada Aurelina que, como os filhos foram estudar em Salvador, ela comprou uma casa. E aí eu fui morar com tia Marta, com os dois meninos, com o Fernando, com o Clóvis, com todos eles, meus primos. E tia Marta, num certo sentido, administrava essa casa, no bairro da Liberdade. E era... bem, tinha uma certa... eu estudava de noite pra poder trabalhar durante o dia, até eu conseguir esse trabalho no turismo.
P/1- Que era o quê?
R- É, mas eu acho que antes... é, o trabalho do turismo coincidiu com o meu trabalho. Enfim, aí eu estava fazendo o científico. Mas aí eu tinha trazido os meus trabalhos de Santo Amaro, que tinha feito uma exposição em Santo Amaro, eu e Caetano, no ginásio.
P/1- De pintura?
R- É. Caetano fazendo pintura e eu fazia desenho. Eu fazia guache. E Caetano fazia pintura a óleo. E aí teve aquela exposição e tal. E eu fiquei com esses desenhos. E, quando eu fui pra Salvador, o diretório acadêmico... o diretório da escola, né, resolveu fazer uma exposição.
P/1- Você levou os seus desenhos?
R- Desenhos. Eram uns guaches que eram muito bonitos, que eram uns guaches, tinham uns efeitos de luz. E aí, isso era no segunda ano científico. E tinha um sujeito que era de Santo Amaro, que era o Sena, que era um sujeito, um grandão, uma cara muito grande também, enorme, que ele era uma espécie de rábula da escola. É rábula? Não. Não é rábula. Ele era uma espécie de administrador da sala, ele tomava conta daquela sala.
P/1- Inspetores.
R- Ahn?
P/1- Inspetor?
R- É. Um inspetor. E ele tinha um outro emprego, porque ele trabalhava de noite no Colégio da Bahia, mas ele trabalhava durante o dia no Instituto Geográfico Histórico da Bahia. E lá tinha todo aquele povo intelectual, Luís Viana Filho, tatata tatata. E o Sena, então, me disse: “Eu vou lhe apresentar, você, a um crítico de arte”. Então, marcamos um dia e eu fui lá no Instituto Histórico e Geográfico. (risos) O presidente do instituto era o pai de Antônio Carlos Magalhães, ‘seu’ Peixoto, que era médico. E ali estava reunida toda a intelectualidade baiana, aquele instituto, aquela coisa rançosa, não sei o que. E aí (risos) eu cheguei lá com os desenhos, mostrei pra Clarival e ele disse: “Ah, mas você é ótimo. Você tem um talento. Eu vou falar com a Lina Bo Bardi, pra fazer a sua exposição”. Foi aí que eu fui cair na Lina Bo Bardi. Em sessenta e dois. E depois disso... mas antes... não, depois. Eu fui morar numa... com um sujeito que tinha uma galeria de arte.
P/1- Aí você já tinha entrado nesse mundo?
R- É. Eu já estava fazendo gravura e tatata. Já tinha edições. Já tal. E aí... mas eu ainda não tinha feito turismo. Eu fiz depois, né? Porque era meu... minha primeira... essas gravuras eram coisa muito incipiente, né? E eu fui morar lá com o ‘seu’ Castro, que tinha esse espaço e que ele alugava ou deixava as pessoas morarem nesse... e aí eu fui morar lá e ele me ficava com as cópias de gravuras. Eu fazia em troca da moradia.
P/1- E aí, Emanoel, você jê estava começando a falar: “É isso que eu vou fazer”?
R- Não. Quando eu entrei na Escola de Belas Artes em sessenta, já disse: “Não. É isso que eu quero”. Porque eu passei no segundo lugar, no vestibular. E aí eu disse: “Bem, eu vou ficar aqui. Eu não vou...”. Meu pai disse: “Mas como? Você não vai ser advogado?”. Eu digo: “Não. Não vou ser, não. Eu vou ser artista”.
P/1- Nossa. E aí que ele...
R- (rindo) Ele ficou meio puto. Mas, então, eu já estava, né? Estava lá... até quando eu comecei a dar uma melhorada como artista, como jovem artista, o ‘seu’ Castro me botou pra fora. (risos) Ele disse: “Não. Você está ficando muito famoso. Vai embora”. (risos) Eu disse: “Puta que o pariu! Justamente agora que esse cara vai me mandando embora! (risos) No meio dessa ascensão, né?”. Mas eu fui embora. Continuei na Escola de Belas Artes. Foi quando a Escola Nacional de Belas Artes no Rio convidava artistas estudantes pra fazer exposição no Rio. E eu fui selecionado. Aí eu levei as minhas gravuras pra uma exposição no Rio. Foi muito engraçado. A Escola de Belas Artes tinha uma galeria chamada Macunaíma, que era na Rua México, que era... você conhece a Escola de Belas Artes, né? A rua, todo aquele lado ali...
P/1- Eu trabalhei na Funarte, ali.
R- É. Ali. Aí eu fui pra lá fazer a exposição. E foi tão engraçado, que eu cheguei e saltei no Rio de Janeiro... eu tinha ganho uma passagem de avião. Era Viscount e era o tempo do Viscount. Você não alcançou o Viscount, que era um avião turbo-hélice, mas chamado Viscount. E aí o pessoal me deu a listinha, o Braga me deu essa passagem de avião. Aí um amigo disse a mim: “Vá procurar não sei quem no Rio de Janeiro”. Aí eu arranjei, aluguei uma pensão em Copacabana. Peguei, eu com a minha mala, fui na casa desse amigo, no edifício duzentos na Barata Ribeiro, que era um prédio, era “balança, mas não cai”, né, aquele duzentos. Depois eu soube que era. (risos) Mas aí eu cheguei com a minha malinha e tal. Tinha a coisa de... tinha a reserva da pensão, lá perto do posto cinco. E aí o cara disse: “Ah você, seu amigo, tatatata, você é amigo de não sei o que”, ficou aquela conversa assim. E ele me disse: “Faça o seguinte, vá pra pensão e volte aqui pra jantar”. Aí eu fui pra pensão, conheci a dona da pensão. (risos) E voltei pro jantar. Ele não abriu a porta. E eu batia e eu ouvia ruído na casa. Mas não abria, né? Ele não abriu a porta. Fui-me embora, tal. Eu digo: “Mas que esquisito! Ele convida e não abre a porta?”. Mas não tinha celular naquela época, não tinha nada, como era a comunicação, não existia. Então, eu fui pra casa e tal, pensando. Passados muito anos, olha, passado assim... isso foi em sessenta e dois. Passado, sei lá, o quê? A minha exposição na Bonino, nos anos setenta, um sujeito chegou na minha exposição e disse: “Você lembra daquele que você que foi convidado pra um jantar e não abriu a sua porta? Porque eu estava dentro do jantar”. E o cara, esse amigo meu dizia: “Mas esse baiano vem aqui comer a nossa macarronada? Nem o deixa entrar. Não o deixa entrar. Não deixa.” (risos) Olha, passado tantos anos, um cara que estava naquele jantar me lembrou disso: “Eu estava naquele jantar que você bateu a porta e ele não abriu a porta”. Porque ele dizia assim: “Mas esse baiano vem aqui comer a nossa comida, a nossa macarronada”. (risos) Nessa época, no Rio, era muito engraçado. Porque nessa época, no Rio, era uma coisa toda... não sei se as pessoas eram muito pobres, eu não sei se era, o que era. Só sei que era, todo mundo era um certo de livre atirador, um pouco, no Rio, naquela época, né? Mas foi muito engraçado porque, na exposição da galeria Macunaíma, teve duas coisas muito importantes. Foi uma menina, que eu conheci, que era baiana e que ela, então, resolveu me introduzir ao Rio de Janeiro. E aí ela me levou no Tabuleiro da Baiana. Você chegou a alcançar isso? Não. No Largo da Carioca. Tinha o Tabuleiro da Baiana, que era uma espécie de tabuleiro, mas era um ponto de ônibus, vendia coisa, acarajé, não sei o que, não sei o que e era conhecido como o Tabuleiro da Baiana. E, nesse Tabuleiro da Baiana, eu vi aquele cara grandão, eu disse: “Mas quem é aquele cara ali?”. Ela disse: “É Pixinguinha. Eu vou lhe apresentar, você, a ele”. Aí eu fui lá falar com o Pixinguinha, o ‘seu’ Alfredo não sei o que, ‘seu’ Pixinguinha. E foi muito engraçado, porque assim que eu conheci Pixinguinha. E outra coisa... não, eu conheci outras pessoas. Consegui uma, a Manchete publicou uma... a Manchete? É. A Manchete publicou uma coisinha feita por um cara chamado Gueiros, que era um jornalista, publicou uma notícia assim: “Um artista... arte...”. Não. “Um artista baiano... a vitória da arte popular”, uma coisa assim. E outra pessoa foi o Quirino Campofiorito, que era um crítico de arte, mas também era pintor e que escreveu um texto sobre mim no Diário... no Jornal do Comércio, jornal...
P/1- Isso na sua primeira exposição, que você está me contando?
R- É. Então, era muito engraçado, porque foi a minha exposição e uma outra, uma exposição de uma outra artista da Bahia, chamada Yeda Maria. E aí ele faz um texto chamado assim: Baiano substitui o baiano. E aí ele fala das gravuras, fala das texturas. Porque era uma coisa mais ou menos inusitada, o tipo de gravura que eu estava fazendo na Bahia, em Salvador.
P/1- Na Belas Artes você teve uma espécie de mestre?
R- Tive, um professor chamado Henrique Oswald, que foi uma pessoa extraordinária.
P/1- E dali veio isso tudo?
R- Porque o curso de Belas Artes era um curso livre. Não tinha... era um curso de... como é que chama isso, mesmo? A Escola de Belas Artes tinha, você fazia de um a três anos e se especializava em alguma coisa. Ou em pintura, ou em restauro, ou em gravura. E eu furei tudo isso e fui direto pra gravura, no meu primeiro ano, eu...
P/1- Por que motivo você foi pra gravura?
R- Não. Porque eu já fazia uma coisa em Santo Amaro, chamado guache lavado. Eu aprendi esse guache lavado, eu não me lembro como é que eu aprendi esse guache lavado. Ahh! Vendo, eu acho, uns desenhos de Raimundo Oliveira. Raimundo Oliveira, que é um artista baiano de Feira de Santana, fazia esse guache lavado. O guache lavado se constitui de você pintar com guache branco, depois passar nanquim preto. O nanquim é uma tinta indelével e o guache, uma tinta delével. Então, quando você lavava, o branco saía e ficava o preto. E dava idéia de gravura, entendeu?
P/1- Sim, mas eu não sei como é...
R- É. Então, foi muito engraçado. Aí eu fiquei, fiz isso...
P/1- Aí você estava fazendo isso?
R- É.
P/1- E dali...
R- E aí, quando eu cheguei em Salvador, eu mostrei ao pessoal da... tinha uma galeria de arte na biblioteca pública, todo mundo ia pra lá, os artistas, tatata. E eu mostrei para um pessoal as minhas gravuras. Esses desenhos, nem era gravura, era desenho. Aí diz: “Você tem que fazer Belas Artes, tatata”. Aí eu fui pro outro: “Tem que fazer gravura na Belas Artes”. Aí eu digo: “Tá bom. Então, eu vou fazer”. E aí eu falei com o Henrique Oswald. Aí ele me ensinou gravura.
P/1- E aquilo foi... você achou que era um metier seu, a gravura?
R- É. Foi muito importante. Porque a gravura também me possibilitou ganhar dinheiro via a gravura. Via gravura quer dizer, via a matriz da gravura. Porque aí eu fiz os cartazes, eu imprimia na... eu conheci o Frei Clóvis, que era um franciscano, me meti lá na gráfica de São Francisco. Eles tinham uma prensa plana. Eu comecei a fazer os os trabalhos, nisso aí eu já estava trabalhando no turismo.
P/1- Ou seja, você foi arrumando outros trabalhos e, no turismo, o seu trabalho era a gravura?
R- Era a gravura. Meu trabalho era artes gráficas.
P/1- Fazia os cartazes...
R- É, os cartazes. Porque, nessa época, esse departamento de turismo era dirigido por um escritor chamado Vasconcelos Maia. E o Vasconcelos Maia reuniu naquele... naquela... reuniu algumas pessoas. Entre elas, eu. Depois entrou um sujeito chamado Gumercindo da Rocha Dória, que tinha uma editora. Porque teve uma época que o partido Integralista ficou na prefeitura de Salvador e esse Gumercindo da Rocha Dória era integralista. E aí nós fomos todos, ele fez uma equipe enorme pra trabalhar com ele. Então era eu, o Roberto Veloso, irmão de Caetano; era Waldeloir Rego; Mestre Didi, era Othon Bastos, era Lygia Sampaio, a Hildegardes Vianna. Era um bando de gente ligado à cultura. Ele foi muito sabido.
P/1- Ele botou todo mundo lá?
R- Todo mundo lá. E eu fazia os cartazes. Hildegardes escrevia os textos sobre folclore. O Waldeloir fazia pesquisa de candomblé e tal. O Waldeloir era o responsável porque, naquela época, o candomblé tinha que pedir licença à polícia. Porque o candomblé, na Bahia, na década de quarenta, era proibido, né? Tinha a proibição. E o candomblé, antes de quarenta, a polícia chegava e destruía tudo, os pejis e tudo o mais. Um pouco hoje, acontece agora, né? Então, desmanchava tudo aquilo, destruía. E depois... porque, na realidade, o candomblé, de uma certa forma, acolhia alguns marginais. Tinha os pais de santo, né? O candomblé não era uma coisa, naquela época... que até a Ruth Landes escreve um livro sobre a cidade das mulheres, que era... depois da década de quarenta pra cá, o candomblé foi, praticamente, matriarcal, a coisa matriarcal, né? Mas naquela época tinha Ciriaco, tinha um outro, tinha outro, tinham vários pais de santo muito importantes, famosos. E a polícia dava sempre em cima deles. E aí, quando eu estava no turismo, o Waldeloir era a pessoa responsável por tirar licença pro candomblé. Então, os pais de santo iam no Turismo e aí Waldeloir fazia a petição, registrava na polícia e a polícia não incomodava.
P/1- Se você tivesse a licença, você...
R- Essa licença da polícia.
P/1- E aí você se ligou no candomblé? Ou você começou...
R- Não. Aí eu fui. Mas eu fui muito pouco. Porque Waldeloir me levou. E me levou pra um candomblé que era muito importante, que era de Dona Senhora do Axé Opô Afonjá, que era uma mulher maravilhosa, né? Mãe de Mestre Didi. E aí Dona Senhora ficou encantada por mim e eu encantada por ela. E ela me queria me botar como ogã da santa dela. Mas aí, por sorte... sorte, não! Ela morreu. (risos) E eu me livrei do candomblé. E assim eu me livrei. Mas ela era uma pessoa maravilhosa. E ela era uma pessoa que aglutinou muita gente importante. Então, Jorge Amado, Carybé, toda aquela society baiana fazia parte do candomblé de Dona Senhora. Porque quando a fundadora do candomblé do Axé Opô Afonjá, a Dona Aninha, foi instruída por um babalaô, o Irineu Martins do Bonfim, eu acho, que tinha vivido na África, na Nigéria. E ele, na Nigéria, a casa de Xangô, o Xangô tinha doze Obás de direita e doze Obás de esquerda. E nesses Obás, Waldeloir era obá; Jorge Amado; Caryibé; um psiquiatra chamado Rubim de Pinho; um tio, que depois eu descobri que era meu tio, que era o Tiburcio Alves Barreiros, o Tiburcinho. Todo mundo era, nessa...
P/1- Eles eram obás? Frequentavam?
R- Obás. Dorival Caymmi. Entendeu? Muito embora Caymmi morasse no Rio. Hein?
P/1- Nesse lugar?
R- Nesse Axé Opô Afonjá. Que era uma casa super tradicional, era uma das primeiras casas da Bahia. Era com Dona Menininha e a Casa Branca. Eram os três candomblés muito antigos.
P/1- E aí você ía lá?
R- Aí eu ia muito lá. E nessa época... e aí Dona Senhora gostou de mim. Eu gostava dela. Ela era uma pessoa...
P/1- Eu queria que você... Me conta um pouco. Você era filho de Ogum e coisas assim.
R- É.
P/1- Como você se descobriu?
R- Não. Ela era uma mãe de santo que não jogava pra você ver. Ela era proibida de jogar. Ela jogava dentro da casa. Então ela podia, jogava e dizia: “Você está precisando isso, isso e aquilo. Seu santo é esse, esse e esse”. Mas ela não jogava. Mas ela fazia, por exemplo, toda quarta-feira um amalá de Xangô, que a gente ia comer esse amalá, lá. Que é uma comida com quiabo e tal, de Xangô. E o candomblé dela era muito interessante, porque começava muito cedo. Cinco horas da tarde já estava batendo; às sete e meia, oito horas já tinha acabado. Não varava a noite. Não era candomblé de noite, de madrugada, nada disso. Então... mas antes disso eu conhecia todo mundo de candomblé, por causa do Waldeloir. Então, Dona Olga do Alaketu, que ficou minha amiga, grande amiga, a Iá. E a Iá foi que me disse que eu era de Ogum. Porque ela dizia: “Mas porque você quer ser de Xangô?”. Eu digo: “Não. Mas eu quero ser de Xangô”. Ela disse: “Não. Você é de Ogum”. E aí, quando eu falei com Dona Senhora isso: “Aquela negrinha disse que você (risos) era de Ogum?”. Aí eu disse: “Era”. Aí ela disse: “Tá bom. Eu vou olhar”. E era. (risos)
P/1- E era.
R- Ai. Eu gostava de Xangô, porque Xangô é aquele deus maravilhoso, né? Aquele...
P/1- E o que é ser filho de Ogum? O que você entende?
R- Ogum, veja bem: os santos africanos, os santos de origem africana, todos eles, né, são santos que se remetem a lendas, né? O Oduduwa foi que criou o mundo. Oxalá foi que criou as pessoas. Oxalá queimava as pessoas com barro quando eles saíam brancas, quando eles não queimavam direito saía brancos, saía gazo, né? Gazo é coisa da Bahia, né? Saía...
P/1- Desbotado...
R- É. Saía branco. Aquele branco de cabelo duro, como é que chama isso?
