P/1 – Paulo, mais conhecido como Amendoim, vou perguntar primeiro qual é seu nome completo, o local e a data de nascimento?
R – Meu nome é Paulo César Martins Vieira, nasci em Ubá, mas eu vim muito bebê. Nasci no dia 20 de agosto de 1957. Estou batendo 53 anos, com a cara de 73, mas está tudo certo.
P/1 – Conta um pouco então, você falou quando chegou à Rocinha, como é que era aqui?
R – Aqui era uma loucura, tipo uma fazenda. A Rocinha era fazenda. As pessoas foram morando, os negros baianos foram chegando aqui. Aqui foi uma habitação... Quando diz que tem mais nordestino, quando se diz nordestino, quer dizer os negros baianos que existiam aqui. Com o decorrer do tempo, em 1944, 1945, foi quando o verdadeiro nordestino veio chegando. Na Bahia é nordestino, mas é o afro-nordestino. Depois, chegaram os cearenses, pernambucanos e paraibanos e que hoje são 95% dessa comunidade lá do Nordeste estão na Rocinha. Eu me sinto extinto, eu me sinto 100% só. Então, tem que valorizar porque tem que valorizar os animaizinhos que são 100%, tem que dar mais atenção.
P/1 – Como que era na década de 1950, quase 1960, conta um pouco melhor. Você falou da água, do esgoto.
R – Ah, não tinha nada disso. Água, esgoto, não tinha nada. Nós tínhamos que pegar água, porque aqui é assim, a Rocinha é grande, mas ela é dividida, tipo complexo. Eu, hoje, sou da Roupa Suja, mas como a Rocinha cresceu e elitizou... Elitizou. Incrível falar isso, se elitizar. Então, RS, Roupa Suja, dá no mesmo. Então, é assim dividida: “Onde tu moras?” “RS.” “Onde tu moras?” “LA. Moro no LAB, Laboriaux.” Mas naquela época, foi uma luta muito grande que a gente teve para conquistar tudo aqui na Rocinha. Nada foi conquistado à toa. Foi muita luta... Nós fomos muito para a rua paralisar o trânsito para poder chamar a atenção do governo, para olharem para a gente. Água...
Continuar leituraP/1 – Paulo, mais conhecido como Amendoim, vou perguntar primeiro qual é seu nome completo, o local e a data de nascimento?
R – Meu nome é Paulo César Martins Vieira, nasci em Ubá, mas eu vim muito bebê. Nasci no dia 20 de agosto de 1957. Estou batendo 53 anos, com a cara de 73, mas está tudo certo.
P/1 – Conta um pouco então, você falou quando chegou à Rocinha, como é que era aqui?
R – Aqui era uma loucura, tipo uma fazenda. A Rocinha era fazenda. As pessoas foram morando, os negros baianos foram chegando aqui. Aqui foi uma habitação... Quando diz que tem mais nordestino, quando se diz nordestino, quer dizer os negros baianos que existiam aqui. Com o decorrer do tempo, em 1944, 1945, foi quando o verdadeiro nordestino veio chegando. Na Bahia é nordestino, mas é o afro-nordestino. Depois, chegaram os cearenses, pernambucanos e paraibanos e que hoje são 95% dessa comunidade lá do Nordeste estão na Rocinha. Eu me sinto extinto, eu me sinto 100% só. Então, tem que valorizar porque tem que valorizar os animaizinhos que são 100%, tem que dar mais atenção.
P/1 – Como que era na década de 1950, quase 1960, conta um pouco melhor. Você falou da água, do esgoto.
R – Ah, não tinha nada disso. Água, esgoto, não tinha nada. Nós tínhamos que pegar água, porque aqui é assim, a Rocinha é grande, mas ela é dividida, tipo complexo. Eu, hoje, sou da Roupa Suja, mas como a Rocinha cresceu e elitizou... Elitizou. Incrível falar isso, se elitizar. Então, RS, Roupa Suja, dá no mesmo. Então, é assim dividida: “Onde tu moras?” “RS.” “Onde tu moras?” “LA. Moro no LAB, Laboriaux.” Mas naquela época, foi uma luta muito grande que a gente teve para conquistar tudo aqui na Rocinha. Nada foi conquistado à toa. Foi muita luta... Nós fomos muito para a rua paralisar o trânsito para poder chamar a atenção do governo, para olharem para a gente. Água então... A gente ia à Bica das Almas, que é mais ou menos um quilômetro da Rocinha, trazer água aqui para cima. Era uma loucura. Água era uma coisa que... Você viver num lugar onde não tem água, não tem saneamento, não tem nada, é uma loucura mesmo.
P/1 – E as casas eram como?
R – Tudo de tábua. Tudo chamado barraco. Barraco que é feito de tábua. Ainda tem hoje, mas é muito pouco. Foi a parte mais carente onde não poderia colocar, porque eu, como presidente da Associação dos Moradores e Amigos do Bairro Barcelo, muita gente me procurou e não tinha mais espaço. Tinha aquele espaço lá, eu falei: “Lá tem um espaço.” Eles foram para lá e ainda construíram a casa. Só que foi tão bom que hoje eles ganharam uma moradia melhor que foi a questão do Programa de Aceleração e Crescimento. Todos vão sair e vão ganhar um condomínio.
P/1 – Você saiu, foi para a Alemanha. Como é que foi essa história?
R – Eu cresci, essa história eu tenho que contar porque eu era pequenininho, comecei a trabalhar com seis anos de idade. Então, eu fui trabalhando, fui engraxando sapato, depois, eu passei a trabalhar entregando pão na comunidade. Acordava às quatro horas da manhã para distribuir pão para essas biroscas. Birosca que a gente chamava, hoje é barzinho, mas era birosca. Entregava pão, depois, voltava à tarde, para recolher. Mas eu sempre fui muito ansioso de querer fazer as coisas, ajudar as pessoas. Uma vez, um pessoal que veio para vacinar cachorro, eu sabia que tinha cachorro na Rocinha, mas, no dia da vacina, apareceu tanto cachorro, ninguém trouxe, eles mesmos apareceram para tomar injeção. Eu fiquei olhando, bobo, falei: “Mas muito cachorro, rapaz. Muito cachorro na comunidade.” Os cachorros latiam muito, os próximos vinham. Eu vi o senhor, coitado, vacinando, eu só fiquei olhando. Ele voltou no outro dia porque tinha muito cachorro, eu nunca vi. Nossa, uma cachorrada. Ele voltou no outro dia, mas, coitado, faltou um funcionário dele. Como eu já tinha prestado atenção como é que vacinava eu falei: “Se o senhor quiser eu ajudo o senhor.” Ele: “Ah é? Você não tem medo, não?” Eu, molequinho, falei: “Não. Eu caio para dentro.” Pegava o cachorro, colocava a mão aqui no cachorro, ele perdia as forças, aí vacinava. “É comigo mesmo, cachorrão bravo!” Aí, eu vacinava o cachorro. No final de tudo, eu falei para esse senhor: “Poxa, senhor, eu jogo futebol. O senhor não conhece alguém de um clube que o senhor pudesse me levar?” Ele: “Tu jogas futebol?” Eu o chamo de senhor Rosalvo, senhor Rosalvo, não esqueço nunca, ele: “Vou te levar para o Flamengo.” Ele me levou lá para o Flamengo, eu fiz o teste. Eu jogava, mas eu não tinha noção, eu achava que tinha que driblar todo mundo. Eu driblava a trave, voltava: “Faz o gol. Faz o gol.” Falei: “Que gol?” Depois eu conheci lá, na época, era garotada, Adílio, Zico, Junior, Andrade, que é técnico do flamengo. Então, esse era o pessoal da época, Júlio César, era um pessoal