P/1 – Boa tarde, Raí.
R – Boa tarde.
P/1 – Pra iniciar eu queria que você dissesse seu nome completo, o local e a data de nascimento?
R – Raí Sousa Vieira de Oliveira, eu nasci em Ribeirão Preto, interior de São Paulo no dia 15 de maio de 1965.
P/1 – Qual é o nome dos seus pais?
R – Raimundo Vieira de Oliveira, já falecido há uns cinco anos e Guiomar Sousa Vieira de Oliveira, minha mãe ainda mora em Ribeirão Preto.
P/1 – Você chegou a conhecer seus avós?
R – Eu tive pouco contato, eu conheci a minha avó por parte de mãe, mas ela morava em Belém do Pará e também faleceu quando eu era muito pequeno. E meu avô por parte do meu pai, Artur, que era de Fortaleza também, a gente se via nas férias e também eu devia ter uns doze anos quando ele faleceu assim, eu não tive muito contato com os avós não.
P/1 – E seus pais nasceram em Fortaleza e Belém ou em Ribeirão Preto?
R – O Sóstenes deve saber muito mais do que eu, porque de seis filhos eu sou o último, né? Então a história eu ia pegando de orelhada assim. Mas o meu pai é de Messejana que na época era uma cidadezinha e hoje é um bairro de Fortaleza e minha mãe de Belém do Pará, viajou, morou em vários lugares lá, mas nasceu em Belém do Pará.
P/1 – E como eles se conheceram você sabe?
R – Eu estou cavando as histórias da minha mãe, o meu pai se mudou... Me falaram que meu pai passou num concurso público e foi trabalhar em Belém e aí já tinha, acho que quase trinta anos e na época era raro, né? Porque solteiro nessa idade e minha mãe também mais de trinta anos, aí se conheceram em Belém, meu pai mudou pra Belém pra trabalhar.
P/1 – E eles se casaram em Belém do Pará mesmo?
R – Acho que sim, eu sei que eles casaram no Pará, mas eles moraram uma época no interior, mas eles se casaram em Belém.
P/1 – E seu pai se transferiu de Fortaleza pra Belém por...
Continuar leituraP/1 – Boa tarde, Raí.
R – Boa tarde.
P/1 – Pra iniciar eu queria que você dissesse seu nome completo, o local e a data de nascimento?
R – Raí Sousa Vieira de Oliveira, eu nasci em Ribeirão Preto, interior de São Paulo no dia 15 de maio de 1965.
P/1 – Qual é o nome dos seus pais?
R – Raimundo Vieira de Oliveira, já falecido há uns cinco anos e Guiomar Sousa Vieira de Oliveira, minha mãe ainda mora em Ribeirão Preto.
P/1 – Você chegou a conhecer seus avós?
R – Eu tive pouco contato, eu conheci a minha avó por parte de mãe, mas ela morava em Belém do Pará e também faleceu quando eu era muito pequeno. E meu avô por parte do meu pai, Artur, que era de Fortaleza também, a gente se via nas férias e também eu devia ter uns doze anos quando ele faleceu assim, eu não tive muito contato com os avós não.
P/1 – E seus pais nasceram em Fortaleza e Belém ou em Ribeirão Preto?
R – O Sóstenes deve saber muito mais do que eu, porque de seis filhos eu sou o último, né? Então a história eu ia pegando de orelhada assim. Mas o meu pai é de Messejana que na época era uma cidadezinha e hoje é um bairro de Fortaleza e minha mãe de Belém do Pará, viajou, morou em vários lugares lá, mas nasceu em Belém do Pará.
P/1 – E como eles se conheceram você sabe?
R – Eu estou cavando as histórias da minha mãe, o meu pai se mudou... Me falaram que meu pai passou num concurso público e foi trabalhar em Belém e aí já tinha, acho que quase trinta anos e na época era raro, né? Porque solteiro nessa idade e minha mãe também mais de trinta anos, aí se conheceram em Belém, meu pai mudou pra Belém pra trabalhar.
P/1 – E eles se casaram em Belém do Pará mesmo?
R – Acho que sim, eu sei que eles casaram no Pará, mas eles moraram uma época no interior, mas eles se casaram em Belém.
P/1 – E seu pai se transferiu de Fortaleza pra Belém por quê? Ele era concursado público, ele fazia o quê?
R – O meu pai ele... Tem uma história bem interessante, ele é autodidata, parou de estudar cedo só que naquela época os concursos públicos não exigiam diploma, né? Então ele lia muito, era muito inteligente, então ele começou e segundo a última informação que eu tive que era um concurso do Correio se não me engano e aí era a maneira dele subir na vida, de ter oportunidades, era através do estudo, porque ele gostava de ler, gostava de estudar. Então ele achou uma boa saída que eram os concursos que ele tinha facilidade.
P/1 – E por que eles foram pra região de Ribeirão Preto? Você sabe?
R – O meu pai foi fazendo vários concursos e aí ele entrou como fiscal de imposto de renda e ele passou num concurso federal que é raro, talvez o único que passou, que já era um cargo mais importante na hierarquia e ele aí podia escolher... Ele foi transferido pro sudeste e podia escolher a cidade e eu acho que ele escolheu Ribeirão Preto porque tinha alguns amigos que moravam em Ribeirão Preto que também vieram do nordeste e ele também era fiscal lá no nordeste. Então conhecia muita gente ali e vários deles, alguns bons amigos tinham ido pra Ribeirão Preto e tinha a questão do clima se não me engano, e o calor que era bem parecido que o levou pra lá.
P/1 – E nessa ocasião da transferência deles...
R – Eles tinham quatro filhos já.
P/1 – Quais eram os quatro?
R – O Sócrates, o Sóstenes, o Sófocles, o Raimundo, o Raimundo nasceu lá, mas veio bem bebê e em Ribeirão Preto nasceram Raimar que é o quinto e depois eu que sou o sexto e último, né?
P/1 – E me fala uma coisa, Raí, por que esses nomes?
R – O meu pai como eu falei sempre gostou muito de ler, ele sempre foi um personagem muito interessante e diferente e ele ia procurando assuntos que interessavam. Ele tinha fases assim, ele teve a fase do Freud, teve a fase de aprender inglês que era horrível o inglês dele, o inglês de autodidata, mas eu lembro que ele ficava citando Freud e deve ter sido a mesma coisa que Napoleão, teve as fases dele. E ele foi estudar filosofia antiga e se encantou com os personagens e consequentemente com os nomes, né? Nordestino geralmente tem mania de inventar nome e tal, acho que ele viu um nome inventado e bom, diferente, já colocou.
P/1 – E você sabe por que o seu nome saiu dos filósofos?
R – Segundo conta a história da família lá que minha mãe falou: “eu não aguento mais, vamos parar, eu não consigo mais chamar meus filhos, vamos parar com essa palhaçada” a paraense ela ficava ali e parecia submissa, mas quando ela gritava, ele respeitava, né? E aí ele mudou e botou nome de Raimundo que é o quarto que é o nome dele, Raimundo Filho, o Raimar que é uma mistura, continuou inventando, é uma mistura de Raimundo com Guiomar, então pegou o começo de Raimundo e o final de Guiomar. E Raí que é o princípio de Raimundo, né? Eu gostei, acho que eu dei sorte nessa invenção toda, porque podia ter sobrado um bem pior. Eu tenho uns amigos que têm uma história muito engraçada, eles falam que eu dei muita sorte, eu falo: “porque eu podia ser um filósofo?” “Não, porque se seguisse a lógica do quinto filho que é Raimar, você deveria se chamar Guiomundo” que é o que sobrou dos dois, né? Então eu dei muito mais sorte do que imaginava, né? Guiomundo a carreira tinha acabado, o futebol acabava ali, ninguém consegue vencer com um nome desses, né?
P/1 – E me fala uma coisa Raí, você lembra... Eu queria que você falasse um pouquinho da casa onde você nasceu e se você se lembra da casa onde vocês moravam?
R – Minha mãe mora na mesma casa até hoje.
P/1 – E como é que é essa casa? Conta um pouquinho pra gente?
R – Então essa casa foi eu acho que a primeira casa própria em Ribeirão Preto pelo menos, eu acho que no norte também não tiveram, foi a primeira casa própria do meu pai que foi construída mesmo. Então ele já tinha os seis filhos, tinha cinco, eu já nasci nessa casa. Aí ele comprou um terreno numa região, naquela época ele já estava melhor de vida, numa região mais afastada da cidade que hoje não é, obviamente, ele deu sorte porque hoje é uma região super valorizada e era uma região com poucas casas, né, na época e ele construiu assim, chamou até parentes pra ajudar a construir, porque construiu literalmente tijolo por tijolo e tal, mas foi uma casa bem planejada que tinha os quartos dos filhos, um quarto de visita, porque sempre vinham uns parentes, né? E tinha um terreno do lado também que eu não sei exatamente por que ele guardou e ele acabou sendo útil porque ele construiu uma edícula ali, então passaram tios, irmãos, eu mesmo morei lá um tempo, acabou sendo útil. E também acabou sendo um lugar de esportes, porque dava pra gente brincar bastante. Então foi bem planejado assim pra essa família grande e a sensação que eu tenho é de uma coisa bem... No sentido mais profundo e amplo da palavra era uma coisa que era parte deles, acho que pela dificuldade de construir e tudo. Então a imagem que eu tenho de criança é muita segurança assim.
P/1 – E me fala, Raí, como era o cotidiano nessa casa? Vocês quando criança, qual era o cotidiano? Seu pai saindo pra trabalhar, conta um pouquinho pra gente como era o cotidiano de vocês. uma família com seis filhos e seis homens, né?
R – Na minha época... Eu tenho onze anos de diferença pro Sócrates, né? Então vamos pegar assim, eu com cinco anos o Sócrates já tinha dezesseis, então já estava começando a se destacar no futebol, ele entrou na faculdade de Medicina e logo vieram os outros que também foram pra faculdade e o Sóstenes foi estudar em São Carlos e o Sófocles em Brasília. Então ele tinha que gerar mais renda, então ele viajava muito pra ganhar diária, né? Trabalhar fora, outras fontes de renda no próprio emprego, mas que ele acabava economizando as diárias pra poder manter os filhos estudando, a escola pública já estava começando a cair a qualidade. Então ele fez esforço de colocar em escola particular, tinha um que ia pra Mateus Filho pagar apartamento porque não trabalhavam ainda. Então na minha época com seis filhos teve um período que ele viajou bastante, mas ele era muito forte assim, uma presença muito forte, assim, mesmo fora, ele falava bastante por telefone através da minha mãe e tudo. E o período que ele estava em casa, ele passava o dia trabalhando e a noite ele ficava com os filhos um pouco e tal, no momento de jantar, geralmente fim de semana, jantares assim a gente se reunia, minha mãe gostava muito. E tinha essa coisa de estudar, porque aí ele ficava pro jantar e geralmente lá pelas onze horas, ele ia pro escritório que era do lado do meu quarto e ficava lá lendo até as duas da manhã e tudo, que era uma das coisas que ele mais gostava de fazer. Então tinha esse cotidiano dele, a minha mãe em onze anos entre eu e o Sócrates, ela teve seis filhos e perdeu quatro, né? Quatro abortos naturais, então em onze anos ela ficou dez vezes grávida, ela não podia trabalhar, mas tinha sido uma decisão deles consciente. Então minha mãe era mãezona mesmo e eu tenho essa imagem de uma coisa super trabalhosa pra minha mãe, meu pai era meio machista, então os filhos tiveram uma criação machista assim no sentido de não ajudar muito em casa e tudo. Então almoço era aquela loucura, eram todos grandes, todos comiam muito e ele tinha essa preocupação com minha mãe também de saúde, de comida natural, então suco era natural, a comida tentava ser o mais saudável possível, mas essa coisa do suco natural, imagina fazer suco pra todo mundo, né? Todo dia suco natural, então a gente tinha aqueles espremedores de laranja industrial, né? E aí a gente começou... Na minha fase a gente já começava a ajudar minha mãe, assim, os irmãos começaram a se tocar um pouco. Mas era sempre essa coisa gostosa, pros filhos era muito gostosa, era muito trabalhoso, mas muito gostosa de... Sempre muita gente, almoço muita brincadeira, aí terminava o almoço e ia jogar pingue pongue na mesa de almoço e sempre muita gente, né? Sempre muito movimento.
P/2 – Você falou um pouco das brincadeiras, quais eram as brincadeiras prediletas? Assim nessa fase de criança, antes de se tornar adolescente? Como era essa convivência, por exemplo, você falou que vinham muitos familiares, né? Conta um pouquinho pra gente?
R – Meu pai nunca gostou muito de viajar, né? Acho que por isso também dessa coisa do lar ser uma referência pra família inteira, o meu pai sempre que pudesse evitar, ele ia pra férias ver parentes, mas uma vez por ano e olhe lá. Ele não gostava de viagens de turismo, ele sempre preferiu receber, então os amigos iam muito lá em casa, tem uma coisa marcante mesmo da varanda, tem uma varanda lá em casa que sempre depois do jantar aparecia alguém e ficava ali, muita conversa, histórias, a gente ficava ouvindo, os amigos nossos acabavam incorporando, né? Gostavam de contar história, ele sempre foi muito amigo dos nossos amigos e nossos amigos adoravam também. Então era uma casa que recebia muito e tinha a questão de ajudar a família de origem muito pobre também, tanto da minha mãe, quanto do meu pai e então sempre vinham parentes e ficavam uma temporada, uns dois anos trabalhavam, estudavam e depois saíam e vinham outros. Então tem uma prima mais velha que morou e ajudou a cuidar dos filhos, mas estudou e depois se formou enfermeira, então foi quase como outra filha, né? Alguns primos também que passaram por lá, então sempre tinham os agregados que a gente fala, né? Então é uma coisa muito de receber.
P/2 – Você se lembra de alguma história que seu pai contava na varanda?
R – Têm muitas, ah, ele contava muita história da época dele de Messejana, né? Messejana era uma cidadezinha pobre da periferia de Fortaleza, então tinha a Lagoa de Messejana, aí ele contava várias histórias de Messejana, da lagoa, das mangueiras que tinham lá, mas eu não me lembro de nenhuma assim específica, mas tinha muita história, né?
P/2 – E como é que era a brincadeira com seus amigos? Pelo jeito era assim: uma casa muito movimentada pelo que você conta, cheia de primos e tal e que brincadeiras vocês gostavam? Quais eram os esportes? Vocês tinham incentivos pra praticar esportes? Que esportes vocês gostavam de fazer?
R – A gente tinha incentivo, eu particularmente gostava muito de... Além de jogar bola, era todo esporte com bola, eu joguei basquete também e sempre adorei brincar com bolinha... Qualquer tipo de bola dentro de casa, minha mãe ficava louca, de bicicleta, eu perdia várias, mas eu gostava bastante. Era uma casa mais afastada, então tinha um terreno e a gente saía pro meio do mato, isso eu lembro. Era muita brincadeira de rua mesmo naquela época... Principalmente nessa região que eram poucas casas, tinha muita coisa de rua, né? Interior, assim, mesmo sendo uma cidade que já estava crescendo, mas eu me lembro de muita brincadeira mais na rua do que em casa, ao redor de casa assim. E esportes a gente era... Foi uma coisa, acho que pelo tamanho dos filhos e todos meio atléticos assim, todo mundo gostava e eram seis então ficava fácil praticar esporte coletivo e a gente tinha facilidade também, assim, quase todos eram bons em esporte, né? A gente brinca também que meu pai era ruim, jogava mal, a gente brinca que minha mãe devia jogar muito bem, devia bater um bolão que a gente fala, né? Porque no futebol, dos seis cinco jogam muito bem, dois foram profissionais, esse que não jogava bem, jogava muito bem tênis. Então todo mundo praticou bastante esporte e se destacava, né? Em esportes, então foi uma coisa muito valorizada em casa, né?
P/1 – E quem não jogava bem o futebol quem era?
R – O Sófocles, talvez pelo nome, o Sófocles é o do meio, é o terceiro ali, canhoto, cabelo castanho claro, ele é o diferente, né? Então ele acabava jogando no gol que ele cansou e foi jogar outro esporte, né?
P/1 – E me fala uma coisa, você se lembra da primeira escola que você foi começar os seus estudos Raí?
R – Eu estudei na mesma escola desde o pré-primário até o ensino médio, até o terceiro colegial que na época a gente chamava.
P/1 – Que escola era essa?
R – Colégio Marista, dos irmãos Maristas e também eu tenho uma lembrança muito boa assim, teve uma época que cinco irmãos estudavam lá, quatro, minha mãe era sempre festejada lá, porque era a que tinha mais filhos na escola, né? Tinha até o prêmio de mãe marista, ela ganhava. Era uma escola que tinha bastante área aberta. Então brincar, esporte, isso facilitou bastante que era um clube também e era uma escola que incentivava muito música e esporte, as atividades extraclasse, eles valorizavam. Então influenciou bastante a família também tanto pra música quanto pra esporte.
P/1 – Durante todo esse período que você ficou lá, você estudou música?
R – Não, música não era uma disciplina, tinha banda, banda mirim, orquestra, tinha algumas festas assim, mas tinha uma banda assim que disputava campeonatos, então... A banda era dos mais velhos, então tudo aquilo ia incentivando os mais novos também a acompanhar, mas não era um estudo formal não.
P/2 – E você fez parte da banda? Tocou algum instrumento?
R – Toquei, eu toquei... Nunca fui muito bom não, mas como a escola incentivava bastante pelo menos tentar todo mundo tentava, eu comecei tocando caixa e depois eu toquei corneta.
P/2 – E dos teus irmãos alguns se destacou nessa área ou não?
R – Sim, o Sóstenes é o bom de música, o que tem o dom e compõe e tudo, eu acho que a banda deve ter influenciado também, eu não acompanhei muito porque ele era mais velho, mas esse que joga tênis o Sófocles, ele tocava... Como que chama? Uma flauta com teclado, o Raimar tocava percussão, bumbo, surdo, ele era fortão assim que também tocava bem, quase todos passaram pela banda.
P/1 – E teve algum professor marcante nesse Colégio Marista, assim, que você falasse assim: “essa pessoa foi importante” e por quê? Pra você na sua formação e tal?
R – Tiveram dois eu acho que vem à cabeça, tinha a Dalva, eu acho que do primeiro ano que era alfabetização, mas tenho uma lembrança muito remota...
P/1 – Qual é o nome dele?
R – Não, Dalva, eu acho que foi de alfabetização, mas não foi a que mais marcou, a que mais marcou foi da Dona Mirna que era da quarta série e que eu acho que foi uma das responsáveis apesar disso, né? Eu estou falando responsáveis por eu ter repetido o ano, que era professora de Português muito exigente e tudo mais, mas me marcou, de qualquer maneira ficou uma coisa positiva e depois eu lembro... É porque eu entrei um ano adiantado na escola, o meu pai fez isso com o Raimundo Filho e deu certo, né? Ele entrou na faculdade... Na Santa Casa de Medicina, com quinze anos, ele conseguiu acompanhar, então ele resolveu testar com o último que não tinha o mesmo dom pra escola. Aí eu tive que adaptar ao meu tempo, então eu acabei repetindo de ano, mas pra mim foi bom, eu tinha dificuldades de acompanhar sendo mais novo, então eu repeti na quarta série. E depois teve um, se não me engano, no final do ensino fundamental que era o professor de Ciências que foi o primeiro professor... No colégio de padres com toda uma tradição católica, eles não eram tão rígidos assim, mas tinha aquela coisa católica, né? E foi o primeiro professor, chamava Benat, foi o primeiro professor jovem, com ideias novas, com novos métodos, brincalhão, que saía do... Então aquilo cativou todo mundo e era meio... Professor rebelde assim e os irmãos maristas ficavam de olho se ele não ia aprontar alguma, aquela coisa, uma revolução na escola, né? Então esse marcou também pela ousadia, por ser o primeiro cara diferente que mexeu com a estrutura da escola.
P/1 – Eram só meninos?