R- É. E quando quebrava uma coisa, a pessoa tinha um defeito, já saía do forno com defeito, de Oxalá. E Xangô era o deus supremo, do trovão, né, do raio. Na África, na Nigéria, quando tem trovoada, todo mundo fica, bota a cabeça no chão e pede: “Kaô, kabecilê”. “Venha, Xangô, salvar a minha cabeça”. É uma coisa muito engraçada. É como se fosse o Alcorão, que as pessoas se ajoelham e botam a bunda pra cima, (rindo) e bota a cabeça no chão. E Xangô também teve três mulheres, né? Oxum, Yemanjá e sei lá o que. E Obá, eu acho. Então tem toda essa coisa da lenda desses orixás, que era, que Verger descreve muito bem no seu livro, no Fluxo e Refluxo da Bahia, né, da África na Bahia. Então, essa coisa estava muito impregnada em todo o mundo, num certo sentido.
P/1- E isso permeava?
R- Era. Permeava porque estava todo mundo ali, o Didi. Sei lá, era uma coisa meio mágica, eu acho. Tinha uma certa mágica em tudo isso, entendeu? Aquele lugar, aquilo era uma roça que você ia. Porque tudo isso foi mudando, né? Tudo isso foi crescendo, foi tomando conta. Outro dia eu fui no Ilê Axipá, o mestre Didi, que era também escultor, que era filho da Dona Senhora, criou o Ilê Axipá. Quando ele criou o Ilê Axipá, aquilo estava no meio do mato. Agora tem uma escola defronte. É uma coisa, né? Essas coisas, que vai explodindo e vai expulsando, né? Porque também expulsa. É um horror. Então, lá no Axé Opô Afonjá, a gente ia nas festas, primeiro porque era muito cedo, era muito bom. E segundo, porque era lindo ver toda aquela coisa das festas, dos orixás todos dançando. Ela era muito rígida. Ela não permitia nenhum exagero, que hoje acontece, aqueles enfeites todos, aquela coisa carnavalesca que o candomblé se tornou, né? Uma coisa horrorosa. Eu me lembro que tinha. E tinha Daniel de Paula, que era um menino de Xangô. E tinha o Moacir, que era de Ogum. Os dois eram, assim, verdadeiros bailarinos. Eles dançavam, aquela coisa. Aí Xangô é um bicho que dança, pula. Ele tem uma batalha, entendeu? Era lindo. Era muito bonito. E ela nunca deixou que eles se fantasiassem. Quando tinha um orixá fantasiado, ela mandava recolher: “Recolhe. Tira essa roupa de fantasia”. Ela era muito poderosa.
P/1- E ela ordenava coisas na sua vida, assim, você tinha que seguir?
R- Não. Que eu me lembre, não. Ela não tinha essa coisa. Porque Dona Senhora não olhava, entendeu? Ela era uma mãe de santo, mesmo. Mas ela não era, não tinha essa coisa venal do pai de santo de hoje em dia, de cobrar, de fazer ebó, fazer isso, fazer aquilo, não tinha isso, entendeu? Era uma coisa que tinha os filhos, as filhas de santo, as festas. E tinham os obás que, de uma certa forma, era uma gente que dava suporte à casa, entende? Então, um cara, o Jorge Amado que levou o Jean Paul Sartre, a Simone de Beauvoir, pra ver Dona Senhora. O Caymmi, que era coisa. O Tiburcio Barreiro, que era advogado. Rubim de Pino, que era psiquiatra. E era assim. Vivaldo da Costa Lima, que era um professor da universidade, um antropólogo. O Sinval, que era irmão do... era toda uma gente muito, de classe média muito alta. E ela, isso ela reinava, de uma certa forma, com essa gente toda. Mas essa gente também era a proteção da casa, entendeu? Então, as pessoas estavam ali. Não eram turistas. Turista ia, mas não era uma coisa turística, entendeu? O candomblé teve essa coisa turística por causa da polícia. Que, ao pedir licença pra polícia, havia um edital que dizia: “Tal casa hoje bate, tatata, tatata ”, entendeu?
P/1- Aí os turistas iam?
R- Hein?
P/1- Porque eles iam, os turistas podiam ir.
R- Hein?
P/1- Os turistas.
R- É. Porque os turistas iam saber. Iam no departamento de turismo, o departamento de turismo tinha que ter essa agenda, porque era ele que dava essa agenda, né, pra polícia, ele que fazia esse relatório pra polícia não ter batida. Depois disso foi mudando, mudando, mudando. Depois, nos anos sessenta já não tinha mais isso. Isso durou dos anos... começo... final dos anos trinta aos anos sessenta. Os anos trintas foram muito violentos, né? Tem coisas... tanto que muitos de artefatos, de objetos litúrgicos, muitos, não só no... em todo lugar que teve muita influência afro, africana, no Rio de Janeiro, Bahia, Alagoas, Pernambuco, esses artefatos todos iam parar no Museu da Polícia. Isso constituía uma pesquisa etnográfica, né? Pra estudar a questão do negro. Toda aquela antropologia daquela época, absolutamente racista, desgraçada do Nina Rodrigues e tudo o mais. Aquilo era uma espécie de documento para, né, estudo, né? Então, era uma coisa assim. Por exemplo: na Bahia tinha o Museu da Polícia, porque era um museu ligado ao Instituto Nina Rodrigues, que era um instituto de criminalista, né? Lá tinha também as de Lampião, Maria Bonita, daqueles cangaceiros todos. E lá também tinham as coisas de candomblé. As coisas muito importantes de candomblé foram parar no Instituto Geográfico Histórico. Assim como as coisas do candomblé muito importantes de Alagoas foram parar no Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, que chamava Coleção Perseverança. A coleção de Pernambuco foi parar no Museu de Pernambuco, o museu do estado, entendeu? E que muitas dessas coisas eu ajudei a montar e tudo o mais. Aí, agora, esse pessoal do Rio de Janeiro começava a reivindicar a retirada desses objetos do Museu da Polícia. E conseguiram tirar agora. E a justificativa, você viu isso, né? A justificativa era de que estavam mal cuidadas. O que era mentira. Estava tudo dentro de armário de metal, guardado. E muito grave isso, porque isso foi parar no Museu da República, que não tem nada a ver com isso, né? O Museu da República é um museu da República. Velar a morte de Getúlio Vargas e pronto, né? Era o Palácio do Catete. Foi parar lá.
P/1- Isso foi pra lá?
R- Ahn?
P/1- Foram pra lá?
R- Foram pra lá.
P/1- Agora?
R- É. Lá também tem um núcleo do Museu do Folclore. E foi pra lá essa coisa, que é muito preocupante. Mas essas coisas já não tinham muita importância, entendeu? Era. Tinham coisas de candomblé, tinha contas e tal. Porque essas coisas também, toda essa coisa, todos esses objetos litúrgicos foram comidos pelo cupim. Menos os do museu de Pernambuco e de Alagoas, que é conservado. E aquele outro museu da Faculdade de Fortaleza, daquele antropólogo cearense, um dia eu fui lá. E aquilo tinha cupim em cima, dentro das vitrines e tudo. E os do Instituto Histórico da Bahia, tudo aquilo foi jogado fora. Chegou um museólogo lá e disse: “Tudo isso é lixo”. Aí jogaram fora. (risos) É uma coisa, essa incúria brasileira é tão engraçada, né?
P/1- Emanoel, nesse momento que você está me falando, que você começou a fazer muita exposição, do candomblé, chegou a ditadura, né?
R--- É.
P/1- E você estava no...
R- Não. Porque aí quando essa coisa da... sabe, essas coisas de datas precisas terminam sendo meio difíceis, né? Mas quando eu cheguei em Salvador, quer dizer, quando eu estava na Escola de Belas Artes, eu conheci a Sonia Castro, a Helena Coelho, que era do partido. A Sonia sabe tudo. Era uma artista que era do partido. O partido tinha uma... Aristeu Nogueira, que era o membro, o presidente do Partido Comunista da Bahia, tinha uma filha chamada Vera Felicidade. Vera Felicidade foi uma moça que estudou na Rússia, Medicina. Quando voltou, recentemente... quer dizer, recentemente, ó...
P/1- Era filha de quem?
R- Aristeu Nogueira, que era o presidente do partido. E aí, a Vera era amiga nossa e tal. A Vera foi estudar na Rússia, Medicina, que o pai mandou, é lógico, comunista. E foi morar na Rússia. Quando voltou, Vera esteve na Bahia, depois virou... era antropóloga. Não, era psiquiatra. Ela era psiquiatra. E ela terminou sendo a amante de Dona Stella de Oxóssi, do Axé Opô Afonjá. Lembra dessa história da Dona Oxóssi? É. Ela foi uma daquelas mulheres, amantes de Dona Stella. Que foi um escândalo, né, na Bahia essa invasão lésbica do candomblé. Foi uma coisa horrorosa.
P/1- Isso na época da...
R- Isso agora, recentemente.
P/1- Isso quando? Sessenta? Setenta?
R- Agora. Agora, aí sim. Então, o pessoal... eu cheguei em Salvador, estudava Belas Artes, fazia gravura. Aí me levaram pro partido. Mas o partido não me quis. O partido achava que eu era gay. Então, nem eu, nem Caetano, nem Gilberto Gil, ninguém era do partido.
P/1- Vocês chegaram a ir e o partido ?
R- É. Mas eu continuei fazendo coisa pro partido. Eu fiz campanha de alfabetização do Paulo Freire. Fui eu que fiz todas as ilustrações. Eu fiz muita coisa com Geraldo Sarno, que era... eu também tinha aprendido a fazer marionete, eu fiz marionete. A gente fazia teatro de bonecos no Sindicato da Petrobrás. Era uma coisa do Centro Popular de Cultura, que era uma coisa muito interessante. Depois, quando eu fui pro Rio, depois de tudo isso, o Centro Popular de Cultura me... estive com o Centro Popular de Cultura, que era no Flamengo, um prédio da UNE, sei lá o que, por ali, né? Mas tudo isso é tão engraçado, porque isso parece que é uma coisa distante uma da outra, mas é tudo assim, né, tudo grudado uma coisa na outra. Então, quando... bem, quando eu estava no Rio, expondo na Escola de Belas Artes, a escola me deu um carnê de comida. E, eu que já tinha um carnê de comida da universidade da Bahia, vim comer naquele maldito, naquele famoso restaurante chamado... como era mesmo? Esqueci agora o nome.
P/1- Calabouço?
R- No Calabouço. Que é uma desgraça a comida no Calabouço. Era um horror. Aí eu reclamei lá, fui no diretório, disse: “Eu não vou comer mais no Calabouço. Aquilo não presta. A comida é horrorosa. Aquilo está me fazendo mal”. Aí eles me deram um tíquete pra eu almoçar na Escola de Engenharia do Largo São Francisco, que era, a comida era uma maravilha, né? (riso) Depois fui embora pra Salvador. Mas foi muito engraçada essa história, mas nesse... antes ainda eu era mais ou menos do partido. Não era do partido, né? Eu fiz campanha, eu fiz cartazes. E quando teve a ditadura, quando teve a... eu morava - olha a ironia! - numa casa, numa edícula de uma casa, do diretor... ele era a pessoa mais influente do Partido Comunista, naquela época. Eu morava lá. Chamava Herval Pina Ribeiro, que depois era médico, veio trabalhar aqui na Santa Casa e tal. Escreveu vários livros, tal. E o Herval Pina Ribeiro... e eu morava lá. Quanto teve o sessenta e quatro, invadiram a casa, pegaram a biblioteca dele toda e tatata. Mas a mim não me incomodaram. E aí, nesse espaço, em pleno 1964, o Carlos Lacerda vai à Bahia. O Carlos Lacerda, governador do Rio de Janeiro, casar a filha... casar o filho, Serginho Lacerda, com a filha de Clemente Mariani, do banqueiro lá. E Odorico Tavares, que era o diretor dos jornais, me leva o Carlos Lacerda na minha casa, na casa do Partido Comunista. A casa. (riso) Quando o Lacerda sai, houve um bochicho naquela rua! Ele saiu carregado lá de casa. Ele estava com João Condé, era o Serginho, o Carlos Leonam, era um grupo assim e Odorico. E ele me comprou umas gravuras, depois me mandou ir no Rio, que ele queria fazer uns cartazes. Eu fiz uns cartazes para o quarto centenário no Rio, 1964 isso, já. 1965, né? Claro. Quarto centenário. E foi muito engraçado. E aí eu fiquei como bode expiatório. Porque todo mundo começava a me dizer que eu era o espião. Porque eu tinha recebido o Carlos Lacerda no meu ateliê. Porque tinha sido uma coisa tão extraordinária, que Odorico, esse diretor, secretário do Diário Associados, que era um poeta, um homem muito importante, ele... e também foi muito... eu vou contar a história como é que eu o conheci: um dia eu bati na porta do escritório do Diário Associados. Não me deixaram entrar: “Ah, não. O Doutor Odorico não vai receber você, de maneira nenhuma, nada. Quem é você, pra querer ser recebido por Odorico Tavares?” Eu digo: “Ah, tá bom”. Então, fazer o que, né? Passado... nesse espaço, chega Nelson Carneiro, o irmão do Edison Carneiro e que era deputado federal. E vai ao Turismo e fala com o Vasconcelos Maia: “Quem é a pessoa que podia fazer um cartaz pra divulgar o congresso, esse Congresso Interestadual de Turismo?”. Aí o Vasconcelos diz: “Emanoel Araújo”. Aí eu fiz esse cartaz. (risos) E aí, esse Odorico Tavares que não me recebeu, publica no jornal: “Hoje, na cidade de Salvador, apareceu um cartaz deslumbrante de um artista jovem tatata tatata tatatata tatata”. (risos) Aí eu fui lá: tum tum tum. Bati na porta. E digo: “Eu sou o artista”. (risos) Aí ele disse: “Ah, você é o artista? E taltaltal. Lindo o seu cartaz”. Era um cartaz que mostrava uma bicha da Bahia colorida. Eu acho que eu tenho até aí, exposto. E aí eu fiquei... e aí ele me levou depois o Carlos Lacerda em casa, no ateliê. Porque naquela época eu era um artista mais jovem. Não sei se era... não é... a questão da negritude não aparecia, claro que não, não era.... não.
P/1- Não era assim tão...
R- Não era. Não era politizada essa questão, né? Então...
PAUSA
P/2- Assim, é uma história... ela nasceu numa fazenda. Então, nasce tudo dentro de um processo final, escravocrata assim. E eu tenho pensando nisso, porque tem poucas pessoas escrevendo biografias das pessoas negras, né? Tem que ser...
R- Muito poucas.
P/2- Né? Eu estou pensando em olhar pra isso, assim.
R- É. Eu estou fazendo agora um álbum, que é um álbum... está gravando?
P/2- Está.
R- Eu estou fazendo agora um álbum, que são umas serigrafias. São dez serigrafias. E dez, que eu chamo Eu e Meus Dez Poetas Negros.
P/2- Nossa, que lindo!
R- E aí eu botei, inclusive, a Auta de Souza, tem uma série de poetas negros que ninguém fala, quase. Então, eu acho o seguinte: essas coisas, tudo tinha uma velocidade que era inacreditável, né? Acho tão engraçado isso, porque hoje... não era uma coisa câmera lenta, era uma coisa muito...
P/1- Naquele momento?
R- É. Era uma coisa assim. Porque eu estava fazendo isso, fazendo aquilo, fazendo aquilo outro. Fazia os cartazes. Ia trabalhar no Turismo, no Convento de São Francisco. Ia comer lá com os padres, no doce, que fazia pão, que o pão de São Francisco era uma maravilha! O pão com goiabada e café com leite. (risos) Aí eu entrava lá, de araque, no convento, pra comer esse doce. Porque eu trabalhava na gráfica. E aí, esse Frei Clóvis, que era o gerente da gráfica, me deixava. (risos) Então, essas coisas são tão engraçadas, porque elas têm uma velocidade que é tão esquisito. Porque essa coisa, por exemplo, do Rio. Se fosse parar pra falar do Rio, quando eu cheguei no Rio de Janeiro, teve aquela história ... quando depois eu voltei ao Rio de Janeiro. Depois eu voltei outras vezes. Depois eu fui apresentar na Giovanna Bonino. Fiz exposição lá na Giovanna, que era a galeria mais importante do Rio. E era o primeiro artista jovem a expor gravura na Galeria Bonino. Então, teve essa coisa: conhecer o Rio, as pessoas todas. O Rio era uma espécie de enciclopédia, né, do Brasil, né? O Rio sempre foi uma coisa que tinha muito artista, muitos intelectuais. Todo mundo, aquela coisa. O Beco das Garrafas. A boêmia. A Lapa. A Lapa era uma maravilha. A Lapa tinha um dancing que você ia lá dançar e furava (risos), tinha um cartão, a dançarina furava o cartão. Era uma maravilha. E tudo isso... quer dizer: era um Rio completamente diferente de hoje. Então... e todos os amigos que... porque essa... era o mesmo que aconteceu aqui, eu acho. Que as coisas, as pessoas não... as pessoas tinham um certo apreço pelas outras. E, sobretudo, quando eu era jovem. E que eu vim de outro estado. Havia uma certa, uma certa amabilidade, eu diria. Que, no Rio, não tinha muito. Mas aqui tinha mais. Teve também no Rio, mas aqui tinha muito mais. Quando eu cheguei no Rio, aqui em São Paulo, todas as pessoas que eu conheci, foram pessoas maravilhosas. Foram amigas, se transformaram em amigas. Os mais velhos e os mais jovens, como eu. Então, eu acho que é uma coisa engraçada essa história da vida, que eu sempre digo que eu deixo, eu vou na onda, tá, shshshs, me chama, eu vou.
P/1- E aí por que você acabou em São Paulo?
R- Não. Eu acabei em São Paulo, porque eu achei, achava, intuitivamente, que a Bahia era um atraso pra mim.
P/1- Você tinha ido pra Nova Iorque. Você voltou pra Bahia?
R- Não. Eu tinha... Nova Iorque foi depois. Eu tinha ido... eu tinha saído da Bahia e aí, quando eu expus aqui em São Paulo, em 1965, na Galeria Estreia e na Bonino também, na mesma época, eu achei que esse era o lugar. Eu achei que era o lugar pelas pessoas, sobretudo pelas pessoas, eu achei. Eu fui tão abraçado, entendeu? Tão, assim, festejado como jovem artista, que eu achei que aqui era o lugar. E eu achava também que, em Salvador, era muito fechado. Fechado! Era uma cidade que, de uma certa forma, te exigia um tipo de comportamento mais folclórico, acho que eu não tinha muita chance de fazer uma carreira, como eu sempre... muito embora eu fiz carreira em Salvador. Quer dizer: eu comecei a trabalhar em concreto, em madeira, trabalhei muito em... mas eu não queria ser um artista regional. Eu acho que era isso.