infantil da escolinha que treinava e eu fui lá treinar com eles. Depois o que aconteceu? De repente, lá dentro do Flamengo, não sei o que aconteceu eu comecei a correr, a treinar, junto com profissionais, eu tinha nessa época 13, 14 anos, porque eles me acharam muito elétrico. Eu treinei com profissional e fui fazer um teste de cooper, bati o recorde mundial do teste. Falei: “O que é isso?” Nem conhecia o que era. Bati o recorde. Veio Jornalistas de tudo quanto era jeito. A televisão estava surgindo, na época, foi 1970... A taça de 1970 e pouco. Eu não entendia nada, né? Foi imprensa para tudo quanto era lado, jornalista para tudo quanto era lado, revista para lá... Colocaram-me para correr. Eu estava bem no futebol. Joguei no Maracanã com 200 mil pessoas, deu uma tremedeira na perna, caí de emoção, depois levantei. Que loucura a nossa vida. Eu falei: “Jesus, o que é isso?” Como sempre fui uma pessoa muito católica, eu rezava: “Mamãe, fui aprovado no Flamengo, mamãe! Vou dar uma casa para senhora.” Todo filho pensa em ajudar logo a mãe. Fui parar no atletismo. “Porque você é muito bom para correr...” Falei: “Mas correr e jogar futebol dá no mesmo, porque eu treino, corro... Dá no mesmo.” Falei: “Está bom, estou dentro.” Em menos de um ano, fui competir na Argentina, primeiro campeonato de menores, Comodoro Rivadavia, lá onde o vento nem fez a curva, muito longe, lá na Argentina, lá perto das Malvinas. Nunca tinha visto petróleo, lá tem muito petróleo: “Isso é petróleo? Ih caramba. Petróleo na rua.” Jorrava petróleo na rua. Lá, ganhei a competição, bati o recorde sul-americano, um barato! Quando eu voltei para o Brasil, como tinha batido o recorde, eu fui para a Alemanha. Escolheram uns atletas, vários atletas, e eu estava incluído, mas eu não estava, sabe? Eu não era orientado, não tinha ninguém para me orientar. Eu lá conheci um que era o técnico do Flamengo, técnico não, preparador físico. Daí eu falei se ele podia ser o meu orientador porque eu não tinha ninguém. Eu fiquei com ele e ele foi comigo para Alemanha. Naquela época, foi um barato porque saiu nos jornais que eu ia para a Alemanha e eu usava um cabelão tipo leão, black power, o cabelão grandão. Se a pessoa encontrava comigo: “Tu vais para Alemanha, heim? Vai namorar as loirinhas.” “Ah, é mesmo?” Aí um cara falou para mim, desse eu não vou esquecer a cara nunca: “As loiras lá adoram um negão. Adoram um negão.” Eu falei: “É mesmo?” “Cara, tu rapas esse cabelo...”. Eu estava com black power, eu falei: “É mesmo? Ah meu Deus, nunca vi uma loira, nunca tive uma loira. É mesmo? Muita loira lá?” “Tem que ver.” Fui ao barbeiro, mandei cortar a juba, falei: “Passa vaselina porque eu vou chegar lá com o sol brilhoso.” Olhei no espelho e estava brilhosa a cabeça: “Vou pegar o avião.” Fomos embora, 12 horas... Quando eu chego, num lugar chamado Frankfurt, eu não vi a cidade, eu vi um negócio tudo branco caindo. Olhei, falei: “Engraçado, essa cidade é esquisita rapaz. Só chove branco aqui.” Quando eu fui ver era neve, rapaz. Quando coloquei a cara para o lado de fora, meus cabelinhos: “Ai meu Deus, minha juba. Ai minha juba.” Um frio, 16 graus abaixo de zero. Falei: “Coitadinho do meu cabelo. Jesus, cadê meu cabelo?” Um frio lascado na orelhinha. Eu levei a roupa praticamente do corpo. Quando a gente foi para a seleção, era um grupo de atletas, eu fui para a Alemanha, outro grupo foi para a Romênia, que era ginástica olímpica que era muito forte lá, e outro para a Tchecoslováquia que jogava...
P/1 – Handball.
R – Não. Era waterpolo. Era um país diferente que desenvolvia esse esporte, então, o Brasil foi aprender lá e eu fiquei na Alemanha. Eu me lembro que eu cheguei ao aeroporto e, essa pessoa morreu, mas eu o tenho no coração que é o Rômulo Arantes que foi atleta comigo, nadador. Também teve natação, foram os nadadores. Ele falou: “Ah, coitadinho do Amendoim. Eu me lembro de antes estar com você, você deve estar com saudade daquela juba.” Eu falei: “Ah meu filho, se ela pudesse vir para cá voando, eu gostaria que ela colasse.” Esse cara que falou isso para mim foi muito mal, viu? Ele não teve a noção do que é aqui. Aprendi mil coisas. Lá no treinamento a gente pegou lá petróleo, greve, negócio de greve de gasolina porque a gasolina tinha aumentado e eu falei: “O que eu tenho com isso?”. A gasolina aumentou e eu falei: “Jesus. Eu tenho que andar 16 quilômetros até a Universidade Mainz. 16 quilômetros andando para treinar para, depois, voltar andando, porque lá o pessoal usava bicicleta, eu não tinha bicicleta, eu não sabia andar de bicicleta. A grande parte também não estava ligada no negócio de bicicleta. Quando eu voltei para a Rocinha, tomei um susto. Quando eu vi, a Rocinha já estava com 60 mil habitantes: “O que é isso? Como é que foi isso? Como é que eles vieram tão rápido aqui?”
P/1 – E quanto tempo demorou?
R – Ah, demorou um ano e pouco, rapaz, e veio muita gente. Depois, voltei para a Alemanha, só na Alemanha foram quatro vezes. Aí, quem eu encontro lá? Que tem uma história muito bonita, eu, molequinho, já estava comendo batata, lá era batata e tal de salsichão, eu já não estava aguentando mais. A minha comida aqui era um arroz e um angu. Angu não, hoje é polenta porque nego se esqueceu que angu e polenta é tudo a mesma coisa. Era angu e couve, carne só se fosse pegar aqui no mato, um gambazinho, um coelhinho. Essa era a minha comida porque não tinha carne, era uma zona bem paupérrima mesmo. A gente fazia armadilha, colocava no mato e esperava o outro dia, sabe? Mas tem os caras que ainda roubavam nossas caças. O cara tinha coragem de roubar nossa caça, e gambá era o que mais caía, gambá e coelho. Um dia caiu uma jiboia, jiboiona. Porque a gente fazia, colocava banana, então o cheiro... Quando eu chego lá, aquela jiboiona morta. Eu nunca comi cobra. Hoje se come a jiboia, hoje eu já comi, mas naquela época eu falei não, um bicho grande: “Que é isso, rapaz?” Eu e meu amigo Zé Macaco. Ele que me ensinou a fazer as armadilhazinhas. Ele falou: “Tem um cara que está pegando nossa armadilha, vamos fazer uma armadilha para pegar ele.” Falei: “Que é isso rapaz?” “Ele está sacaneando, rapaz. Toda vez que ele chega aqui o bichinho está cheio de negócio e some o animal.” A gente arrumou lá uma arapuca, no outro dia, estava o cara lá em cima pendurado, o cabelo para baixo: “Olha lá esse cachorro.” Pegamos o cara, prendeu uma perna, levantou. [risos] Ah, era demais, Zé Macaco, Deus o tenha no céu. Foi um cara, sabe aquele amigo que você tem de infância? A situação era ruim, que a gente queria comer carne todo dia, a gente gostou. Gambá, a gente levava para casa e minha avó fazia.