R – Não, eu acho que há muito tempo atrás foi, quando eu estudei já era mista, ainda bem, né? Eu já tenho só homens em casa, imagina se tiver só homens na escola...
P/1 – E me fala uma coisa, nessa sua fase já de pré-adolescência, adolescência, mudaram os amigos? Quem eram seus amigos? E como vocês costumavam se divertir?
R – Os amigos que mais marcaram que eu tenho contato até hoje quando eu era muito pequeno era a vizinhança, tinha um ou outro que eu lembro que me marcou bastante, mas teve uma fase dos treze anos, assim de doze até quinze anos a gente tinha quatro amigos muito... Aquelas de fazer pacto de amizade e aquelas coisas e todos esportistas também, dois jogavam vôlei e eu e o outro jogávamos basquete e também brincávamos de futebol. Então tinha essa identificação de...
P/1 – Como era o nome deles?
R – Era o Vitor, o Everson, o Marcelo e eu e a gente ainda tem contato assim, o Everson é sócio do meu irmão Raimar, então a gente tem bastante contato, o Marcelo é mais fechado assim na dele, mas aquele irmão, como se fala é como se fosse irmãos. E o Vitor se afastou também um pouco, mas mora em Ribeirão Preto, né? A gente de vez em quando se cruza, mas era uma amizade muito forte marcante e a diversão deles era tirar sarro de mim.
P/1 – Por quê?
R – Porque eu sempre fui muito tímido, né? Eu era muito tímido, excessivamente tímido, eu me escondia. Então eles... E eu ficava muito sem graça assim aparentemente, então a diversão deles era me deixar sem graça e ficavam morrendo de rir, né? E as brincadeiras eram muito esporte e eles também faziam parte da banda, a gente ia ao mesmo clube, tinha um clube recreativo perto da escola a duas quadras da escola. Então nossa vida era escola, clube e rua e ir um na casa do outro, a gente conviveu muito tempo.
P/1 – Só uma curiosidade, eu fiquei curiosa porque a escola tem essa coisa católica, né? Vocês tinham alguma relação com religião?
R – Não existia uma obrigação, em algumas séries tinha aula de religião e muita gente fez catecismo, né? Eu não fiz, alguns irmãos fizeram e eu não fiz, mas não era uma obrigação assim.
P/1 – A sua mãe? Seus pais?
R – Meus pais não eram praticantes, eram católicos, mas não eram praticantes. Então não tinha uma coisa dentro de casa de ir à missa domingo e tal, mas tinha uma capela linda na escola e a gente ia de vez em quando, eu... Hoje em dia, eu acho que foi uma influência positiva a religião na escola assim, porque não era nada forçado, não tinha nenhuma exigência por questão mais de valores mesmo.
P/1 – Raí, você comentou que na fase de mais novo você tinha alguns amigos que eram próximos de casa que te marcaram, eu queria que você falasse qual o nome deles e por que te marcaram?
R – O Marcelo que morou na minha frente, era da mesma idade e frente a frente de casa, os pais se conheciam, a irmã dele namorou meus irmãos, né? Paquera, tinha aquela coisa de irmã mais velha com irmão mais velho e era uma coisa bem de amizade infantil assim, mas bem grudado assim, numa época da infância assim de dormir na casa dele... Eu lembro que eu tinha vergonha porque eu fiz xixi na cama até treze anos de idade, doze, treze anos sei lá.
P/1 – Você fez xixi na cama...
R – Então às vezes escapava na cama dele e tal, aí eu juntava o lençol e saía escondido. Mas então era uma coisa muito de casa assim e tinha os vizinhos... Tinha a minha vizinha da direita que era a Simone que o meu irmão Raimar era amigo do irmão dela e a gente tinha a mesma idade também que era aquela primeira paquerinha, né? Ela era bonita, morava do lado e aí tinha uma turminha assim da região que eu lembro mais é a Simone, a Ivana e o Marcelo.
P/1 – E me fala uma coisa nessa fase de adolescência você tocou na fase de paquera e tal, como eram os namoros nessa época?
R – Bom, eu era muito tímido como eu falei e até pela minha timidez eu era muito discreto assim, na classe e tal tinham aquelas paquerinhas bem discretas, né? Uma troca de olhar de longe assim e os meus amigos eram os galãs, eu não sei se é coincidência ou não, mas eles eram todos os famosinhos da escola assim pelo menos daquela faixa etária, né? Então tinha o Vitor que era um que fazia mais sucesso, o Marcelo também era loiro de olhos claros e o Everson era o baixinho charmoso e eu era o tímido. Então meio que eu pegava carona, porque andava com a turma dos bonitões, né? E na época eu não tinha fama assim de beleza, não reparavam, mas sempre... Eu demorei assim a ter coragem de pedir uma menina em casamento e tal, casamento não, em namoro, o casamento estava próximo ali já. Aí eu lembro que eu namorei a primeira vez com treze anos a Cecília que era... Uma coisa que sempre me atraía assim, ela era hippie, meio poeta, alternativa assim.
P/1 – Na sétima série, né? Com treze anos?
R – Eu não lembro agora, mas era por aí e aí teve um... Na verdade é aquela velha história sempre, né? Você acha que conquistou, mas foi conquistada, sempre é assim, né? Você acha “eu vou conseguir”, mas na verdade já está na mira faz tempo. Mas foi gostoso, foi uma época que marcou, né? O primeiro namoro que marcou, aí eu também super sem graça, não sabia o que fazer assim, punha a mão onde, se andava de mão dada, se não andava.
P/1 – E como é que era essa relação agora... Quando o Sócrates começa a fazer sucesso como jogador, você estava em que fase? Qual era a tua idade mais ou menos?
R – Olha, ele começou a fazer sucesso em Ribeirão Preto jogando pelo Botafogo de Ribeirão Preto já com 21 anos, então eu tinha dez anos, aí na cidade começaram os comentários que ele poderia ir para um time grande, com 23 ele já estava sendo cogitado e aí eu tinha uns 12, né? Estava cogitado pra ir pra seleção, mesmo em Ribeirão Preto e sempre chamou muito a atenção o fato dele fazer Medicina e jogar futebol, né? Então sempre foi um personagem especial no meio, então mesmo não sendo ainda tão famoso era um personagem que chamava a atenção e acabava também, claro, ligando esse personagem aos irmãos, assim, aquela coisa de perguntar, a curiosidade. Aí quando ele veio pro Corinthians explodiu mesmo, né?
P/1 – E como era a sua relação de ter um irmão famoso? Essa coisa de jogar futebol, como é que era um pouco isso pra você? Ainda mais sendo mais novo?
R – Ah, era divertido sim, eu gostava do esporte já, né? De praticar e pra mim era um fato de orgulho assim, as pessoas tinham muita curiosidade e perguntavam e você entra meio que no embalo, você vira uma referência onde quer que você esteja assim “o irmão do Sócrates.” Aí eu jogava também e jogava bem e tinha essa coisa que começavam a ligar, mas eu me dava bem assim, ele saiu muito cedo pra mim, né? Ele saiu com 24 e eu tinha 13, ele já estava fazendo medicina, então parava pouco em casa, eu era muito novo. Então eu não tinha tanta proximidade assim como eu tinha com o Sóstenes, por exemplo, que também era bem mais velho, mas a gente convivia mais. Então as pessoas perguntavam muitas coisas, curiosidades, então eu gostava disso assim e era uma coisa que chamava a atenção das pessoas, então pra mim era bom, porque eu era muito tímido e era um motivo de abrir espaço, né?
P/2 – Tinha algum irmão que você tinha contato mais próximo? Dos cinco irmãos tinha um que era mais especial?
R- Teve fases, né? O que eu tinha mais contato, mais afinidade era com o Sóstenes, com o Raimundo e com o Raimar que era o mais próximo. O Sóstenes sempre foi uma coisa de admiração, como o Sócrates saiu cedo, então ele virou aquela referência de irmão mais velho próximo, né? E sempre teve muita identificação, ele tocava música, eu adorava ficar escutando, né? Ele tocava música e brincava muito, era muito brincalhão, eu sou mais novo, era um xodó assim, né? E depois o Raimundo teve um momento assim que era muito próximo também que ele também teve uma relação com a religião evangélica forte, um momento e era um momento que eu estava muito próximo dele e eu acabava de vez em quando indo com ele, eu namorei uma prima da namorada dele. Então eu vivi um pouco o universo dele, uns três, quatro anos e o Raimar foi sempre o parceirão assim de...
P/1 – É o mais próximo, né?
R – São dois, quase três anos de diferença e ele sempre foi assim o meu ídolo, ele jogava basquete e eu ficava admirando, ele jogava bem também. Então ele que me influenciou a jogar basquete, então eu quase não joguei futebol muito por causa dele, de acompanhar, de conviver e sempre fui muito grudado até hoje assim de ele seguir a minha carreira e eu seguir a dele e assim a gente tem muita coisa junto. O Sócrates saiu um pouco mais cedo, o Toca também, eu chamo de Toca o Sófocles, ele entrou na faculdade e foi pra Brasília, então criou essa distância, né?
P/2 – O que ele fez?
R – Engenharia.
P/2 – O Sóstenes também, né?
R – O Sóstenes também Engenharia.
P/1 – O Raimundo é que fez Medicina?
R – O Raimundo fez Medicina, o Raimundo e o Sócrates, dois médicos, dois engenheiros.
P/1 – E o que é mais próximo, o Raimar fez...
R – O Raimar fez Direito, mas ele foi profissional de basquete também, ele era mais esportista, né?
P/1 – Ele jogou basquete profissional?
R – Jogou. Na época era semiprofissional, mas ganhava salário e levava muito mais a sério o basquete do que o Direito, tanto é que ele nunca exerceu, ele sempre foi ligado ao esporte, ele faz outras coisas, mas ele vira e mexe é ligado ao esporte.
P/1 – E, Raí, como é que começou essa história do futebol? Você coloca muito o futebol nessa sua fase de criança e pré-adolescente muito como uma prática esportiva e de relacionamento com amigos e tal. Como é que começa esse... Como é que você começou com o futebol mesmo?
R – Você me perguntando lembrou uma vez que na escola, eu fazia acho que a oitava série aquele teste vocacional, né? E eu estava conversando com a mulher, ela me perguntando e eu lembro que eu respondi que o futebol pelo fato de eu ser tímido e inseguro, uma coisa está ligada a outra, inseguro assim em termos de confiança, né? O futebol me trazia isso, porque eu era realmente bem acima da média. Então pra mim era um lugar que as pessoas me requisitavam, me valorizavam sem eu precisar falar, sem precisar me expressar era com a bola. Então eu acho que teve esse fato que ajudou bastante, mas desde muito pequeno assim eu tive uma relação com bola muito... Até hoje na verdade, assim, depois que eu parei de jogar... Com bola e competição, não parece, mas eu sempre fui muito competitivo, eu sempre sofri muito quando perdia. Então essas duas coisas, eu acho que me influenciou bastante assim o prazer de jogar, de brincar com bola e o espírito de competição despertando bem cedo e que acabou guiando a minha carreira. Mas acho que essa é a relação, eu sempre tive muito prazer de estar com a bola e depois que eu parei de jogar fazendo terapia e tal eu me afastei muito tempo, o Gol de Letra e outras coisas que eu estava fazendo, mas eu cheguei à conclusão que é a coisa que ainda me dá mais prazer e também o tênis, eu comecei a jogar tênis, quando eu jogo tênis eu falava pra ela assim: “eu ainda adoro fazer todas as outras coisas, mas o que me dá mais prazer que eu me sinto super bem é...”
(troca de fita)
P/1 – Então, vamos voltar um pouquinho, você estava falando dessa sua relação com o esporte, com a bola de você gostar e tal. Então, assim, eu queria que você continuasse nesse seu raciocínio?
R – Então, tem outra coisa que me completa muito, foi uma coisa que sempre me questionei também, né? Vou tentando achar explicação, o esporte: basquete, o futebol e tal, eles são esportes de contato, né? Então eu sempre acho que acabava colocando o meu lado agressivo, quer dizer eu sou uma pessoa muito pacífica, muita calma, mas todo mundo tem um lado... Então eu acho que eu descarregava no esporte, então o esporte era uma coisa que me completava muito, né? Eu era tímido e conseguia fazer sucesso no futebol, eu era uma pessoa super calma, pacífica e no futebol eu podia trombar, chutar e estava dentro da regra, então eu trocava aquela energia como toda criança tem muita energia, mas todo mundo tem um lado... Eu só fui perceber depois de fazer terapia, mas todo mundo tem um lado agressivo que eu acho que me ajudava muito nisso e o prazer de jogar assim... Eu estava comentando, até hoje qualquer... Pode ser brincadeira, jogar bolinha na parede assim me diverte.
P/1 – Raí, como é que você vai pra essa questão da profissionalização dentro do futebol? Como aconteceu isso pra você?
R – Quando eu tinha... Eu jogava na escola e depois num clube amador e joguei um tempo na rua, depois que eu joguei basquete com catorze, quinze anos eu jogava quase todo dia na rua com os amigos.
P/2 – Basquete e futebol?
R – O basquete eu comecei a parar, assim, com catorze eu comecei a parar e aí jogava muito na rua o futebol e mais pelo prazer, eu não pensava em ser profissional e eu joguei na rua e me destacava. Aí com catorze anos um amigo meu que jogava comigo na rua, ele jogava no clube, no Botafogo que era o clube que o Sócrates começou também. Ele falou: “putz, você joga bem, vamos um dia lá”, eu falei: “ah não, deixa” e continuava e ele insistiu, ele chamava Renatinho. Então tinha uma turma de futebol assim que era uma turma nova, minha, assim, que era uma turma que tinha jogadores bons, alguns foram quase profissionais e era o que a gente chamava de pelada de qualidade e eu gostava muito, era jogo bom mesmo. E daí ele insistiu, insistiu que eu fui um dia fazer um teste e daí eu falava: “não conta que é irmão do Sócrates” e não sei o que, tinha aquela coisa do orgulho e tal, eu não sei se ele contou, eu acho que eles já sabiam e tal, pelo menos fingiram que não sabiam, né? Mas eu fiz questão de não falar que era irmãos do Sócrates, aí fiz o primeiro teste e o cara chamou pra vir outro dia treinar. E daí eu comecei a jogar no clube Botafogo de Ribeirão Preto isso com quatorze pra quinze anos, mesmo sendo um clube que a sequência natural era vir a ser profissional, porque era um clube que tinha um time profissional, eu não levava a sério assim, eu tinha...
P/1 – O que seus pais achavam?
R – Era muita molecagem ainda, eles nem se tocavam, eles ouviam assim de orelha alguns comentários “esse também vai ser jogador”, mas não davam muita bola não e nem eu, né? Mas aí eu não ia treinar assim e eu tinha que treinar umas três ou quatro vezes por semana e eu ia uma vez ao treino e depois eu ia só ao jogo, eu queria só jogar e como eu era bom, eu não precisava treinar e jogava. Então eu levei assim dos quinze aos dezessete anos treinando uma vez por semana no máximo e brincando na rua e na escola, mas me destacava, às vezes o ônibus, ia jogar em algum lugar, passava na minha casa pra me acordar pra eu ir jogar. Então eu me destacava, mas com dezesseis pra dezessete eu queria começar a viajar, aquela fase de mochileiro, acampar, era o que eu queria. E a Cristina que era minha namorada na época que foi minha segunda namorada, até os dezesseis eu tive duas só, não, tinha mais uma a Adriana, mas sérias assim foram duas que durou um pouquinho e aí a Cristina, a gente começou a namorar e era a época das descobertas...
P/2 – Você estudou com ela desde o começo?
R – Não, eu repeti o ano e aí ficamos na mesma classe.
P/1 – Ah, você a conheceu na quarta série?
R – Ela é prima do Everson que é um dos meus... Aquele grupo de quatro amigos, ela é prima de um amigo, então eu já a conhecia um pouco, mas a gente ficou mais próximo já na oitava série. E daí a gente começou a namorar e tal e a iniciação sexual e tal...
P/2 – Era da mesma classe?
R – Era da mesma classe quando a gente começou a namorar, a gente se conhecia antes assim, mas a gente estudou na mesma classe...
P/2 – Você ficou na mesma classe que ela no colegial, foi isso não foi?
R – Acho que foi no primeiro.
P/1 – Porque você repetiu na quarta e depois você repetiu no colegial, né?
R – É e aí quando eu repeti na segunda vez é que eu juntei com ela, aí ficamos na mesma classe e aí que a gente começou a namorar e eu estava assim jogando daquele jeito lá, era molecão e queria viajar, curtir esse lado aí irresponsável ainda. E aí ela engravidou inesperadamente é óbvio e foi aquele transtorno e tal e daí eu lembro que pra contar pro meu pai, a gente tinha aquele medo de contar pro pai e tal, eu fui ao presidente do clube, porque eu falei assim: “eu vou contar pro meu pai, eu quero ficar com ela e tal”, todo aquele transtorno de uma gravidez adolescente de não saber o que fazer, se vai casar ou não vai casar. E daí a gente resolveu tentar, só que aí eu já queria contar pro meu pai já com alguma coisa encaminhada, aí eu fui ao presidente do clube, do Botafogo de Ribeirão Preto e ele deu risada, eu de short lá no escritório dele e falei assim: “olha ou vocês apostam em mim e me fazem um contrato ou eu vou arrumar outro emprego, né? Porque eu preciso de um emprego agora.” Daí ele começou a rir e tal e me indicou o diretor de futebol amador e no final das contas me deram um contrato lá de dois salários mínimos, eu acho, na época. E aí fomos ver uma quitinete e depois que eu fui contar pro meu pai, eu contei pro meu irmão Raimundo que era médico, ele falou: “pô, mas você nem fez exame ainda” e daí a gente foi fazer exame e deu positivo e toda aquela história e aí depois eu contei pro meu pai já com alguns irmãos, agora eu não lembro quais, mas alguns meio que intermediaram um pouco pra prevenir e tal, porque meu pai sempre foi muito duro assim, né? E aí eu contei pro meu pai, eu falei: “eu quero casar, quero ficar com ela, mas já tenho contrato, vou procurar lugar pra morar, não vou ser dependente, pode ficar tranquilo”, aí na época ele falou: “eu não vou te dar autorização pra casar”, eu tinha dezessete anos e precisava da autorização dele. Então eu tinha feito todo aquele trabalho e no final ele dizer isso. E aí pouco a pouco a minha mãe, eu acho que foi amaciando.
P/1 – Como foi a reação da tua mãe?
R – A minha mãe eu acho que eu estava tão preocupado com meu pai que nem marcou muito a reação da minha mãe, né? Mas ela ficou muito preocupada e eu acho que ela estava pressentindo assim que tinha um perigo, né? Aquela fase de namoro e tal, mas não teve jeito e acho que ela se sentiu um pouco responsável e tal, porque meu pai tinha essa coisa de viajar muito. E aí ela amoleceu o meu pai que aí depois ficou tudo bem e tal, aí a gente ficou seis meses morando na casa dos meus pais e depois eu já mudei pra outra casa, mas à partir do dia que eu decidi com certeza, com certeza eu não posso falar, mas seria muito difícil eu ser jogador profissional se eu não tivesse decidido me casar, levar o futebol como profissão, como fonte de renda, né? Então eu tinha o dom, eu tinha facilidade, poderia ter voltado a jogar, ter outro caminho tipo do Sócrates assim, mas ia ser difícil, eu não tinha assim na cabeça não. Mas à partir do momento que aconteceu e eu decidi colocar aquilo como profissão, eu fui de cabeça e comecei a treinar todo dia e era o mais esforçado e tal e aí fui.
P/2 – E a sua cabeça com dezessete anos querendo mochilar, grávido, como é que fica isso?