P/1- E você achava que em Salvador você tinha que cumprir um papel? O que é isso do folclore que você ?
R- Não. Era. Salvador era o meio do caminho. Então, eu achava que era o meio do caminho. E eu fui... porque eu fiz muita coisa, né? Eu, como eu estou dizendo que isso tinha uma velocidade enorme, porque quando, nas minhas coisas de Salvador, eu expus poucas vezes em Salvador. Quando eu cheguei, então, eu não tinha, eu era muito amigo de todo mundo, mas eu era um pouco arredio. E eu sempre fiquei muito ligado com essa descoberta de Odorico Tavares por mim. Foram duas descobertas. Uma foi essa de Odorico, que eu não sei se foi antes ou depois. E outra foi de Mister McCloskey, um americano que era diretor do Ufes Departamento de Inteligência Americano, né? E ele foi no meu ateliê e me comprou umas trinta ou quarenta obras. E aí eu estava respondendo inquérito da polícia no Quartel General. E o tenente Maziero em cima de mim, tatata tatata tatata tatá, enchendo: “Você sabe o Karl Marx? O não sei o quê? O Capital? Você tatata tatata”. E aí, quando ele descobriu que havia uma certa delicadeza comigo e com outro amigo meu que chamava Álvares Guimarães, que era diretor de teatro, ele começou a entrar, dizer assim: “Qual dessas mulheres você gostaria?”. Era uma época que tinha o calendário da Pirelli, de mulheres, né? Que era... os borracheiros tinham todos esses calendários, os borracheiros. Eram calendários feitos pra borracheiros. E os borracheiros tinham, ele dizia: “Mas e aí?”. Eu dizia: “Iiiihh nhem. Eu, não faz o meu gênero”. Aí Álvares: “Também não faz meu gênero”. (risos) Ele ficava meio perplexo, porque ele não sabia como atingir a gente, né? Não sabia como atingir nós dois, porque nós éramos duas figuras, assim, fora da casinha. (risos) E aí, quando esse Mister McCloskey aí comprou as minhas gravuras e fez uma exposição minha.
P/1- Lá?
R- Lá em Salvador.
P/1- Ah, em Salvador.
R- Era o departamento em Salvador. E aí eu digo: “Ai, que maravilha”. E aí, num dia que eu tinha uma sessão lá no quartel general, eu levei o convite e digo: “Está vendo, tenente Maziero, o senhor disse que eu sou comunista. Então, olha aqui o convite que recebi”. Ele disse: “Mas você?”, (rindo) com o meu convite. “Você! Como é que você conseguiu isso?”. Eu digo: “Não. Não consegui. Eu sou um artista. Então, o Mister Mccloskey me comprou as obras e vai fazer. Você vai pra inauguração?”. Ele foi na inauguração”. (risos). Mas essas coisas são tão engraçadas, né? Porque elas têm uma mágica. Eu acho que tem uma mágica, né? Porque escute só: esse Mister McCloskey chegar na minha casa pra comprar gravura. O Carlos Lacerda passar lá em casa. Quer dizer, era uma coisa assim, era uma coisa absolutamente... e hoje seria impossível. Você vê, por exemplo, um governador, o Dória, esse boçal, ir no ateliê de um artista jovem? Não iria. Mas Salvador tinha essa mágica, né?
P/1- E Antonio Carlos Magalhães ?
R- É, Antônio Carlos Magalhães. Bem, aí eu vivi essa época em Salvador, tatata tatata. E vim moram em São Paulo. Quer dizer: em 1971 eu fiz um álbum do Di Cavalcanti, que era uma grande estrela. Me deu muito dinheiro e eu comprei uma casa de campo aqui, no Jardim Iolanda, que era um condomínio Jardim Iolanda, na BR 2, no quilômetro vinte da...
P/1- Perto do Taboão...
R- É. Depois do Taboão. Na cidade do Taboão. Entre o Taboão e o Embu, né? Comprei aquela casa.
P/1- Com o dinheiro desse seu...
R- Desse álbum. Deu tanto dinheiro, que era metade minha e metade do Di, entendeu? E ele vendeu os dele e eu vendi os meus. (risos) Aí juntei esse dinheiro, que eu não me lembro quanto que era, setenta e um mil, sei lá. Era um dinheiro ridículo. E eu comprei essa casa. Porque eu ia muito, eu ia, cansei de ir várias vezes com o Nicola, com o Odetto, que tinha, já, terrenos aí. E, por acaso, essa casa estava à venda, que era a casa de um sujeito de uma gráfica chamada Hamburgo. Ele era de Nova Hamburgo. Mas ele teve um problema com uma filha. Eu acho que a filha teve um problema, um acidente e morreu. E ele se desencantou com São Paulo, com a casa. A casa estava mais... era uma casa pré-fabricada e ele não chegou a terminar. E aí eu comprei a casa. E fui terminando a casa aos pouquinhos. Fui levando coisas da Bahia pra lá e tatata tata. Fiquei aí como dez anos.
P/1- Morando nessa...
R- É. Em Taboão da Serra. Aí eu fazia festa. Levava muita gente pra almoçar, comer e tal ta tal. Mas... e aí o... bem, aí eu ficava, comecei a fazer a minha vida em São Paulo.
P/1- Aí você estava aqui, já?
R- Estava aqui já em 1971. Estava. Mas a minha mãe estava em Salvador. Eu ficava aqui, ficava lá. Ganhava dinheiro aqui, ia pra lá pra pagar as coisas de Salvador.
P/1- E o seu dinheiro aqui, você trabalhava, essencialmente, como artista? Do seu trabalho aqui?
R- Era.
P/1- E aí me conta um pouco mais isso de São Paulo. O que você sentiu, assim? Teve uma nova visão cultural ?
R- É. Quando eu cheguei em São Paulo tinha... São Paulo tinha uma coisa muito interessante, que era muito provinciana. São Paulo sempre foi muito caipira, né? E São Paulo tinha uma coisa muito provinciana e era uma coisa que eu achava fascinante, essa coisa de São Paulo. De uma cidade de Salvador, porque Salvador sempre teve aquele allure de grande cidade, uma cidade voltada pro mar, uma cidade voltada pro comércio, né, o trade wind de Salvador, as igrejas. Salvador tinha uma cultura, mesmo, né? São Paulo não tinha nada disso. São Paulo era uma cidade pequena, não era esse monstro que é hoje. E São Paulo era muito calma, muito tranqüila. Mas as pessoas de São Paulo que eu conheci naquela época, quando eu cheguei aqui, foram muito importantes. Primeiro que eu cheguei aqui à São Paulo, porque o Odetto Guersoni, que era um artista gráfico de São Paulo, foi visitar a Escola de Belas Artes, na Bahia. Aí ele me viu e disse: “Você devia ir à São Paulo”. Eu digo: “Ah, então eu vou”. E fui. Fiquei hospedado com ele na Avenida Angélica. E ele me botou no circuito de todas as galerias. Tinha a Paula Resende, que tinha uma galeria na Consolação, que a Consolação não era aquilo, era Consolação pequena, a rua, né? Tinha a Consolação. Tinha o Clóvis Graciano, que tinha uma galeria na São Luís. A São Luís era a rua mais chique de São Paulo. Tinha a Pan Am, tinha a TAP. Tinha aquela avenida que tinha grandes árvores, que depois destruíram com o negócio do metrô. Então, eu fiquei aqui, fascinado com São Paulo. O Bonadei, conheci o Bonadei. O Danilo Di Prete. Fui conhecendo um bocado de gente. E era uma cidade também que acolhia artistas, entendeu? Então, a primeira exposição minha foi na Folha, dei uma entrevista. O Zanini fez uma matéria na Folha. Conheci o outro lá, que era crítico de arte, que morava com a Lourdes, ali no Largo do Arouche. Tinha a Raimunda Oliveira, que morava aqui já há muito tempo. Então, foi muito engraçado, porque aí eu fui achando que era um lugar pra ficar. Achei que era o lugar pra ficar e fiquei, fui ficando.
P/1- Mas aí, Emanoel, vamos só retomar essa coisa da cor, que você falou: “Aqui foi o primeiro lugar que me chamaram de negro”, assim. Porque aqui, realmente, tem muito mais branco, né?
R- Pois é. Mas não é verdade. São Paulo tem mais negro do que a Bahia, né? A população negra de São Paulo é muito maior. Está aí na periferia. Mas ter, tinha.
P/1- Não. Assim. Isso te mudou...
R- Não. Não. Porque eu, sabe o que é? Eu não tomava conhecimento dessa história. Tanto que Nicola tinha um amigo, que era um cara de uma família de fazendeiro, de Ribeirão Preto e esse Paulo Cardoso era um cantor de ópera, mas ele virou pra mim e disse: “Você é o primeiro negro que está entrando na minha casa”. Eu digo: “Ah, sempre vai ter um primeiro, né? Então, sou eu o primeiro”. (risos) Ficamos amigos e tal. Mas essas coisas, aqui, essa foi a primeira vez. E um dia, eu tinha um carro, um BMW feito pelo Estados Unidos, que era um BMW branco, com pára-choque retrátil, tal. E aí, uma italiana, que é descendente de italiano, uma loira aí viu e disse: “Mas este carro de quem é? É desse negão?” (risos) Mas eu acho... eu nunca levei, pra mim, essa questão. Eu sempre passei por cima. E eu sempre passei, mas em todos os momentos. Quando eu fui nomeado pra Pinacoteca, primeiro eu fiquei na Bahia dirigindo, o Antônio Carlos me chamou pra dirigir o Museu de Arte da Bahia. Mas eu sempre tive um ímpeto muito engraçado, eu sempre fui muito ousado, né? Porque essa ousadia minha vem desde criança, né? O Antônio Carlos me chamou pra dirigir. Morreu esse amigo meu, que era diretor do museu e eu tinha voltado dos Estados Unidos, que eu tinha uma viagem que o Departamento de Estado tinha me convidado pra conhecer os Estados Unidos. E eu cheguei lá no Departamento Internacional de Educação e a mulher, a criatura me disse: “O que você quer ver nos Estados Unidos?”. “Ahh” - eu disse - “eu quero ver o século dezoito. Eu quero ver a prataria. Eu quero ver isso”. Ela disse: “Mas que diabo! Você é um artista ou você é um intelectual?”. Aí: “Eu sou um artista intelectual”. (risos) E me levaram pra tudo quanto é lugar. Quando eu voltei pra Salvador, aí esse amigo meu tinha morrido. E Antônio Carlos me convidou. Aí ele me disse: “O que você faria como diretor do museu?”. Aí eu disse: “Faço isso. Faço aquilo. Faço aqui. Tatata”. Aí ele disse: “Ah, você não serve. Você não é humilde”. Eu disse: “‘Olha, quem tem que ser humilde é você. Porque você é governador, eleito pelo povo. Agora, eu sou um artista. E artista não tem que ser humilde, não”. Aí ele disse: “Ah, então serve” (risos) E aí eu digo: “Mas eu sirvo. Mas tem uma outra coisa: eu só despacho com você, em palácio. Nem com secretário de Cultura, nem com diretor da Secretaria de Cultura, nada disso. Eu despacho com você. Eu quero fazer isso, isso, isso, isso, isso”. E ele disse: “Eu topo”. Então, eu fiz tudo isso e eu não tive coragem de cobrar um salário decente pra ele. Eu paguei do meu bolso pra ser diretor do Museu de Arte da Bahia. Eu vendi a minha casa do Taboão da Serra, comprei um ateliê em Salvador. E com o resto eu vivi lá dois anos.
P/1- Sem cobrar?
R- Sem cobrar. E quando eu saí, ele me disse a mim: “Você não pode ir embora”. Eu digo “Não. Eu vou-me embora, sim”. Ele disse: “Não. Eu já até pensei de falar com Norberto Odebrecht e com o ngelo Calmon de Sá, pra pagar o seu salário”. Eu disse: “Você acha que eu vou na ante-sala de Doutor Norberto Odebrecht ou de ngelo Calmon de Sá, pra receber um cheque? Sinto muito, mas não é meu feitio. Eu jamais faria isso. Não vou. Não quero. Eu vou-me embora”. E fui-me embora. Vim pra cá novamente. Fiquei lá de 1981 a 1983.
P/1- Aí você voltou pra cá?
R- Voltei pra cá. E foi muito interessante viver com ele, conviver com ele. Porque todas as coisas que eu, primeiro, que eu tinha falado, eu fiz. Fiz o museu inteiro novo, tirei de um lugar... fiz como eu fiz com a Pinacoteca. Só que lá eu fiz em dois anos e aqui eu fiz em dez, né? Mas foi muito interessante, porque.... e também tem outra coisa: eu não sei de onde saiu essa minha questão com gestor. Não sei. Não aprendi, entendeu? Não aprendi. Não me pergunte como é. Não é modéstia, não. Não é nada. Eu não sei como é que eu virei um gestor de cultura. Foi no aprendizado, com Antônio Carlos Magalhães.
P/1- Com ele?
R- Foi com o aprendizado com ele. Porque eu, todo domingo ia lá e almoçava. Às vezes, me dava aquele jantar. E eu: “Eu tenho que ficar aqui. Eu tenho que arrancar dinheiro deste homem. Eu tenho que fazer isso. Eu tenho que fazer aquilo. Eu vou ficar”. Ele tinha dias que estava de muito mau humor. Tinha dias que estava mais de mau humor ainda. Mas estava ali do lado. Eu tinha feito a minha campanha com a Dona Arlete, né, que era a mulher dele e tal. Então eu... mas aí eu fui me informando. Quando eu vim pra cá, que eu disse: “Não, eu não quero mais ver falar em museu” e que Adilson Monteiro Alves me convidou pra dirigir a Pinacoteca, eu digo: “Que desgraça”. Mas eu aceitei pelo simples fato de que o O Estado de São Paulo publicou uma nota dizendo assim: “Foi nomeado hoje, o artista Emanoel Alves, (risos) baiano...” - entendeu? - “no lugar da Professora Doutora Maria Alice Milliet”. Eu digo: “Ah, então eu vou ficar. Então é comigo mesmo”. (risos) Aí eu fiquei lá. E foi... e essas coisas são muito engraçadas, que eu digo, porque eu acho que essa coisa do universo, o universo lhe ajuda, acho que ajuda, não tem jeito. Porque não tem outra forma, não tem como você dizer: “Não. É Deus, é não sei quem, é...”. É o universo que te ajuda. Quando eu estava na Pinacoteca, eu vi aquilo: “Mas isso é uma coisa desgraçada. O que eu vou fazer?”. A Maria Alice disse: “Ah, mas você é tão amigo de Paulo Tarso Flecha de Lima e de Antônio Carlos Magalhães”. Eu disse: “Olha, eu tenho certeza que eles não vão me ajudar. Então, não venha com essa história, de que eu tenho respaldo com o Antônio Carlos e com o Paulo Tarso Flecha de Lima”, que era secretário do Itamaraty. E aí, quando eu entrei ali e tal, um dia, chega em São Paulo o diretor do Museu Rodin, o Jacques Vilain. E a (Dominique Berce, que era minha amiga, que era consulesa, adida cultural da França, me leva o Jacques Vilain no museu. E ele foi lá e ficou olhando e tatata tatata, olhou tudo aquilo. E aquilo era de meter vergonha porque tinha aqueles dois espaços que era terra batida, tatata. E aí eu disse: __________(2:31:03). Aí ela disse: “Ah, eu já levei ele em todos os museus, no Masp, no Museu de Arte Moderna e tatata”. Levaram ele pra não sei aonde, foi pra Foz de Iguaçu. “Bom, então não tenho a menor chance, né?”. Aí, passado um mês, mais ou menos, ele me manda um telegrama: “Caro Emanoel, o Rodin escolheu a Pinacoteca pra exposição de suas obras”. Eu acho que ele adorou a luz da Pinacoteca, os espaços da Pinacoteca. “O Rodin vai ser feito aí”.
P/1- E aí mudou?
R- Nossa. Mudou tudo. Porque aí eu digo: “Meu, eu tenho que fazer uma cenografia. Eu tenho que fazer alguma coisa”. Arranjei, chamei pessoas pra fazer coisas emprestadas. Chamei um cara que era cortineiro, tinha umas cortinas de sobe e desce, de tecido suíço. Eu forrei todas aquelas salas com tapete, botei um tapete. Eu botei iluminação. Eu fiz as bases todas um pouco a la século dezenove, uma coisa com friz. E quando a exposição chegou, eu montei a exposição. E aí o Jacques... ah, e teve uma senhora que queria, que trocou comigo um desfile de moda dela com aquela coisa de seguro, a seguradora. Como chama? Transpecto? Não. Era uma outra seguradora. E ela me disse... eu troquei com ela o espaço da Pinacoteca, pela segurança do Rodin. E foi muito estranho, porque aquele desfile feito pelo Possi Neto, você não pode imaginar o que era. Aquelas mulheres, aquelas manequins malucas, umas mulheres malucas. Elas subiam nas coisas e a minha sala ficou camarim delas. Olha, aquilo virou uma desgraça! E eu preocupadíssimo, eu digo: “Puta! Se der... se nego sabe disso, eu estou ferrado, né?”. Bem, fui falar com o Possi Neto, ele disse: “Mas você esperava o que? Você está recebendo o patrocínio da transportadora de valores e segurança pelo aluguel de uma noite. Você não esperava...”. Porque tinha uma música bum bum bum, eu digo: “Vai cair tudo aqui”. Aí eu fiz aquela montagem. Quando chegou cinco horas da manhã, já não era mais Dominique Berce, já era Jean Yvés Mérian, ele me liga e me diz assim: “O Jacques Vilain está chegando amanhã, seis horas no aeroporto. Ele não quer saber de outra coisa, a não ser ver a exposição”. Aí eu digo: “Não tem importância. Eu estou indo”. Vou lá. Estou lá esperando ele. Deu seis e pouco da manhã, chega Jacques. Com aquele bom francês, né? Passou por sala, por sala, o Jean Yvés atrás e eu também. Ele disse: “Olha, essa exposição foi montada por um escultor. Só um escultor podia entender a obra do Rodin. E você fez isso”. E aí a exposição foi um sucesso, né? Mas não foi isso a coisa mais interessante. Eu não estava na minha sala, que dava pra Avenida Tiradentes e aí eu olhei pra baixo, vi o ministro Weffort, com a Madalena. Eu, aí, fui lá embaixo, tirei o ministro Weffort (risos) da fila e disse: “Ministro, que bom que você veio, porque este estado de São Paulo nunca teve apoio do Ministério da Cultura. Então, eu vou lhe mostrar como é que essa exposição se realizou”. Aí o levei pra toda a parte de baixo do museu, todo escorado com madeira. Porque o piso na Pinacoteca era de madeira, eu escorei tudo com pilar. “Ahnn! Mas como!”, eu digo: “Pois é. Pra segurar a escultura e segurar o público, eu tive que estaquear toda a Pinacoteca por baixo”. Aí ele disse: “Ichhhh, que maravilha! Eu vou lhe dar cinco milhões de dólares, para o estado de São Paulo fazer a coisa”. E foi assim que ele deu o dinheiro. O Covas se encantou também com a história do dinheiro e da Pinacoteca e do Rodin e tudo aquilo lá, deu o dinheiro todo. Foi feita a reforma. Foi assim, nessa base. Eu chamei o Paulo Mendes da Rocha, disse a ele: “Olha, você fique aqui nessa sala. Tome aqui a mesa do Ramos de Azevedo. Você trate de conhecer, porque um arquiteto que vai mexer com um museu, tem que conhecer como funciona o museu. Fica aqui”. Ele sentou, ficou lá, de dentro. E os ajudantes, os assistentes dele trabalhando, levantaram, a Pinacoteca não tinha nada, não tinha em lugar nenhum, planta, nem nada. Foi tudo levantado, entendeu, pra poder fazer o projeto. E foi o projeto que deu a ele novamente o prestígio, né? Porque ele ganhou o prêmio ______ (02:36:55), depois ganhou outro, ganhou outro, ganhou outro. Graças a mim. Que depois ele me disse que não ia ao Museu Afro Brasil, porque ele não gostava de preto.