P/1 – Amendoim, eu queria que você contasse agora de quando você voltou para a Rocinha...
R – Eu voltei para a Rocinha, naquela luta de conquistar a água, né?
P/1 – E luz? Já tinha luz?
R – Ainda não. Viviam precariamente as pessoas com seus barracos, entendeu? Veio o nordestino e começou a construir já a casa deles de tábua, barraco também, com o decorrer do tempo. Nos anos de 1974, 1975, é que começaram a fazer as casas já de veraneio, os nordestinos foram chegando mais em massa e foram fazendo os barracos de tijolo, entendeu? Eu acredito que se os nordestinos não tivessem chegado à comunidade, nós estaríamos com barracos até hoje porque foi uma questão cultural mesmo.
P/1 – E desde que você voltou, você fazia parte do movimento para melhorar?
R – A gente foi para a rua conquistar a água. Mas eu ia no meio, não era nada. Hoje, eles acham que eu sou líder. Eu fui presidente, me elegeram depois, eu não queria, mas: “Vá. Tu tens que ser por que...” Falei: “Não. Está tudo bem, eu estou aqui.” Foi espantoso, assim de votos, eu nem tinha noção, mas a gente sempre foi junto em conjunto, conquistou. O Armando da Fonseca veio, veio deputado, nessa época, alguns deputados. A gente, através deles, negócio de política... E o que é política? Como falou em política, eu lembrei que lá na Alemanha eu tinha conhecido uma pessoa, voltando o negócio do angu, que eu já estava cansado de comer batata e aquele salsichão. Encontrei com um senhor lá, eu tentei falar, na época, não falava nem português quem dirá então alemão... “Ooooooo Brasil.” Levei um tapa no peito, quem era? Thiago de Mello. Eu nem sabia quem... Quando eu voltei para delegação que eu fui abrir a boca: “Tião. Conheci o Thiago de Mello.” O Tião tapou minha boca, me chamou para o canto, eu falei: “Ué!?” “Não. Não pode falar o nome dele, não.” “Está bom. Ele é não sei o que...” Voltamos à Rocinha e começamos aqui dentro a ir conquistando. Conquistamos primeiro a água, depois veio a eletricidade que tinha um senhor chamado senhor Batista que tinha a concessão da Light. Não sei o que ele fazia um rolo, ele tinha luz e cobrava muito. Ficou milionário aqui dentro. Só tinha luz quem estava com ele ali e eram poucos. Eu não achava aquilo justo, eu acho que a luz tem que ser para todo mundo, a água também tinha que ser para todo mundo. Então batalhamos, conseguimos desestabilizá-lo, colocar luz para todo mundo e ele não cobrava mais nada de ninguém. Antes era querosene. A gente tinha lamparina, né?
P/1 – E como é que funciona a organização? Você falou que é presidente do quê? Da comunidade? Como é...
R – Da associação.
P/1 – Da associação.
R – Aqui são sete associações, só três funcionam. Hoje, funcionam duas a Associação de Moradores e Amigos do Bairro de Barcellos (AMABB) e a União Pró-Melhoramentos de Moradores da Rocinha (UPMMR). Esta área, aqui tudo, é bairro de Barcellos, que é a área considerada elite. Aí eu fui presidente, me elegeram, mas nunca mais, rapaz. Ser presidente não é mole, mesmo presidente de favela. Cada ano, aprendi com Jorge Mamão, que Deus o tenha no céu, foi um grande presidente aqui, foi um policial, mas se tornou presidente, ele era um exemplo aqui para a gente. Então toda vez que, cada ano que passava, era uma missa que a gente rezava em vida, né? Em vida porque ser presidente de comunidade, eu acho que todos os presidentes que passam pelo congresso deveriam antes ser presidente de comunidade porque o bicho pega. O negócio não é mole. Perdi muita gente, perdi muitos conhecidos trabalhando, eram assassinados, entendeu? Eu caí nisso, fui ser presidente e Jorge Mamão falou assim: “Toda vez que tiver vivo tu faz uma missa em vida para a gente ver que está vivo.” Eu continuei dentro do movimento. A Rocinha, eu sempre ajudei a Rocinha em todos os aspectos, em muitos aspectos mesmo, nas organizações. Depois, surgiu um programa... Até tem uma história que eu fui presidente e não assumi porque tínhamos brigas, tínhamos um rolo, então eu não podia assumir. Eu falei: “Pô, como é que eu não vou assumir o negócio?” Consegui, fui lá na cidade um ano, participei de um programa chamado Survivor Program, (No Limite) que eles jogam um montão de gente dentro de uma ilha e me pegaram que eu não sabia nem para onde... Se eu soubesse nem teria ido. Mau ou ruim tinha um gambazinho, um negocinho para comer, ia ali ao São Conrado, pegaria no lixo uma coisinha pra comer, lavava. Mas lá não tinha nem isso. Quando cheguei, Deus me livre e guarde, quatro dias depois, não podia nada, fome. Falei: “Jesus, eu nunca vi. Vim para cá para passar fome, os caras me trouxeram para passar fome aqui.” Os caras lá caem no desespero. Só tinha empresário, gente rica, cara de situação e o cara de comunidade era eu. Eu via as vacas meu, disputei com as vacas lá no pasto. Falei: “Vou comer grama. Vou comer grama aqui.” Foi assim que foi surgindo a vida e a gente até hoje nas organizações... Hoje, tem mais liderança local, hoje o número é grande, entendeu? Então, nós estamos preocupados em trabalhar e fazer hoje as nossas próprias lideranças.
P/1 – Você conhece bem a comunidade, então, vou te perguntar uma coisa bem geral. Qual é o maior problema da Rocinha hoje de habitação? O que falta? Qual é o problema para você?
R – Habitação. Hoje a Rocinha, sinceramente, ainda tem muita gente, não gente que mora dentro da Rocinha, mas gente que vem de fora porque a Rocinha se tornou hoje uma cidade. A Rocinha hoje está numa base de, no cálculo da Light, 48 mil casas. Se você coloca três pessoas em cada casa, que não é a realidade essa, você vai ter acima de 150 mil pessoas. Hoje, você tem uma base de 180 mil habitantes na Rocinha. Então, ainda temos a questão da moradia, ainda tem pessoas que estão buscando moradia, tem pessoas que o governo, já com trabalho... Mas isso aí foi com muita conquista, com muita luta. Fomos à Brasília discutir com o Ministro das Cidades porque nós queríamos uma questão da habitação na Rocinha, que eles teriam que vir aqui para ver. Se a gente não for lá, fica difícil para eles entenderem também o problema daqui. Então, fomos, conquistamos, não só eu, mas um grupo de liderança da comunidade da Rocinha e hoje está aí, esse programa chamado PAC, o Programa de Aceleração de Crescimento. Quer dizer, eu acho que tudo foi uma conquista. A Rocinha hoje tem pessoas ainda que moram que tem essa preocupação, que moram em área de risco, aquelas pedras que ainda estão lá mesmo sustentadas, mas o clima é o clima. Hoje está tudo muito mudado porque a natureza foi muito agredida, então, ela está dando a resposta. Toda ação tem uma reação. O mundo tem que entender isso, porque estão tendo todas essas catástrofes no mundo porque o ser humano não está muito preocupado com isso, ele está preocupado em ganhar, em cada dia ocupar o espaço que é da natureza, que ele quer dividir. Hoje, na África, tem um problema grande que é o crescimento da população juntamente com os animais, é o habitat do animal que o ser humano vai lá... Aí o leão, a pantera, o que seja, reage, parte para cima, come e eles não entendem, porque eles estão também avançando no habitat deles. Para entender isso no mundo, não é só uma questão do Brasil, mas uma questão do mundo e nós temos que estar muito preocupados. O habitat aqui praticamente já está um pouco solucionado em relação ao que não tinha antes, hoje mudou muito. Tanto que a Rocinha está mudando até de classe. Tem uma classe que está surgindo uma classe dominante. Olha só, numa favela, classe dominante. É o nordestino que chegou, plantou, ganhou, mudou, melhoraram de vida e saíram fora. Só está aqui para ganhar o dele. Então, quer dizer, na nossa época a gente fazia mutirão, muita gente caía junto para a vala. Hoje já não tem mais isso. As pessoas não estão preocupadas mais com isso, cada um está preocupado com si, entendeu?