R – É muito complicado, né? Difícil, na época, na verdade a gente não tinha muita noção no que ia dar o casamento, se ia dar certo, a gente chegou a fazer alguns acordos “vamos tentar, daqui a um tempo a gente conversa pra ver se dá certo, esperar nascer.” E aí a gente curtiu a gravidez, como dois adolescentes nós curtimos, as famílias apoiaram e tal, então nós curtimos bastante a gravidez, o nascimento foi muito emocionante, porque foi... Porque você não tem muito aquela noção de preocupação com essa idade, então era tudo emoção, eu curti muito o nascimento, os primeiros meses, eu vivi muito isso apesar da idade. E aí foi dando certo.
P/1 – Raí me fala uma coisa, você trouxe, por exemplo... A mudança sua do olhar pro futebol não mais como uma coisa de diversão, mas uma coisa de profissão, né? E os estudos? Você continuou estudando? A Cristina continuou estudando? Como que foi um pouco isso nesse processo de casar, ter filhos e tal?
R – Eu continuei estudando, a Tina parou quando estava grávida, eu terminei o terceiro ano colegial já casado e aí fiz vestibular pra História, entrei, comecei a cursar. Depois ela tentou voltar depois do nascimento, tinha dificuldade porque não tinha empregada, não tinha ninguém pra ajudar e tal, ela tentou ainda voltar um tempo e eu comecei a cursar História só que estava em outra perspectiva, né? Eu adorava História, eu gostava de Ciências humanas na verdade. E aí depois um tempo eu mudei pra Educação Física e Fisioterapia que eu gostava, Educação Física no início, eu mudei pra Educação Física mais por questões práticas, né? Se não desse certo o futebol eu já estava ali no meio, eu iria arrumar mais fácil uma profissão e tal.
P/2 – Onde era a faculdade?
R – Em Ribeirão Preto, tanto uma quanto outra, História e Educação Física.
P/1 – E quando você começa a jogar no Botafogo você começa no time amador?
R – Com dezessete ainda era amador, eu comecei a receber... Eu tinha um contrato como funcionário do clube, mas não como atleta profissional pra continuar competindo nas competições amadoras e aí fui me destacando e aí com dezoito anos já subi pro time profissional. Aí um ano e pouco depois continuei me destacando e comecei a jogar no time profissional.
P/1 – E você começou a jogar em que posição? Era posição de meia mesmo?
R – Meia. Na escola bem antes eu jogava de ponta, depois eu passei pra meia.
P/1 – Conta um pouquinho como é que foi essa sua carreira futebolística? Assim, você jogou no Botafogo por um tempo e aí você foi descoberto? Conta um pouquinho pra gente?
R – Nossa! Essa é outra história, né? Eu comecei na profissão com dezoito, eu comecei a jogar, entrava, ficava um pouquinho na reserva, entrava e comecei a ser titular, com dezenove anos fui titular e já tinha certo destaque assim entre os jogadores. Eu lembro que com vinte anos eu já era capitão da equipe, nessa coisa, porque eu estudava, eu também tinha umas ideias diferentes e não sei o que e foi ali que começou a aflorar o meu lado de liderança, né? Porque até então eu era tímido naquele grupo, eu nunca fui líder assim de classe e aí começou a aflorar um pouco também por ser bom, né? Mas ali começou a aflorar um lado assim acho que meio de influenciar o grupo com ideias, com postura, sempre o meu jeito mais discreto, mas sempre já cedo como liderança. Aí fui capitão do time com vinte anos e com vinte e dois, vinte e dois não vinte e um ainda, o time fez uma super campanha assim e eu era capitão e me destaquei. E aí surgiu uma oportunidade, a seleção brasileira estava se renovando, isso era em 87 depois, teve a copa de 86 que o Sócrates jogou, e em 87 era aquela geração Sócrates, Júnior, Zico, né? Teve um período de renovação da seleção e aí em 87 como eu tinha feito esse bom campeonato, o Botafogo estava bem, eles me chamaram para uma turnê na Europa, eu fui pra Londres, eu lembro que foi completamente inesperado, eu estava lá e eu tinha uma vespa vermelha, eu ia pra minha aula de inglês e aí eu estava meio cochilando, cansado do treino, um radialista que era o Datena, o Datena era repórter esportivo de Ribeirão Preto, aí ele me chamou e falou: “olha aqui, você foi convocado” eu achei que era brincadeira dele, porque ele era muito brincalhão. Eu sei que fui convocado meio que de última hora, porque alguns jogadores foram cortados e eu fui convocado, eu lembro que ele me deu a notícia numa terça feira, na quarta eu fui pra São Paulo, fiz o terno, passaporte eu já tinha, fiz o terno rapidinho peguei o avião e cheguei quinta lá, fui na quinta e cheguei na sexta, no sábado eu treinei um pouquinho e no domingo faltando vinte minutos ele me colocou pra jogar já.
P/2 – Vocês jogaram contra quem? Você se lembra?
R – Contra a Inglaterra e foi 1 x 1, mas eu joguei super bem, eu lembro que eu botava a roupa da seleção e ficava olhando no espelho assim no quarto correndo, querendo acreditar, incorporar assim. E aí tinham alguns jogadores que estavam se destacando que já eram... E eu estava ali no meio assim vindo lá de Ribeirão Preto naquele meio, mas a coisa foi tão rápida que eu nem senti, acho que era a pressão mesmo, aconteceu um sonho assim. Então eu acabei jogando bem, no segundo ou terceiro jogo dessa excursão o meia que era o Silas que jogava na minha posição machucou, aí eu entrei como titular, eu fiz gol, aí deu um bum assim na carreira e aí eu voltei. Mas teve uma história bem engraçada que era: quando eu fui convocado... Porque o time já estava lá, né? E eu não tinha experiência nenhuma de viagens internacionais, eu fui sozinho sem dinheiro e não tinha endereço do hotel em Londres, uma pessoa ia me pegar no aeroporto, daí eu passei em Paris e fiz uma conexão e Deus sabe como eu consegui fazer a conexão, porque o avião saiu atrasado daqui, eu perdi a conexão que ia pra lá. Aí eu peguei outro voo que chegou em outro terminal em Londres e no final das contas era sexta a noite, e não tinha ninguém me esperando, eu não tinha dinheiro e não tinha o endereço do hotel.
P/2 – Como você fez?
R – Aí eu sentei lá com uma fome, a minha mala extraviou... Aí eu sentei lá e fiquei um tempão assim. Aí eu ia à companhia portuguesa que sei lá não acreditava, aí depois de umas duas horas e meia e tal eu fui a uma companhia espanhola pra me comunicar e daí que eu me expliquei e tal, daí ela foi muito gentil e acionou a polícia pra me ajudar. E a polícia contactou alguém da embaixada, aí eu consegui telefone e ligaram pra lá, a mulher me salvou assim, salvou vida ali, se não eu estaria lá até hoje, nesse lugar, no aeroporto.
P/2 – E, Raí, essa seleção quem era assim... Você chegar numa seleção que era um time que tudo bem estava se renovando, mas a base da seleção...
R – A seleção que ganhou depois a copa de 94, né? Eu joguei junto com o Romário, Dunga, Ricardo Gomes que está aqui como treinador hoje e tinha outros jogadores assim, mas vários... O Bebeto que não foi nessa, mas era dessa geração também, o Müller, o Silas, eram essas pessoas.
P/1 – Aí dessa primeira excursão quando você volta pro Brasil, aí você volta de novo pro Botafogo?
R – Volto pro Botafogo e aí chego em Ribeirão Preto tem uma faixa assim “seja bem-vindo, nosso ídolo” imagine eu na faculdade todo metido na aula, era um sucesso, eu fiquei orgulhoso, todo mundo olhava e comentava, foi a primeira sensação assim de sucesso no meu meio. Mas era gostoso, eu nunca fui metido, mas saí bem, né? E comecei a ser cobiçado por vários clubes e depois teve outra convocação, me chamaram de novo.
P/1 – Que ano era?
R – 87, maio de 87, eu cheguei, se não me engano... Eu fui convocado no dia do meu aniversário.
P/2 – Esse jogo que você foi fazer na Inglaterra era um...
R – Era um torneio, era Brasil, Inglaterra e Escócia e teve um jogo na Irlanda e outro na Finlândia, mas o torneio era Brasil, Inglaterra e Escócia. Eu joguei em Londres e depois na Escócia, onde eu fiz meu primeiro gol pra seleção contra a Escócia e a gente foi campeão do torneio. Aí levantou taça, já chegamos campeão. Aí eu voltei pra Ribeirão e continuei no Botafogo e aí já super badalado e o Sócrates tinha contrato com a Topper, uma marca esportiva. Aí a Topper me chamou pra fazer propaganda, eu achei aquilo o máximo, quase que eu falei assim: “quanto que eu tenho que pagar?”
P/2 – Como que é essa troca com o Sócrates que já estava a mais tempo inserido no meio, né? Você tinha muita conversa com ele?
R – Então, a gente tinha pouca assim, quando tinha ele me dava muitos conselhos, mas ele estava fora, ele tinha ido pra Itália, depois voltou e estava jogando no Flamengo e eu já estava jogando também. Então a gente tinha pouco contato, mas quando ele vinha pra Ribeirão, ele dava uns toques.
P/1 – Vocês jogavam bola?
R – Não, a gente já era profissional. Daí eu comecei a me destacar lá... O que eu estava falando mesmo?
P/1 – Aí você volta e vários clubes começam a te convocar e tal.
P/2 – Tem a propaganda.
R – Ah, da propaganda, eu lembro que com o cachê da propaganda eu comprei o meu primeiro carro, na verdade não é meu, o primeiro carro zero que eu dei pra Cristina, era um Voyage zero, foi meu primeiro carro. Aí eu dei pra ela e nossa! Ela ficou super contente e foi o cachê que deu pra comprar um Voyage zero. Pra quem estava lá em Ribeirão Preto com uma vespinha. Aí logo em seguida começou o interesse, o São Paulo já se adiantou, já veio conversar com meu pai, fez proposta pro Botafogo, negociaram lá e na época foi a maior transação do futebol brasileiro, né, em números, eu lembro que deu no Jornal Nacional.
P/2 – Como que foi a transação?
R – Veio dirigente do São Paulo e começou a conversar com o pessoal do Botafogo e com meu pai que tomava conta do contrato, aí meu pai já estava mais tarimbado com o Sócrates, então já tinha certa experiência, né? Assim acabou sendo rápido, porque pro São Paulo eu já tinha topado ir e aí acabou dando certo, eu me lembro essa coisa do Jornal Nacional ter dado no final.
P/1 – Você torcia pra algum time nessa época? Como era a sua relação como expectador de futebol?
R – Bom, eu torcia pro Botafogo, né? Que era o time que eu jogava, mas torcia assim de criança porque o Sócrates jogava no Botafogo e tinha um super time. Então eu com dez, onze anos ia assistir o Botafogo com bandeira e tudo.
P/1 – E essa coisa de vir pra São Paulo, assim, você, que vários clubes... Que outros clubes estavam interessados no seu passe na época? Tinham outros times que estavam interessados?
R – Antes da seleção teve um flerte do Corinthians, mas não uma proposta assim concreta. Aí quando começaram a comentar assim não deu nem tempo, o São Paulo já veio e me contratou.
P/1 – Raí, você comentou um pouco que é no Botafogo que você começa a ver seu espírito de liderança em termos de ideias e tal. Fala um pouquinho que ideias eram essas? Que valores você pregava para aquele grupo dentro daquele universo, dentro daquele contexto?
R – Ah, teve algumas coisas que marcaram, eu lembro que tinha um... Eu com dezessete anos, talvez por influência do Sócrates, mas com dezesseis eu lembro que eu perguntei pro meu pai uma vez se existia uma universidade para líder, pra liderança e ele falou que não tinha. Mas eu acho que já despertava assim uma vontade, eu não sei exatamente por que, talvez seja pelo Sócrates, por influência do Sócrates, porque eu achava o Sócrates um super líder assim, eu achava bonito aquilo. E daí no Botafogo começou a aflorar e já jovem com dezenove anos, o Botafogo estava com uns três meses de salário atrasado e aí o time estava perdendo e com três meses de salário atrasado e eles contrataram dois jogadores. E aí estava todo mundo, os jogadores muitos com trinta anos, até os jogadores que tinham sido contratados estavam lá, aí eu tomei a palavra e falei que achava um absurdo um time que estava devendo três meses, gastar dinheiro contratando jogadores e que tinham que respeitar as pessoas que estavam ali e tal. Então ali foi... Imagina, eu era o mais novo do grupo e falando isso pro presidente do clube na frente de todo mundo, na frente dos jogadores que tinham sido contratados. Aí o cara depois veio falar comigo “você foi corajoso, eu te entendo, acho que você está certo mesmo” e acabou virando amigo, mas ali começou, né? Uma coisa de reivindicação e de ser a voz do grupo.
P/2 – O que você via no Sócrates que te inspirava? Que você achava legal no comportamento dele?
R – Comportamento, posicionamento político, ele tinha muito interesse também, ideologia dele próprio em conhecer também outras e colocar as suas opiniões e evidentemente mais ainda porque era final, mas era ainda uma ditadura, né? Então ele era muito corajoso, eu acho que unir essa coisa de inteligência, idealismo, era muito do meu pai, né? Que era de origem humilde, meu pai sempre gostou também de política, a política sempre foi um assunto presente em casa e ele sempre defendendo os menos favorecidos, né? Ele defendia no discurso e na prática também, então isso influenciou com certeza e eu tinha orgulho do Sócrates por isso, né?
P/1 – Aí essa fase sua no São Paulo... Como é que foi a chegada no são Paulo como jogador? A maior transação no futebol brasileiro, né? E chegar dentro de um time que era meio estruturado também? Como é que isso?
R – E ainda tímido, né? Apesar de...
P/1 – E era um time... Era a época do Müller, né? Era um time que era muito estruturado e que era campeão naquela época, né?
R – O Müller, Pita, eles tinham sido campeões em 86, acho que campeão brasileiro e eu cheguei em fim de 87 e acho que o Careca tinha sido vendido e eu vim meio que pra substituir o Careca que era um super craque só que o Careca não era a posição que eu jogava assim, né? Que era centroavante e eu tive dificuldades sim, cheguei machucado, demorei uns três meses pra estrear e me trouxe muita dificuldade também. Então teve a timidez, vir pra cidade grande, a adaptação e sempre que eu mudei de hábitat assim , eu demorei um tempo assim pra me sentir a vontade e conseguir me expressar, né? Em todos os sentidos. E aí eu tive bastante dificuldade assim, porque tinha uma expectativa muito alta em cima do meu nome e eu senti um pouco isso e demorei um pouco, tiveram os primeiros jogos, desconfiança, crítica, fui vaiado. Mas eu sempre fui muito... Sentia sim, ficava mal assim, mas nunca desistia, né? E aí conforme eu vou conhecendo as pessoas, eu preciso conhecer as pessoas para que as pessoas me respeitem, me conheçam e me admirem também, eu acho que isso é uma coisa que... E o que eu admiro também nas pessoas aí eu preciso conhecer, aí eu me sinto mais a vontade e aí eu vou embora, tem muito essa coisa de começar a gostar assim das pessoas do teu grupo começar a torcer por você porque começam a gostar de você, né? Então eu sempre tive essa necessidade assim de conhecer melhor onde eu estou.
P/1 – Raí, você falou um pouquinho dessa dificuldade de chegar no lugar e essa coisa assim. Como é que você lida, por exemplo, com a frustração do outro no sentido assim, porque você falou assim: “eu fui vaiado e tal” eu acho que é uma pressão muito grande, né? Como é que você se protege, se você se protegia, na verdade, pra poder lidar com isso? Onde você buscava apoio?
R – Eu sempre fui, uma coisa muito profissional nesse aspecto, é claro que tem o lado da família, a Cristina sempre me deu muita força e nesse aspecto assim tinha uma retaguarda de primeira assim, não faltava nada em casa, era tranquilidade, força, apoio, né? Eu vivia muito a família, eu era um cara de família mesmo, então eu buscava força em casa, porque quando sai de um jogo você vai pra tua casa, né? É ali que você tem que encontrar força pra voltar no outro dia e treinar, então com certeza isso pesou bastante. E fora isso... A coisa de profissional que eu falo é de trabalhar e fazer tudo que eu tenho que fazer pra... “eu acho que sou bom, uma hora vai dar certo, eu estou aqui conhecendo as pessoas e vou treinar, treinar” de assim: sair do treino falar: “eu fiz tudo que podia fazer pra melhorar” e isso me dava confiança, né?
P/2 – É uma exposição muito grande e, assim, é uma exigência de retorno imediato, né? Do público, né?
R – Sim, o futebol é uma cobrança e pressão, é uma coisa que está muito presente sempre.
P/1 – E como é que foi assim, aí a coisa do São Paulo, você começa a se entrosar, conta um pouquinho como foi essa coisa da carreira até a ida pra França e o primeiro título como campeão mundial pelo Brasil?
R – Bom, eu fui pro São Paulo e comecei a me destacar, em 88 eu já era titular, em 89 era capitão, a história ia se repetindo assim, aí capitão não tão experiente com 24 anos, mas capitão. Em 89 foi o primeiro título de campeão paulista como capitão já e aí 90 chega o Telê Santana, em 89 nós fomos campeão paulista e vice-campeão brasileiro e em 90 vice-campeão brasileiro, em 91 fomos campeão paulista e brasileiro sempre com liderança e destaque, né? Campeão paulista e brasileiro na época do Telê, eu comecei a destacar mais, fazer mais gols, na copa de 90 eu não fui, eu estava nessa fase aí de adaptação no São Paulo, tinha sido campeão paulista e tal, mas não tinha conseguido voltar pra seleção ainda, tinha um grupo fechado e tal, eu até poderia ter ido, mas tinha um grupo que eles falaram que já estava fechado, eu acabei não indo. E em 91 eu já era capitão da seleção brasileira de novo, depois da copa de 90, aí fui capitão da seleção brasileira de 91 até 94 na copa do mundo e nesse período eu fui campeão no São Paulo, duas vezes da Libertadores, campeão mundial. E aí na copa do mundo também como capitão, ajudei a construir aquele grupo de 94 e cheguei na copa de 94 eu já estava jogando na França. Em 93, setembro de 93 eu me apresentei na França e estava na eliminatória e tal e nessa época eu tive muitas... Na verdade eu tive poucas férias, eu passei quase três anos sem férias, porque eu jogava no São Paulo muito, né? Três vezes por semana, às vezes quatro e nas férias eu jogava pra seleção. E aí quando eu fui pra França, eu não estava na melhor fase, estava cansado, aquele, teve adaptação na França e não sei o quê. E daí na copa do mundo eu comecei como capitão titular e acabei saindo do time no meio da copa, mas o time estava todo bem formado, um grupo bem forte. E aí fomos campeões mundiais depois de 24 anos sem ganhar um título, então foi um título marcante pro país, né?
P/1 – E qual foi a sensação de ter contribuído...
(troca de fita)
P/1 - Então pra retomar a pergunta como é que foi a sensação de ter contribuído pra esse time que conquistou o título de 94?
R – Bom, foi uma conquista muito sofrida, assim, muito gostosa, mas muito sofrida porque cada copa do mundo que passava era uma pressão maior, né? 24 anos sem ganhar, passou pelo Telê, perdeu aquela copa de 82, 90 tinha sido um fracasso, então tinha muita... Como sempre na seleção brasileira, particularmente naquela, 24 anos era uma pressão muito maior, então tinha... O grupo ficou muito fechado, tinha que ser forte pra aguentar a pressão interna, interna que eu digo é do país, né? E enfrentar os adversários e 24 horas de imprensa nas nossas costas e muita crítica e tal. Então foi muito duro, mas por isso mesmo também saboroso, então por isso aquele grupo ficou muito... Uma amizade que ainda tem muitos contatos, muita cumplicidade entre os companheiros assim, foi bonito de ver uma vitória de grupo, né?
P/1 – Você comentou que saiu no meio da Copa, né? Você saiu por quê?