P/2- Ele falou isso aonde?
R- Não. Ele falou comigo isso. Ele não fala... ele falou, porque estava eu e o Danilo Miranda juntos, na exposição desse aí, do... como é o nome dele mesmo?
P/1- Marcello Nitsche.
R- Do Marcello Nitsche. E aí o Paulo estava, que era muito amigo da Marcello Nitsche. Eu digo: “Oi, Paulo. Só...”. Brincando com ele: “Só, como não foi você que fez o Museu Afro Brasil, você não aparece lá”. Ele disse: “Ah, eu não vou, porque eu não gosto de preto”. E aí Danilo ficou em pânico. Porque, sabe? (riso) É uma coisa, que eu disse assim: “Eu não posso responder pro Paulo, porque eu não posso dizer a ele, que ele é um filho da puta”, entendeu? Porque também tem essas coisas, que você tem que engolir o sapo e depois fica na sua garganta. Até hoje está. Eu nunca disse pra ele o que ele tem que ouvir. Porque tem coisas que você engole, tem outras que você não engole. Você tem que saber, ter a parcimônia de saber reagir, de como reagir. Mas a dele passou. Até hoje me dói na garganta. Porque aquele filho da puta, ele mudou, depois de mim. Foi eu que deu a chance pra ele mudar. Então... mas assim, eu faço, eu faço e depois eu vou-me embora. Fiz e fui embora. Fiz e pronto. Deu o Rodin. Entravam cem pessoas na Pinacoteca, um se benzia que achava que aquilo era o Inps, outro achava que era uma igreja e as pessoas... e aquilo mudou completamente. Quando eu entrei na Pinacoteca, no dia anterior, no dia posterior, o segurança que chamava ‘seu’ Amois, o ‘seu’ Amois me liga duas horas da manhã: “’Seu’ Emanoel, a Pinacoteca está inundada”. Eu digo: “Meu Deus, e agora? Esse preto baiano está fodido!”. (rindo) Preto, gay, baiano, tá ferrado, né? Já até tiraram o meu Araújo do nome. (risos) Eu digo: “Pronto! O que eu faço?”. Aí eu fui lá. Eu disse ao ‘seu’ Amois, era Amois o nome do segurança, que era um senhor. Eu disse: “’Seu’ Amois, você, por favor, não bote o pé em cima disso. Não deixe ninguém” - tinha dois seguranças – “botar os pés nessa água suja. Porque isso aqui tem ratos, eles podem pegar uma coisa”. E aí é que eu descobri que todas as salas de baixo da Pinacoteca tinham um murinho alto, assim, porque era vezeiro, aquela inundação. Aí eu fui pra casa e digo: “Eu estou ferrado. E agora? Com que dinheiro?”. Eu digo: “Eu tenho que conquistar esse dinheiro. Como?”. Foi aí que apareceu o Rodin. Aí apareceu o Rodin, como apareceu o Mister McCloskey, entendeu? Como vai parecer o Carlos Lacerda. E vai aparecendo essas pessoas, que eu acho que é o universo que manda. O que poderia mandar essas pessoas, né? Um cara lá, que não é baiano. Todo mundo dizia: “Mas você não é... você é baiano, diretor da Pinacoteca de São Paulo?”. Eu digo: “Pois é, esse lixo, que vocês tanto falam da Pinacoteca”. Então, era assim. Um dia a Pinacoteca foi reinaugurada e o Covas foi inaugurar a coisa. E tinha um elevador. O elevador quebrou no dia da inauguração. Mas teve também Fernando Henrique Cardoso na exposição, tal. Aí eu disse: “Governador”. Disse: “Ô Emanoel, mas não é possível, que toda a coisa que eu vou fazer, toda a inauguração que eu vou, o elevador quebra”. (risos) Eu digo: “Porque o elevador é novo, governador” e tatata. Mas ficamos muito amigos. E aí foi, inauguramos a Pinacoteca e tal. Mas a Pinacoteca, o Paulo Mendes da Rocha, que era teimoso, botou um mármore fosco na Pinacoteca.
P/2- Aonde?
R- No piso ali. A gente botou um mármore. Ele não queria polir o mármore. Um dia chega a mulher de uma Mesquita daquelas do O Estado de São Paulo, com a outra Mesquita. Eram as três Mesquitas. E aí elas estavam indo pro banheiro. E essa coisa brasileira, que banheiro molha. Então, elas saíram do banheiro, primeiro elas alentaram: “Mas esse banheiro é do primeiro mundo”. (risos) Tá bom, pode ser que seja. Elas entraram no banheiro, quando elas saíram do banheiro, o banheiro era uma imundície. Aquilo foi... tomou conta daquele piso. Aí eu tive que arranjar com o Banco Safra que, nessa época, já era o meu parceiro, de mandar um sujeito polir todo aquele mármore. Teve várias coisas também, na Pinacoteca, interessantes. Ou graves, né? Teve essa coisa do mármore. Teve, na exposição... aí, bem, eu resolvi fazer as exposições na França sempre, né, porque tinha muita coisa. Eu tinha pensado em fazer uma exposição sempre, pra esgotar a escultura francesa, depois vem a escultura brasileira, já que a Pinacoteca era pintura e pintura não interessa. Aí, eu fiz a exposição de Niki de Saint Phalle.
P/1- Quem?
R- Niki de Saint Phalle. Da Niki, não. Mas aí eu fiz a exposição do Maillol, depois do Bourdelle, depois da Niki de Saint Phalle. E ela estava em plena reforma. Eu aí disse: “Bem, eu vou fazer naquele octógono”. Tinha uma coisa, tinha a caveira da Niki de Saint Phalle, que as crianças adoravam aquilo. E aí eu fiz uma rampa assim, de um metro e meio de altura. Não é que uma criança de dois anos sobe a rampa e cai lá embaixo? Ahh, menina! Eu estava numa festa, num almoço, lá na Aldeia da Serra. E fiquei com aquilo na cabeça: “Tem alguma coisa acontecendo”. Quando eu cheguei em casa, um menino que era um educador da Pinacoteca disse: “’Seu’ Emanoel, quero lhe contar uma coisa, uma desgraça: um menino caiu lá de dentro daquela coisa, da imundície da Pinacoteca, daquela reforma”. Ele tinha três anos. Aí eu digo: “Meu Deus, e agora?”. Juntei duas amigas, Teresa e a Tuca Magalhães, fomos visitar o menino. Você pode imaginar a situação da mãe e do pai desse menino. O menino tinha, por sorte... por sorte, não. Novamente o universo. Esse menino caiu de quatro metros, machucou apenas o maxilar. Três anos. O menino era pequenininho. Eu digo: “Mas como? Como vocês deixam uma criança, desse jeito?” “Tá errado, o meu filho”. (risos) “Eu vou botar um processo contra vocês” “Mas não, eu não tenho culpa”. “Não. Ele pulou, nanana”. Bem. Ele botou um processo contra mim, o pai desse menino. E o menino teve essa coisa. E aí eu falei com um amigo meu que era dentista, ele disse: “Olha, isso aí em criança, é bobagem. Sara, uma coisa .. Aí, fiquei... eu nem, eu... na realidade, ele queria punir, me punir, mas ele queria punir mesmo era a construtora. Mas eu estava no meio. Não é que esse sujeito, olha o que aconteceu! No dia que a gente tinha que ir pra audiência na Justiça, (risos) o menino foi sequestrado, com a mãe. Aí, eu disse: “Não. Meu Deus, o que é isto?”. Mas por sorte foi um sequestro relâmpago e tatata. E ele desistiu de me punir. Na audiência ele não quis me punir, nem a mim, nem à construtora. O choque de o menino ser assaltado (risos) foi tamanho, que ele desistiu daquilo, né? E o juiz disse: “Pois é, tatata”, aquela coisa de juiz, né? “Então, está certo, cada uma vai pra suas casas” (risos) E ele disse, ele me olhou meio assim, né? Eu disse... E depois desse menino... e foi uma coisa que eu depois sempre pensei, eu digo: “Eu devia ter pego aquela gente, o endereço daquela gente, aquelas coisas do menino lá, tatata”. Nunca peguei. Engraçado isso, né? Uma coisa assim né?
P/1- Você nunca mais soube do menino?
R- Não. Nunca mais soube. E fiquei também até receoso. Porque essas coisas são assim, né? De, sei lá, um menino subir naquela rampa... a rampa tinha um metro e meio, quer dizer, tinham três metros pra baixo, mais um metro e meio, que ele fez isso, mergulhou lá embaixo. E o pior que estava em obra lá embaixo, com lama, com o cacete a quatro, coisa assim: tijolo, né? Uma coisa... tinha a fundação da Pinacoteca, que era muito engraçado, que a fundação era feita em arcos, assim, de tijolo, né? Mas foi uma coisa muito interessante, isso. Interessante, quer dizer, terrível. E outra coisa, foi que eu sempre olhei pra aquele frontão da Pinacoteca, eu disse: “Eu preciso tirar esse frontão”. Aí eu disse: “O que eu faço?”. Falei com o... eu digo: “Eu vou falar...”. Isso, o Marcos Mendonça nem se metia, entendeu? O Secretário de Cultura nem estava aí. Eu digo: “Não. Eu tenho que tirar esse frontão. Porque esse frontão, se cair em cima desse povo ali da fila, vai ser uma desgraça”, né? Aí eu disse: “Bem, eu tenho que arranjar um jeito de tirar esse frontão. Como é que tira esse bicho?”. Aí fui na governadoria da Sé, eu disse: “Eu preciso que vocês me ajudem a tirar o frontão da Pinacoteca” Disse: “O que? Aquilo tem que ter escada da Magirus, tem que ser isso, que é aquilo. Parar a Avenida Tiradentes! Aquilo vai ser uma desgraça”. Eu digo: “Não. Vocês têm que fazer isso, entendeu? Tem que fazer”. Aí um dia foi marcado, veio o tenente do Bombeiro, não sei quem do Bombeiro, não sei quem. De madrugada parou a Avenida Tiradentes. Menina, quando o sujeito encostou a vara, aquilo veio tudo abaixo: paaaaaaaaa. Aquilo veio tudo abaixo. E aí eu digo: “Viu? O universo, né?” Mas, mesmo assim, na fila tinha uma senhora peituda, que um pedaço que ficou lá em cima caiu no peito dela. A senhora... uma ponta assim. Aí eu disse (risos): “Mas cadê a senhora?”. A mulher sumiu. A mulher sumiu. Estava na fila, caiu aquela coisa no peito. Eu perguntei: “Mas vocês viram? Vocês a pegaram? Levaram? Pronto. Tragam ela aqui pra dentro” “Ela sumiu, ‘seu’ Emanoel”. A mulher sumiu. Foi ainda sobra daquela coisa, aquela ponta, né? São essas coisas que são incríveis você administrar (risos) uma coisa, né, do estado, uma coisa que não é sua, que você está sozinho, né? Porque imagina, imagina se eu ia pedir pra Marcos Mendonça ir pra Tiradentes de madrugada? Imagina! E foi assim que a gente resolveu derrubar aquele frontão da Pinacoteca. Que era o reboco, você via que estava solto, entendeu? Mas essas coisas são muito engraçadas.
P/2- Mas quem tem Ogum, tem caminho, né?
R- É, tem. Ô se tem! Tenho. Mas eu acho que é isso. Então, as coisas vão acontecendo, eu acho. Vão acontecendo, acontecendo. Vão seguindo. Mas eu acho que é isso mesmo, que assim que é, que é a... eu não sei se você dá, se alguém cria o caminho e você segue. Você pode seguir ou não seguir, né? Eu sempre segui. Eu sempre aceitei o desafio de fazer. O que é uma coisa... dever ser de Ogum, né? Uma coisa... um temperamento com escorpião, de fazer isso, né? Fazer, seguir uma coisa que me dão, eu vou até o fim.
P/1- Você está cansado?
R- Não. Que horas são? Já são nove horas?
P/2- Sete e quinze.
R- Então, vamos ficar até as oito, né? Se vocês quiserem. Por mim eu fico. Falação é comigo mesmo.
P/1- A gente fala do Afro e aí...
R- É. Pode ser. Mas tem outra parte...
P/1- Emanoel, eu cheguei em São Paulo pra morar aqui em 1991, eu acho que você entrou na Pinacoteca em 1992, né?
R- É.
P/1- Ainda no ano, eu vi aquilo negócio explodir, assim...
R- Foi. Eu tive umas coisas estranhas também, né? Eu tive um infarto. Tive uma infecção generalizada de uma cirurgia que...
P/1- Durante o período?
R- É. Por isso que eu larguei a Pinacoteca. Porque eu...
P/1- Ah é?
R-. Em 1992. É
P/1- Não. Dois mil e...
R- Não. 2002. Eu tinha... quando eu estava na... teve uma coisa muito importante que eu achei, que era, pra mim, muito importante, que foi um dia, chegou um alemão na minha casa, chamado _________ (02:53:10), que era um romancista, um intelectual suíço, suíço alemão, né? E ele estava me dizendo: “Olha, nós vamos fazer uma exposição grande sobre o Brasil, porque em Zurich, todo ano se escolhe um país pra fazer uma homenagem. E eu escolhi a sua casa pra levar”. Eu digo: “Como?” (risos) Vai levar essa casa. Chamando a casa do baiano. Ele me levou a casa. Foi muito engraçado, porque aquela minha casa, meus objetos, porque antes eu doava... eu não era mais do Afro, né? Ainda não tinha o Afro, né? E eu tinha a minha coleção toda de coisa do Afro, dos pintores negros e tudo o mais, lá em casa. E aí ele levou tudo pra Suíça. E aí foi muito engraçado porque, na Suíça, eu não sei por que cargas d’água o prefeito se deu de amores comigo. O prefeito era protestante, (Mister Hartmann. Her Hartmann, e ele então, resolveu, nessa coisa, me homenagear. No teatro, teve uma orquestra do Paraná ou de Santa Catarina, uma orquestra sinfônica, apresentando no Teatro de Ópera de Zurich. E ele me chamou ao palco e me ofereceu um buquê de flores, assim. Eu digo: “Mas o que eu vou fazer com este buquê de flores?”. Fiquei pensando. Aí teve a homenagem, saí do palco, carreguei o buquê de flores e saí. Quando eu saí, eu pensei: “Eu vou distribuir essas flores com as pessoas todas, com as mulheres”. E tinha um bocado de mulheres, tinha o pessoal de uma construtora que estava lá na Suíça. E aí quando nós passamos por uma ponte do (rindo) do Limmat, eu disse: ‘Vamos, então, celebrar Oxum aqui”. Estava nada menos que Max Bill, estava todo mundo, né? Eu disse: ‘Vamos celebrar. Então, vamos cantar pra Oxum”. Bateram palma. (risos) Aí, jogamos aquelas flores todas no Limmat. Aí, no dia seguinte, o Hugo soube disso e: “Você é um irresponsável. Você quer destruir a carreira do prefeito, que é protestante? E você vem poluir o Limmat?”. Eu digo (rindo): “Mas o Limmat não é um rio? Não. A flor não é orgânica? Poluir o quê?” (risos) Mas esse prefeito foi muito engraçado. Um dia, nessa inauguração, alguém me deu a fita do Bonfim. Eu amarrei a fita no braço dele e da mulher dele, todos os dois protestantes. Aí eu disse: “Peça um pedido”. Aí ele fez. Aquelas coisas da Bahia, né? folclórico. “Faça um pedido”. Aí ele fez o pedido. Eu digo: “Posso amarrar?” Ele disse: “Pode amarrar”. Passado um ano depois, eu volto a Zurich, ele tinha sido eleito prefeito. Aí eu disse: “Mas que maravilha!”. Ele disse: “Foi o pedido que eu fiz pro Senhor do Bonfim”. (risos) Ai, ai, essas coisas são muito engraçadas. Agora, essa intuição de jogar aquelas flores... eu ia fazer o que com aquelas flores? Me diga? (rindo) Eu queria que desse outro presente, desse um cheque, né? Me dar um buquê de flores? Mas foi uma coisa muito, muito, muito gentil, né? Foi uma coisa muito simpática, foi muito. Aí conheci o Max Bill também, foi muito bacana, eu fui almoçar na casa dele. O Max Bill, depois, na segunda vez que eu voltei à Zurich, foi quando o prefeito estava reeleito e eu encontrei o Max Bill, ele me disse: “Estou fazendo uma escultura. Na Alemanha, no aeroporto, na estação do metrô do aeroporto”, eu não me lembro. “E eu comprei o mármore em sua homenagem. Aquele mármore azul da Bahia, eu trouxe”. Então, a escultura era vermelha, vermelha, acho que amarela e branco e azul. Que eram as cores da Alemanha, uma coisa assim. Ele me disse: “Comprei esse mármore azul”. Que era um mármore colonial que tinha na Bahia, que é deslumbrante, que parece uma lápis-lazúli, azul. E ele tinha comprado pensando em mim. Engraçado, né? Achei tão, tão afetuoso esse gesto dele, dessa grande estrela, que é o Max Bill, né? Uma estrela total. Mas foi muito interessante. Então, essas coisas eu acho que eu sou uma pessoa que agradeço ao universo. Porque eu sou uma pessoa que sou... tudo o que eu fiz, tudo o que eu faço, né, eu não posso ter mágoa de ninguém. Muito embora todo mundo diz que eu sou agressivo, que eu sou violento. Mas eu sou agressivo, não é que eu seja agressivo. As pessoas não entendem que, se você não fizer as coisas com essa ênfase, você não consegue fazer, entendeu? Então não adianta, tem que fazer. Se é pra fazer , tem que fazer. Eu era chamado o tirano da luz. O pessoal me chamava: “O tirano da luz está chegando”. E eu digo: “Tá bom. Mas tem que ser assim, né? Porque, se não for assim, não tem outro jeito pra botar todo mundo, funcionário público, botar em ordem, todo mundo fazendo as coisas”. Eu cheguei um dia na Pinacoteca, a primeira vez que eu chego na Pinacoteca. Aqueles funcionários todos tinham votado contra mim, né, feito um abaixo-assinado e a universidade também, os amigos da Maria Alice Milliet fizeram um abaixo-assinado e foram pro Fleury. E o Fleury chamou o Adilson Monteiro Alves e disse: “Mas como você chama um baiano, preto, gay, pra dirigir a Pinacoteca de São Paulo?”. Ele disse: “É. Porque ele é super eficiente, ele é super capaz. Ele é um grande tatata tatata”. Aí ele disse: “Me prove, então”. Aí o Adilson Monteiro Alves, não sei como é que ele conseguiu trezentos ou quatrocentos telegramas de apoio. E ele foi lá no Fleury e: “Olha aqui ó, quem é Emanoel Araújo”. Foi assim. Então, essas coisas também são assim, né? Fazer o que, né? Então eu disse: “Tá bom” Sendo assim, eu vou ter que (bate palmas).