P/1 – Essa coisa de comunidade que é muito mais que cidade, é muito mais próximo, isso está se mantendo nessa relação dos vizinhos ou está se perdendo? Como é que está isso hoje em dia? A relação dessa vizinhança.
R – Hoje, a Rocinha, por exemplo, está perdendo porque eu sou de uma época de que eu ando na Rocinha, mas eu conheço tudo. Hoje, essa geração que está com 20 anos, não conhece mais a favela e só mora naquele lugar, só vai dali para o baile, do baile para uma festa, mas não conhece o andar de tudo na favela, em geral. Graças a Deus, a gente andava geral, tudo, por dentro da favela. Andava em tudo, tudo, tudo. Tudo quanto era rua a gente andava. Hoje até mudou o aspecto. O pessoal me vê em outro lugar: “Pô, Amendoim, é só o cara que eu vejo aqui.” “Porque eu gosto, porque eu conheço. Eu gosto de andar, gosto de estar em tudo quanto é lugar aqui na comunidade.” Mas hoje mudou, acho que a própria situação, um pouco de medo mesmo... “Vou ficar por aqui, não vou para a outra área.” Mas na época não. Na época, tinha gangue, nós éramos a gangue e a gente saía na mão. Tinha um negócio de Suaregue, era um clube. As meninas nossas, eu não namorava ninguém, não arrumava ninguém, eu era ruim para arrumar alguém, não sei o que tem, a menina nem olhava, né? Então, os caras lá de cima queriam tocar, segurar nossas meninas, namorar. Ah, o coro comia. E eles, quando a gente queria namorar as meninas de lá, o coro comia. Tudo por causa de uma mulher. Tudo por causa de uma menina. A gente brigava assim. A gente ia lá e tal, a pessoa: “Ah, é? Vocês vão aqui?” Mas nada de droga, nada de briga, nem existia, graças a Deus nem existia. Se existia, a gente nem sabia e quem fazia também nem procurava fazer perto da gente nem nada até por uma questão de respeito, entendeu? Depois a gente cresceu: “Ah, parou com esse negócio de brigar, brigar à toa, a troco de nada e as meninas não estão nem aí para a gente, as outras também não, são todas sem vergonha, ficam namorando os caras lá de baixo, as menininhas também querem namorar os caras aqui também e assim está tudo certo. Não vamos brigar mais nada”.
P/1 – Amendoim, você falou dessa relação com problema com droga, isso surgiu quando na Rocinha?
R – No mundo já existia, eu já ouvia falar que existia a tal de cocaína, que falavam, né? Mas a gente nunca viu. Nunca tinha essa... Eu nunca... Hoje, está na televisão, tu pegas os caras mostrando aquilo na televisão. Eu acho que a droga que é uma coisa tão reservada não deveria nem ser mostrada, deveria ser apreendida e não mostrada. Quando se mostra, a curiosidade, quem não gosta do proibido? Eu acho que a droga, certos níveis da droga, tem que ser discutida porque a droga hoje é uma discussão mundial. Você vê, tem hoje do habitat que eu acho legal, você tem conferência do negro, de tudo, mas você não tem uma conferência antidroga, uma conferência mundial para falar dela. Ninguém quer falar, aí o jovem fica curioso. Você fala muito da droga porque hoje o jovem volta para droga porque ele vê muito falar. Quer dizer, hoje se glorifica um bandido, mas não se glorifica um trabalhador. Antigamente, falava muito do trabalhador, eu me lembro do trabalhador padrão, via na televisão, aquilo o maior incentivo, todo mundo queria. Hoje não, o traficante está no auge. Quer dizer, a própria mídia procura fazer isso e o cara se acha o tal, coitado. Então, a realidade não é essa. A realidade é totalmente diferente, é trabalhar, é colocar projeto educacional, saúde, educação, saneamento, dar condições de emprego para essa população, população de jovem. Hoje, graças a Deus, na Rocinha, nós temos alguns projetos e a gente quer ter muito mais. Eu estou surpreso aqui num lugar onde tem um projeto que eu não conhecia, mas, a partir de agora, eu vou tentar me envolver mais para poder ajudar na questão de receber mais as pessoas. Aqui, a gente pode englobar isso. Tem muita coisa acontecendo na Rocinha que a gente mesmo não sabe. Coisas boas que a gente mesmo fica sem saber que estão acontecendo. Isso é legal. Eu acho que tem que trabalhar essa questão da juventude. A juventude hoje está muito perdida e não é questão de só falar do pobre, não. Porque tudo é em cima das costas do pobre. O cara cheirou cocaína, coitado... Não. Não é o pobre. O rico hoje está caindo, porque, na realidade, a questão da droga veio do rico. Não foi o pobre que inventou a cocaína ou que cheira. Eu tinha amigo que eu conheci na universidade que veio falar que o pai dele era bilionário e se arrasou com essa tal de cocaína. Falei: “Mas o que é isso, cara?” “Ah, meu pai se arrasou. Tinha navio, tinha tudo, a gente tinha tudo, uma vida...” “É mesmo? Essa tal de cocaína acaba mesmo com o ser humano? Ih cara, não é bom.” Hoje, ele está numa situação privilegiada, é advogado, amigo, estudou comigo também. Eu diria que eu tive um pouco mais de sorte, eu aproveitei as oportunidades, entendeu? Eu tenho filhos e sempre falo para eles que oportunidades são coisas que não se desperdiçam. Pintou, tem que agarrar com dentes e unhas porque se não, se ela escapar, um abraço. Quando ela vem, tem que segurar mesmo.
P/1 – Você já viu ou passou por alguma história de preconceito, falar: “Esse cara mora na favela.” E ter o preconceito. Conta para gente uma história.