R – Tinha essa fase de adaptação minha na França, então eu era o capitão, mas estava sendo questionado pela imprensa, né? Eu tive muita pressão pra sair do time antes da copa, eu estava lá na França e as pessoas não me acompanhavam direito, então metiam o pau em mim aqui e eu não estava nem sabendo, né? Então chegou com essa dúvida na copa assim e o primeiro resultado foi empate, mas acabou sobrando pra mim assim, mas eu acho que num certo sentido eu poderia ter feito se continuasse como titular, uma boa copa, o primeiro jogo eu fui melhor em campo e tal. O que prova que eu saí do time por causa da pressão é que o primeiro jogo eu fui o melhor em campo, o segundo jogo o Brasil ganhou de 3 x 0 e o terceiro... Bom, eu não tinha jogado tão bem nesse segundo jogo, mas no terceiro todo mundo jogou mal e eu acabei saindo, né? Mas existia já uma pressão, então de certa forma tem um lado positivo que deu uma aliviada pro grupo, porque todo mundo estava questionando e tal e aí quando eu saí deu meio que uma aliviada pro grupo. Mas eu continuei, entrei em mais dois jogos, a copa do mundo são sete jogos, eu joguei três como titular, entrei em mais dois, então na verdade só não participei de dois, né?
P/1 – E, Raí, durante essa sua fase que eu vou querer voltar um pouquinho, inclusive da sua ida pra jogar no Paris Saint-Germain, eu queria que você falasse um pouquinho dessa fase, quando você começou a jogar com dezessete anos e tal no Botafogo e até a sua estada na seleção quem foi o treinador que mais te marcou e por quê?
R – Foram vários assim, mas o que mais marcou foi o Telê até pelos resultados e pelo que ele conseguiu fazer com que eu melhorasse, pelo estilo dele de exigência perfeccionista foi o que mais marcou com certeza é o que mais teve influência na minha carreira. Agora tiveram muitos treinadores que de uma maneira ou de outra me influenciaram, o Pedro Rocha que foi no Botafogo ainda, teve o Cilinho quando eu cheguei no São Paulo, cada um tem suas qualidades que acabam servindo pra alguma coisa assim.
P/1 – E quando você fala do Telê no sentido dele ter te ajudado a crescer, a melhorar, o que ele te ajudou a olhar pra você enquanto profissional jogador e melhorar? O que ele te cutucava?
R – Ele me fez ver que eu poderia... Eu estava num estágio bom na carreira, eu era capitão do time e era respeitado, mas ele me fez ver que eu poderia crescer muito mais, o meu grau de exigência comigo mesmo tinha que ser maior, que eu tinha que tentar melhorar em alguns fundamentos pra ser um jogador mais completo, né?
P/1 – E que fundamentos eram esses?
R – Ah, basicamente o que faltava pra mim era ser um jogador mais artilheiro, não só um bom jogador, armador, mas também ser um jogador que definisse, né? Então eu passei a fazer muito mais gols, ser um jogador mais completo que marcava, armava o jogo e também fazia gols, né?
P/1 – E qual é o valor que ele tinha que você achava que era importante pro time?
R – Pro time? Ele era um cara que valorizava muito o conjunto, o jogo no conjunto e acabava criando uma estética bonita, um jogo de grupo, assim, tinha os destaques individuais, mas esses destaques não precisavam pegar bola e driblar quatro assim, era o contrário assim, ele instigava os jogadores no coletivo que acabava ficando esteticamente bonito e envolvia o adversário, muita movimentação, né? Então esse jogo coletivo e essa coisa de exigência, de conseguir extrair o máximo de cada um, né? Acho que são as duas grandes qualidades dele.
P/1 – E jogador no São Paulo que te marcou ou mesmo no Botafogo e um jogador da seleção e por que te marcou?
R - Nossa tem tantos, né? Mas tem o Leonardo que até hoje é um grande amigo e tem essa história com a Gol de Letra, né? Que nos une mais ainda, mas tiveram muitos, deixa ver, aquele grupo do são Paulo, eu tenho muitos amigos hoje, o Zetti, o Ronaldo, o Pintado, muitos amigos, a gente se encontra ainda e tem também quando se vê numa festa. No Botafogo teve um, o Marco Antônio Boiadeiro que começou junto comigo, a gente disputava a mesma posição e que também fez uma grande carreira, teve na seleção, foi do Cruzeiro, Guarani. E a gente começou junto, então tem uma história bonita lá atrás e que hoje a gente se encontra pouco porque ele mora em outra cidade no interior, mas de vez em quando a gente se fala por telefone. E na seleção tem aquele grupo da seleção, o Jorginho, o próprio Dunga, não chega a ter um contato assim diário, mas com um respeito mútuo muito grande, né? O Branco que eu encontro de vez em quando, o Ricardo Rocha, O Zetti foi também para aquela copa, né? Têm vários jogadores, o Mauro Silva que eu encontro bastante também, vários jogadores que marcaram a época juntos e a gente mantém contato ainda, né?
P/1 – E nessa sua fase qual foi o gol mais marcante que você fez?
R – Bom, o mais marcante foi o da final do primeiro título mundial do São Paulo contra o Barcelona, foi um jogo que teve repercussão internacional, porque o Barcelona era um grande time e o Brasil também não ganhava título mundial interclubes há muito tempo, né? Desde a época do Flamengo, o Flamengo do Zico, então foi uma retomada de... Eu acho que eu tive sorte de participar de dois momentos de retomada do orgulho do futebol brasileiro, né? Então campeão mundial pelo São Paulo e logo depois pela seleção, então a partir dali o futebol brasileiro voltou a ser o que era com muitos craques.
P/1 – Eu queria que você falasse um pouquinho agora, vou voltar um pouco quando você estava jogando no São Paulo, vocês começaram a ter uma atividade... O São Paulo tinha uma atividade de ajuda a uma vila que tinha... Acho que era uma comunidade que tinha atrás do CT [Centro de Treinamento] no São Paulo, parece que os jogadores tinham que fazer uma ajuda... Fazer algumas atividades junto a essa comunidade que tinha atrás desse CT do treinamento do São Paulo, né? Você participou disso?
R – Não, o que existiu que eu lembro é que o Leonardo queria fazer, eu não sei exatamente o que, eu não participei, eu acho que não teve assim grandes ações não, mas o Leonardo na época que estava renovando contrato com o São Paulo. Ele queria incluir no contrato alguma coisa, alguma ação, ele queria de alguma forma envolver o clube e o contrato dele com alguma ação e poderia ser ali já que estava grudado no centro de treinamento do São Paulo e era uma favela pequena, mas muitos barracos na beira do córrego, assim, era feio e estava do nosso lado ali, né? Mas acabou não rolando, porque ele foi pra Espanha, ele foi vendido pra Espanha e não rolou, mas aquele desejo dele me tocou também, eu ainda não pensava exatamente o que queria fazer, já tinha minhas ideias e tal, estava construindo a minha postura política e tudo. Mas foi uma coisa que me tocou e acho que foi o embrião da Gol de Letra.
P/1 – Eu queria que você falasse um pouquinho como foi a sua ida pro Paris Saint-Germain? Como foi essa coisa do contrato? E eu queria que você falasse um pouquinho dessa fase de adaptação na França?
R – Da mesma maneira como aquela primeira participação minha na seleção quando eu estava no Botafogo chamou a atenção dos clubes e eu vim pro São Paulo, quando fomos campeões mundiais por São Paulo em Barcelona também virou assim... Eu virei uma referência mundial e aí sim tiveram times da Itália, da Espanha, na Espanha tinha o Atlético de Madri que chegou a fazer propostas. E aí teve o Paris Saint-Germain que aí o fato de ser em Paris, da França, eu sempre gostei muito da França, da história da França, Paris nem se fala o quanto mexe com a fantasia dos brasileiros e acho que com o mundo todo, né? Então eu acho que foi até uma proposta que caiu do céu assim, o engraçado é que um ano antes eu tinha ido pra seleção e tinha o Valdo e o Ricardo dois jogadores da seleção que tinha acabado de ir pro Paris Saint-Germain e eu lembro que no vestiário eu falei assim: “esses caras são sortudos, né? Jogar futebol em Paris”, eu quase pensando assim: “pra mim não sobra uma coisa dessas.” Um ano e pouco depois eu tive a proposta e aí saí correndo, né?
P/1 – E me fala uma coisa Raí, o jogador, ele tem influência na venda do passe dele pro time que ele quer jogar?
R – Tem que ter acordo do clube e do jogador, né? Na época tinha o negócio do passe que tinha uma ligação que mesmo sem contrato mantinha uma ligação com o clube, mas você também não era obrigado a fazer o que o clube quer, né? Ao mesmo tempo você também não era livre pra fazer o que queria, então tinha que ter um acordo dos dois, né? Então quando eu vi que dei a sequência e o São Paulo também, o São Paulo só queria que eu jogasse mais uma Libertadores, então falou: “tudo bem, vamos vender, mas vai ficar mais seis meses” e a gente ganhou a Libertadores.
P/2 – E quando o Paris Saint-Germain se interessou pelo seu passe, outros clubes também desejaram, né?
R – Sim, estava começando assim, mas eles também foram muito rápidos e eu dei preferência assim.
P/2 – Você queria ir pra França?
R – Por alguns motivos, primeiro porque era França, Paris e aquela coisa do sonho e eu estava meio de saco cheio de... Foi um período assim 91, 92 e 93 também foi um período de muito assédio, né? Porque São Paulo era o time do momento e eu era o capitão do São Paulo, da seleção, eu não podia sair, não podia buscar minhas filhas nas escolas, era muito tumulto, né? Então eu estava meio de saco cheio.
P/2 – Só uma curiosidade assim, a sua escolha pela França se não fosse por aquela história do gosto pela França e tal, tem uma coisa que você comentou lá atrás que foi a faculdade de História, você terminou?
R – Não, antes de terminar eu fui pra Educação Física, mas sempre foi uma coisa que me chamou a atenção e a história da Revolução Francesa assim, eu posso dizer que a Revolução Francesa foi um dos motivos de eu ir pra Paris, os ideais da Revolução Francesa tudo isso sempre mexeu comigo. E mexe até hoje, eu não me arrependo nem um pouquinho e também teve esse fato da França, o futebol ter menos fanatismo do que a Itália, a Espanha, né? Então eu estava a fim de um pouquinho de sossego, pelo menos um pouco mais do que aqui, porque aqui estava impossível, eu passei três anos... O último ano assim então, não era aquela coisa da faculdade que ir pra seleção fazia bem pro ego, estava um pouco exagerado.
P/1 – Como é a chegada em Paris, você já falava francês? Como é que é essa história? Conta um pouquinho pra gente?
R – Eu não falava francês, eu comecei a fazer algumas aulas aqui, eu fiquei seis meses, mas não tinha muito tempo, eu fiz algumas aulas iniciais e fui pra lá e aprendi na marra, também foi uma coisa muito parecida com a transferência minha do Botafogo pro São Paulo, né? Com muita expectativa, eu estava cansado, eu estava com muita pressão e todo mundo esperando o melhor jogador do mundo. Então tinha muita expectativa também, eu tinha aquela minha fase que eu preciso de me adaptar de uns meses, então demorou uns seis meses assim e também a mesma coisa, muita desconfiança, chegaram a falar na transferência minha pro Japão que não ia dar certo, mas eu sabia que ia dar certo. E minha meta era ficar cinco anos lá, né? Eu fui com contrato de três anos e mesmo com esse questionamento todo, nós fomos campeões o primeiro ano, campeão francês da temporada de 93, 94 e fim de 95 eu já tinha renovado mais dois pra ficar cinco anos que era que eu queria, né? Então foi um período duro de adaptação assim que pra futebol é muito, seis meses é muito tempo, mas que sempre depois eu conseguia, depois que eu me sentia bem à vontade era o mesmo processo, né? A recuperação e aí eu comecei a ser respeitado, depois capitão.
P/2 – Nesse time tinha jogador brasileiro?
R - Quando eu cheguei tinha o Ricardo e o Valdo e depois foi o Leonardo que foi na época da Gol de Letra, né? Em 97 foram o Ricardo, o Valdo depois teve um ou outro jogador assim de passagem rápida, mas em 96 pra 97 que aí foi que o Ricardo Gomes parou de jogar e foi ser treinador. Daí eu estava querendo... Eu falei: “o Leonardo está no Japão, ele estava pensando em voltar pra Itália, estava tendo propostas”, eu liguei pra ele e falei: “Leo, vem pra cá” o contrato dele estava acabando lá e daí meio que eu dei uma forçada assim pra ele vir, o Ricardo gostou da ideia. E ele já estava vendo assim time na Itália, mas acho que pela amizade mesmo ele favoreceu ir pra Paris, eu liguei pra ele lá no Japão e falei: “onde você está”, ele falou: “eu vou jogar aqui ainda”, “mas que cidade?”, “Fukuoka” a cidade parece que é até grande, boa e tal, mas o nome Fukuoka me tocou e eu falei: “eu tenho que tirar aquele cara do Japão.” Aí esse nome me marcou e eu falei: “putz, o Leonardo tem que vi pra cá” e comecei a fazer um lobby lá com o Ricardo, com os dirigentes e aí deu certo. E aí em 97 a gente jogou junto lá e lá que começaram as primeiras conversas da Gol de Letra, né?
P/2 – Como eram essas primeiras conversas?
R – Regada a um bom vinho francês, né? Geralmente na casa do Leo, a gente ia lá pro terraço e ficava batendo muito papo, tinha várias ideias e sonhos de futuro, né? Muitas questões existenciais e ideológicas e tal, então a gente identificou muito com isso, aí foi surgindo e eu numa vinda pra cá pro Brasil, eu fui fazer uma propaganda pra Fundação Abrinq que era dos dentistas “Adote um Sorriso”, o projeto estava começando. E daí eu fiz a propaganda e conheci as pessoas da Abrinq e comecei a amadurecer, eu estava pensando num projeto. E daí eu falei com o Leonardo: “Leo, vamos fazer juntos, ganhar mais forças juntos” e daí ele gostou da ideia e daí ele foi pro Milan em 97, 98 e foi meu último ano em Paris. E daí eu comecei a preparar a minha vinda, já em dezembro de 97 eu já tinha decidido que ia voltar, eu já tinha acertado contrato e tudo em janeiro de 98 e vim em maio. Aí quando eu vim, eu já aproveitei esse contato que eu tinha da Fundação Abrinq, eu já tinha pego o aval do Leonardo, né? E daí a gente começou aqui e aí junto com... Daí as famílias... Foi uma decisão que começou com nossas conversas, mas... Aí olhou a mulher dele a Bia, a Cristina, né? A Tina que eu chamo desde o início, que também gostou da ideia e quando chegou aqui, eu estava jogando ainda e daí ela teve um papel muito ativo assim de ir a reuniões, conversar, trazer informações, a gente trocava. E aí começou o processo.
P/2 – Raí, deixa eu voltar um pouquinho nesse processo, o que a sua ida pra Paris, em termos pessoais, trouxe alguns valores ou algumas percepções que ajudaram você a criar base pra esse projeto da Gol de Letra, né? Teve alguma percepção de alguma, de uma realidade diferente, se isso trouxe... Porque você disse que vocês iam muito à casa do Leonardo e começavam a discutir algumas ideologias, que tipo de discussão era essa? O que vocês questionavam? Quais eram as angústias de vocês pra que levasse vocês a fazer um trabalho social?
R – Bom, as angústias vinham de muito tempo atrás, né? As angústias não eram aquelas recentes, eram questão de justiça social, de ser um país rico e um dos mais injustos, se não o mais injusto do mundo. Então a gente pelo fato de viver no meio do futebol, a gente conviveu com muita gente pobre, muito pobre, que vinham de regiões muito pobres. Então o futebol faz a gente ter contato com esse outro lado e que é muito rico, pra mim é muito rico e pra ele também com certeza, né? O pessoal brincava com ele, tirava sarro dele que ele... Porque a gente... Eu, classe média, meu pai é de origem pobre, mas quando eu nasci já era classe média, a gente era considerado privilegiado e o Leo também, o Leo muito inteligente, se destacava, ele falava inglês e não sei o que, ele ia pra seleção de juniores e era o porta voz. Mas aí os jogadores brincavam que ele era classe média alta, mas que pro meio ali ele era um rico, né? Brincavam com ele que ele soltava pipa em ventilador. Mas aí a angústia vem de muito antes, eu acho assim que desde que a gente se encontrou...
P/2 – Mas a coisa saltou lá, porque vocês estavam num país de primeiro mundo, né?
R – Desde que a gente se encontrou no São Paulo, a gente se identificou assim com esse incômodo, com essa angústia, eu acho que foi uma das coisas que fez a gente se identificar. E lá na França a gente já tinha vontade de... Como naquela história do São Paulo tinha vontade de ter alguma ação, algum projeto e naquele momento especificamente eu estava muito mais, porque eu estava voltando pro Brasil, eu estava mais ativo assim, por querer voltar pro Brasil e querer colocar em prática aquilo, né? E ele não, ele ia fica mais um tempo na Europa, então o que mais influenciou na França mesmo a gente, eu que fiquei cinco anos, o fato de você viver no que a gente achava que era o ideal pro nosso país assim em termos de justiça social ou maior de justiça social, as igualdades de oportunidades. Então a minha filha estudava na mesma escola que a filha da minha empregada, tinha o mesmo médico, então a gente poder vivenciar uma coisa que pra gente era utópico, pensar numa realidade assim aqui no Brasil parecia utópico, mas eu vi que era possível, né? Mesmo que demore muito, mas é possível, então isso fez com que eu... Me motivasse ainda mais a fazer alguma coisa.
P/1 – E quando você começa a estruturar o projeto, você tinha claro o que você queria fazer?
R – Não, claro eu não tinha não, assim, a gente ia trocando, eu particularmente e acho que ele foi também colaborando, tinha as ideias dele, mas a gente foi afinando as ideias era: primeiro era utilizar... Você ser um atleta popular, dois atletas com popularidade, com sucesso, ter uma visibilidade muito grande. Então o que a gente queria era... Aliás, duas coisas, a coisa que a gente acredita com usar essa visibilidade pra mostrar pro país que era possível e tal, era uma coisa também um pouco sonhadora, a gente sabe que tudo corrige, mas leva um tempo aquilo. Mas era pegar uma região de São Paulo, porque eu tinha voltado pra São Paulo, mas uma região pobre e ter um projeto educativo, né? Lá a gente viu que diferença faz uma educação pública de qualidade e tal, então era investir na formação de um grupo de pessoas e que a gente pensava desde o ensino... Desde o infantil, mesmo antes a gente pensava até em creche, começar em creche na verdade, a gente queria acompanhar o... Ou teve essa ideia de pegar um grupo de crianças e investir na formação delas pra que elas viessem a ser o ideal que existe até hoje que elas venham a ser os agentes da própria transformação pessoal e também da região, né? Porque a Gol de Letra sempre teve esse... Se fosse resumir assim só que fosse uma fonte de formação e motivo de desenvolvimento social da região através dessa nova geração, né? Que a gente já está dando oportunidade de ter uma boa formação.
P/1 – E a sua ideia de voltar pro Brasil... Você tinha ideia de voltar realmente pro Brasil, você não queria ir pra mais nenhum lugar e queria parar de jogar futebol e construir esse...?
R – Depois do Paris Saint-Germain eu pensei em jogar fora ainda e voltar, eu sempre tive ideia de voltar pro Brasil depois de acabar a carreira, mas aí quando acabou o contrato com o Paris Saint-Germain, o São Paulo fez uma proposta muito boa que era o mesmo nível financeiro lá de fora e aí eu acabei voltando pro São Paulo, é um time que eu me sinto em casa e tal, eu já conhecia bem. Então é por isso que eu voltei antes, mas eu pretendia voltar ao Brasil.
P/1 – Então quando você volta como é que começa essa questão da estruturação da própria Gol, porque você fala que veio pra Abrinq, você veio na verdade fazer uma propaganda pra Abrinq...
R- Isso foi antes de eu voltar de vez.
P/1 – Você conhece as pessoas e tal e quando você vem, você as procura em função de uma orientação? Conta um pouquinho pra gente?