P/1- Mostrar.
R- É. Tenho de provar que baiano, gay, preto, né, é assim mesmo. Porque eu fiquei numa... na primeira coisa, me deu assim uma certa angústia: “Mas eu estou aqui em São Paulo há quantos anos?”, né? Eu cheguei aqui em 1965, isso foi em 1992...
P/1- Trinta anos.
R- Hein?
P/1- Trinta anos.
R- Trinta anos. Como é que me chama de baiano, ainda? Baiano. Mas tudo bem. E eu digo: “Tá bom. Então, eu vou fazer pelo qual merecer. Não. Vocês vão tomar, vão receber de volta o que vocês nunca fizeram pela instituição, que vocês nunca fizeram”. E assim foi. Eu acho que, nesse ponto, eu acho que eu não sei é... não tenho nenhuma... como é que é? Não tenho nenhum orgulho disso. Pra mim é uma coisa tão natural, entendeu? Que é assim mesmo. Um dia um amigo meu me disse: “Olha, existe uma vaga de professor diferenciado na Universidade de Nova Iorque , você não quer concorrer?”. Eu digo: “Claro, ô, estou aí”. E fui. Chegou lá, tinha uma entrevista com o pessoal do educativo, da Educação, o departamento de Arte, a, a menina lá, eu não me esqueço dela. E ela tal, se encantou comigo, porque o marido dela era músico, já tinha tocado aqui na Sala São Paulo e tatata. E tinha uma americana e uma francesa, concorrendo. E aí um dia, o cara, aí me mandou dizer: “Ó, você foi escolhido”, tal. E aí eu fiquei, eu disse: “Bom, eu vou fazer o que em Nova Iorque dois anos?”. Fui pra Nova Iorque. E eu enfrentei aquela cidade, que eu não sei nem como foi que eu enfrentei aquilo. Mas eu disse assim: “Bem, eu sou mesmo assim, sou ousado. Vou lá em frente, né?” Vou... (bate palmas) Vou. Nicolau, uma vez, me disse a mim: “Puxa, você é muito corajoso”. Eu digo: “Sou mesmo”. Eu digo: “Eu não sei se eu sou. Eu vou”, né? E o inglês, depois a gente resolve. (risos) As coisas todas, o aluguel da casa e o tatata. E fui. E foi muito engraçado, foi muito legal porque quando eu saí, um dos alunos vieram pra mim e disse: “Professor, o senhor não vai continuar?”. Eu disse: “Eu não. Não sou professor” “Ah, continua, professor. Não venha com desculpa. I dont need your excuses. Eu quero você aqui o ano que vem”. Eu digo: “Ah, sim. Fique pensando aí”. Que eu acho que é isso, né? Então, pra mim, não é simples, vamos dizer, né? Quer dizer, depende muito da minha capacidade. É a mesma coisa do Museu Afro Brasil. Quando eu... o Museu Afro Brasil, a minha coleção começou da seguinte maneira: eu, em 1987, fui à África. Eu fui à África representando o presidente Sarney. Era Ministro das Relações Exteriores o nosso governador aqui, esqueço o nome, né? E aí eu fui lá, representando o coisa, fui à África, ao Senegal. O Senegal estava organizando, fazia uma campanha para transformar a Ilha de Goré num Patrimônio Histórico Mundial. Aí, qual era a forma que o embaixador lá no Senegal me disse: “Todo brasileiro, todas as pessoas do Brasil têm que levar uma lata de areia”. Eu digo: “Ah, eu não levo. Terra do Brasil? Mas nem pense! Não carrego”. E fui. Fui pra lá e tatata. O Gilberto Gil também foi. O Gilberto Gil queria substituir o Stevie Wonder, que ia abrir o festival. O Stevie Wonder, diz que cobrou trezentos mil dólares e eles não pagaram, porque eles não tinham dinheiro. Teve a abertura. E, na abertura desse negócio, do festival, dessa coisa, eu fiquei pensando, eu estava lá no Senegal, hospedado, tinha um motorista, eu fiquei pensando: “Eu tenho que fazer alguma coisa pela arte brasileira, pela coisa afro-brasileira, né?”. Aquilo foi uma inspiração, no Senegal. E aí eu voltei. E aí teve a cerimônia, foi uma coisa muito chata. Porque o americano tomou conta daquilo, cantaram o hino Summertime, botaram a bandeira americana, o fulano que estava patrocinando aquilo botou a pedra fundamental, que era a terra dos Estados Unidos, no buraco e todo mundo que tinha levado terra, voltou pra casa com a terra. (riso) Eu digo: “Está vendo? Eu não carrego terra”. E aí tal. Aí, o Gilberto Gil, por sua vez, foi preso na Nigéria com Zezé Motta, com todo mundo, porque eles pegaram um vôo via Lagos, sem passaporte, sem visto. Foram presos no aeroporto. E lá pras tantas, me telefonam no hotel, quatro horas da manhã: “Olha, consegui libertar o Gilberto Gil. Você vem receber o Gilberto Gil no avião, tal”. Aí eu digo: “Icchee”. Mas o Gilberto Gil foi tratado assim, né, porque ele já começou querendo substituir o Stevie Wonder e tal. E eu fiquei com aquilo na minha cabeça, eu digo: “Não. Eu preciso fazer alguma coisa. Eu vou começar a fazer essa coisa da, da...”. Era, se aproximava o centenário da abolição. E aí eu bolei um livro chamado A Mão Afro-Brasileira e eu tentei vender a todo mundo. Aí Miguel Odebrecht, que era meu amigo, comprou. E a, b, c e d comprou. E não consegui vender. E aí eu disse à Lucia Flecha de Lima, que ela é minha amiga e o Paulo Tarso, eu disse: “Ah, vocês têm que me ajudar a fazer esse livro”. E aí: “Vamos fazer. Vamos ajudar”, a Lucia viaja pra Salvador, num vôo com o Emilio Odebrecht e diz: “Olhe, você tem que fazer o livro de Emanoel”. Aí ele diz: “Ah, claro!” - filho da puta - "Emanoel Araújo, tatata tatata”, tal e fez o livro. E aí eu fiz a exposição no Museu de Arte Moderna. Você sabe que aquela exposição, que não tinha... tinha obras, tinha algumas obras, mas a exposição era basicamente de plotagens. Tinha Aleijadinho, tinha isso e aquilo. E aí foi feito o livro, porque o livro tinha ... eu chamei várias pessoas. O livro foi feito em seis meses, um livro. Você imagine fazer um livro em seis meses, com o professor, o coisa lá da arte barroca, o outro do século dezenove, a Lélia Coelho Frota, de arte popular. O Sérgio Cabral, de música popular. O outro de música erudita. Eu só sei que foi assim, assim, assim, assim. Consegui fazer o livro. E lançaram no centenário da Abolição da Escravidão, 1988. E aí, foi feito o livro. Quando inaugurou a exposição, teve a feira, a Bienal Internacional do Livro, aqui, lá na bienal. Aquela bienal teve dois milhões de visitantes.
P/1- Aqui?
R- Na bienal. No prédio da bienal, no Ibirapuera.
P/1- Quando que foi isso?
R- 1988. E não entrou uma pessoa daqueles dois milhões, no museu. Eu digo: “Mas que coisa é esta? Que coisa!”. Porque, você conhece o Museu de Arte Moderna, né? Ali do lado da bienal, estava ali. A bienal tinha aquela festa toda de não sei o que, de stand, não sei o que, não sei o que.
P/1- Ninguém ?
R- Ninguém. Dois milhões de pessoas. Não passou um! Um! Eu digo: “Ah, então...”. Mas aí, como eu tinha ido embora pra Nova Iorque, eu digo: “Olha, sabe de uma coisa? Isso fica pra depois”. (risos) Me mandei, fui embora. E aí, aí ficou. E fui fazendo, fui juntando a coleção, fui comprando ali, comprando acolá. Comprando coisas, comprando coisas. Fui botando na minha casa, tal. E ficou aquela casa abarrotada de coisas do século dezenove, do século vinte, de artistas negros, tudo. E aí um dia a Marta, a louca da Marta Suplicy fala com o Celso Frateschi que ela queria fazer um museu afro, um museu dedicado à causa África, afro-brasileira. Aí o Celso Frateschi... porque, na realidade, isto foi antes de eu me tornar secretário de Cultura. Olha que loucura! Quando o Serra... a Marta tinha me convidado pra ser secretário da Cultura, eu disse a ela que não, que eu não aceitava, que não era meu... não era a minha vontade. Mas o Serra me convidou e eu caí na esparrela e fui. Mas eu tinha ficado uns dias na Secretaria de Cultura, na mão do Celso Frateschi, vendo como era a questão da secretaria. Eu digo: “Não. Isso aqui é pior do que a Pinacoteca. Porque tem gente, tem armário, tem pacote de coisas em cima dos armários, tem comigo ninguém pode”. Porque na Pinacoteca, quando eu cheguei, todos os funcionários da Pinacoteca tinham um vidro na mesa, que era uma mesa toda fodida de cupim, amarrada com arame, um vidro com retrato de família. Em cima tinha São não sei o que, daquele que tem, aquele santo ali dos impossíveis, Santa Bárbara, não sei o que, não sei o que, não sei o que. Eu digo: “Tá bom. Aguarde”. Um dia eu cheguei lá, louco, mas eu peguei aquilo tudo: “Vocês estão loucos. Vocês estão tudo se defendendo de quem? Dos seus colegas?”. Paaaaaa. Aí o pessoal: “Está louco! O diretor enlouqueceu! Chama a polícia”. (riso) Tirei tudo aquilo. E diagramei a sala toda. Fiz uma diagonal. Botei a sala (risos) tudo assim. E a sala, com o tempo, ela foi voltando. (risos) Mas aí, quando eu cheguei na Secretaria de Cultura, eu digo: “Não. Isso é igual à Pinacoteca. Só que tem um agravante aqui. Isso aqui é muitas vezes maior que a Pinacoteca”. E os armários, tinha cheio de processo, aquela pasta azul, sabe o que é? Eu digo: “Ai, não. Isso aqui, realmente, (risos) é um desafio que eu não tenho mais força pra isso”. Mas eu fiquei lá e tal. Mas aí eu chamei o Celso Frateschi, que a gente andava no Parque do Ibirapuera, e o peguei e disse: “Você é um filho da puta. Você não me disse isso, isso, isso, isso” “Não, Emanoel, espera aí”. Eu queria bater nele. Aí eu dava com o pessoal. O pessoal: “Sai. Para disso. Chega disso”. O Parque do Ibirapuera (risos) parou pra segurar a minha fúria com Celso Frateschi. Porque eu fiquei lá o tempo todo, ele não me disse as coisas. Não tinha... a Marta deixou de pagar os funcionários. Não tinha elevador. Não tinha luz, também não tinha pago. O motorista tinha um carro desgraçado, que era terceirizado, que fedia gasolina, o homem não tinha dinheiro pra botar gasolina. Olha, uma coisa que eu cheguei lá e vi isso: “Mas o que é isso?”. E o Serra e aquela mudança de PT pra PSDB. O pessoal tudo, contra mim, contra o Serra e eu defendendo o Serra. E o pessoal do teatro, o Zé Celso Martinez Correa, fez um enterro meu. O outro lá mostrou a bunda na porta do Teatro Municipal. (risos) Olha, foi uma barra pesada. Porque nesses espaços também os faxineiros, sei lá o que chamavam, do CEU, estava todo mundo atrasado. A Marta deixou um caos na Secretaria de Cultura. Na prefeitura. E aí... mas ela tinha pedido ao Frateschi, pra mim, pra fazer, como é que ela podia fazer o Museu Afro Brasil... Museu Afro Brasil, não, um museu Brasil afro... que ela tinha conseguido dez milhões, pro Museu Afro-brasileiro, que ela dizia. Ela tinha conseguido dez milhões da Petrobrás para fazer o museu. Ela tinha conseguido dez milhões pra fazer o Museu da Cidade, que o Serra disse: “Mas nem que a vaca tussa, eu faço esse museu”. E tinha dez milhões pra não sei mais o que. Os museus daquelas casinhas de não sei o que, era dez milhões que ela tinha conseguido também. E aí ela deu esses dez milhões pra fundação... como é que chama aquela, daquele antropólogo famoso? E aí ficamos fazendo. E aí, bem, ela me... o Frateschi disse: “Olhe, Emanoel, a Marta quer fazer esse museu. Você tem uma coleção que foi já exposta lá no Museu de Arte Moderna”. Eu digo: “Mas aquilo era tudo plotagem” “Não. Mas você tem coisa, que eu sei que tem. A Maria Ignez Mantovani Franco diz que você tem e tatata tatá”. Eu digo: “Tá bom. Eu vou fazer”. E fui lá com ela. Eu já conhecia o parque. E a Pinacoteca tinha ficado no parque, né? E eu fui lá e ela fez isso e tal. O museu foi assim. O Lula inaugurou o museu. O Gilberto Gil não foi pra inauguração, mas foi dar um show pelos sessenta anos da Odebrecht na Oca, aquele filho da puta. E o Lula foi na inauguração. A Marta não podia ir, porque era final de governo dela, né? Ela não podia, estava proibida, como é que chama isso? Interditada! Não podia. Mas aí eu quis fazer uma homenagem à Marta. Eu digo: “Não. Eu vou fazer um jantar pra Marta. Um almoço pra Marta”. Porque eu conhecia o ... quando eu estava em São Paulo, quando eu cheguei logo aqui, não logo, mas uns anos que eu estava aqui, eu fiz uma exposição na galeria de uma menina que era amiga minha e o Suplicy foi lá na minha exposição, soltar santinho: “Segura isso aqui”. Entrou sem pedir licença tal tal tal tal tal, né? Jogou santinho pra lá, santinho pra cá. Eu digo: “Mas que audácia desse sujeito, entrou numa exposição com santinho”. Mas ele foi eleito vereador. E aí eu fiz o museu. Ofereci um almoço pra Marta. E a Folha foi lá, soube desse almoço. Que foi muito engraçado, porque eu tinha convidado alguns amigos da Marta, a Eleonora Mendes Caldeira; tinha amigo meu, tinha Ricardo Ohtake, do Museu de Tomie Ohtake; tinha um bocado de gente. E, na saída do almoço, a Eleonora Mendes Caldeira disse assim: “Olha, Emanoel, daqui uns dias eu volto aqui pra você jogar um búzio pra mim”. Eu disse: “Você acha que esse apartamento é de um pai de santo? Você acha que esses móveis do século dezoito, com essas coisas...” (risos) O apartamento é um apartamento no Edifício São Luis. Um apartamento lindo, duplex. E que tinha uma escada e que tinha isso. Tinha sido do Rodolfo Scarpa, que tinha feito aquele apartamento todo no século dezenove, de lambri, de tudo. E aí ele morreu, né? Morreu de Aids e depois que eu descobri que ele foi velado naquela sala. Aí eu disse: (rindo) “Eu vou embora daqui, porque tem um egum aqui na porta”. (risos) Aí eu disse: “Você acha que esse apartamento pode ser de um pai de santo?”. Aí ela ficou toda assim, sem jeito. Aí no dia seguinte, a Folha publica assim (rindo): “O Serra escolheu o secretário de Cultura do PT, (risos) uma pessoa do PT, um personagem, um artista do PT, para dirigir a Secretaria Municipal de Cultura”. (risos) E, desse dia em diante, a Folha ficou me perseguindo o tempo todo, porque eles achavam que eu era do PT, entendeu? E a Folha tinha horror ao PT. Era pró PSDB. Mas eu dizia: “Mas como? Eu não sou. (risos) Eu não sou de partido nenhum”. Mas, enfim. E aí fiz o almoço pra Marta e aí a Marta ficou muito agradecida, tal. Mas teve esse ‘senão”, né, do desgraçado da Folha. Eu já estava na Secretaria de Cultura. Foi feito o museu e tatata tatata. Mas aquela secretaria era uma pocilga. Uma pocilga, um lixo. Só faz tudo estragado. E tinha um projeto de um cara do PT que fazia... como é que chama ele? Até é ele que foi que deu esse dinheiro aí pra coisa. Ele fez um projeto, um decreto que dava trezentos mil reais a um grupo de teatro, dava mais trezentos reais para a pesquisa, para a encenação. E, se não desse, dava mais trezentos. E o Zé Celso Martinez Correa, era vezeiro disso, né? E todos eles. Aí eu disse, eu vou chamar a Renata Pallottini, eu vou chamar a Aracy Balabanian, eu vou chamar um pessoal assim, que eu conheço e que é da pesada, pra fazer essa comissão de teatro. Menina, isso deu uma zebra. Esse povo do teatro, mas só faltou me matar, me enterrou. Fizeram enterro. Aquele baixinho que imita Mário de Andrade, botou a bunda pra fora. Mas fizeram o horror. E aí o meu assessor, o meu secretário, o meu adjunto, disse: “Emanoel, vai ter uma reunião aqui de todo o pessoal, dos funcionários da prefeitura”. Eu digo: “Não. Eu vou” “Você quer ir?”. Eu digo: “Vou”. Eu e Danilo Miranda, nós fomos triturados.