R – Sim. Muito. Eu, por exemplo, nunca tive esse problema comigo até porque eu sempre trabalhei em prol... Depois que me tornei uma pessoa muito conhecida, até hoje sou conhecido, graças a Deus, no mundo porque desenvolvo um trabalho de turismo dentro da comunidade. Sou precursor de turismo na Rocinha, Favela Tour. Eu que fui às agências, fui humilhado nas agências porque eu pedia lá aos donos das agências. “O que tem lá para se conhecer rapaz? Favela...” “Não, mas o pessoal lá de fora gosta. Eles gostam. A favela tem muita coisa boa. 99%, 98% são todos trabalhadores, nem chegam a 2% os que não prestam. Tem muita gente e aqueles que não prestam, a gente tem que trabalhar para que ele também retorne ao trabalho.” Eu acho que esse trabalho do PAC do Governo Federal foi um exemplo que não saiu na mídia, que foi resgatada muita gente que estava na vida do tráfico, que voltou a trabalhar nesse projeto lindo. Cada uma dessas pessoas tem um valor, só que elas se iludiram, acharam que estar na vida errada, é o boi, é uma coisa ilusória. Se contasse já era para ter batido mais de dez mil pessoas que eu já perdi de lá até hoje dentro da comunidade, um número muito grande de amigos que estudaram, que se iludiram por esse lado, quer dizer, não é uma coisa legal, entendeu? Mas a gente teve muitos exemplos, na minha época, eram coisas que eu não queria ser. Eu sempre sonhei em ser alguém, quando eu era pequenininho eu sempre fui muito fã de vários líderes no mundo. Por incrível que pareça, eram todos socialistas, esquerdistas, né? Eu me lembro do que era um grande líder negro chamado Marcus Garvey, Murumba, Malcolm X, Martin Luther King, né? Quer dizer, eram as lideranças que eu tinha na minha cabeça quando era pequenininho, mas era outro idioma, outra língua, sabe? Depois surgiram outros aqui no Brasil, ia estudar um pouco a história do Zumbi dos Palmares, que era uma liderança na época. Fico um pouco triste porque o próprio negro hoje no Brasil, um grande número de negros que essa juventude deveria conhecer... Como várias outras lideranças que nós tivemos no passado, que foram lideranças positivas, líderes como José Bonifácio, como o próprio Getúlio Vargas... São pessoas que hoje essa juventude também não tem conhecimento, não é passado para eles hoje. As pessoas estão muito focadas na questão do que não presta. Parece que o tem que entrar na mídia é o que não presta porque o que presta ficou de lado. Acho que tem que fazer uma reflexão na questão da mídia hoje.
P/1 – Essa coisa do turismo na Rocinha gera então emprego para a galera daqui? Como é que...
R – Também. Mas tinha que se preparar. Hoje tem uma galera boa aqui da Rocinha. Eu sou um guia também, independente disso. Nas horas extras, tem que tirar o pão porque eu ganho na realidade dentro do trabalho não chega a 300 dólares por mês. Eu tenho uma posição privilegiada, para você ver como é o nível, numa posição que eu poderia estar ganhando bem, hoje não passa de 400 dólares por mês. Dois, quatro, seis, oito. Não passa de 400 dólares por mês. Quer dizer, ainda é pelo nível que você tem se ganha isso. Mas eu tenho que ter outros meios para poder... É o turismo que eu levo um para dar uma voltinha, é aquela coisa para poder aumentar a renda porque a família cresceu, né?
P/1 – Qual é o tamanho da sua família?
R – Tudo na minha vida foi incrível. Eu conheci uma mulher num dia e estou com ela há 17 anos. A gente não existe, não deu nem tempo para criar alguma coisa. Eu falei: “Mulher, o que você fez nessa comida que a gente está junto até hoje?” Isso não existe. Você conhece a pessoa hoje e: “Pá e pô...” Tem que criar um clima, mas já estava há dois anos no sufoco. Dois anos correndo na praia, o negócio já estava subindo pelas paredes. A primeira que eu arrumar, meu amigo, vou pedir para casar que o negócio está fogo. Ficar toda hora soltando peão não dá, não. Aí, eu falei não, pelo amor de Deus. Arrumei lá com um colega, um amigão: “Compadre, hoje eu tenho que arrumar, quero uma para casar, entendeu? E tu vais ser testemunha.” Peguei três dançando pagodezinho ali numa subidinha, 25 de dezembro, não esqueço essa data. Três mulheres juntinhas, falei: “Ah, três mulheres junto é brincadeira. Vamos lá compadre.” Mas meu compadre era casado, falou: “Não, rapaz. Vai você porque você está num sufoco, está sozinho.” “Está bom, eu vou lá.” Pedi uma: “Não, eu sou casada.” “Então, tudo bem.” Dançando com outra, eu cochichei no ouvido, ela falou: “Eu tenho namorado.” “Ai meu Deus, tudo bem.” Veio uma sequinha lá, falei: “Essa daí. Essa mesmo. Acho que é essa daí, mas tudo bem”. Cheguei em cima dela, no ouvidinho: “Aí pretinha, pelo amor de Deus, você não quer casar comigo, não?” “Está falando sério?” “Ô minha filha, não fale nem que eu estou falando sério, estou falando mais do que sério.” “Está bom.” Ah! meu Deus, falei: “É uma beleza.” Eu estava morando na Barra, mas doido para morar na Rocinha porque a gente mora fora, mas sente aquele calor. Eu estava morando bem, na beira praia, 50 metros da água. Eu falei: “É o seguinte, vamos para lá...” Mas eu estava no sufoco, eu bebi da água aí já perdi tudo, né? Ela falou: “Pô, mas não posso porque eu tenho três filhos.” Falei: “Três filhos? Sério? É mesmo? Ah, meu Deus do céu, mas já bebi da água, adorei. Então, minha filha, é contigo que eu vou ‘emburacar’.” Chamei para morar comigo, ela falou: “Não. Eu moro aqui.” “Minha filha, sério? Então, é o seguinte, eu vou mudar para cá.” Mudei para a casa dela, mas ela ficou assim meio... Porque ela estava um ano, um ano e pouco viúva. Fiquei junto com ela e tal, chegou um tempo ela falou: “Sabe, é o seguinte...” Eu estava bem rapaz, eu bebi da água, namorando, sabe aquela coisa “Uma semana e meia de amor”? Você já assistiu a aquele filme “Nove e meia semanas de amor”? Eu estava naquele pique, nove semanas de amor. Ela falou: “Sabe qual é? Não dá.” “Pelo amor de Deus. Não dá? Não faz isso comigo, não.” Eu falei: “Meu Deus do céu, vou voltar para o mesmo lugar no sufoco.” Voltei, comecei a correr na praia de novo, ia até o Recreio e voltava: “Meu Deus, a mulher sequinha, logo quando eu arrumei a danada. O que está faltando em mim? Será que eu fui ruim? Eu fiz alguma coisa de errado?” Estou lá em casa, dali a pouco bate ela, 15 dias, um mês. Um mês depois, bateu ela: “Eu quero você.” Falei: “É mesmo? Mas você não vai me botar de novo para fora, não?” Estou com ela até hoje. A coisa foi assim, uma loteria que eu ganhei, sabe? Por isso que eu acho que o amor é legal, mas as pessoas hoje criam muito a questão do... Apesar de que hoje está todo mundo com medo, não sabe qual é, mas eu não tinha nada. Sabe quando você está no deserto? Eu falei: “Eu tenho sorte.” Deu-me um filho lindo e eu criei os filhos dela até hoje. Tem um que fala inglês, meu pequeno fala italiano. Chegou recentemente da Itália, fazia curso de Cameraman, trabalha com câmera, trabalha com tudo. Eu o coloquei dentro no projeto, a gente vai caçando, não pode deixar o nosso filho sozinho. Eu acho que na favela tem que ocupar muito o tempo do jovem porque se ele fica com a cabeça vazia, já viu como é. Não é só do jovem, não. Eu acho que é geral. Falar só do jovem também não é legal, mas se você fica com a cabeça vazia, aí já viu. Cabeça vazia é um trampolim para o diabinho entrar, né? Então, a gente procura ocupar o tempo deles todos. Eu, por exemplo, nem respiro, não tenho tempo para nada. Eu trabalho tanto que nem dá tempo para ganhar dinheiro. Você trabalha tanto que tu também esqueces, está trabalhando, mas tem que ganhar dinheiro.
P/1 – Última pergunta que eu queria fazer para você antes de finalizar a entrevista...