R – Uma vontade de começar o projeto, depois que o Leo topou, eu também queria, eu cheguei, procurei a Ana Maria que era a superintendente da Abrinq na época e eles nos deram todo apoio assim, me deu muita segurança, porque é uma instituição muito séria, bem gerida, né? Diferenciada nesse aspecto de planejamento, quer dizer, isso eu fui conhecendo depois, mas quanto mais eu conhecia mais eu ficava bem impressionado e isso me deu confiança pra conversar, desenvolver o projeto. E eles começaram a indicar alguns profissionais entre eles a Sônia London e profissionais da área jurídica que nos ajudaram, o Rubens Naves. Então fomos muito bem assessorados e como era um projeto educativo, o Cenpec [Centro de Estudos e Pesquisas em Educação] tinha o Crecheplan que na verdade é o Avisa Lá que na época era Crecheplan, porque a gente pensava em educação infantil também. Então fomos muito bem assessorados e isso fez com que o projeto fosse construído e escrito de uma forma muito profissional e de qualidade assim, muito competente assim no papel, né? E aí depois a gente foi ver um lugar físico pra colocar aquilo em prática.
P/2 – Só uma pergunta, antes dessa fase de composição ainda que a ideia embrionária de vocês era pegar algumas crianças e acompanhar desde a educação básica, né? E aí quando vocês foram fechando esse projeto pedagógico não tinha esse atendimento pras crianças tão pequenas, como é que foi esse processo de convencimento da Abrinq com vocês pra que caminho tomar? De orientação?
R – Eu não lembro exatamente assim, mas eu sei que tinha uma questão de começar o projeto de sete a catorze até por ter uma facilidade assim, né? Exige menos profissionais, a questão da educação em outro período era algo que tinha algumas experiências também que estavam sendo bem sucedidas e tal. Mas eu acho que foi uma questão por mais de, se não me engano, eu não lembro exatamente, encontramos um financiamento mesmo que a gente colocou dinheiro, a gente queria contar com parcerias para poder ir longe e aí eu acho que foi uma série de oportunidades que a gente começasse de sete a catorze e depois viu que... Aí depois começou a ter uma demanda mais pra jovem do que pra criança e a gente começou a perceber também que era uma coisa muito específica, era outro conhecimento, né? Educação à partir de seis anos e tal e antes exige muito mais atenção, mais profissionais, é outra coisa. Então a gente ficou um pouco com receio, eu lembro que depois o que me fez acalmar assim a vontade foi que “nós vamos formar uma geração que eles vão conquistar as creches que eles precisam.” E teve gente que já participou de orçamento participativo, pediu creche pro local e vai acontecer.
P/1 – Então, Raí, você estava falando um pouco da estruturação, né? Quer dizer, você pega toda uma questão conceitual pra estruturação desse projeto que você tem vários consultores aí de pesos, né? A Abrinq, a própria Sônia, Cenpec, a Crecheplan, o suporte jurídico do escritório Naves e aí assim pra pôr isso em pé no sentido assim de sair do papel pra prática, quais foram as dificuldades? E quais foram os passos que vocês tomaram? Inclusive até a questão financeira, como é que foi isso no começo?
R – Bom, a questão financeira desde o início quando a gente topou, a gente topou em colocar 500 mil dólares na época, em euros hoje seria 500 mil euros cada um pra formar um fundo pra iniciar o projeto. Aí depois desde então tiveram várias doações tanto de um quanto de outro, a seção de espaço, o Leo em Niterói, então a primeira coisa foi essa com nosso recurso, né? E depois eu aproveitei até uma publicidade também e direcionei um dinheiro pra Gol de Letras. Aí depois a gente foi buscar parcerias pra não gastar tudo nos primeiros anos, algumas parcerias que o primeiro parceiro foi a Fundação Kellogg que era uma fundação muito respeitada, criteriosa e que acreditou no projeto, eu acho que a maneira como ele foi estruturado fez com que conseguisse o apoio da Fundação Kellogg também. Aí a gente já tinha escolhido o prédio que era uma escola estadual que estava abandonada com o Governo do Estado e daí a gente passou pela reforma já com esse fundo que a gente tinha e começamos a planejar a primeira turma de cem alunos de sete a catorze anos.
P/1 – Por que a Vila Albertina? Por que vocês foram pra lá? E eu queria que você falasse um pouquinho como foi essa parceria com o governo do Estado?
R – Depois do projeto formatado, a gente foi procurar o Governo pra ter um espaço, pra não gastar o dinheiro que a gente tinha em imóvel, né? A gente sabia que tinham muitos espaços ociosos e tal. Então fomos lá, mostramos o projeto, as pessoas nos receberam, demorou um tempo, mas nos apresentaram alguns espaços e o espaço que estava em boas condições e que precisava muito, quer dizer, dava pra ver que precisava, porque tinha muita criança. Eu lembro que foi a Tina que foi visitar e falou: “nossa! É muita criança na rua” e era uma escola antiga que estava razoavelmente bem preservada mesmo, que a gente reformou bastante, mas perto de outros espaços que ela foi visitar estava bem. Então a razão foi essa, sabia que ia ser na periferia de São Paulo, eu não sabia onde e foi um espaço cedido que estava em boas condições pra gente fazer o que a gente queria.
P/1 – E aí, assim, vocês entram nessa escola e começam uma reforma e como é que é a implantação e como é que é essa escolha dessas cem crianças iniciais?
P/2 – Deixa eu só perguntar uma coisa antes, como foi a sensação de entrar na escola? Antes de falar da implantação, a primeira vez que você entrou na escola?
R – A sensação? Eu fui pra lá muito com uma visão assim de que se realmente era uma região que precisava e tal, eu vi que existia uma área muito... Aí eu fui conhecendo aos poucos o bairro, tinha uma área até que tinha perigo de deslizamento, uma área bem pobre, tinha muitas crianças realmente assim no entorno da fundação. Então tinha essa visão assim de um lugar que precisasse, né? Era um desafio, né? Aí se deu que foi uma sensação muito boa de ver um espaço grande, cheio de salas espaçosas que davam pra fazer o que a gente queria, né? E já indo pra outra pergunta, eu lembro que outra vez motivado pela questão da França também e com a questão das oportunidades iguais procurando a busca das oportunidades todas, a ideia partia muito assim de: “tudo que eu quero para meus filhos, eu gostaria de propiciar ali”, o mesmo desejo assim de oportunidades, né? Então sempre foi uma questão de fazer conhecer o mundo de atividades culturais, música, dança, artes plásticas, o universo da literatura também, o acesso à leitura e, é óbvio, também atividades esportivas. Essa conjugação toda eu acho que foi a origem do Leonardo e a minha como eu falei que na minha escola eu tive oportunidade de ter acesso a essas coisas e isso fez com que eu crescesse como pessoa. Então eu acho que foi nesse sentido assim e a gente até brinca com os sócios, o pessoal da Gol de Letra assim que o que a gente oferece lá é até mais que os nossos filhos têm, né? Eles têm uma quantidade de atividades que sempre foi o desejo e que a gente mantém até hoje e que eu acho que é a grande riqueza, né? Hoje em dia existe uma biblioteca comunitária, hoje em dia existe uma cultura de teatro, coisas que foram... Mudanças de hábito de leitura pelo menos é um grupo grande da região, atividades esportivas também respeitam os espaços, né, que a comunidade utiliza, mas com respeito e que seja uma coisa saudável, uma coisa positiva socialmente ali o esporte, não só como formador de talento, mas como direito, né, de todo cidadão, então eu acho que isso... Então é essa mistura aí que nasceu desde o início... Eu acho que isso é uma coisa que nos deixa bastante orgulhosos, é isso, porque várias discussões minhas com o Leonardo, na Abrinq e não sei o que, no estatuto foram seguidas e existe até hoje e com resultados, né?
P/1 – Então, como é que foi implantar esses projetos no início com essa ideia de ser uma formação mais diversificada no sentido assim de você dar informação de uma forma mais holística, né? Uma preocupação com a cultura, a questão esportiva e tal. Como foi a implantação disso? Como é que foi estruturar isso no começo e a escolha numa comunidade carente você eleger só cem?
R – Bom, a gente mais uma vez foi bem assessorado, a gente seis meses antes... A Sônia, o pessoal do Cenpec começou a conversar com as lideranças do bairro, eu estava jogando ainda, então não tinha tanto tempo, a Tina ia junto algumas vezes e algumas outras pessoas próximas. Eu cheguei a ir em algumas reuniões com lideranças, alguma outra já lá no local, estava começando as obras e então essa fase preparatória foi importante pra explicar pras pessoas o que ia ser o projeto e tal, foi muito importante, foi decisivo para o sucesso inicial. Depois disso a gente tinha aquela expectativa assim: “o que será que...” de repente a gente começa a ter teatro, dança, coisas que não existiam lá e aquela expectativa assim: “como eles vão reagir? Será que vão gostar?” Se realmente é aquilo que a gente imagina, né? Da importância disso e tal. Então tinha essa expectativa, mas aí logo no começo a gente viu que eles agarravam as oportunidades assim com unhas e dentes, eles gostavam bastante assim, pelo menos a maior parte. E a escolha também fez parte de um planejamento, né? De abrir inscrição nas escolas, igrejas, nas instituições locais outras, né? E receber as inscrições e analisar é bem difícil, né? Desse processo eu não fiz parte assim no dia-a-dia, mas aí colocamos os critérios socioeconômicos e programático pra tentar favorecer quem precisa mais, esses foram os critérios, né? E a gente teve alguns desafios, teve uma cartinha do chefe do... Ou alguém que falou que tinha que ser meio querendo impor algumas crianças e a gente fez uma reunião e decidiu encarar e colocar realmente só quem tinha sido escolhido por esses critérios, né?
P/1 – Raí, como é que... Assim, dentro dessa estruturação da Gol de Letra e até pelo fato de você estar jogando e tal, que papel, qual foi a importância do seu papel dentro... Fora claro a ideia e a concepção, mas qual foi a importância do seu papel dentro desta estrutura, dessa montagem da organização?
R – Bom, eu participava na medida do possível das reuniões, mas tinha a Tina que também tinha esse papel ativo e que me contava tudo e tomava algumas decisões. É uma coisa que eu sempre encarei assim como um sonho no sentido de desejo de realizar e muita vontade de participar, eu não podia em todos os momentos, mas quanto mais eu participava mais eu gostava e aí ia participando na medida do possível. E nessas discussões mais... Desde a discussão do nome, do estatuto, das cláusulas do estatuto, da missão, todo esse processo eu participei bastante, de maneira bastante ativa junto com os outros lá que estava ajudando. E claro, trocando ideia com o Leonardo de longe e a gente ia construindo, né? Então na medida do possível uma participação ativa.
P/1 – Eu queria que você falasse um pouco como é que foi a escolha do nome?
R – Do nome eu falei, né? “Eu sabia que a pergunta vinha”, pelo que eu lembro assim a gente ia trocando ideias, botando ideias e tal, eu acho que fui eu que falei Gol de Letra e gostei do nome e aí o Leo achou assim... Ele gostou também, mas estava em dúvida entre Gol de Letra ou Passe de Letra, né? Eu acho que por uma questão de ser... Passe é uma coisa que vai dar um passe e tal, ele ficou nessa dúvida, mas a questão sonora acabou pegando mais pela questão sonora, porque pega fácil, né? E era aquela coisa do esporte pela educação e tal não existia ainda.
P/1 – Deixa eu te perguntar uma coisa, Raí, o quanto uma seleção que fica 24 anos sem ganhar e em 94 vem campeã do mundo, depois desses 24 anos como você colocou...
R – Você está voltando hein?
P/1 – Estou voltando, mas é uma ponte, e o quanto ela influencia no momento dentro desse contexto social e aí eu estou levando pra uma coisa mais pro contexto do movimento social no país. Quanto ela contribui pra que esses jogadores que se sagram campeões usam sua imagem pra uma questão social? Assim, é mais uma coisa reflexiva mesmo que eu estou te perguntando.
R – Eu lembro que teve uma coisa assim, entre eles estava o Ricardo Gomes também, que também é uma pessoa tão amiga e muito inteligente assim, a gente troca muitas ideias trocava muito na época e depois distanciou um pouco porque ele foi trabalhar fora, mas ele era um que a gente trocava muita ideia com ele. E a gente numa dessas discussões a gente sentiu que o país inteiro estava seguindo essa seleção, a gente via essa coisa do fanatismo e tiveram momentos que a gente tinha a sensação assim: “parece que se a gente ganhar a copa do mundo vai resolver todos os problemas do Brasil, né?”, o Brasil vai continuar com os problemas socioeconômicos, injustiças e tudo que a gente ainda vê, corrupção, isso não vai mudar porque a gente ia ganhar a copa do mundo, né? Então eu acho que essa sensação, essa pressão de um país inteiro em cima de uma coisa que... Claro, a gente tem orgulho e tudo, mas não é uma coisa que vai mudar o país, né? Eu tenho orgulho de ser campeão, é gostoso torcer, mas acho que acaba ultrapassando o espaço que se dá na imprensa para um momento desses assim, sendo que existem tantas coisas absurdas, né, no país e tinham certas críticas assim que era uma coisa de raiva, que parecia que era uma coisa... Então é uma coisa que acho que fez despertar esses jogadores pros lugares, por esse lado assim de que o futebol tem que ser usado também pra... Não é ganhar o campeonato que vai mudar o país, mas talvez que vai ser feita a coisa com esse poder de imobilização, eu acho que isso com certeza tocou todos ali dessa forma, né?
P/1 – Deixa eu te perguntar uma coisa, Raí, quando vocês chegam à comunidade você traz essa preocupação de uma formação educativa tal de formação mesmo, a proposta da organização era muito clara e muito bem estruturada como você mesmo coloca, mas que outros problemas da comunidade... Vocês chegaram, porque tem coisas que são prementes e que têm uma falta... O que vocês perceberam nessa comunidade que era muito latente a necessidade?
R – Violência muito presente na vida das pessoas, muito mais do que eu imaginava quando eu fui visitar. Eu lembro uma coisa assim, era difícil você medir os resultados às vezes, assim, de uma ação dessas, mas eu me lembro das primeiras que deve existir ainda redações, as primeiras redações assim era desenhos na aula de artes plásticas, era uniformes de gangues, né? Logotipo de gangues e de tráfico, pessoas armadas, né? No desenho das crianças, então era alguma coisa que era muito presente e que foi com o tempo desaparecendo. Outra coisa é que a violência e o tráfico fazem parte da vida deles, tem aquela questão da lei do silêncio e tal, mas que a gente que está de fora por mais que esteja indo lá há dez anos não sabe o que é e só quem vive ali, acorda, dorme ali todo dia sabe o que existe ali, né? Esse clima de... Mas que melhorou muito, mas na época era isso, essa coisa de tráfico, violência e aquilo que a gente foi combater principalmente que é a falta de oportunidade, mas também a falta de uma boa formação, né? Tanto de estrutura familiar, como de acesso, alguma coisa dentro de casa, de informação, leitura, então a falta desses acessos, então isso... A qualidade da escola pública, então isso você começa a ver no dia-a-dia e aquele resultado que você acha que vai ter num curto espaço de tempo acaba sendo prejudicado o resultado que eu digo é educacional, né? Prejudicado por essa coisa que mais marcaram essa... Que existe até hoje, existe a dificuldade do garoto de doze, treze anos da escola e não sabe ler e escrever, infelizmente ainda existe, ainda é um desafio, mas na época o que marcou foram essas duas coisas, né? A falta de formação inicial e violência.
P/1 – E me diz uma coisa Raí, desde o começo, os programas que vocês estruturaram tinham sempre uma ponte com a comunidade? Isso sempre ficou muito claro que era necessário?
R – Sempre existiu um desejo, estava lá também no DNA da fundação, estava na missão, estava no estatuto e no estatuto até tem como objetivo, por exemplo, ajudar a qualificar os professores da escola pública, então tem uma série de coisas no estatuto que mostrava já essa vontade de estar além dos muros, né? E a gente sempre também incentivou as pessoas que estão ali a multiplicarem ou as que estão aprendendo de certa forma, eu acho que isso ainda... A gente poderia fazer mais ainda, que é abrir o espaço mais pra comunidade, mas aí é uma questão também de ordem, tem criança e tal, mas na semana a gente abre e tal. E tem desde o começo a preocupação de algum momento ter atividades no bairro, então começou aquela coisa, né? Começou um grupo menor, mas sempre indiretamente tentando tocar muita gente, aí famílias, né? A família desde o início a gente teve uma coordenadora que tinha um perfil muito pra lidar com famílias, com comunidade, então isso ajudou bastante no início na relação e criou uma proximidade maior e mesmo porque no final do primeiro ano já existia uma associação que chamava Mulheres em Ação que nasceu dentro da Gol de Letra que eram umas mães, mulheres dali que já em pouco tempo demonstrava a influência que a Gol já estava tendo na vida das pessoas.
P/1 – Raí, como é que você... Eu queria que você falasse, assim, se durante esse tempo todo você teve algum caso curioso ou mesmo engraçado dentro dessa sua vivência na Gol de Letra, você tem alguma história engraçada ou...
R – Tenho várias assim, deixa eu ver uma... Eu lembro que teve uma logo no início também que uma menina da Gol de Letra foi fazer uma competição de esportes que era de corrida e tal e que ela foi correndo e... Eu acho que era 50 metros a corrida e foi um ônibus da Gol de Letra pra disputar, então as outras crianças ficavam torcendo pela criança que estava competindo. E aí ela estava correndo e todo mundo gritando e incentivando e tal e no final ela chegou em segundo lugar e chegou abraçou o professor e começou a chorar, vocês já ouviram essa história? Aí ela começou a chorar nos braços do professor e tal e daí o professor falou assim: “mas por que você está chorando? Porque você chegou em segundo e não ganhou? Ou você está chorando porque está feliz por chegar em segundo?” e aí a menina falou: “eu estou chorando porque nunca na minha vida tiveram tantas pessoas torcendo por mim.” Então isso... Como é que você pode... O que isso representa na vida daquela menina ali? Com certeza é transformador, né?
P/2 – Essa menina está lá ainda será?
R – A gente acha, né? Eu sei quem é o professor que com certeza vai se lembrar do nome dela. Teve uma apresentação de teatro também que eu vi assim a segunda geração de teatro que foi uma apresentação super simples e tinha uma menina de doze anos, eu acho. E que estava ali na apresentação e foi uma apresentação para os pais, eu estava ali e quando acabou a apresentação ela bateu palmas e não sei o que. Ele veio, deu um pulo assim, me deu um abraço e falou: “Raí eu consegui, nós conseguimos apresentar, a gente conseguiu”, ele falava como se fosse uma coisa impossível, né? Que eles conseguissem colocar em prática aquilo que eles tinham ensaiado, era questão de autoconfiança mesmo, autoestima, também era uma conquista pra ele que foi transformadora assim, né? Porque ele reagiu de uma forma, como ele achava que era impossível eles conseguirem apresentar a peça até o final.
P/1 – E como você avalia a trajetória da Gol de Letra? Você olhando pra trás como você avalia essa trajetória?
R – Acho que uma trajetória de muitas histórias bonitas assim, uma trajetória também... A gente sempre investiu muito em pessoal, em qualidade e acho que a gente reuniu sempre equipes que eram muito exigentes assim, a gente tem um grau de exigência grande com resultado, acho que o lado positivo, mas ao mesmo tempo a gente consegue aquilo que você colocou. Então é uma busca constante e isso fez com que... Eu acho que isso foi uma das causas de bons resultados, eu acho que teve uma influência grande no bairro, assim, criou uma cultura Gol de Letra, vamos dizer assim, né? Nas regiões onde a gente atua, eu estou falando aqui de São Paulo, mas teve Niterói e está agora no Rio há três anos, eu acho que consegui avaliar assim que é uma questão muito satisfatória em termos dos objetivos traçados, em alguns aspectos mais lento talvez, mais... Eu acho que estou satisfeito com tudo, com todos os resultados, mas a gente tem uma visão talvez ingênua de quem está começando que acha que depois de cinco anos vai ter acabado, essa nova geração vai fazer uma revolução, conseguir mudar, construir tudo novo. Na verdade, existe uma revolução acontecendo ali, mas tudo precisa de tempo, né? Então é você se contentar com... Em ser mesmo alguém que colabora é um processo, né? Mas que com certeza nos deixa muito satisfeitos com o que conquistou agora, né?