P/1- O Danilo foi com você?
R- O Danilo foi comigo também. Porque foi Danilo, eu, que eram as pessoas, eram os Cristos. E mais um bando de gente. Inclusive, um sujeito que era muito venal e que jogou, o tempo todo, a plateia contra nós dois. E olha, Danilo Miranda, que é um santo. O Danilo Miranda, que fez esse Sesc, que é uma maravilha. Mas menina, não sobrou nada. O pessoal de dança caiu em cima de mim, caiu em cima de Danilo. O pessoal de teatro, nem pensar. O outro, o maestro não sei das quantas, caiu em cima de mim. Eu digo: “Mas o que é isso, gente?”. E aí foi, entendeu? Foi aqui. E eu não sei por que não me deram uma surra. Teve uma mulher: “Eu sou amiga do... meu pai é amigo do Alckmin. E tititi tatata. A gente despacha com o Alckmin e tatata. E você e tatata tatata”. Eu digo: “Está ótimo. Vai lá despachar com o Alckmin”. E era assim, uma fúria desse pessoal, que era do PT, entendeu? Porque ... quer dizer, era uma transição entre o PSDB e o PT. E eu no meio daquilo. Porque eu não era nem PT nem PSDB. Mas a Folha me chamava que eu era do PT. E eu não era do PT. Era amigo, era do PSDB. Nem era do PSDB. Mas aí continuei como secretário. E um dia eu digo: “Mas essa gente vai me pagar”. Aí um dia eu fui no Teatro Municipal, que tinha.... bem, aí eu fiquei visitando as coisas do município, né? E fui no Teatro Municipal, que tinha aqueles não sei o que do teatro, que eram um bando de... o BIP de São Paulo estava lá, que eram os.... como é que chama? Não sei o que...
P/2- Amigos? Vários amigos?
R- Era uma espécie de amigo, mas tinha outro nome. Que eu cheguei lá e disse: “Mas vocês acham que vocês são donos de escravo?”. Como é que eles eram, mesmo? “Vocês pensam que são donos de escravo, porque vocês querem ... Um outro disse: “Ah, porque a gente quer fazer batizado, casamento, pra arranjar dinheiro, no teatro”. Eu digo: “Mas o Teatro Municipal de São Paulo fazer batizado, casamento, pode tirar o cavalinho da chuva”. Aí fiz um escândalo lá. Aí fui na biblioteca, fiz outro escândalo, porque o sujeito pegou uma Bíblia de 1500, o bibliotecário pegou a Bíblia, não sei o que, com a mão. Eu digo: “Você está pegando a Bíblia, por que, com a mão? Por que você está pegando?” “Ah, secretário, isso é normal”. Eu digo: “Não. Não é normal. Ninguém pode pegar num livro de quinhentos anos, com a mão molhada de suor. O que é isso? Não pode”. Dei um esporro no sujeito. O sujeito também ficou meu inimigo. E assim eu fui limpando todo mundo. Aí a fulana que... aí a antiga diretora do Teatro Municipal, mas eu cavei tanto inferno pra mim mesmo, a ex-diretora do Teatro Municipal tinha feito um projeto, um projeto não, uma concessão do Teatro Municipal pra uma mulher que fazia roupa. E essa criatura trouxe do Rio de Janeiro um cenógrafo que resolveu fazer o quê? Ele trouxe, botou no palco do teatro, uma plateia sentada numas estruturas metálicas, pra ver o teatro, que ele achava que estava fazendo um grande benefício pro Teatro Municipal. Aí eu fui lá e disse: "Não” “Ah! Mas ela trocou o espaço por uma escada de não sei o que”. Eu digo: “Não”. Aí eu chamei um amigo meu que era da polícia, Bombeiro, o capitão Ferraz: “Capitão Ferraz, você vai lá resolver isso. Porque eu quero a planta disso, o peso disso”. Foi uma barra desse tipo. Eu fiquei (risos) cem dias de sair, fazendo miséria naquela secretaria, né? Mas não consegui muita coisa, né? Mas que depois dos cem dias, o José Serra, que é um louco, me resolve fazer uma festa dos cem dias do governo e anuncia três museus, sem que eu soubesse. Eu disse: “Mas como?”. Eu olhei pra cara dele. Ele olhou pra minha. Ele falou do Museu do Futebol, Museu da Língua, Museu não sei o que. E aí eu disse: “Mas como? Como é que você faz um anúncio de três museus sem me avisar?”. Tá bom. No dia seguinte eu fiz uma carta de não sei quantas laudas e mandei pra Folha. A Folha publicou inteirinha. Mas a questão do Museu do Futebol e do Museu da Língua, tinha sido uma coisa da Fundação Roberto Marinho. Eu chamei o Hugo Barreto, que era da Fundação Roberto Marinho e disse: “Vocês pensam o quê? Vocês já são donos de televisão, vocês já são donos de... querem fazer também museu? E por que não me avisaram que queriam fazer museu? Eu sou o secretário de Cultura” “Ah, não sei o que, djedjedjedje”. Eu digo: “Você, então, faça o museu. Agora...”. O Serra já tinha me pedido pra emprestar o Teatro Municipal pra TV Globo, eu proibi. Eu digo: “Proibi que vocês fizessem uma novela no hall monumental do Teatro Municipal. Proibi isso, proibi aquilo, porque vocês entram e acabam com tudo”. E fui-me embora. E fiz a carta e fui embora, né? Com isso eu ganhei um grande inimigo: a TV Globo. (risos) A TV Globo me odeia, aquele povo da Globo, por causa disso. Mas é assim a vida. A gente acolhe de um lado e vai pro outro também, né? Faz isso, esse rolo. Mas essa coisa de... o Serra é uma pessoa tão engraçada, porque o Serra é uma pessoa muito insegura. Ele é muito inseguro. Então, uma vez, eu tinha, a Valencia fazia uma espécie de encontro ibero americano. E aí eu falei com o pessoal lá, eu sempre ia pra esse encontro: “Vamos chamar o Serra pra abrir o encontro?” “Ah, vamos. Será que ele aceita?”. Eu digo: “Aceita, sim”. Aí o meu pessoal convidou o Serra, mandou passagem de primeira classe com não sei quem, com não sei quem, um hotel de cinco estrelas. E o Serra passou a noite que chegou, fazendo o tal discurso. E esse troço, esse Encontro Ibero Americano abria às nove horas. Porque tinha debate, tinha isso, tinha aquilo, aquilo outro. E cadê o Serra? Nada. Cadê o Serra? Nada. Deu nove horas, deu nove e meia, deu dez horas, deu dez e meia. Quando foi onze horas, eu fui lá no hotel, disse: “Você tem que ir. Você tem que abrir aquele, essa coisa, esse seminário. Você não pode ” “Ah, mas eu estou atrapalhado, porque eu perdi o discurso que eu fiz”. Eu digo: “Você improvisa o discurso”. Chegou lá onze e tal, na comunidade lá de Valencia, fez um discurso. Mas foi um desastre, porque ele destruiu toda a coisa. Ele era de uma insegurança total. Mas era uma pessoa amiga. Quando o Museu Afro Brasil, que era naquele, então, quando a Marta criou o museu, era do Município e aí o museu ficou ligado a ‘seu’ Carlos Calil, porque eu saí da Secretaria de Cultura, o Serra me disse: “Demita o Calil”. E eu: “Não. Mas o Calil é tão bom” “Não. Demita ele! Ele é do PT. Você demita ele” . Eu digo: “Não. Vamos lá ver o...”, porque tenho essa coisa comigo, viu? Eu sou justiceiro. Eu fui lá, levei o Serra pra ver o Calil. Acontece que, quando chegou o Serra, viu a Ester Hamburguer, namorada do Calil e o Hamburguer era íntimo amigo do Serra. O Serra já não quis mais demitir o Calil e, quando eu saí, o Serra botou o Calil. E o Calil começou a perseguir o museu, ele dizia que o museu era uma Ferrari. Começou a perseguir o museu. E aí, eu disse ao Serra, eu digo: “Olha, ele está perseguindo o museu. O museu recebe um milhão e duzentos. Ele disse que o museu é uma Ferrari, que a secretaria não tem não sei o que”. E o Serra falou, ligou pra ele: “Olha, Calil, eu estou com o Emanoel Araújo aqui, como é que você não dá o dinheiro, daaaaaaaaa?”. Ficou nessa brincadeira, a Petrobrás tirou o patrocínio, que já era da Florestan Fernandes. Eu tive que botar do meu dinheiro. Essa história de administrar o museu, botei um bocado de gente que saiu. E eu tive que arranjar dinheiro emprestado pra manter o museu. Quando o Serra virou governador, aí eu disse: “Você não vai fazer alguma coisa pelo museu? Vai fazer uma organização social e tal?”. O Museu já era do estado. E aí ele me disse: “Tá bom. Então, você me dá o seu acervo. E eu faço”. E aí eu dei o acervo pro estado de São Paulo. E ele fez o museu. E ele deu o dinheiro pra organização social. Quer dizer: eu sou a única pessoa (risos) que deu duas mil e tantas obras pro estado de São Paulo, assim, no grito. Mas tudo bem, né? Assim que se faz. Então, eu também sou assim. Eu também acho que é assim (bate palma uma vez), jogar a mão e fazer. Não tenha dúvida. E, por outro lado, o Serra, essa minha briga com ele, como prefeito, até resultou numa coisa afetiva comigo. Eu com ele, ele comigo. Ele sempre foi à inauguração do museu. Sempre. No vinte e cinco de janeiro, que eu fazia as exposições sobre São Paulo, ele ia. Então, essas coisas são assim. E ficamos amigos e não seja por isso, eu doei as obras. Saiu no Diário Oficial, as obras são do estado de São Paulo e a Associação do Museu Afro Brasil é que administra o museu.
P/1- Todas as obras são do estado? Ou são comodato? Você nunca...
R- São do estado. Não. Aquela doação inicial, de duas mil obras, são do estado. E depois eu botei mais duas mil, que são de comodato.
P/1- Entendi.
R – E que eu vou terminar deixando lá, porque...
P/1- Emanoel, qual é hoje, assim... virou o projeto da sua vida, porque é seu acervo inclusive, né?
R- É. Eu acho que uma coisa que eu sempre tive... eu acho que eu caminhei a vida toda pra essa coisa, pra esse museu. Quando eu fiz o Museu da Bahia, eu meti coisa de negro. Um dia... eu não tinha dinheiro pra comprar acervo também, o acervo já existia e eu fiz uma abertura e uma exposição chamada Bahia, África, Bahia. Que era um dia, era um domingo de janeiro. E eu fui lá no Palácio: “Ó Antônio Carlos, vai ter essa exposição”. Ele disse: “Mas você está louco? Janeiro? Setes horas da noite, na Bahia? No verão? Ninguém vai lá?” “Não” - eu digo - “vai, sim. Pode ir pra inauguração”. Ele chamou o (risos) prefeito Manoel Castro e foram. Só que eles não sabiam que eu tinha contratado os Filhos de Gandhi na porta do museu. Eu contratei os Filhos de Gandhy, o Balé Folclórico da Bahia. (risos) Menina, aqueles Filhos de Gandhy entrando na Avenida Sete, todo branco. (risos) Teve mil e quinhentas pessoas naquela abertura, pra exposição. E aquele balé, o Balé Folclórico da Bahia que o cara passava com aquela espada de Ogum na cara de Antônio Carlos. Eu digo: “Meu Deus! Ele vai ferir o governador”. (risos) Foi muito engraçado. Então, essas coisas são assim. Aí, na Pinacoteca, eu também fiz isso. A primeira coisa que eu fiz na Pinacoteca foi uma exposição , chamada Vozes da Diáspora. E aí eu botei artista negro lá dentro, botei uma série de coisas, artistas, botei gravura, botei isso. Botei história da negritude. E das mulheres, que a Pinacoteca não tinha, basicamente, fora a Tarsila e Anita. Aí botei todas as mulheres do século dezenove, Abigail não sei das quantas, a outra, a outra, a outra. O Covas me disse: “Emanoel, eu vou lhe dar um milhão pra você comprar obra pro acervo, compramos. Fiz o jardim de escultura do Jardim da Luz. Aquele Jardim da Luz, você não chegava na janela da Pinacoteca, porque aquilo era uma coisa escabrosa, daquelas prostitutas todas, acabadas. Olha e eram coisas, assim, horríveis. E aí o projeto fechou a Pinacoteca, tal. E aí eu resolvi tomar conta do parque também. Fiz aquela exposição. O Covas tinha dado o dinheiro. Eu chamei os artistas e digo: “Cada um vai receber quinze mil. Está bom? Então, vamos fazer esculturas aqui”. Fizemos esculturas. Os escultores, tem esse, tem um outro, tem muita gente. Tem o Amílcar de Castro. Que é uma coisa muito ... tem uma obra linda da Maria Martins que hoje valeria, sei lá, alguns milhões. E aí ocupamos o Parque da Luz, com uma exposição trazida pelo meu grande amigo. Como é o nome dele? O francês lá, coisa, mandada por ele, que era uma exposição da escultura francesa. E eram esculturas monumentais. E aí tinha, na entrada, tinha uma embu, que era uma nu. E chegou uma bêbada lá: “Quaquaquaquaqua, e o que é isso? É uma mulher? Quaa”. Ela se divertiu. Era uma coisa extraordinária. Daria um filme, ela, a performance dela com aquela escultura do Henry Moore. Muito engraçado. E a aí foi. A única coisa que eu não consegui, na Pinacoteca, foi fazer no Parque da Luz, que eu queria fazer, restauramos o coreto. E tinha um pavilhão que eu restaurei também, queria restaurar. Porque aquilo ali era do município, não era do estado. A Pinacoteca é do estado. E que era uma coisa de dar um trabalho pra aquelas pessoas, prostitutas, aquelas senhoras. Eu queria fazer uma coisa de desenho, de criança, de roupa de criança, sei lá o que, pra ocupar. Porque aí, como eu vi que eu não ia conseguir fazer isso, eu botei câmeras no parque todo. E aí limpou o parque. Porque eu saí distribuindo o boato que tinha câmeras. E tinha, de fato, câmera, mas é câmera de mentira. E assim eu consegui livrar o parque da prostituição que tinha lá dentro. Foi muito engraçado, assim. Tinha coisa muito engraçada. Tinha outra coisa que foi na abertura do museu. Nessa exposição tinha a... a abertura da exposição... a coisa do... como é que era, meu Deus? A pintura do tempo... não... a pintura do... como é que era, mesmo? Enfim. Do tempo de ouro... era O Tempo de Ouro da Pintura Holandesa. Foi inaugurada pelo Príncipe de Orange, o príncipe da Holanda. Mas tinha, na frente da Pinacoteca, uma quaresmeira. E eu sempre dizia: “Vamos tirar. Tira de noite”. Porque eu já tinha tirada um outra árvore grandona, aqueles que dão, esses fícus que dão por aí, era imensa, era uma tosteira desse tamanho, tirei na metade da noite, botei quatro ou cinco caminhões, levaram a coisa e pronto. E tinha um pé de abacate que também sujava o carro de todo mundo. E tinha essa quaresmeira. Você sabe que, no dia da abertura dessa exposição, essa quaresmeira floriu de tal maneira que esse príncipe ficou louco: “Ahhhhh”. O homem ficou enlouquecido, vendo aquela quaresmeira toda florida de cor-de-rosa, aquela coisa, né? Era verão. E depois tinha uma coisa muito engraçada. Mas aí passou a exposição. A exposição continuou. E um dia uma amiga disse a mim: “Puxa vida, você é muito sofisticado. Você botou luz no piso?”. Eu digo: “Eu? Ah, foi! É. Por todo piso. A gente entra na Pinacoteca, na exposição dos holandeses, porque eu tinha comprado uns lustres, umas luminárias que só iluminavam a peça, assim, né? E aquilo era uma maravilha. Tem muito branco, muita pintura com muito branco e, quando aquela luz batia ali naquela coisa, aquilo florescia. Era uma maravilha. Aí eu fui, no dia seguinte, ver. Sabe o que aconteceu? Quando foi feita a reforma, rasparam o piso da Pinacoteca e o piso abriu todo. Então, fez isso: pchiiiuuu. Abriu um centímetro de cada tábua daquela, da Pinacoteca.
P/1- E daí vinha a luz.
R- Aí vinha a luz debaixo. Eu digo: “Mas o que eu faço? Não pode trocar esse piso, né, porque foi restaurado. Aí eu forrei tudo de MDF e botei um carpete em cima. Então, essas coisas que vão acontecendo, né? Que não são habituais e que são ocasionais. E que você tem que driblar e saber fazer.
P/1- Mas aí, no Afro, eu queria entender assim, que eu acho que o Afro é onde você chegou, né, no fim...
R- É. Eu queria chegar no Afro. Assim, eu não tinha muito bem marcado que eu queria chegar no Afro. Eu tinha, eu mantinha a minha ideia desses artistas, todos negros, que eu queria. Século dezoito, século dezenove, coisas da escravidão, gravura e tudo.
P/1- O Afro, o que você acha que é o Afro hoje, assim? Pra gente fechar.