R – À vontade. Não sinta vergonha, não. Só não fala sobre sexo que é coisa que eu não faço. [risos]
P/1 – É mais fácil do que isso. Qual é seu sonho para Rocinha?
R – Cara, eu acho que meu sonho... Você fez uma pergunta que realmente me tocou, sabe? A gente que está aqui sabe que a luta é muito grande, mas meu sonho é uma Rocinha mais organizada, que as pessoas se juntem mais, que as lideranças pensem em prol do outro. Porque só pensando assim é que eu acho que se a gente não crescer, a gente faz pelo menos as pessoas crescerem. Não espero que a Rocinha não seja uma comunidade muito egoísta, porque infelizmente o capitalismo acaba atingindo a comunidade que ainda não está muito estruturada nesse aspecto. Mas eu sonho, já posso dizer, para quem chegou numa Rocinha onde tinha que comer no lixo para sobreviver, hoje, graças a Deus, não precisa disso. Eu oro e sei que eu vou partir dessa vida, mas onde eu estiver uma coisa é certa, eu vou estar sempre olhando pela Rocinha. Eu acho que foi muita luta para a gente chegar onde a gente chegou hoje. Vocês até me desculpem no final, você ter feito essa pergunta para mim. Mas eu sonho ainda que ela vai ter muito que evoluir, as pessoas vão ter que ter essa consciência de lutar pelo próximo, eu acho que a gente está deixando muito isso de lado. A gente teve uma formação católica, religiosa, não digo só católica... Acho que é isso que eu sonho para a Rocinha, sabe? Eu acho que eu tenho tudo, em nível espiritual, Deus tem dado para a gente, mas eu acho que a comunidade tem que estar pensando nisso, entendeu? As pessoas que são líderes daqui de dentro que pensem na moradia, que procurem lutar por melhores condições para a nossa comunidade. É isso que eu tenho. Eu não sei se eu vou viver isso, mas eu tenho certeza que os meus filhos viverão. Enquanto pai, enquanto amigo, eu procuro passar isso para eles. Eu peço desculpas a isso. Mas é isso que eu quero, que eu sonho... Ver a Rocinha onde não tinha nada, nada, nada, nada. A gente tinha que correr, muitas vezes, para o mato para fazer armadilha para comer animal, comer os animaizinhos. Mas faz parte da sobrevivência. A pobreza é uma coisa muito triste, só quem passou por ela sabe o que significa. Você não ter o que comer dentro de casa... Mas eu sempre lutei, batalhei para poder tudo. A coisa que mais me assusta é a fome. Eu trabalho mais para comer. Tem uma coisa que eu vou levar comigo que é a questão da fome. O ser humano tem que estar muito mais voltado para a fome porque se você analisar bem, a diferença entre o rico e o pobre está na alimentação, não está na questão da escolaridade, na forma de vida. Porque muitos deles foram pobres, não estudam, mas sabem ganhar dinheiro. Então, acho que se você se alimentar com os alimentos prováveis para o organismo que podem afetar todos os órgãos do organismo, da inteligência e tudo, você vai disputar campo a campo. Mas se você não tiver alimentação, saúde, saneamento, como é que você vai querer alcançar com quem tem tudo isso? Como é que você vai ter um governo que sempre comeu do bom e do melhor, como é que ele vai entender que o povo precisa disso? Como é que o cara que cursou tudo aquilo vai entender, na cabeça dele, que ali tem um cara faminto... E o que você vê, muitas vezes, os caras passam e não estão nem aí porque não tiveram essa formação, não sabem o que é isso, entendeu? Mas eu não me parabenizo, porque eu não gostaria de passar por isso, mas eu acho que isso foi uma lição de vida para mim, para eu poder entender o futuro, de poder passar alguma coisa. Isso que eu tenho, procuro ajudar, compro cesta básica para um, não que eu vá ser político ou sei lá, até porque eu tentei, ganhei muitos votos, mas eu acho que não é isso. Vou continuar ajudando sem ter ambição porque chegar lá é uma loucura mesmo, é corrupção em cima de corrupção. Não adianta dizer: “Ah não...” Eu como candidato, vieram candidatos oferecer dinheiro. Eu nunca vi cem mil na minha frente, mandaram contar. Falei: “Não. A política não se faz...” Outros 600 mil. E são políticos de nome que tentam comprar você, é questão de formação, eu tive essa formação. Eu não tive nada na vida. Hoje, eu já tenho a família, tenho como me alimentar e alimentar minha família, ajudar mais as pessoas. É o que eu vou poder levar e acho que meus filhos vão ter que lutar para também conquistarem os espaços deles que não será fácil. Tem toda uma questão de não querer errar, tem a questão de raça também que a gente passa, a gente sofre, mas que a gente não pode se revoltar, tem que dar a volta por cima. Eu vou declarar às pessoas, eu sou uma pessoa revoltada, porque ainda tem essa mágoa dentro da gente, das revoltas, de levar tapa na cara de polícia. Se eu fosse outro, seria bandido porque muitas vezes levei tapa do nada, não fazia nada, simplesmente porque morava na favela, sabe? Foram revoltas mesmo do meu tempo que marcaram a gente, mas que eu falei: “Não adianta eu pegar essa revolta, pegar uma arma e vou matar, mas vou morrer também. Vou colocar essa revolta toda dentro do conhecimento que é chamado livro.” Então, eu leio... Agora, esse ano eu terminei um livro chamado “Políticas urbanas no Brasil”. Tem outros livros que já estão na fila, que é um livro com quase 800 páginas sobre religiosidade que eu vou pegá-lo agora, acabando esse. Depois, tem outro do Brasil contemporâneo, o racismo contemporâneo, são vários outros livros que a gente tem. Tem outro de Pablo Munhoz que é um escritor espanhol que também está lá na lista. Eu vou embora, entendeu? Não sou intelectual, não sou uma pessoa que só fica falando. Não é, sabe? É muito difícil para a gente. Eu estudei num colégio público na época da ditadura, alguns professores sumiram do nada, ganhei bolsa de estudos, fui estudar num colégio público, rico. Lá também sumiu professor, quer dizer, não tem diferença. Sumiram com o professor. Organização Social e Política Brasileira (OSPB) era uma aula que todo mundo adorava. Eu lembro quando era dada por um cubano e era a aula que todo mundo lotava a sala porque o cubano falava muitas coisas que não poderia falar naquela época. Também sumiu. São coisas que marcaram a minha vida, uma revolta de... Hoje não, meus filhos não têm mais essa questão, deles curtirem, estão estudando, mas eu sou uma pessoa muito estreita na educação dos meus filhos. Eu educo da forma que eu fui educado e está dando certo. Se eles gostando ou não, o problema não é esse. As coisas estão dando certo para eles e é assim que tem que ser. Eu acho que tudo tem seu tempo, tudo tem seu limite. Tudo tem seu tempo, não adianta avançar e os jovens hoje, coitados, estão perdidos, meu amigo. E está todo o mundo também preocupado em também ter trabalho para poder explicar, porque a mãe tem que trabalhar, o pai tem que trabalhar. O rico que tem uma condição, mete o dinheiro dele, dá para o filho, fica no shopping o dia todo, já não dá trabalho para ele que está lá, dentro do shopping, também não sabe o que está fazendo. Entendeu como é que