P/1 – Raí, engatando um pouco na sua fala, o que você aprendeu com a Gol de Letra?
R – Tanta coisa, eu acho que aprendi a me planejar, porque ao longo da minha carreira tudo era bem planejado, né? Então você tem que jogar e ir melhorando e os objetivos estão todos ali, né? Tem que ser campeão, então a planejar, se organizar, são coisas do dia-a-dia da gestão mesmo que eu não tinha experiência, né? Que acaba ajudando... Me fez crescer como pessoa e como profissional, profissional de outras áreas... Qual foi a pergunta mesmo?
P/1 – O que você aprendeu com a Gol de Letra?
R – O que eu aprendi mais? Ah, aprendi essa coisa de transformar uma grande vontade utópica de um sonhador em algo real que se conquista um pedacinho a cada dia, porque você é só um grão de areia para estar no meio ou uma gota no meio dessa onda de transformação e que tem que respeitar o tempo. Então isso traz um pouco mais de humildade, digamos assim no sentido até de redirecionar, né? Aquela empolgação por uma realidade que é dura e que tem que ir dia-a-dia mesmo, mas sem perder a ternura, né?
P/2 – Vou só pegar um gancho no tempo aí, você está falando do tempo, no que você aprendeu, a gente está falando do que aconteceu, né? Você como idealizador da Gol de Letra, nesse ponto que você está agora, como você vê assim se a gente fosse pensar na Gol de Letra daqui a dez anos o que você vislumbra?
R – Tem muita coisa que a gente às vezes estando dentro assim, a gente acaba não vendo todo impacto que tem, a Gol de Letra hoje é uma referência, eu tenho certeza que muita gente se envolveu em associações, em projetos e tudo, porque essa questão da visibilidade da Gol de Letra eu acho que motiva outras pessoas e tal que ouvem falar, “ah, também vou”, são milhões de histórias, os esportistas principalmente, né? Acho que foi um exemplo, então assim os resultados quando você avalia é difícil avaliar, porque tem muita conquista que a gente não enxerga, né? Eu acho que o outro passo que acho que sempre também... Depois de cinco anos a gente teve isso já no início assim, a gente queria colocar em prática e que à partir daquele momento a Gol de Letra tivesse um papel político, digamos assim, né? Quer dizer, sempre nasceu com isso, com a pretensão de ação local que fosse referência, mas em certo momento até por essa ação ter um cacife pra entrar em causas nacionais da própria educação, né? Então eu acho que tem o primeiro conselho do... Pelo menos do Governo Lula, o novo Conselho da Juventude, a Gol de Letra tinha uma cadeira lá e participava das discussões de políticas públicas pra juventude. Então eu acho que isso é uma amostra, hoje em dia a gente é chamado pra vários debates dos profissionais, educadores, então eu acho que o que a gente quer... Acho que são duas coisas, né? Colocar o lado prático e o lado sentimental, isso eu pensando: “a Gol de Letra ter importância e começar a influenciar mais em política pública” e outra coisa além da disseminação... Já estamos fazendo disseminação, já tem dois lugares, informalmente a gente já fez também, ajuda muita gente a implantar projetos e tal. Então tem a disseminação do modelo vitorioso, um modelo de sucesso ou a influência política e o outro lado é um lado mais sonhador assim, porque eu sempre tive um sonho assim e acho que conseguimos um pouco assim que a Gol de Letra começa a se transformar num sinônimo de bem estar social, de paz, de alegria, de justiça.
P/1 – Então eu vou pegar esse gancho do sonho, né? Porque assim, esse sonho que está lá atrás que é de justiça social, aliás, eu queria até que você repetisse, porque assim esse sonho, ele nasceu lá atrás e ele se perpetua e continua... Se eu perguntar pra você agora: qual é o seu sonho? Ele é o mesmo que era há dez anos atrás dentro dessa sua fala que eu queria até que você repetisse, ou não?
R - É o mesmo desde aquele começo, é o que a gente estava falando de redirecionar toda uma... Como diz aquela... O sonho juvenil de querer mudar o mundo amanhã, mas redirecionar para uma coisa prática e de campo e de luta do dia-a-dia, mas sem perder a motivação e é o que nos motiva, né? Isso e as histórias de... Então isso é o ideal que nos motiva e que dá força junto com os resultados práticos assim, né? Junto com... Você vê um jovem, vê a influência que a Gol de Letra tem no bairro e tal, tudo isso é muito... Motiva a continuar, né?
P/1 – Se a gente tivesse feito uma fotografia do bairro, da Vila Albertina em 1998, 99 e uma agora qual é a grande diferença e essa fotografia eu quero que você abstraia é claro, o que você vê de diferente? Qual é a percepção da transformação que tem nessa comunidade hoje?
R – Tem muita transformação assim e eu acho que não só por causa da Gol de Letra, o Brasil também melhorou em muitos aspectos até econômico, teve um momento melhor, mas eu acho que tem no entorno da fundação assim em termos de violência é muito, muito menos que antes assim. Continua tendo alguns casos um pouquinho mais afastado assim, mas no entorno ali é impressionante, eu acho que tem toda uma geração que a gente influenciou que fez com que diminua e ameniza. Tem uma... Eu acho que a gente tocou muito na esperança das pessoas que é algo muito difícil de pegar, né? Desde os primeiros anos assim, mulheres que eram deprimidas e viam ali um motivo pra subir, tomava um remédio, então tem influência desde o aspecto saúde, higiene, de autoestima, né? De buscar, ter mais coragem e esses aspectos práticos assim de violência muito menos e eu acho que um pouco de melhoria da qualidade da média da educação assim conseguindo em cima disso é difícil.
P/1 – E agora qual é a transformação do Raí, menino sonhador, que começa esse projeto, no Raí hoje, qual foi essa grande transformação que a Gol de Letra trouxe pra esse Raí hoje que deixou de ser tímido ou lida melhor com a sua timidez, que transformação a Gol de Letra trouxe?
R – Pra mim, putz, é muito difícil assim de dizer, porque é muito misturado, assim, é tudo a mesma coisa assim, né? Então eu acho que é um agradecimento que ajudou a Gol de Letra e a Gol de Letra me amadureceu muito, mas eu acho que essa visão, hoje quando eu falo... É uma coisa muito gostosa quando eu falo de problemas, eu não vou falar do Brasil, mas de problema social, periferia e não sei o que, não tem só empolgação, tem prática também e isso faz a gente amadurecer de tal forma... De uma forma com base, embasado em alguma coisa com experiências reais, com dificuldades também, mas com ganhos, mas é muito misturado e é uma grande, como o Sóstenes diz mesmo, ele diz assim: “além de tudo, do ideal, de política, de ideais políticos e não sei o que, é uma grande experiência humana, né? De relacionamento humano” você começa com criança, não só com a criança, com a mãe, com o porteiro que mora ali tudo isso é muito rico, né? É muito verdadeiro esse contato com essa realidade assim tão às vezes cruel, mas muito verdadeira. Então eu só posso dizer a maior influência que tem assim é essa riqueza de relacionamento humano que transforma a gente.
P/1 – Raí, pra finalizar, eu queria que você falasse qual a importância de um trabalho como esse de registrar a memória da Gol de Letra?
R – Eu sou sempre um péssimo exemplo de guardar coisas e objetos na minha vida, né? Pessoal, profissional, eu acho que vou sentir falta um dia, então eu acho que começa por aí, eu acho que esse registro é uma coisa importante porque tem muita coisa boa que pode ser aproveitada, reaproveitada, relembrada e acho que... A importância que eu sempre vi na... Quando eu decidi fazer vestibular pra História, né, que é aprender com o passado pra ter um futuro melhor, né?
P/1 – Eu agora só vou voltar um pouquinho na coisa pessoal só pra finalizar, vocês tiveram quantos filhos? Você e a Tina.
R – Tivemos duas filhas.
P/1 – Qual o nome delas?
R – A Emanuella com 25 anos hoje, fez administração de empresa na IBMEC [Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais], a Raíssa que começou fazendo Comunicação na PUC [Pontifícia Universidade Católica] em Campinas e hoje está em Paris, resquício lá da nossa passagem, está em Paris fazendo Artes na Sorbonne com vinte anos.
P/1 – E qual foi a sensação de ser avô tão jovem, assim como pai tão jovem?
R – Eu não sei qual me assustou mais assim, né? É assustador no início, mas delicioso depois que nasceu, tanto um quanto outro, eu não recomendo pra ninguém é muito complicado mesmo, mas depois que nasce a gente...
P/1 – E a sua filha teve o mesmo medo que você... Pra falar com você ou não?
R – Ela falou com a mãe, ela não teve coragem, a mãe que me falou.
P/1 – Bom, e pra terminar eu queria que você me falasse o que você achou de ter participado dessa entrevista?
R – Eu achei muito bom, é sempre bom, né? Relembrar é gostoso, eu estava pensando assim que é um exercício de memória e de compromisso com a verdade também, né? Porque a gente vai às vezes contando histórias, vai fazendo a nossa história do passado e tal. Então vai sempre relembrando assim: “será que foi assim mesmo?” Tentar ser verdadeiro, mas é importante pro registro, a parte da carreira eu confesso que já contei milhões de vezes assim, a parte pessoal também um pouquinho, mas menos, né? Mas sempre é gostoso, é gostoso relembrar.
P/1 – Então eu queria agradecer em nome do Museu da Pessoa...
R – Ah, tem uma coisa sobre essa pergunta, eu já pensei muito nela assim, esse exercício faz a gente ter uma noção assim que a Gol de Letra que a ação, que as conquistas são muito maiores do que a gente consegue ver às vezes no dia-a-dia, são boas essas reflexões, quando você pára assim, tem muita coisa, muita coisa, não é pouca, a gente tem a tendência pelo menos nós da Gol de Letra a minimizar assim e dez anos é muita coisa é um acúmulo de coisas que a gente acaba fazendo uma coisa gigante.
P/1 – Obrigada.
(parte 2)
P/1 – Raí, bom dia?
R – Bom dia.
P/1 – Eu queria retomar um pouquinho do seu depoimento quando você... Você comentou com a gente que essa coisa de começar a pensar em trabalhar com... Sei lá, de dar uma ajuda e tal começou no apartamento de vocês em Paris na sacada que você a Tina, o Leonardo, a Bia sentavam e ficavam conversando, né? Então assim eu queria que você falasse pra gente um pouquinho desse momento, se foi ali mesmo que começou essa ideia de trabalhar com o terceiro setor? E o que eram essas conversas?
R – Bom, eu e o Leonardo a gente vinha conversando desde que a gente se conheceu, ele no começo da década de noventa tinha um pouco mais ainda de fazer alguns eventos pontuais, tinha algumas preocupações pra começar até antes da carreira, algum tipo de ação mais pontual. E lá na França na verdade nós morávamos em casa, então era a sacada da casa do Leonardo esse é o momento que eu lembro mais assim. E aí era uma coisa que veio crescendo, aí se inverteu, eu já estava pra voltar por Brasil, eu sabia que ia voltar em 98 por aí e o Leonardo ia ficar um pouco mais fora. Então essa coisa estava mais latente em mim, né? Porque eu estava voltando e eu comecei a falar com ele pra gente fazer alguma coisa junto, porque até então a gente falava em fazer coisas separadas ele de um lado e eu de outro e daí essa coisa estava muito forte em mim. Aí como eu estava voltando pro Brasil eu falei com ele: “eu já vou estar lá, eu vou começar a conversar... Eu conheço algumas pessoas”, e aí foi nesse papo que a gente foi afinando como seria a parceria, quais seriam as linhas principais do projeto. E é claro, coisas mais conceituais até porque chegando aqui que eu ia ver as coisas mais práticas e aí a gente afinou isso lá em Paris, ele acabou indo pra Itália em 97 ainda, no meio do ano de 97 e eu voltei pro Brasil em 98 e em 98 é que começou a... Mas era uma questão de inquietude, de querer estar de alguma forma participando, né? Eu acho que essa questão... Uma preocupação íntima nossa aqui já existia social de uma maneira mais ampla e que nos deixava incomodado como todos os brasileiros, se juntou ao fato de sermos pessoas públicas. Então é claro que pra quem quer fazer uma ação, algum tipo de ação você sentir que tem um potencial grande isso faz com que você se sinta mais ansioso pra começar e foi ali naquele momento que veio essa ansiedade maior.
P/1 – Você diz dessa inquietude que você sentia, houve alguma situação que despertou essa inquietude, assim, interesse que você se lembra ou era uma coisa que já vinha de algum tempo?
R – Bom, o que despertou na verdade não foi despertar, foi vislumbrar a possibilidade de se concretizar que foi quando eu voltei da França que conheci a Ana Maria que era superintendente da Abrinq, eu participei de uma campanha, uma campanha pra Abrinq e era: “Adote um Sorriso” e ali eu quando comentei com ela a vontade que eu estava pra voltar. Aí ela se colocou toda à disposição, colocou a Instituição Abrinq pra nos ajudar, então isso me deixou mais... Eu vi um caminho concreto por onde começar, eu acho que ali foi a coisa mais concreta e foi aí que eu voltei pra França e continuamos as conversas com o Leonardo, com todo mundo. Mas eu acho que essa inquietude vem de tentar mesmo dar nossa colaboração de uma maneira a princípio não governamental completamente até pra poder colocar em prática aquilo que a gente acreditava e pouco a pouco também começar a ter... A gente tinha essa noção assim que pouco a pouco também ia poder ter uma ação política também maior, né?
P/1 – E me diz uma coisa, Raí, você colocou também que essas conversas que vocês foram afinando tinha uma, vamos dizer assim, uma confluência da área que vocês queriam atuar? Vocês queriam realmente atuar na educação? Ou queriam atuar no esporte? Tinha uma discussão em que área... Tinha uma divergência ou uma confluência entre você e o Leonardo de que forma vocês queriam atuar? E de que área vocês queriam atuar?
R – Bom, o que a gente sempre quis, isso eu acho que era também uma vontade dele e uma maneira mais viável da gente fazer era criar o que a gente imagina pro país numa determinada região como se fosse uma amostra e conseguir ter resultados, ter uma ação prática pra daquilo servir como exemplo, incentivar outras pessoas ou se engajar depois dentro daquilo que a gente ia estar fazendo em um movimento maior. E a gente, é claro, tem uma coisa com o esporte, mas a gente sempre... Até por ter crescido dentro do esporte, a gente sabia que isso era algo que restringia e não era o que a gente queria, a gente queria uma ação que fosse mais ampla nos dois sentidos, né? Ampla nos dois sentidos, no sentido de ter uma formação, mas era pras pessoas que iam ser beneficiadas e de ter na região onde a gente atua atingir um universo maior, quer dizer, não só as pessoas que gostam de esporte, as pessoas que têm aptidão por esporte, mas sim um trabalho comunitário. Então a gente foi vivendo pouco a pouco, foi caminhando com essa questão da educação de uma maneira geral e a gente foi se aprofundando nesse assunto, na questão educacional e fomos vendo que não ia ser uma ação com o esporte, não só exclusivamente com o esporte, mas sim utilizar o poder do esporte pra viabilizar essa ação, pra chamar a atenção para também estar lutando pela causa maior que era a educação.
P/1 – Quando vocês vêm pra cá nesse contato com a Abrinq, você ainda... Vamos dizer assim você continuou em Paris ainda? Você estava no final de carreira, né? Como é que você conciliou um pouco esse final seu de carreira futebolística em Paris ainda, porque quando você volta, você ainda continua jogando, né? Mas a sua estada em Paris e a montagem de toda essa estrutura do início da Gol?
R – Quando eu voltei, eu joguei dois anos ainda no Brasil no São Paulo, então eu voltei em maio, a Tina com as minhas duas primeiras filhas voltaram em janeiro pra pegar o ano letivo. Então eu já estava começando a preparar as malas pra vir e uma dessas voltas, dessas vindas pro Brasil antes de voltar definitivamente eu e a Tina fomos à Abrinq e já vimos ali grandes possibilidades e começamos a detectar projetos parecidos que a gente iria conhecer. E aí a Tina, como eu não estava aqui definitivamente, começou a ir e quando eu voltei pro Brasil, eu comecei a participar mais das reuniões, mas as visitas a Tina já estava começando a fazer. Aí eu comecei a participar mais ativamente das reuniões isso já no segundo semestre, começo do segundo semestre em junho, julho de 2008 ainda...
P/1 – De 98, né?
R – Isso de 1998, no segundo semestre de 98 e a coisa começou a evoluir muito rápido e eu acho que essa ansiedade nossa acabou transmitindo... Sendo transferido também pra Abrinq, porque a gente acabou lançando o projeto no final de 98, lançando como ideia, começou em 99 só. Mas esse lançamento é porque a coisa fluiu, eles viram que a gente estava realmente convictos do que a gente queria fazer, houve um desenvolvimento do que seria na prática do projeto mesmo, também de uma maneira rápida, alguns contatos importantes e eu acho... Quando eu falo que a gente transferiu, eu acho que a Fundação Abrinq e outros parceiros que estavam se juntando viam o lançamento da Gol de Letra como algo importante pro terceiro setor, pro país de uma maneira geral, eu acho que por serem pessoas públicas ia ter uma visibilidade grande, pela exemplaridade. Então eu acho que eles mesmos também nos ajudaram aqui pra que esse processo fosse até rápido, né? Eu cheguei em maio de 98 e em dezembro já estávamos fazendo o lançamento.
P/1 – E, Raí, me diz uma coisa, como era a comunicação com o Leonardo que nesse momento se encontrava na Itália, né? Como essas decisões que vocês iam tomando e, claro, dento de um processo que você mesmo coloca como rápido, como é que vocês iam posicionando o Leonardo e alinhando ele dentro dessa proposta que estava sendo estruturada aqui?
R – Bom, já nas primeiras conversas com a Fundação Abrinq, eu já me entusiasmei e ligava, né? Eu acho que a gente poderia até colocar a conta telefônica como investimento inicial, né? Então tinha muito telefonema e ele participava assim ativamente, ele é uma pessoa muito... Vibra bastante, muito intensa, né? Então ele mesmo de longe, ele vibrava muito, dava certa insegurança por estar longe, mas vibrava e tinha confiança em mim, né? Então foram muitas conversas e é claro nas decisões principais era: “vamos, nós estamos indo assim o que você acha? E tal” então era uma troca telefônica mesmo, tivemos poucos contatos nessa época pessoal, mas ele ia vibrando assim de longe, acompanhando e confiando, né?
P/1 – E tem uma... Se você for olhar dentro nesse primeiro momento da sua atitude com a atitude dele o que diferencia Raí empreendedor e o Leonardo empreendedor? O que de característica de vocês que você acha que tem uma complementaridade ou que pelo menos conseguiu colocar a coisa em pé?
R – Bom, a gente realmente é bem complementar, teve essa troca no início, ele... Quando nos conhecemos, ele um pouco mais já predisposto a uma ação e quando eu estava voltando pro Brasil eu mais... E ele sempre foi mais entusiasmado no sentido de querer começar logo, de andar, porque eu estava jogando ainda, né? Então não era fácil conciliar o tempo e tudo, e ele é uma pessoa mais cautelosa no sentido da questão prática, de recursos, de sustentabilidade do projeto, né? De médio e longo prazo, questão de números, ele sempre teve esse cuidado maior e eu menos, né? É uma coisa, claro que me preocupa, mas não é uma coisa que eu gosto de fazer mesmo assim, né? Nem na minha vida pessoal, então eu acho que isso é uma coisa bem complementar, ele mostrando os lados, os perigos e eu ao mesmo tempo tentando mostrar pra ele que era possível mesmo, assim, com um certo risco, né? Então eu acho que teve esses dois lados que se complementam e até hoje a gente quando troca, quando tem que tomar decisões estratégicas, não quer dizer que a gente acerte sempre ou erre sempre, mas sempre tem esse balanço que eu acho que é importante pra instituição.