R- O Afro é importante. É um museu da história, arte e memória. É um museu que ainda sofre muito do preconceito estrutural do Brasil, de São Paulo. É um museu que tem doze mil metros quadrados, no Parque Manuel da Nóbrega, o pavilhão, né? Aquele pavilhão é histórico, que foi lá a segunda Bienal Internacional de São Paulo. Ali teve a Guernica exposta, né? A bienal, a segunda bienal foi a coisa mais importante que esteve em São Paulo, dos Picassos e tudo o mais que veio. Então, eu montei um museu que eu chamo um museu em perspectiva. Ou seja, um museu que vai mudando, na medida em que vai surgindo novas coisas, novas pesquisas. Na realidade, a gente foi perdendo gente. Perdendo gente, perdendo dinheiro. E hoje nós estamos reduzidos a muito pouca gente. O que é uma pena. Porque toda a pesquisa, por exemplo, nós perdemos. Por sorte, tem um menino que é, ele trabalha com documentos antigos. Eu tenho muito documento antigo de fazendas, de escravo, de alforria, de isso e aquilo. Ele vai estar catalogando tudo aquilo. Está fazendo uma leitura... como é que chama isso? Não sei o nome. E tem isso. Tem, portanto, um lugar onde o que eu queria era que fosse um lugar de autoestima, que as pessoas chegassem lá e tivessem, sobretudo os negros, né, tivessem uma visão de si próprio, né, naquilo lá. Porque tem os escritores, tem os pintores, tem os escultores, tem a África, tem a religião africana, a religião baiana, os candomblés e tudo o mais. Quer dizer: então, aquilo tinha que ser e muitas vezes a gente tem uma... tem também uma coisa de educação. A gente chama ‘Singular Plural’, que é uma forma de as pessoas com deficiência física pegarem a obra. A gente trabalha com professores da rede pública. A gente tirou, conseguiu tirar as algemas dos meninos da Fundação Casa. E tem uma visitação enorme. E tinha esses educadores, que infelizmente eu tive que mandar embora. Eu mandei embora? As circunstâncias mandaram embora. E eles foram grosseiros e foram panacas, porque não deixaram a porta aberta. Resolveram cair em cima de mim, como se eu tivesse culpa. E, na realidade, o que eu acho que é inclusive um preconceito deles próprios. Porque você não pode ir contra a quem fez, quem doou, a quem dá o suor da sua vida naquilo lá. Vão fazer em outubro, dezesseis anos. É muito tempo. Eu fiquei na Pinacoteca nove anos. São dezesseis anos. É muito tempo da minha vida jogado lá dentro. E também é muito tempo jogado do meu dinheiro lá dentro. Porque muita coisa eu compro, muita coisa eu faço. Dou coisas pra loja, pra vender. Arranjo coisas pra vender, pra fazer dinheiro. Então, achei que foi... me machucou muito. Nunca, nada, me machucou tanto quanto aquilo, aquela insurreição (risos) contra mim. Porque uma ou outra, as outras pessoas todas, os outros funcionários que tomavam conta da coisa, da bilheteria, da portaria, da lojinha, toda aquela gente ali, é uma gente muito humilde, não tinha o que reclamar. Todo mundo saiu com dinheiro. Todo mundo teve seguro emprego, desemprego. E os educadores saíram todos... os educadores sempre foram as pessoas mais complexas do museu. A Educação sempre foi a coisa mais complexa. Todos os educadores sangraram o museu. Todos. Sem exceção. E é estranho porque.... é difícil, porque... sei lá. Tem coisas que eu não consigo, né? Aquele museu é muito grande, são muitas as questões. Eu faço muitas coisas ao mesmo tempo, porque eu quero que o museu seja visto. E a gente está sempre fazendo coisas, sempre fazendo, fazendo, fazendo, fazendo. E é difícil, por essa questão negra. A gente não tem patrocínio. A gente não tem mídia. A mídia, sempre quando a gente tem, é particular que a gente paga, pra fazer. Ou os anúncios na Folha de São Paulo, no O Estado de São Paulo, quando a gente faz uma exposição, como agora tem aquela dos índios, chamada Brasil Profundo... História... como é? Brasil Profundo, sei lá o que. Brasil Profundo. E é uma exposição que trata da questão indígena, da questão dos povos da floresta. É uma exposição enorme, que tem mais de mil metros quadrados. E teve, trouxe os índios lá do Xingu pra montar uma casa, a casa dos homens. Eles montaram aquilo, construíram aquilo. Foi lindo construir aquilo. E apareceu a arquitetura intuitiva deles, né? Foi extraordinário aquilo, fazendo aquilo, costurando com corda, né? Com corda, não. Com sapê. Sei lá, com um mato desses aí que eles fazem. Depois vem o sapê em cima. Foi muito bacana. E tem as fotografias todas do pessoal. Teve encontros muito engraçados, muito emocionantes. Porque a Morin fez fotografia na década de setenta e um índio daqueles que tinham vindo pra cá, pra montar a casa, a casa dos homens, era o pai dele, a tia dele e o irmão dele mais velho. Então, a Morin, quando chegou lá pra ver, a foto é da Morin, foi uma coisa, um encontro maravilhoso, né? São coisas que você, por uma coisa desse tipo, vale tudo, né? Porque aquele encontro da Morin, vendo uma foto que ela fez em setenta e cinco e vendo a continuação desse sujeito, que era o Valter.
P/1- Agora, desse momento que a gente está, nessa lacuna, de toda essa confusão que deu, de diminuir o museu, você, a sua vida ainda é o museu? O que você quer pro museu? Qual é o seu sonho?
R- Olha, eu não sei, viu? Eu tenho uma enorme temeridade. Eu acho que o Brasil é um país que não respeita a memória. Eu lhe digo a você, quando eu saí da Pinacoteca, o Marcelo Araújo, a primeira coisa que ele fez foi desmanchar a Pinacoteca. Então, não se desmancha museu. Não se desmancha acervo. Acervo está exposto. Eu fiz um acervo em que você tinha, que era uma ideia de galeria, porque o acervo da Pinacoteca é muito fraco, fraquíssimo, entendeu? Esses burgueses que foram pra Europa, que levavam vaca e que levavam roupa em Londres, compraram merda na Europa. Não compraram nada que prestasse. Não compraram Braga, não compraram Picasso, não compraram Matisse, que era o que estava lá, né? Não tinham... compraram artista acadêmico da escola, da Grande Chaumière. Compraram essas porcarias acadêmicas, já decadentes. Não compararam nada que fosse extraordinário, que valesse hoje, muito dinheiro, né? Compraram essas coisas. E como resultado, deixaram lá na Pinacoteca. Então, eu temo isso porque a... eu tinha um amigo chamado, que era um sujeito da sociedade aqui de São Paulo, da bem nascida sociedade de São Paulo, o Toninho Alves de Lima, ele ia muito à Pinacoteca. Quando o Toninho morreu... dessas coincidências: eu conheci o Toninho no consultório do meu dentista, que era o dentista dele também. Ficamos amigos. E aí ele foi na Pinacoteca, tatata. E, quando ele morreu, a Nelita Alves de Lima, que era a filha dele, doou o acervo que ele tinha, pra Pinacoteca: pratas e marfins e o cacete a quatro, santos e tal. E eu fiz uma grande vitrine na entrada, que era uma homenagem a ele. A primeira coisa que ele fez, foi desmanchar isso. A Nelita ficou doente. A Nelita falou, reclamava comigo: “Eu vou tirar”. Eu digo: “Mas não pode tirar mais. Está doado”. E ela morreu magoada com aquilo, entendeu? Então, são coisas que você... então eu fico pensando: este Museu Afro Brasil, o que será dele? Não sei. Te confesso que eu já nem penso mais, por que eu não quero me angustiar. Pago pra não me angustiar. Mas eu tenho certeza que vai ser muito complicado. Eu não consegui ninguém que eu quisesse, que eu confiasse em deixar o museu, me substituir. Todas as pessoas entram no museu como trampolim, entendeu? Então, é o caso desses educadores, são todo trampolineiros. Eles entraram pra dar um pulo pro Sesc, pro Masp, dar um pulo pro Tomie Ohtake. Eles todos estão por aí, entendeu? Então saem, pedem pra sair, pedem pra receber os valores totais, a gente paga, não demite por justa causa. Então, é muito difícil. Eu fico pensando. Ah, eu não sei. Eu não... o Brasil , pra mim, não... eu, enquanto eu estou lá, eu acho uma maravilha, eu gosto, eu vou, com pandemia ou sem pandemia. E rezando pra que o museu, que a gente, que o Covas abra, porque depende dele, né, o alvará de licença pra abrir. Que abra, pra gente continuar a nossa coisa. Eu sempre fui contra a questão de educação de criança no museu. Criança não tem nada a ver com museu. Criança é pra brincar. Você não pode pegar criança, fazer uma roda de criança e começar a falar, quarenta e cinco minutos ou uma hora e quinze, sobre negro, sobre escravidão. Pra quê? Pra que a criança pode saber com isso? Primeiro, que ela tem escravidão: a empregada é negra na casa dela. Não muda o ponto de vista dela. Então, não adianta. Pra quê? Eu acho que você é criança, tem que ser tratada de outra maneira. Sobretudo essas de colégio particular, que são todas brancas. As professoras ficam lá batendo boca no telefone celular e as crianças nas mãos desses educadores, sentadas no chão. Ah, vai, criança no chão? Eu sou contra. Eu sempre briguei com isso lá. Eu acho que não é essa forma. Tanto que eu estou procurando uma pedagoga que possa ajudar essa coisa da educação, já que é um fato importante pro museu, a educação. Agora, não pode ser com criança. Criança, essa coisa no Brasil, como aquela menina, aquela criança de três anos que pulou a rampa, criança é criança. Não é justo botar uma e falar: “Olha, esse aqui é o negro Estevão Silva. Ele pintava natureza morta. Tatata”. E aí? Não. Entende? Então, esses educadores são todos formados de uma maneira meio esquisita, não sei. Então, eu sou contra. Uma vez eu encontrei um amigo meu, que era Jean Gala, que é do Louvre, ele me disse: “Olha, Emanoel, eu resolvi a educação da seguinte maneira” - ele era ocupado com a questão da Educação do Louvre - “o Louvre traz os professores pra cá, pra dentro do Louvre. E eles que tragam as suas crianças. O Louvre não tem educador. O Louvre trabalha com os professores”. E que é isso, porque quem tem que se ocupar de criança é educador, é professor, eu quero dizer, né? Então, essas coisas que a gente tem que ir mudando e tal. Mas eu temo muito, quer dizer, eu temo? Eu não temo, mas eu acho que essa questão é difícil pro museu, com essa tipologia, entendeu? Esse museu existe porque ele está em São Paulo. São Paulo é uma metrópole. Se isso estivesse na Bahia, não funcionaria, porque lá nenhum funciona. Se tivesse em Pernambuco, muito menos. O Rio de Janeiro não existe, entendeu? Então, esse museu existe primeiro, pela minha força de vontade, a minha coragem. Porque também é São Paulo. Esse ponto, eu sempre, eu vislumbrei muito cedo que São Paulo é São Paulo, entendeu? São Paulo é uma metrópole. Pode ter gente contra, tem gente a favor, mas tem gente, isso que é bacana, né? Tem vinte milhões de pessoas. Quando aquele museu se instalou lá no Parque do Ibirapuera, todo mundo dizia: “Mas como um Museu de preto aqui no Ibirapuera? Isso é coisa da Bahia. Lá que tem preto”. E a Marta disse: “Não. Aqui mesmo que vai ter o museu de preto”. Então, essas coisas são assim. Quer dizer: então, o que me dá medo... quer dizer medo, me dá receio. Mas como o acervo do museu é do estado, o estado é que tem a obrigação de manter aquilo. E eu fico na dúvida se essas duas mil e tal obras que tenho em comodato, se deixo, se não deixo, se vendo, se não vendo, entendeu? Mas eu acho que eu deveria deixar, porque completa o museu, entendeu? E elas não foram... muitas foram doadas, mas não foram doadas na sua totalidade, porque eu disse: “Não. Vamos fazer...”. Eu tentei que essas obras ficassem pra Associação do Museu Afro Brasil. Mas se eu fizesse isto, o meu advogado me disse: “O senhor tem que pagar o imposto. Você vai ter que pagar imposto sobre essas obras, mesmo que elas custem um real. Imposto sobre isso, aquilo. E isso, por exemplo, a gente resolveu na Pinacoteca, quando o ‘seu’ Joseph Safra resolveu comprar as obras do Rodin, tatata, o dinheiro, ele dava pro estado e o estado comprava. Porque o estado pode comprar sem pagar imposto, né? Agora, lá eu não sei.
P/1- Emanoel, vamos fazer um fechamento. Esse ano você vai fazer 80 anos.
R- Hein? Ela faz, eu acho que dezesseis e eu faço quinze.
P/1- E agora, a gente passou uma tarde assim, ouvindo um pedacinho da sua vida tão... se você, olhando assim, o que você olha da tua história, de 80 anos, de Santo Amaro ?
R- É. Pois é. Eu olho com um olhar de vencedor. Eu acho que eu sou uma pessoa que venceu. Uma pessoa que, tudo o que eu quis fazer, eu fiz. Eu sempre disse: “Eu trabalho, eu trabalho, eu trabalho. Eu faço, eu faço, eu faço. E pronto”. Então, eu faço e eu trabalho. Então, eu sempre levei isso desse jeito. Eu não... eu acho que eu sou... eu não gosto de usar a palavra felicidade, porque eu acho que é um pouco banal, né, “feliz”. Mas eu sou uma pessoa muito feliz com isso. Porque eu conversando: quem sai de Santo Amaro da Purificação, na família de ‘seu’ Vital Lopes de Araújo, um pobre de um ourives vindo lá do sertão de Irará, passa por Salvador, passa pelo Rio de Janeiro, vem pra São Paulo, constrói. Construiu o Museu de Estado da Bahia. Construiu o Museu Salvador Allende do Chile. Construiu a Pinacoteca e o Museu Afro Brasil. Quem? Né? E olhe, sem eira nem beira. Porque, se eu fosse filho do Senhor Joseph Safra teria... se eu fosse o Moreira Salles também teria dois bilhões na minha conta, ou dez bilhões. Eu não tenho. Tenho o meu trabalho, que eu faço girar, para poder manter a minha vida. Poder manter. Eu fui ficando sozinho, sozinho, sozinho. Sou sozinho, quer dizer, eu não tenho nem mulher, nem filho, nada que me impeça de eu seguir em frente. E, aliás, também isso sempre foi uma proposta: eu não quero casar. Não quero mulher, não quero filho, não quero amante, não quero nada. Eu sou só. E cheguei aos oitenta, praticamente, sozinho mesmo. Eu tenho eu e meus dois cachorrinhos. E, pra mim, é o suficiente. E por isso eu sou muito grato ao universo, por ter me dado essa possibilidade de realizar tudo isso, de fazer. Aparentemente parece nada, mas é muita coisa, né?
P/1- E aí, em termos assim, a gente tem, muitas vezes, eu acho que você também, um sonho de legado, né? Você sente que você está deixando um legado? Qual é a sua visão?
R- Olha, eu fico pensando o seguinte: eu acho que, no Brasil, nada disso vale a pena. Quer dizer, você não pode pensar num legado. Eu não sei, entendeu? Eu fico pensando, as coisas que eu vivi... por exemplo: eu sempre fui uma pessoa que sempre eu achei que a gente deveria ter uma certa dádiva com quem você viveu, com quem você fez. Então, por exemplo, teve o Museu de Arte da Bahia, que tinha o Zé Pedreira. Eu fiz uma exposição dele, fiz um catálogo dele, o Waldeloir escreveu um lindo texto sobre ele. Porque é isso. Eu, durante muitos anos, fiz livro de arte de todas as pessoas que foram minhas amigas de São Paulo, que me acolheram: Flávio de Carvalho, Bonadei, Aldemir Martins e sei lá mais quem. Um monte de livros, tem mais de quinze livros feitos por mim, pra essas pessoas. Que é uma forma de doar. Eu acho que eu sempre sou um doador, entendeu? Então, eu acho que é uma forma de ser grato. Mas essa gratidão não é uma subserviência, é uma gratidão, porque foi possível com uma trajetória. Talvez não pudesse. Talvez não fosse com o Odetto, não fosse com o Bonadei, não fosse com o Danilo Di Prete, não fosse com uma série de gente que eu conheci, numa época que era um outro Brasil. O Di Cavalcanti, entendeu, o meu professor Henrique Oswald. Então eu, outro dia, fiz uma exposição do Henrique Oswald. Outro dia, então fui lá em Botucatu, que ele fez um painel lá, um seminário. Então, essas pessoas são muito a minha memória. Mas a Pinacoteca? Eu não consigo, eu acho que... entende? Outro dia, esse museu do estado, tinha um sujeito que era o diretor do museu e ele queria fazer um livro e ficou me chateando: “Eu falei com o Itaú, tatatatata”. Eu digo: “Mas eu fiz um livro do Museu de Arte da Bahia, com o Banco Safra. Existe um livro que vocês têm aí. Vocês não...?” “Ah nhenhenhenhene, eu quero fazer um novo livro”. Eu digo: “Sabe uma coisa? Você devia fazer uma grande exposição em minha homenagem. Porque eu fiz essa merda. Foi eu que fiz isto. Foi eu que restaurei tudo isso. Foi eu que restaurei esse Solar Cerqueira Lima. Foi eu que fiz isso, que fiz aquilo, aquilo outro, aquilo outro. E você está querendo fazer um livro de uma coisa que já existe?”. Então é essa coisa, que no Brasil é. Então, sendo assim, é a coisa do Marcelo Araújo. Ele foi mesquinho, né? Eu dei pra ele um museu. O pai dele me chamou e disse: “”Seu’ Emanoel, ajude meu filho. Ajude ele. Ele não sabe de nada”, entende? E a primeira coisa que ele fez foi destruir o museu. Ele destruiu. Ele virou secretário de Cultura. Ele foi pro (Iban? 04:03:25). E agora ele trabalha no... entende? É isso que eu estou dizendo: você não fazendo nada, você tem tudo o que você quer. Basta você não fazer nada. Esse cara pegou essa Pinacoteca pronta. Pronta. Prontíssima. Com um acervo, com um acervo renovado. Eu dei mais de sessenta obras pra Pinacoteca. Eu dei mais de dois mil livros pra Pinacoteca. Eu reconheci a biblioteca em nome de Walter Wey, que foi um diretor da Pinacoteca, que era um grande amigo meu. Eu dei o título do auditório para Alfredo Mesquita, que tinha ali a Escola de Arte Dramática no auditório, ali no octógono. Eu dei o átrio lá da Pinacoteca, lá em cima, em nome do senhor Joseph Safra, porque foi o homem que jogou mais de dez milhões de dólares na Pinacoteca. Então, essas coisas são assim, você tem que retribuir. É por isso que eu acho que tudo o que eu tenho vem dessa minha forma de ser, entendeu? O Flávio de Carvalho não me pediu livro. O Rebolo não me pediu o livro. O Aldemir Martins não me pediu o livro. Di Cavalcanti não me pediu. Mas eu me achava na obrigação de prestar esse serviço a uma pessoa que foi minha amiga e que era um grande artista, entende? Então, eu acho que é isso que eu faço, que eu gosto. Que eu faço, quer dizer, é uma coisa que eu faço, é retribuir todo dia. Eu não agradeço a Deus. Eu agradeço a mim mesmo e ao universo, por ter a possibilidade, de ter essa força, essa vontade, essa coragem. E eu acho que, se o museu permanecer e eu espero que permaneça, porque também eu começo a entender que eu sou empecilho pro museu. Claro, porque eu sou o Emanoel, entende? Eu sou o Emanoel Araújo. Eu sou o construtor. Eu fiz a doação. Eu sou isso, eu sou aquilo. Eu sou o tirano da luz. Então, entende? Então, eu sou, talvez, o empecilho. Quando eu sair daqui, talvez uma pessoa entenda isso e dê o devido valor, como eu dei a muitas coisas. É isso que eu espero. Só isso. Mas continuo lá, presente, fazendo as coisas, com a mesma vontade. Querendo fazer homenagem agora a Pelé, pelos oitenta anos dele. Eu não estou pensando na minha exposição de oitenta anos. Pra mim tanto faz, entende? Mas eu queria prestar essa homenagem a Pelé, muito embora ele é tripudiado por ser um politicamente incorreto, né? Coitado. Ele é um babaca. Mas ele é um grande jogador, um rei, né, do futebol. Babaca, por que diabo que ele não assumiu ser negro? Não assumiu a negritude. E vai pra Nova Iorque e diz: “Love, love, love”. Vai tomar banho! Vai ser burro assim no raio que o parta! Mas você não pode esperar de um jogador de futebol, que seja diferente, né? O Muhammad Ali era americano, sofreu porrada na vida, né? Pegou aquele preconceito desgraçado, que até hoje mata gente enforcada na rua e etc. Aqui, não. Pelé foi sempre o rei! O rei! Pelé era a pessoa mais conhecida no mundo, depois de Jesus. Sabe o que é isso? Mas é um alienado! Vai fazer o quê? Mas eu quero fazer essa homenagem pra ele. Eu já fiz isso em Botucatu, numa exposição que eu estou fazendo lá em Botucatu. Num espaço que, infelizmente, inaugurou e logo fechou, por causa da pandemia. Mas eu quero fazer homenagem a Pelé. Eu acho que precisa fazer. Não vai limpar a barra dele. (risos) Não vai limpar. Porque não adianta, não limpa. Ele fez tudo errado. Não adotou a filha que ele fez, né? O outro filho deu drogado. Enfim, né? Aquela outra mulher dele que tem os gêmeos, que tomou todo o dinheiro dele. Vai fazer o que, né? E outra coisa que eu acho também, que é muito importante, é a condução. Eu acho que a condução é a coisa mais essencial pra um ser humano. Ou você sabe se conduzir, ou nada feito, entende? Porque não tem jeito, a condução é fundamental. É a reta que você, que segue, que lhe faz você escolher um caminho, que não seja um caminho torto. Eu tinha tudo pra ser um caminho torto. Eu era moleque, joguei muita bola, matei muito passarinho, coisas que eu fiz na minha infância, né? E pronto. Quando eu resolvi mudar, mudei. Agora, a condução, sempre eu fui uma pessoa justa. Sempre. Sempre eu fui uma pessoa que ajudou as pessoas. Eu ajudo até hoje. Outro dia me chegou um sujeito, eu acho que não é nada extraordinário, mas me chegou um sujeito que me entrega água, com aquela boca toda estragada. E eu disse: “Vamos fazer, arrumar você, sua boca?”. E esse pessoal que trabalha comigo, eu sempre... trabalha comigo e eu sempre trato como se eles fossem meus irmãos, minha família, entendeu? Eu sempre dou, sempre vai além do que eu posso fazer com eles. E é isso que eu acho, então, é isso que eu chamo de condução. Não é nada demais. É condução.