é? São situações que a gente tem que trabalhar, a mãe tem que trabalhar, o pai tem que trabalhar e onde vão ficar as crianças? Vão ficar um pouco jogados? Aqueles que têm certa condiçãozinha pagam uma crechezinha, fica a criança lá. Mas e quem não tem? É uma loucura, deixa o filho jogado, o filho para lá, filho revoltado porque a mãe volta... As crianças se revoltam. Então, você tem que cobrir tudo isso. Eu sou avô e passo pela mesma situação, mas eu tenho que dar uma atenção ao neto. Se falta da mãe, eu tenho que cobrir, eu acho que os avôs têm que dar essa... Porque depois vai ser uma revolta muito triste, quando eles crescerem. Tudo bem, tem que curtir mas tem que ter cuidado, tem tudo de bom e tem tudo de ruim. Se tiver muito do lado ruim procura estar no bom porque isso pode refletir lá na frente. Então, o jovem, hoje, eu fico vendo na televisão eles falando o negócio da gravidez. Porque antigamente era falta de estrutura, hoje a psicóloga diz que a menina que quer ficar grávida quer mostrar para outra que é mais madura. Eu não entendo mais nada. Eu acho que é falta de orientação mesmo. O negócio da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) mata. Aí, fazem um comercial que coloca no coitadinho um negócio no peru, aquele glugluglu, aquele pássaro. Colocam a camisinha no bagulho do peru, coitadinho, ele vai morrer, né? Ele vai morrer sufocado, coitado, mataram o peru no comercial, nunca vi isso. Colocaram o negócio, prenderam e o peru caiu, não tinha ar. São coisas que, enquanto em alguns países fora o negócio mata, tem que mostrar o cara lá morrendo, seco. Aí nego vai se conscientizar, mas enquanto não mostrar... E parece que a AIDS acabou no Brasil, ninguém comenta mais nada e nego está indo fundo, meu amigo. Porque a AIDS não tem cara. Tem que falar com esses jovens? Tem. Morre mesmo? Morre. Se mostrar a realidade, nego cai na real, mas se você não mostra, fica escondendo... No Brasil tem muito essa questão de se esconder, tem a questão da religião, não pode, porque não tem. Como é que uma religião é a favor de estar todo mundo na boa? Que religião é essa? Será que ela quer ver o bem da humanidade? São coisas que têm que ser discutidas no mundo. O mundo tem que discutir isso e o futuro desse país está nas mãos dos jovens como na minha época que eu via muitos hippies: “Esses vão ser os presidentes de amanhã.” E foram. É que ninguém quer falar da sua vida. Fale Bill Clinton que não era hippie ontem, o Reagan que era hippie ontem. Era uma galera que era hippie, que se tornaram presidentes do país. Quer dizer que a gente tem que ter essa consciência de trabalhar essa juventude, porque eles que vão assumir isso aí. Eu falo com os meus, o sonho que eu tive eu estou alcançando. É poder estar vivo para poder contar uma história, estudar, continuar estudando e acreditar que eu ainda sou um menino para poder ter aquela vontade de vencer. Passei muitas coisas em relação à minha vida, superei. Teve o caminho do bem e o caminho do mal. Aquele negócio de cair na droga que é um resultado, falei: “Não é por aí. O caminho não é esse.” “Ah, mas, é uma onda legal.” Não é uma onda legal, daqui a pouco, eu vejo gente maluca andando para lá e para cá, caída aí. Isso não é onda legal. São coisas que, graças a Deus, eu não deixei me afetarem, que me atingissem, mas a pressão era grande. E não conheci essas coisas dentro da favela, não. Conheci fora. Fora da favela que foi o conhecimento dessas coisas. Falei: “Como pode isso?” É uma coisa que é grana, que gera grana e não tem ninguém para proibir ou liberar, mas fiscalizar. É uma corrupção muito grande. Ninguém: “Opa, não. Deixa aí.” A maconha está aí, mas ninguém quer liberar, entendeu? É uma erva? Não fumo, não bebo, não tenho nada a ver, mas é uma coisa que no mundo está curando muita coisa. No Brasil, está enterrada ali na corrupção, deixa passar, dou um dinheiro aqui. Então acho que isso teria que ser discutido. Não questão de liberar, mas como é que vai liberar. Tem que se discutir. Essas questões que prejudicam a sociedade, a gente tem que entrar mais fundo para discutir sobre elas, porque elas estão nos atingindo. O índio já participava dela há muitos anos. Hoje, está se dizendo porque chegou na cidade esse tal de Santo Daime, onde os índios já bebiam isso lá dentro do Amazonas, é o que eles fazem até hoje no ritual deles que chegou na cidade. Agora, recentemente, o cara matou não sei o porque... Mas já coloca a culpa no negócio. De repente, não é uma questão só daquilo, é uma questão social do cara, o cara vem da classe média, mas todo mundo se revolta com o cara. O cara também não dá oportunidade, porque na classe alta é assim, tu erraste, não tem retorno. Rico é assim. Tu erraste você é a ovelha negra da família, não tem mais nada a ver. Eu já vivi isso com família rica. O cara me adorava, o cara me amava, eu o trouxe. Falei: “Não, cara. A gente vai ter que conhecer a tua realidade, trazê-lo para a comunidade.” Ele: “Pô, mas estou muito fora, estou aqui na Vieira Souto, de frente para o mar, mas eu não estou vendo outras realidades.” “Vocês nunca vão poder ver, porque a realidade é outra.” Aqui é uma realidade, mas a gente também tem que viver outra realidade. Só que quem está aqui pouco vive aqui e quem está aqui também não quer viver lá. Não é que pouco vive lá, é que não querem viver lá. A informação que ele tem é outra. A formação e a informação são outras, então: “Quem mora na favela não presta, quem mora na favela é isso...” Mas não sabe que na favela tem coisas muito interessantes. Hoje, eu não precisaria morar na favela, mas eu moro porque tenho raiz, construí uma raiz aqui, construí uma família, entendeu? Construí uma história e ainda estou construindo, espero poder construir mais e poder passar mais exemplo para todas as pessoas. Hoje tem um número de crianças, você vai ver que loucura. É pela luta que a gente fez e deu caminhamento essa juventude toda, né? O último trabalho que eu fiz agora bateu 17 mil. Eu nem sabia, fui saber pelo Presidente da República quando me chamaram agora para receber um prêmio em São Paulo. Recebi um prêmio com todo orgulho e lá eu fiquei triste comigo mesmo, comecei a chorar ao invés de eu falar. Cheio de autoridades lá, ministros e eu falei: “Meu Deus do céu, isso não é para mim, não. Isso é para a comunidade da Rocinha. Isso é para aquelas crianças que me colocaram nesse...” Então quer dizer, são coisas que a gente tem para passar. Graças a Deus, o que teve em mim foi essa vivência minha, ter passado pelo interior, aquela riqueza. Morei... Não fui fazendeiro, mas montei a cavalo... Se eu contar a história... Eu mudei para o interior, meus avós moravam lá já e levaram a gente para lá, para a Serra da Bocaina: “Vou arrumar um trabalho aqui.” Fui trabalhar, mas não tinha ninguém, cidade vazia, só tinha boi, vaca, cavalo. O cara arrumou um negócio numa fazenda, eram 15 quilômetros para chegar até a fazenda, eu andava até lá. Tinha que chegar lá às seis horas, eu saía mais ou menos