P/1 – Me diz uma coisa, Raí, você fala muito no começo com a Abrinq, quem ajudou vocês também nesse começo? Que outros parceiros vocês tiveram que foi muito significativo pra Gol de Letra e qual foi o papel deles dentro dessa... Assim no começo aí?
R – A Abrinq foi um catalisador que nos colocou em contato com diversas instituições e que foi nos dando segurança, teve na questão jurídica o escritório que é até hoje o Rubens Naves que tem história na própria Abrinq. Então isso foi nos deixando bastante seguros, alguns profissionais da Rubens Naves que particularmente se envolveram mais, o Guilherme que foi uma pessoa importante, né? Em vários momentos da instituição depois disso na questão pedagógica teve a primeira contratação que foi a Sônia London que já tinha certa experiência principalmente perto de nós e que tinha muitos contatos. E que tinha uma visão do que poderia ser o trabalho que batia muito com o que a gente acreditava. E também nessa questão pedagógica e de linha de trabalho o Cenpec que também é com profissionais de alto nível e que foram nos ajudando a construir, dando conteúdo sólido pra ação, não só currículo pedagógico, mas também de envolvimento com comunidade e coisas desse tipo. Tiveram outras pessoas na questão do esporte que a gente sabia que ia ser algo importante, o Marcelo Jabur, né? Educador que tem sua empresa de consultoria, então foi muito importante também, que conseguiu encaixar uma visão do esporte que ia bem com o que estava sendo construído, diferenciado. Quem mais? Difícil, é tanta gente no caminho, mas acho que no início foram estes. Depois fomos conhecer o Instituto Ayrton Senna, eu cheguei a falar com a Viviane na época que estava começando, eu lembro que na primeira conversa por telefone com ela que ela falou assim: “eu levei alguns anos pra ver que realmente tinha que investir toda energia na questão da educação, da formação, numa transformação mais estrutural, né?” Então isso foi encorajador, né? E ela, o instituto de alguma forma no início um pouco mais a frente também nos ajudou e alguns outros profissionais que a gente pode ir lembrando aos poucos aí, profissionais e instituições.
P/1 – E como se deu a parceria com a área de comunicação... Vocês tiveram um parceiro que foi o Pitti, não é isso? No início?
R – Sim.
P/1 – E como ele se engajou nessa parceria? Como é que você o conheceu?
R – Bom, a gente sabia que ia ser uma coisa importante ia ter uma demanda grande e também acho que assim uma coisa importante foi que a gente não economizou nem energia pra encontrar parceiros pra... Em alguns casos até recursos pra fazer uma coisa bem feita, né? Claro que têm muitos desses parceiros, a grande parte entrava como voluntária, mas tinha o material, serviço. E o Pitti, eu conheci, Pitti Brant chamava, não sei se chama ainda a agência, eu conheci numa campanha que eu estava fazendo pra Copenhagen se não me engano e contei o projeto pra ele e perguntei se ele poderia dar uma ajuda e gostei dele pessoalmente e ele de pronto se colocou a disposição e fez um excelente trabalho, né? Foi ele que criou o logo, todo o material foi de primeira qualidade, o material de comunicação pro lançamento. E teve também outro parceiro que é a MV Vídeos que era a Miloca que foi quem me apresentou a Ana Maria antes da fundação existir. Então foram os dois parceiros históricos aí e o Pitti teve uma importância muito grande, deu cara, né? Deu cara à ideia e eu acho que o reconhecimento assim e a boa repercussão que teve se deve a esse apoio que a gente teve, né? Não só da força que a gente tinha de comunicação, mas de como ela foi feita.
P/1 – Me fala uma coisa, Raí, você tocou na questão do logo, né? O nome, eu queria que você contasse pra gente como surgiu o nome Gol de Letra? Você até citou um pouco que era Gol de Letra ou Passe de Letra e por que ficou Gol de Letra? Tem alguma coisa a ver com um Gol que é feito que tem esse nome? Tem alguma coisa relacionada a isso ou é lenda?
R – Com um gol que é feito?
P/1 – Eu estou te perguntando, eu queria entender é por causa do nome porque parece que tem um gol...
P/2 – Gol de placa.
P/1 – É alguma metáfora?
R – Gol de Letra, letra é um gesto de futebol.
P/1 – E que gesto é esse?
R – É um gesto que você deixa passar a bola entre as pernas e pega de calcanhar atrás, você deixa passar e faz assim e não sei por que, mas parece que faz alguma letrinha ali. E aí isso já é uma coisa conhecida no futebol, não é gol de letra, tem toque de letra, passe de letra, o gol de letra é quando você faz o gesto e a bola entra, né?
P/1 – E que deve ser difícil.
R – É difícil e raro, né? Claro que foi um jogo de palavras, a gente estava jogando ideias e nomes e daí eu comentei com o Leo desse nome que eu acho que era um nome que pegava e ele achou assim “putz, não é um gol ainda, né? É um passe, tem um...” eu acho que o Leo foi mais politicamente correto, mas na época a gente nem pensava nisso, a gente não vai fazer o gol, a gente vai dar um passe pra... Mas o gol eu acho que marca mais, acho que é questão de comunicação, nós tivemos muito... Aí bom, teve essa ideia e ele falou, depois acabou concordando as pessoas gostaram, mas por que gol de letra é porque era um jogo de palavras, quer dizer é o esporte pela educação como ideia geral. Então letra era pra fazer um jogo de palavra com educação e gol representando o esporte, representando o objetivo e é um nome realmente que pega muito fácil. Nós tivemos o lado bom nisso que é todo mundo conhecer o nome e tal, rapidamente pegou e o lado difícil foi que como não era uma ação de esportes só exclusivamente esportiva com dois investidores do futebol, o nome Gol de Letra ter gol no nome e tal. Então esse jogo de palavras a intenção... O nome pegou, mas a intenção demanda um tempo mais, só quem está mais próximo quem conhece o trabalho é que acaba entendendo mais rapidamente.
P/2 – Uma pergunta, você chegou a fazer algum gol com passe de letra?
R – Fiz, fiz dois gols e eu acho que o último gol da minha carreira foi um gol de letra.
P/1 – E você lembra contra quem?
R – Palmeiras na Copa do Brasil, eu acho que foi uma semifinal da Copa do Brasil no Parque Antártica e fiz um gol de letra que passa até em alguns vídeos da fundação no Paris Saint-German também.
P/2 – Que legal. Deixa eu te perguntar outra coisa Raí...
P/1 – Deixa eu voltar nessa coisa do logo, junto com o Pitti vocês foram montando... Teve o nome, aí vocês foram montando o logo, pensando, trabalhando com ele ou ele chegou com uma proposta mais finalizada?
R – Eu não lembro exatamente, mas a proposta gráfica a gente não participou assim, foi inteiramente dele, ele apresentou, talvez ele tenha apresentado um ou outro também como opção. Mas esse daí que a agência escolheu foi aceito, a gente deve ter feito um briefing obviamente, ele desde o início quando eu o conheci e quando ele apresentou o logo antigo acabou já aceitando de início, né?
P/2 – Raí, eu queria que você falasse, por exemplo, nesse começo como era a captação de recurso? Como foi fazer essa atividade no início? E atrelar muito a imagem desses dois grandes jogadores, né? Como é que foi essa atividade, quem desenvolvia isso, qual foram os desafios que vocês encontraram?
R – Nisso a gente era muito cru, né? E foi na prática mesmo e com pessoas ajudando, eu lembro que Sônia mesmo trouxe a Célia Cruz que na época... Ainda é reconhecida, mas na época, no trabalho que ela fez na Getúlio Vargas tinha sido muito reconhecida e ela é muito requisitada pra estar contando, a experiência dela meio que serviu como inspiração e guia. Nós fizemos alguns encontros desse tipo, esse é um exemplo, pra nos dar ideias, e eu lembro que a gente tinha um fundo é claro que esse fundo seria reserva pra gente poder usar em emergência e tinha que achar parceiros até pra que o projeto durasse, né? E isso eu não tinha nenhuma experiência, eu não sei se contei da outra vez. Teve algo engraçado que nós fomos numa palestra, uma das primeiras palestras do terceiro setor que eu participei e estava o diretor geral da Fundação Kellogg que era o Marcos Kisner, se não me engano na época, e a Sônia falou assim: “o Marcos Kisner falou que quer te receber pra você apresentar o projeto e tal.” Eu falei: “legal” e contou um pouco o que era Fundação Kellogg que era muito ativa no Brasil e eu fui lá encontrá-lo e contei de todo o projeto, né? Ainda não existia concretamente, né? Eu mostrei, falei qual era a ideia, o que a gente queria mobilizar, o meio esportivo e tudo e ele adorou e tinha claro um projeto que era o Virando o Jogo, de sete a catorze anos que já estava previsto pra começar e a gente precisava de um parceiro, eu contei tudo, mas eu achei que quando ela falou: “vai falar com ele e não sei o que”, eu nem imaginava que era pra... Eu não fiz a visita pra conseguir um parceiro, aí ele gostou tanto da ideia, do projeto, dos parceiros também, ele ficou impressionado com a qualidade dos parceiros que a gente estava envolvido. Aí eu acabei e contei todo o projeto, eu pensei que era uma coisa a mais pra trocar com ele, dar algumas ideias e tal. E aí no final ele ficou esperando, ele falou: “e aí, mas o que você quer?” Eu falei: “não sei, eu vim aqui saber o que você acha do projeto se você acha que está no caminho certo e tal, e não sei o quê.” Aí depois na verdade quase que ele me convenceu que eles tinham que ser parceiros do projeto financiando mesmo.
P/2 – E me diz uma coisa Raí, qual é a facilidade de usar a imagem de dois jogadores tão fortes, qual é a vantagem disso e qual é a desvantagem? Você consegue mostrar isso pra gente?
R – Bom, a desvantagem obviamente é que primeiro as pessoas acham que não precisa, né, “ah, já tem... Vou ficar custeando o projeto o resto da vida, eles têm dinheiro”, isso é uma dificuldade, outra dificuldade é que muitas empresas, tentativas de parceiras que se aproximam mais pela nossa imagem ou de alguma forma de ter o nome da instituição ligada à nossa imagem de uma forma mais barata do que fosse normalmente e não está muito ligado ao que é o projeto, de ser um parceiro do projeto em si. Então eu acho que são as duas grandes dificuldades e o lado facilitador é que a gente tem abertura em qualquer lugar, né? Pra encontrar desde o prefeito à padaria da esquina as pessoas pelo menos nos recebem, nos acolhe, dão atenção, escutam, vendo alguma possibilidade, então isso existe e facilitou em muitos casos. Eu acho que são essas duas, é claro que isso se deve ao que a gente construiu de credibilidade e que a gente sabe também que só consegue manter isso, porque o projeto também ganhou credibilidade própria, respeito e reconhecimento próprio. Eu tenho certeza que essa visibilidade que ajuda é a mesma visibilidade que se acontecer alguma... Se for mal feito vai aparecer também e vai colocar em questão não só a credibilidade do projeto, mas também nossa, né? Então é uma ligação muito direta que é uma responsabilidade.
P/1 – E, Raí, me fala um pouquinho, no começo... Aliás, eu tenho duas perguntas, eu vou fazer a outra primeiro, esse espírito de liderança que sempre apareceu quando você era capitão dos times, isso fica muito claro tanto no São Paulo ou mesmo no time de Ribeirão e mesmo quando você vai pro Paris Saint-German, de que maneira ela contribuiu pra você liderar a Gol de Letra?
R – Bom, eu tenho muitas... Hoje eu tenho até nas minhas palestras que eu dou pra empresas, muito do aprendizado do futebol acaba servindo pra qualquer outra atividade. A liderança é uma questão, eu acho que natural, mas o exercício da liderança é algo que vai se aprendendo a cada dia. Então futebol é uma maneira muito intensa porque todo ano você tem um grupo novo invariavelmente porque pelo menos no mínimo 20% ou 30% da equipe acaba trocando, quando não troca treinador ou quando você não troca de time. Então toda temporada existe um recomeço de você construir um grupo, né? Uma equipe pra vencer e essa reconstrução e eu como papel de liderança, não todo o tempo, mas depois de algum período acabava exercendo, eu como um dos lideres dos clubes que passei ficava mais latente, mais intensa ainda a experiência. Então eu sabia que ali eu tinha que ter um papel ativo de relacionamento, de criar um ambiente melhor possível, ajudar a criar um ambiente melhor possível de grupo mesmo, né? Então esse exercício eu acho que serviu pra ajudar a montar as equipes, montar equipe pra Gol de Letra, por exemplo, de saber como unir pessoas, tentar gerir conflitos quando aparece, né? Quando existe, porque sempre existe, mas quando aparece, saber a melhor forma de gerir esse conflito, de como potencializar cada um, ver o potencial de cada um que foi se juntando, das instituições, eu acho que isso tudo foi um aprendizado do esporte que acabou passando. E a liderança em si, eu acho que como eu falei, eu acho que é algo natural e que isso, eu acho que as pessoas até me alertam mais do que eu tenho consciência, mas eu depois de dez anos, eu vejo que a importância minha, do Leonardo e outros líderes que passaram na Gol de Letra que deixa uma marca, um estilo, uma postura que acaba sendo um pouco do que a gente é, do que a gente passa pros outros, né?
P/1 – Eu queria que você falasse um pouquinho agora até juntando... Essa estratégia, por exemplo, de captação, ela mudou durante esses dez anos? Porque assim no início ela é muito usada em cima da imagem de vocês e aí tem toda essa força da liderança que de certa forma também contribui pra que haja uma capilaridade dentro da organização no sentido de se pensar essa questão da sustentabilidade. Houve uma mudança ou há um interesse de mudança nessa estratégia de captação de recurso Raí?
R – Interesse sempre houve, na prática assim... É claro que a gente teve muita colaboração, mas ainda tem muita coisa ligada aos nossos contatos, não digo nem imagem, mas aos nossos contatos que eu diria que nesse aspecto eu acho que passou de imagem pros nossos contatos porque, como eu falei, a instituição ganhou um reconhecimento por si. Então eu acho que continua dependendo bastante dos nossos contatos nessa atuação ativa, nesse aspecto, né? No mais, a mudança de perfil da capitação foram as mudanças de mercado, né. No início quando a gente começou há dez anos existiam muitas instituições empresariais, financiadoras, que não tinham seus próprios projetos, mas financiavam outros e instituições internacionais como a Fundação Kellogg, tinham outras que não foram nossas parceiras, mas que na época tinha bastante. E claro que o fato de ter sido assessorado pela Abrinq nos colocou em contato com essas instituições. Então foi um primeiro caminho, um caminho natural pro momento e pelos contatos que a gente teve. Depois pouco a pouco foi indo pras instituições privadas, pras empresas que começaram a se interessar em financiar projeto diretamente e sem incentivos fiscais na época. E hoje em dia num terceiro momento eu diria existem, eu acho que de 70% a 80% ainda é por iniciativa privada, mas hoje muito mais também procurando alguns incentivos fiscais que existem, como da Lei Rouanet, todas ligadas à cultura, hoje tem a Lei do Esporte, tem o fundo da criança e adolescente, né? Então as empresas hoje eu acho que a preocupação continua em estar colaborando só que eles buscam essas alternativas por razões acho que econômicas, né?
P/1 – E me fala um pouquinho como foi a estruturação do estatuto da Gol de Letra no início, como é que foi a discussão da estruturação desse estatuto?
R – Foi uma discussão muito intensa assim, muito rica, muitas reuniões, né? Com a gente... Até no nosso vídeo institucional antes que existisse a fundação tinha o vídeo de lançamento que fala assim: “reuniões e mais reuniões.” E foi muito intensa, primeiro porque a gente não tinha experiência nenhuma, né? Eu fui sócio de uma empresa durante a minha carreira, mas era com irmão que cuidava dessa parte prática, a minha carreira toda foi como atleta que tem o seu contrato, sua lei específica de atleta profissional. Então a palavra estatuto pra mim era uma coisa muito vaga, pra que serve o estatuto, né? E como ele é construído. Então esse foi um aprendizado, né? Eu acho que uma das coisas que eu cito hoje é que eu aprendi muito com a Gol de Letra não só na prática, no dia-a-dia, no contato com o projeto com as crianças, mas nessas questões burocráticas também e de novas experiências. Então o estatuto foi... Eu acho que foi muito rico foi que ele foi verdadeiro, foi muito discutido em cima... Porque o estatuto geralmente tem um padrão, é claro que a gente seguiu padrão modelo de sequência que tem que ter emissão e não sei o que, mas o conteúdo de cada cláusula foi muito respeitada a nossa vontade, foram respeitadas as nossas discussões nessas reuniões o que ia sendo descoberto que as pessoas ajudavam... Algumas ajudavam a descobrir. Então foi um projeto rico e muito legítimo.
P/1 – Ele reflete muito o que a organização faz, é isso que você está querendo dizer, né?
R – Eu preciso reler, né? Mas ele reflete, ele foi todo discutido em cima do que a gente pretendia fazer, em cima dos nossos anseios também não só coisas práticas, os nossos anseios, nas coisas que a gente acreditava, né? Então isso foi bastante respeitado e os pontos que eu me lembro de cabeça existem muitos deles assim que eu fico orgulhoso e impressionado e até... Porque às vezes você traça um caminho que por vários outros motivos você vai tendo que adaptar, eu me lembro desses pontos e quando você relê você vê que realmente foi seguida, a gente está bem fiel, né? A ideia original teve adaptações, mas eu acho que no estatuto que é uma coisa mais ampla a gente está dentro e continua muito alinhado.
P/1 – Me corrige se eu estiver errada, do conselho fazia parte nessa época o... (troca de fita)
R – Tem uma coisa do estatuto que eu acho interessante é que muitas pessoas novas que entram e a gente está discutindo planejamento estratégico e a gente fala de disseminação, de atuação, coisas que aconteceram muito depois da criação do estatuto, da criação de um projeto nas escolas públicas que já existe, de mobilização do meio esportivo tudo isso está lá, né? A gente às vezes quando está implantando ou está discutindo, as pessoas que não participaram desse início assim às vezes nem sabem que isso já existia, isso é bom, né? E outra coisa muito legal assim, se eu lembrar eu falo depois é que foram seis anos, cinco anos depois da fundação, eu ouvi jovens da fundação que vieram a ser monitores falar frases que a gente falava, né? Naquelas discussões, a mesma frase e é bonito isso, né?
P/2 – Você falou do orgulho, Raí, assim, você falou assim: “tem algumas coisas que eu me lembro do estatuto que me trazem muito orgulho”, você pode trazer isso?
R – Orgulho assim das coisas que me trazem do estatuto é de ver que a gente meio que talvez até inconscientemente tinha muita... Sabia onde queria ir, né? Aonde a gente quer ir, na verdade, porque ele é amplo e dá possibilidades, né? Eu acho até por isso é que é uma fundação, fundação no nome por dois motivos, foi uma questão de assessoria jurídica claro, mas a fundação te dá possibilidade de... Se você tem outra denominação jurídica em outras regras tem algumas limitações se for crescer, você tem que mudar o estatuto e tal, a gente já tinha um pouco essa... Eu acho que muitas coisas inconscientes, orgulho que eu falo de estar dentro e dessas coisas que... Desses detalhes que foram se repetindo de geração em geração de pessoas que nem participaram da situação.
P/1 – E você não se lembra de nenhuma frase, né?
R – Ah, eu posso lembrar, eu não lembro assim exatamente, eu acho que a questão de... Eu não vou lembrar agora assim, mas a questão de... Eu não me lembro em palavras, mas a questão mais comunitária e não, por exemplo, dos jovens que passando pra outras crianças e tal, de ter essa preocupação de estar passando conhecimentos, de ter uma visão comunitária, de se preocupar em ter uma ação transformadora pro bairro e não só ali dentro, coisas desse tipo, né?