P/1- Emanoel, pra gente ir fechando, a gente fez um exercício de memória, né, aqui. Que tipo de reflexão esse exercício de memória te faz fazer? O que você percebe, né, depois de ter organizado tanto a sua história? Algo te...
R- É. Eu acho que eu não sei. Eu sou tão imbuído com tudo o que eu faço, que eu não sei se eu já fiz uma reflexão profunda, já parei, entendeu, pra pensar nisso, porque eu estou tão ocupado com tudo isto, com as minhas coisas, as coisas dos outros, mas que são minhas também. Então, nada me incomoda mais do que essa questão que hoje está clara, essa questão do racismo, a questão de... essas questões todas, eu escrevo, denuncio. Então, eu não sei. Eu não quero fazer, também, essa reflexão. Entendeu? Acho que eu não quero fazer. Eu fico contente com os meus cachorros. Eu vejo televisão. Eu vejo programa de TV. Programa, não. Eu vejo TV, vejo noticiário. Mas eu não... tento escrever coisas, que eu escrevo. Escrevi outro dia sobre esse cara da Fundação Palmares. Fiz um artigo pra ele, bem duro. E eu vou fazendo coisas assim. Mas eu não quero fazer uma reflexão. Porque eu acho que é impossível. Quando você está vivo, você está ativo, quando você tem ainda um ideal pela frente, não há mais tempo disso. Eu não sei. Eu não quero fazer. Eu acho que eu deixo isso pra que alguém faça por mim, né? Então, eu acho que vai ser assim. Agora eu estava querendo fazer, eu chamei o meu advogado: “Não. Eu tenho que fazer. Eu tenho que deixar uma coisa escrita. Tem os meus irmãos. Tem os meus funcionários. Tenho que deixar”. Ele fez uma minuta. Eu olho, me dá um desespero ler aquela minuta. (risos) Não é que eu não queira, mas eu acho aquilo uma coisa que... falta isso, né? Falta essa reflexão, verdadeiramente. (risos) Eu só olho aquilo, eu digo: “Ai, meu Deus!”. Mas enfim, eu acho engraçado. Mas é isso, eu sou muito feliz. A palavra é essa, né? Com tudo o que eu sofri, com todas as pedras no caminho, com todas... mas eu pulei tudo, gente. Eu não posso reclamar, entende? Eu sempre fui uma pessoa... uma vez eu fui à posse do Hédio Silva, que foi uma posse monumental. Aí eu disse: “Puxa vida, esse cara negro, secretário da Justiça, com esse auditório aqui no palácio, tudo”. Aí eu disse: “Eu preciso...”. Eu, na minha santa bobagem, eu disse: “Eu preciso ajudar Hédio Silva”. Então, eu juntei os Ministros da Justiça do Fernando Henrique, os Justiça do Covas, juntei não sei quem, não sei quem, não sei quem e fiz um jantar pro Hélio Silva. Deu oito horas, ele não apareceu. Deu nove, ele não apareceu. Deu dez, ele não apareceu. Eu digo: “Meu Deus do Céu, o que eu faço com essa gente toda aqui na minha casa?”. Pedi pro Lobo, Reis Lobo, o Reis Lobo, que era secretário do Serra, eu disse: “Você se vire”. Ou do Alckmin, eu digo: “Você tem que trazer esse cara. Olhe quem está aqui. Olhe quem está nessa casa”. No fim, ele chegou quase onze horas pra jantar. Todo mundo ficou meio assim. Aí eu disse: “Mas eu vou fazer mais por ele, eu vou pedir pro Jô Soares chamar ele no Programa do Jô”. Ele foi um desastre. Um desastre. Eu digo: “Vou fazer mais uma vez, vou botar ele na Roda Viva”. Falei com a Roda Viva, tal, que eu sou conselheiro da TV Cultura. Outro desastre. Eu digo: “Então, eu desisti”. Então, eu desisti porque o sujeito, ele não... e outro dia ele estava no... aí outro dia... eu o vejo, de vez em quando, no Achiropita, porque a Achiropita tem uma coisa dessa negrada daqui de coisa, né? O pessoal aqui da comunidade negra do Bixiga. E aí eu disse, eu o vi, eu digo: ‘Ah o Hédio está aqui, tal”. Mas aí ele estava no Supremo, a Carmem Lucia deu a ele dez minutos, pra ele falar sobre a questão do sacrifício de animais no candomblé. Ele foi brilhante. Brilhante, entendeu? Então, tem isso. O sujeito dá umas mancadas, mas se regenera, eu acho, né? (risos) Não soube se conduzir, mas terminou sendo salvo, porque ele chegou no Supremo e deu o recado dele. Essa coisa é muito engraçada. É muito estranho, sobretudo, essa questão da comunidade negra no Brasil, é difícil. É muito difícil, né? Eu acho que esse estigma da escravidão foi tão profundo, tão profundo, que é muito difícil que isso se resolva. Você não vê... acontece a coisa, o menino foi morto, outro foi morto, o neguinho, né? Era negro, foi morto, né, com bala perdida. Ninguém se manifesta. Os negros que vão ao Museu Afro Brasil, você conta, entendeu? E eu fico muito doente com isso. Muito doente. Mas eu não sou político, não posso fazer nada. O que eu tinha que fazer, está lá, está feito.
P/2- Mas da sua persistência no mundo, assim, eu acho que é isso. Talvez você seja... eu escutei da Conceição Evaristo, ela falando: “Eu sou água, eu não sou pedra”. Também tem, né, um pouco isso de en passant.
R- É.
P/2- O que você falaria pra, não falaria, né, porque não é algo que vai ser publicizado com esse sentido, mas ainda assim tem uma geração, tem algumas pessoas da comunidade querendo reverter isso. Eu sinto muito você ter passado por isso com esses educadores, depois se eu puder conversar com você sobre isso, porque eu passei por uma situação num outro contexto. Mas...
R- Sabe o que é? Eu nunca tive sorte com... como eu sou muito enfático, às vezes, essa ênfase que eu sou das coisas... mas eu também sou muito crédulo... tinha uma menina, Renata Felinto, que era educadora e, naquela história da retirada da Petrobrás, eu virei pra ela e disse: “Olhe, Renata, você fica se quiser. Mas eu vou ter que reduzir o seu salário, porque eu que vou pagar. Quer?” “Ah! Quero. Tatata papapa papapa papapa”. Aí houve aquela, foi feita... arranjei o dinheiro no Banco Itaú. Que aliás, até hoje eu não posso ser, do Banco Itaú, o Personnalité, porque o cara, um sujeito me disse assim, foi lá no Banco, me falou: “Eu vou fazer pra você, a sua ficha do Personnalité”. Eu digo: “Não quero” “Não. Eu vou fazer. Você tatata. Você é importante, tatata”. Aí fez, voltou com a ficha. (risos) Ele: “Ai, não consegui não, porque você tem uma questão, você não pagou as coisas como devia pagar, negociou. Tatata tatata tatá”. Eu digo: “Tá bom, não faço questão de ser Personnalité coisíssima nenhuma”. Eu disse a ele, digo: “Eu acho que não vai dar certo”, mas ele: “Ah não. O pessoal do Banco disse que, se você depositar cem mil reais por três anos, você vira Personnalité”. Eu digo: “Você está brincando. Nem eu tenho cem mil reais pra depositar, nem eu quero três anos ter dinheiro no Banco Itaú. Pra quê?”. Aí ela, por alguma razão, resolveu ir embora. E ela foi, me ameaçou com a Justiça. Eu disse: “Mas, Renata, você foi avisada, né?” “Não, porque papapa. Eu vou a um advogado tatata, papapapapa”. E me cobrou cento e vinte e mil reais do meu bolso, que não era do estado, do museu, era meu. E eu paguei cento e vinte mil. Aí, outro dia, uma menina me... aí eu fiz uma bobagem, que fui entrevistado na Roda Viva e uma repórter, uma menina que é repórter da... não é repórter, jornalista, fala da Renata Felinto. Menino, olha, o sangue subiu na minha cabeça. E eu disse: “Esta traidora” (risos)
P/1- O __________ (4:14:36) do processo.
R- Veio toda uma carga de raiva daquela criatura. Bem, ela botou o irmão, botou um amigo do irmão e um outro amigo do irmão, um funcionário do museu. Ele dizia e a Folha começou a dizer que eu era... ah, ele começou a dizer que eu era um “capitão do mato”, que eu tratava os funcionários do museu como escravo, que eu era isso, que eu tinha feito assédio sexual. E aí saiu na Folha “assédio sexual”. Eu digo: “Putz! Eu, assédio sexual? Eu, que sou a pessoa mais delicada, que eu sou carinhosa, que faço...”. Não. Está lá com ele, botou que eu faço isso, que eu faço aquilo, que eu proibi ele com a namorada. “Eu proibi uma pessoa com a namorada?”. E aí o outro disse que eu o levei pro escuro. O outro disse que eu levei no banheiro, que eu o segurei. Olha, umas coisas terríveis, né? Mas aquilo foi... a Folha saiu. O Estado de São Paulo saiu. Eu estava em Salvador, a Folha me ligava: “E tatata?”. Eu digo: “Olha, não vou me pronunciar. Eu vou chamar um advogado, pra resolver isso. Isso é coisa de advogado”. Não é que eles perderam? Perderam. Tiveram que me pagar. Aí, essas coisas, quer dizer, essa senhora que eu não devia ter feito isso, eu concordo, é minha culpa, a minha máxima culpa. Eu não tinha que ter dito o nome dela, não tinha que ter feito, porque tinha sido resolvido já, né? Mas são coisas que eu não consigo controlar, entendeu? Não dá pra... eu sou humano, afinal de contas, né? E assim, essa Educação sempre tem uma pessoa azeda no meio. Engraçado, tem uma pessoa, sempre, azeda, no meio. Tinha esse menino, esse Rafael, que era o coordenador da Educação. A Ana Lucia, que me ajudava, sempre passou a mão na cabeça dos educadores, porque ela gostava dos educadores. Esse Rafael era, tal. Esse Rafael fez aquela papelada contra mim e chegou a pedir auxílio pras pessoas em benefício dos funcionários do museu. E ele se incluiu no meio de vinte e três. Eles são nove. Então, eu disse: “Não tem jeito”. Aí a Folha novamente: “Ah, por que...”. Tem uma meninazinha, tinha outra, uma foca, antes, que falava do meu assédio sexual. Aquele sujeito, Augusto não sei das quantas, fez um escândalo, que eu devia ser preso, porque eu trazia meninos pretos pra minha casa. Na minha casa, meninos pretos? Filho da puta. Eu disse: “Eu vou botar um processo em cima dele”, mas depois, deixa pra lá. De tal maneira, que um vizinho, um funcionário, uma pessoa daí da rua, me disse assim: “’Seu’ Emanoel, mas o que é isso? Eu vejo o senhor com os seus cachorrinhos. (risos) Eu nunca vejo ninguém na sua casa. Como é que você traz garoto de programa pra sua casa? Garotinhos negros pra sua casa, né?”. Mas isso era de um sujeito que nunca me suportou, chamado Nêumanne Pinto. Esse Nêumanne Pinto, quando eu saí, quando eu fiz a carta pro Serra, ele botou uma notícia. Ele era do jornal A Tarde, né? Jornal da Tarde. Era Jornal da Tarde, né? Aí ele botou uma notícia que tatata, que Calil é que era não sei o que, porque eu não sei o que, que eu devia fazer tatata. Eu ligo pra ele e digo: “Nêumanne Pinto, o que você fez, você está equivocado. Você está me dizendo coisas que eu, que eu...”. Ele dizia: “Você tinha que falar com o Serra antes, não sei o quê”. Eu digo: “Você está equivocado. Você não sabe como a coisa se deu”. Ele disse: “Faça o seguinte: você manda uma carta, eu publico duas linhas”. Eu digo: “Sabe o que você faz com as suas linhas? Meta no cu”. Fazer o quê? O sujeito faz uma nota... uma coisa no jornal, um editorial no jornal, me escrachando e me manda, me diz: “Manda uma carta”, que ele bota duas linhas. Mandei, entendeu? Agora tudo isto, quer dizer, isto não é bom pra mim. Eu entendo também que não é bom, entendeu? Mas eu sou assim. Quando eu disse a Antônio Carlos: “Eu não sou humilde. Você que tem que ser”, ele entendeu, porque é um político, entendeu? Ele que é. “Você tem que ser humilde. Um artista não tem que ser humilde. Você conhece o ‘seu’ Vital Lopes de Araújo?” “Não”. Eu digo: “Pois eu conheço o Doutor Peixoto, que é o seu pai. Então, eu estou, né, em baixa. Portanto, você que se vire, que você foi eleito pelo povo da Bahia. Quem tem que ser humilde é você”, ele disse: “Ah, então é assim, né? Então, você serve”. (risos) É tão engraçado. E é assim que é a vida, é tão... né?
P/1- Emanoel, você tem alguma coisa final que você queira dizer?
R- Não. Eu quero dizer que é isso mesmo. Quer dizer, eu acho que é um caminho, né? E caminho se faz assim. Caminho se faz... uma vez, Odorico Tavares, aquele que me recusou antes e depois fez aquele... foi um grande amigo. E eu também fui um grande amigo dele. Eu, quando ele morreu, eu fiz uma exposição da obra dele toda, da coleção dele. Fiz aqui na Fiesp, com pompas e honras. Fiz. E no Paraná. Porque foi uma pessoa que... entende? Mister McClowsky eu não pude fazer nada, porque ele trabalhava na Casa Branca na época de Nixon e eu não sei onde ele se meteu, né? Mas ele era um alto funcionário da Casa Branca. Mas também eu também adoraria ter visto o Mister MCClowsky, porque era uma coisa que foi muito extraordinária pra mim, naquela época. Então, eu vou caminhando e eu vou somando essas coisas, né? Outras eu passo por cima, outras eu convivo e tal. Então, eu acho que eu sou muito feliz por isso. Por ter podido fazer coisas pelas pessoas que fizeram pra mim. Retribuir, né? E, ao mesmo tempo, fazer pras pessoas que eu nem conheço. Eu não conheço metade das pessoas que vão ao museu, mas quando... (edição)... pra mim é uma grande gratificação. Eu sou muito grato por isso. Porque, olha, nesse país, que é um país de elite, né, você fazer uma coisa que você ressalta a história do negro no Brasil, é uma coisa gratificante. Quer dizer: as pessoas - eu tenho certeza - estrangeiras que passam e vai muito estrangeiro lá, sempre estão falando: “Esse museu é a cara do Brasil. Esse é o museu brasileiro. Esse é o museu brasileiro”. Ninguém quer ver o Masp. Em Nova Iorque está cheio de Masp lá. O Metropolitan, né, tudo. “Não, eu quero ver a cara do Brasil. O museu é a cara do Brasil”. Puxa vida, isso feito por uma pessoa, com o parco dinheiro que tem, do seu trabalho? Puxa vida, né? Eu acho que eu tiro o chapéu pra mim mesmo. (risos)
(palmas)
R- (risos) Ah, obrigado!! (risos) Ai, ai. Pois é isso. É muita coisa. Ai, Jesus!
Recolher