umas três e pouco, quatro horas e ia andando. Comecei a trabalhar, tirar leite, aprendi com os caras tirando leite, falei: “Legal isso aí, mas poderia ser muito mais...” Vi os bezerrinhos mamando nas vacas, falei: “Ah meu Deus do céu, que bonito, né? Será que se eu mamar também será que ela...” De repente... Fui fazendo amizade com a vaca, levava comida para ela, colocava na boca, mas na intenção de ir no peitinho porque eu vi um bezerro, aqueles peitões todos. Falei: “Vou cair...” Fui dando trato nela lá no curral. Falei: “Vou dar para ela no curral.” Dava na boquinha: “Toma vaquinha.” Vaquinha malhadinha... Só que eu morava no Ribeirão, e as vacas ficavam no pasto lá. Eu olhava para ela, levava comidinha na boca dela, ela já estava deitada: “Ah meu irmão, vou cair para dentro.” Fui lá ao Ribeirão, peguei uma... Falei: “Vou fazer um teste.” Peguei uma lata leite Glória, enchi de água, levei sabão de coco, que a avó fazia em casa. Lavei os peitos da vaca todinhos e a vaca já me conhecia, né? Ah, meu irmão, não dava outra coisa. Coloquei a lata debaixo, sentei, caí para dentro da vaca. Mamava nela... A vaca estava com o peitinho, caí, mas que vontade rapaz. Chegava à tarde, eu ia pegar leite lá no mesmo lugar, sabe? O cara falou: “Ué, essa vaca, o que está acontecendo com o peito dessa vaca?” Eu sabia que o bezerro era eu, né? “Está muito seco.” Eu ficava na minha, não falei nada. Ele: “Cara, aquela cobra preta.” Preta ele já entendeu que era eu, falei: “Será que é comigo?” Mas eu não sou cobra. É tem uma cobra no campo que realmente ela mama, ela tem um rabo tipo tesoura e ela leva muita grama, ela dá a volta, como ela é grande, coloca na vaca e ela cai para dentro. Eu já cansei de ver essa cobra, mas eu falei: “Jesus...”. Mas não estou nem aí, eu comecei a me apaixonar pela vaca e a vaca gostou de mim. Ele foi e passou alho, meteu alho no peito da vaca. Eu: “Mas alho? No peito da vaca? Para que isso?” Mas tudo bem, ficava na minha e voltava para casa. Chegava lá no rio aquele peitão, a vaca duas e meia da tarde, eu chegava 11 e pouco ao meio dia, ela já estava no pasto. Eu vou de novo, meu irmão, a vaca me amarrou. Lavei direitinho, estou eu lá de novo... Quase não passava gente lá, né? Às vezes, passava longe, eu estava perto do Ribeirão, caía para cima da vaca. Secava a vaca todinha, mas minha avó nem meu pai sabiam. Mas, na terceira vez, eu me dei mal. Eu fechei os olhos, nunca mamei de olhos fechados, um dia eu estou lá e tal e o cara me viu. Cheguei a dormir no peito da vaca. Aí o cara me viu: “Sai daí seu desgraçado!” Saí voado. Voltou o seu Roque e eu com medo de pegar o leite. Eu falei: “Mas eu não vou pegar o leite agora de tarde, não, porque não estou me sentindo bem.” Quem vai pegar o leite da tarde? Porque eu pegava de manhã e pegava à tarde para gente, a gente ganhava dois litros de leite, eram quatro litros de leite que a gente ganhava por dia. Meu avô foi lá: “Cadê o desgraçado do Pelézinho?” “Que é isso? O que houve seu Roque?” “Encontrei ele mamando na vaca.” “É mesmo? Meu neto mamando na vaca? É mesmo? Ah não.” Aí chegou em casa meu avô arrumou a cinta, puxou logo assim: “Vem cá, quero falar contigo.” “O que, vovô?” “Você está mamando...” “Eu mamando na vaca?” “Seu Roque falou que te pegou mamando na vaca e saiu correndo.” “Laft!” Deu-me uma surra. Também nunca mais quis mamar na vaca, não mamei mais, eu olhava sempre para ela e o bezerro mamando... Até que um dia, eu morava perto do curral, a vaca morreu eletrocutada. Cara, eu chorei muito, sabe? Mas eu chorei muito e a carne o pessoal queria comer. Meu avô foi lá pegar um pedaço da carne eu falei: “Eu não quero a carne, não. Não quero a carne dessa vaca, não.” “Mas por quê?” “Não vovô, dessa vaca não.” Ele desconfiou que era a vaca que eu tinha mamado. “Então, tu mamaste nessa vaca?” “Não. A questão não é essa, vovô.” Isso eram travessuras nossas que a gente fazia quando era criança, sei lá, travessuras legais, né? Quer dizer, eu me apaixonei pela vaca porque eu achava que aquele bezerro podia dar a vaca, sabe? Maior bezerrão, bicho grandão mamando ainda, eu falei: “Eu nunca mamei, vamos ver...” Minha mãe falou que eu era chato para mamar, larguei o peito muito cedo... Tinha só história de infância nossa que eu ficava... Nesse lance, fui trabalhar nesse lugar. Eu pegava as boiadas quatro e pouco da manhã, parei. Aí o senhor Coisa falou assim: “Vou te dar um cargo maior, Pelézinho. Tu vai levar o leite todo dia...” Eram quase dez quilômetros que eu tinha que levar dez daqueles latões de leite. Colocava lá no lugar, estou andando com um burro, né? Burro está indo comigo. Um dia, rapaz, no meio do caminho eu parei assim e falei: “Quer saber de uma coisa burro? Porque eles botam esse negócio nos seus olhos? É uma sacanagem.” Eu molequinho, né? Falei: “Olha, nós vamos andar...” Tirei a viseira do burro, já estava mais adiantado, cara, não é que deu uma loucura no desgraçado do burro, falei: “Pelo amor de Deus.” O burro tomou a direção do pasto da fazenda, voltou e me deixou a pé. O burro voltou para o curral. “Pelézinho, o que é...”. E eu com o negócio, o burro todo arriado, né? Com aquela viseira. “Pelézinho, o que é que você armou, dessa vez?” Falei: “Não foi nada, não armei nada, eu simplesmente tirei a viseira.” “Pelézinho, não é para tirar a viseira dele justamente que é para ele só olhar para lá. Tu deste visão para ele que enlouqueceu.” Era o senhor João, senhor João gente boa. Até hoje eu vou até lá porque meus tios têm coisa lá e as minhas férias, quando eu posso passar, eu vou a Serra da Bocaina. Eu me lembro muito disso, né? São coisas que eu fiz, coisas de criancinha mesmo, o que aconteceu comigo foi coisa de inocência da minha infância. Eram essas coisas que a gente faz, essas travessuras, mas tranquila. Quando chegou na cidade, não. Já era coisa de trabalhar, aquela coisa toda, não deu tempo de... Porque eu era muito orientado, a minha avó me orientou muito na vida, né? Ela diz que nossa vida não é tão triste assim, a gente tem o B e o M na nossa vida e a gente tem como escolher. Você tem o B que significa Bom e o M que significa Mau. Então, é só você escolher esse caminho que você vai...
P/1 – Amendoim, eu queria deixar um convite de coração aberto pra você ir pra São Paulo, ou a gente estiver aqui, gravar essa história inteira, a gente sentar com calma duas, três, quatro horas, ficar contando histórias de fazenda, história... Vai ser muito interessante assim...
R – Essas coisas que ninguém aqui conhece, né?
P/1 – A gente queria muito mesmo. Só não tem como fazer isso agora porque a gente está mais na...
R – Não. Mas tudo bem, vai ficar com o meu telefone se der eu vou lá. Me dá uma condição de eu cair lá numa caxanga lá...
P/1 – Claro. Mas a gente quer agradecer muito, obrigado por você ficar esse tempinho com a gente, foi muito bom, foi muito boa a entrevista. Adorei. Obrigado, Amendoim.
R – Estamos juntos, irmão. Estamos aí, amigo.
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