P/2 – Então, falando desse começo ainda, da formação do conselho e da presença do Zetti, assim, como se dá esse convite? Mais um colega do São Paulo, né?
R – A gente começou assim como uma instituição muito familiar que foi crescendo e muitas pessoas participando e tal e aí o Zetti e a esposa eram bem próximos e toparam participar. Aí depois eu acho que só não participaram mais ativamente porque o Zetti foi jogar em outros clubes, em outras cidades e depois virou treinador, mas a esposa dele quando eu estava fora ela ficou como presidente, né? Então o Zetti participou de vários eventos até hoje, então eu acho que é uma coisa que começou pela amizade e por acreditar também no projeto permaneceu, né? Então eu acho que eles acreditaram em alguns momentos, participaram de forma ativa e acho que podem vir a ter um papel também no futuro.
P/2 – Raí, agora trazendo um pouco mais dessa fase... Você falou pra gente da abertura de Niterói, por que se deu ou mesmo o Caju, né? Mas eu queria retomar aquele momento da conversa que é assim: dentro do planejamento estratégico de vocês que foi feito na ocasião, a continuidade de Niterói e mesmo a abertura de Caju se dariam, por que o fechamento de Niterói, Raí?
R – O fechamento teve alguns motivos: uns mais fortes, outros menos, eu lembro que a gente foi pro Caju tinha a intenção de ter uma atuação no Rio de Janeiro de participar daquela discussão, naquele fervor tinha uma vontade muito grande do Leonardo também. E Niterói a gente já tinha um caminho, estava num momento complicado economicamente. Nós tivemos alguns problemas de atraso de parcerias que tinham se comprometido, mas atrasaram e isso foi tendo uma complicação econômica que chegou um momento que tinha que tomar essa decisão num período curto, num espaço curto assim, a gente poderia até chegar à mesma conclusão, mas a gente teve que abreviar isso. Eu acho que a gente viu o que Caju... No Rio de Janeiro a gente queria entrar nessa discussão, tinha um potencial grande de crescimento e a gente estava começando e tem uma necessidade muito grande, né? Niterói também tem seus pontos assim, mas em termos de estrutura da cidade até por ser uma cidade menor tem mais possibilidades de resolver esses problemas agudos nesses pontos de pobreza, né, onde a gente estava atuando. Então eu acho que foi isso teve uma decisão pra ser tomada pra reduzir custos, essa questão, a gente começou em Niterói que não era dentro da comunidade, a gente tinha o espaço do Leonardo que os jovens é que vinham, quer dizer, a comunidade é que vinha, tinha reunião de pais e os pais, mas fora. Depois a gente acabou passando pra comunidade que era uma vontade e aí já tinha essa história, né? Eu acho que a gente deixou muitos benefícios lá de formação de jovens de uma geração, de mobilização comunitária que é importante e aí a gente teve que tomar essa decisão estratégica também por motivos econômicos.
P/1 – E, Raí, quando você vai pra uma comunidade do tamanho de Caju que não é uma comunidade só, são várias comunidades e que tem o tráfico de uma forma tão pesada, como é que é essa relação dentro de uma estrutura... Como chegar numa comunidade com um problema tão grande e tão bem estruturado dentro dessas comunidades que é o problema do tráfico?
R – Bom, isso foi um... Quando a gente começou em São Paulo, a gente teve seis meses de aproximação com a comunidade e tudo com assessoria, a gente já chegou já tinha certo know-how pra isso e a gente pra decidir entrar no Rio, a gente fez um estudo em várias comunidades do Rio de Janeiro e um estudo profundo com números, com histórico, científico, né? E já com profissionais internos, uma equipe interna que estava trabalhando em Niterói e isso já nos deu uma radiografia da região importante, a gente teve como estratégia de início de trabalho no Caju, trabalhar em parceira com as associações e ali era uma associação de bairro. Então já tinha uma entrada, um contato, então foi uma coisa bem gradativa, fomos andando, tivemos dificuldades e tudo, mas a gente foi crescendo pouco a pouco até ter o nosso espaço que tem hoje lá e que é maravilhoso. Mas acho que esse período de preparação, de estudo, de contato, de reuniões e tantos os instituidores, né? Tanto eu, quanto o Leonardo, Bia e outros participaram de várias reuniões com liderança do bairro. Então a gente entendendo e aprendendo aos poucos e começamos o trabalho lá menor, mas em parceria já com as instituições locais, né? Então eu acho que isso que foi fazendo que a gente aprendesse, de saber a melhor forma de atuar e pudesse crescer como estamos crescendo agora lá.
P/1 – Vocês têm parceria com uma organização que é OMS, né? Como é que é? Que é uma organização que está lá há muito tempo que até o espaço onde vocês estão, né?
R – SOS.
P/1 – Eu estava tentando lembrar. É uma organização antiga, né?
R – É uma organização ligada ao Rotary Clube e que tinha um espaço lá que estava abandonado, assim, as nossas primeiras parcerias eles não estavam... A gente foi nessas lideranças, a gente foi conhecendo e viu que existia esse espaço grande no meio da comunidade da maneira que a gente gosta de atuar. E aí a Isa estreitou essa parceria até pra otimizar o espaço que estava ocioso, sem uso, abandonado, então eu acho que foi uma parceria boa pra eles até pelo... Porque tinha perdido um pouco o sentido do espaço porque não tinha atividade. Então a gente pôde reativar, reformar e acho que estão satisfeitos também, então foi essa parceria pelo espaço, mas tudo visando o benefício ali da comunidade, mas esse eu acho que é um desafio que a gente sempre quis assim de... Essa questão do tráfico existe também em São Paulo, lá muito mais forte e eu acho que a questão do Rio de Janeiro em si, o Caju abandonado do jeito que é, então é um desafio que motiva a gente assim. A gente sabe que é delicado em alguns momentos, mas que a gente estava querendo.
P/1 – Raí como se deu a sua entrada na Avina?
R – Na Avina foi... Na verdade foi um convite, né? Na época era o Geraldinho que era o responsável pra fazer os convites aqui pelo menos da região e aí não teve nenhum contato, antes eu tinha ouvido falar, eu conhecia pouca coisa ainda e é claro que fiquei satisfeito, porque vi também as pessoas que eram realmente escolhidos, né? Então isso me deixou muito feliz e com possibilidade de troca, né? Como aconteceu na época do convite, o Geraldinho veio conhecer o projeto, nos primeiros anos tem isso que a Avina vira parceira do projeto e aí tiveram alguns anos de parceria direta, fora eu ser considerado um líder na Avina e esses encontros que existem, né? Mas aconteceu de uma maneira... O contato de ouvir falar ,do trabalho, de ouvir falar do trabalho que acabou tendo o meu movimento como voluntário que levou, mas o primeiro contato foi direto com um convite, né?
P/1 – E o que te ajudou... O que ajudou pra Gol de Letra e pra você, pessoalmente, fazer parte de uma instituição como a Avina?
R – Primeiro de tudo no meio das pessoas que conhecem a Avina e tudo, é claro que serve como um aval pras minhas ações e da instituição, fora isso eu acho que conheci algumas pessoas, alguns projetos tiveram intercâmbio, alguns assuntos discutidos em reuniões da Avina, viraram temas e causas da fundação ou minha e algumas até minha pessoal em outras ações. Então eu acho que foi essa troca que eu confesso que poderia ter sido muito maior ou pode ser muito maior, é questão de calendário, de tempo, de disposição, acho que mais tempo do que disposição de se envolver nesse processo de intercâmbio que necessitam se conhecer, de desenvolver. Então isso dificultou um pouco, eu considero a minha participação na Avina eu já falei muito com eles de sub... Potencializar, a gente podia até... Poderia e posso, né, aproveitar muito mais essa troca entre líderes, entre projetos, né? Mas já deram alguns bons frutos.
P/2 – Eu queria que você falasse um pouquinho da sua atuação no terceiro setor, inclusive você foi apresentador daquele programa Boa Notícia no canal Futura, né? Então eu queria que você falasse um pouquinho de como se dá esse envolvimento, a sua atuação no terceiro setor, fora a Gol, né? Eu estou falando no terceiro setor de uma visão mais ampla, né? Uma área da atuação mais ampla?
R – Eu acho que... Bom, primeiro foi uma coisa que eu fui entendendo um pouco mais conforme eu fui me envolvendo, eu não tinha noção dos limites do setor ou dos pontos de cruzamento entre eles. Então isso fez parte desse aprendizado, eu acho que conforme eu fui entendendo o que era terceiro setor foi fazendo muito mais sentido pra mim, primeiro o que era participar e segundo a minha experiência que foi muito rica que eu tive na Europa. Principalmente na França, por ter sido na França que tem uma estrutura associativa gigantesca e foi construída historicamente, a França moderna e todos os seus valores da revolução foi construída em cima de associações, associação de pessoas e de ideais. Então conforme eu fui conhecendo, eu fui comparando com a experiência que eu tive lá, o quanto a gente estava cru nesse sentido de mobilização, de organização da sociedade civil, né? A tão falada, parece que é um monstro, né? Pra mim era tudo novidade, área social, organização da sociedade civil e aquela coisa toda, eu falei: “o que será isso?” E aí depois eu fui perceber “puxa, eu vivia nisso e não sabia, né?” Porque na França tem um exagero, né? Porque qualquer coisa, se for formar um time do bairro, da escolinha eles fazem uma associação, eles instituem uma associação. Então faz parte da cultura, o que não faz parte da nossa cultura, né? Então traçando essas vivências Brasil e França e esse meu envolvimento com o terceiro setor, eu vi que podia ter um papel importante nisso também de conscientizar, de sensibilizar, mobilizar pessoas a participarem desse movimento independente de você estar no terceiro setor ou de estar no setor público, de estar valorizando o terceiro setor e participando também, né? Enquanto cidadão, isso é uma coisa cultural que eu também por mais que eu vivesse lá, enquanto eu estava aqui no Brasil, eu participei pouco e hoje acho que posso participar mais, né? Fora da instituição até, mas acho que tem esse papel e esse potencial de estar mobilizando mesmo e sensibilizando pessoas pra ver que o caminho é esse, né? As pessoas se organizando, isso é todo um processo... A gente teve essa experiência prática em alguns momentos também na Gol de Letra que, por exemplo, no primeiro ano, no final do primeiro ano de atuação da Gol de Letra, não foi instituído como é na França e tal, mas um grupo de mulheres, mães e mulheres do bairro montaram um movimento lá, Mulheres em Ação, isso em menos de doze meses. Então eu sempre faço questão de reforçar isso assim, a ação de uma organização não governamental e as pessoas se juntarem, se organizarem, às vezes o fato de se organizarem é tão importante quanto a ação de quem faz. Então eu acho que esse... Eu como um ator do terceiro setor, acho que tenho essa obrigação de estar fortalecendo essa visão.
P/1 – Raí, em quais aspectos, você olhando pra Gol de Letra hoje, né, se distanciando e olhando para esses dez anos, onde você acha que a Gol de Letra precisa evoluir ou você gostaria que ela evoluísse no pedagógico? No político? Onde você acha que ela precisa crescer, evoluir?
R – A gente começou querendo independência total do poder público por razões negativas ligadas à administração pública, né? Partidária ou querer manter a independência pra não se envolver em algum escândalo, né? Manter a credibilidade e tal. E eu acho que ela chegou num tamanho que se quiser ter uma atuação maior ou continuar tendo um impacto grande passa necessariamente pra você ter um envolvimento com o poder público, né? Pra ter os projetos em parceria isso te expõe de certa forma, mas ao mesmo tempo eu acho que é o caminho e aí entra naquela questão que a gente falou de interseção ente os setores e que é vital, né? E que pode ter um papel também de fazer avançar a administração pública, então eu acho que é esse caminho de buscar parcerias com o setor público, onde a gente pode estar atuando em conjunto pra ter um impacto maior, mais abrangente. Começamos um processo ainda piloto e tal de disseminação formal, né? Já tinha um processo informal de pessoas que vinham e fazer o papel que a Abrinq fez com a gente, fazer com outros, né? Mas esse envolvimento com... Ousar ter parcerias com o poder público e envolvimento pela causa mesmo assim, eu acho que a Gol de Letra enquanto instituição assim se envolver em lutas pela causa na educação por tudo que cerca, pela justiça que a gente busca, né? Social.
P/1 – Como você vê o futuro da Gol de Letra? E qual é o seu papel na instituição nesse futuro, Raí? Como é que você olha pra isso? Até olhando pra esses dez anos nessa narrativa que você trouxe da evolução como é que você vê o futuro e o seu papel nessa instituição?
R – Bom, o futuro... Tem uma parte do futuro que ainda está no estatuto, né? Uma boa parte, se não for tudo, né, mas que está no passado, eu queria dizer também que a gente tem dez anos da Vila Albertina, teve um tempo em Niterói, tem no Caju, eu acho que a Vila Albertina tem... Por ter começado aqui, tem um histórico com resultados importantes e acho que a gente cada vez mais tem que se preocupar em estar medindo isso pra conseguir o que a gente transformou no estatuto que é que o nosso projeto venha ser uma referência ou modelo ou muito antes do estatuto do que está no nosso íntimo. Numa determinada região, ter uma atuação que possa ter uma transformação que possa servir... Apostar nas pessoas e dar oportunidade de atuar dessa forma e a metodologia, que isso sirva de exemplo pra outras instituições, regiões que... Então continuar o trabalho comunitário mantendo esse objetivo e ter essa... Começar a participar dessa atuação política mesmo, pensar em que formas essas ações com o poder público também em parceria que já temos em negociação, então eu vejo por aí. E meu papel nessas articulações tanto políticas pra ação e parceria com o poder público quanto participação em movimentos sociais, né, por causas.
P/1 – Raí, eu vou já finalizando, eu vou te fazer umas duas últimas perguntas, por que você de certa forma... É meio obvio, mas eu acho legal deixar registrado, por que você não encaminhou a sua carreira depois que você parou de jogar futebol pra área futebolística? Ou como treinador ou como dirigente e tal, por que você não foi pra essa área?
R - Outro dia teve um amigo que falou assim, ele é treinador hoje, o Ricardo Gomes, né? Mas uma coisa que eu já tinha pensado, o Ricardo Gomes que é treinador, ele falou assim... Nós estávamos jantando e tal, na hora eu nem respondi pra ele, ele falou assim: “o teu lugar no céu está garantido, né?” porque ele vê que eu me envolvo. Mas eu não respondi pra ele na hora e depois sabe aquela coisa que você vai pra casa assim, na hora eu nem... Mudamos de assunto, nós começamos a rir eu pensei que ele estava brincando, né? Aí tiveram duas coisas interessantes dessa conversa, uma é que ele me ligou no dia seguinte e falou: “vê aí na Gol de Letra o que vocês precisam pra participar, eu não sou rico não, mas eu quero estar participando”, quer dizer, ele se sensibilizou, né? Ele que já ajudou lá na França em alguns eventos e tal, mas ele queria participar mais e outra coisa, o que eu não respondi pra ele que eu pensei e até quero falar pra ele assim que não é um sacrifício pra mim, eu nunca tive assim aptidão pra ser mártir e pra eu me jogar, um sofrimento pelos outros não é isso e nem de ter um lugar no céu, eu tenho prazer nisso, eu tenho convicção. Então é isso que eu queria ter respondido pra ele, eu acho que eu tenho a mesma não aptidão que eu tenho pra se mártir, talvez eu tenha pra querer ser treinador, talvez eu possa ser treinador, mas querer ser não. Então eu acho que é uma coisa que eu fui conhecendo, me envolvendo, eu sabia que ia ser um problema, problema porque nesse aspecto entra um pouco de doação, mas é uma coisa que eu acredito que eu gosto e que claro, como tudo que a gente faz na vida tem momentos que você fala assim: “putz, será que não é uma fraqueza", mas foram pouquíssimos, né? Assim, olhando e vendo tudo a ver com o que a gente está fazendo, olhando dez anos pra trás a gente... Hoje eu falo assim: “putz, que gostoso ter construído isso ou ter ajudado a construir isso” como aquelas coisas que a gente fala assim: “se eu tivesse feito curso de inglês cinco anos atrás quando eu pensei, se eu tivesse entrado na faculdade há cinco anos, eu estaria formado hoje, né?” Não falo inglês bem, não sou formado em nada, mas tenho um projeto que me orgulha, né? Então que bom que começamos, né?
P/2 – A gente viu várias fotos, acho que dentro dessa coisa do retorno pra você, desse investimento pessoal, a gente viu várias fotos de você com as crianças, né? O que significa esse contato com as crianças pra você assim, elas estão super felizes do seu lado, né? Assim, o que significa pra você esse contato com as crianças?
R – Ah, é difícil de falar com palavras assim, né? É bem... Assim, eu tenho dois lados tem uma hora do olhar pragmático assim: “essa criança está feliz aqui, mas como vai ser a vida dela com esse meio e não sei o que, será que está adiantando o trabalho, né?” E tem o outro olhar que você sente uma... Toca o lado do sentimento mais humano no sentido assim nesse aspecto mais profundo, né? Então isso eu considero como o que nos motiva, é o nosso motor na verdade, esse contato é o... Tanto é que a gente tinha uma sede fora do trabalho e pouco tempo depois, menos de dois anos depois a gente mudou lá pra dentro e nunca me arrependi, por mais que faça agora vinte vezes mais tempo no caminho pra ir pro escritório do que eu fazia, mas nunca me arrependi. E tem uma coisa de todo mundo que visita lá fala do ambiente, do clima, da energia que sente assim, né? Então isso é muito gostoso sentir.
P/1 – Eu vou te fazer uma pergunta pessoal, se você não quiser responder não responda, como é que é pra você carregar essa imagem do bom menino? Porque, é uma coisa pesada ou não? E é assim o bom menino entre parênteses, entre aspas, tá?
R – Entre parentes, né? Entre chaves, né? Já foi pesado, a minha luta de um tempo pra cá é de deixar de ter essa imagem, mas é difícil e olha que eu tento. Sempre teve... Na minha carreira sempre teve aquela questão... Eu sou um pouco assim mais tranquilo, eu casei com dezessete anos e fiquei quinze anos casado, tinha uma carreira de atleta, tinha preocupação por ser uma pessoa pública, né? O que isso poderia repercutir. Então isso acabou fortalecendo essa imagem de bom moço, mas que de certa forma enquanto pessoa pública ativa como jogador eu até era, né? Não como parecia, mas... Eu bebia, muitas pessoas acham que eu não bebo, eu nunca fiz apologia, mas eu sempre bebi e tal. A gente chegou na França e às vezes eu falava: “puxa vida, beber é bom, até um certo nível é gostoso, faz bem e tal”, aí meu amigo falou assim: “você está fazendo propaganda.” mas do começo da carreira eu até era assim, porque sempre fui caseiro, eu sempre fui muito ligado à família, às filhas e tal. Então isso continua e uma coisa assim legal foi que depois da minha separação e pós-carreira e tal, eu me expus muito mais, né? Quer dizer, o fato de ser casado te protege, né? E mais os cuidados que eu tinha, eu me sentia muito protegido. E de ser solteiro, sair mais até por estar solteiro, estou citando como exemplo, entre outras coisas eu acabei me soltando um pouco mais até pra experimentar outras coisas e por ter casado muito jovem e tal. Então isso foi uma coisa gostosa, de sentir que as pessoas não perderam, menos a imagem do bom moço, mas não perderam o respeito, a admiração que era uma coisa muito mais... Claro que uma parte, uma pequena parte por ser exposto, né? Você tem menos unanimidade, você tem menos... É claro que você não vai agradar todo mundo, mas eu acho que a essência ficou e ficou mais verdadeiro, então eu acho que ainda é uma luta que eu quero continuar, essa luta pra deixar de ser bom moço, mas eu sou uma boa pessoa, né? A minha terapeuta falou assim que pra mim foi uma frase assim que eu divulgo sempre “tem uma grande diferença entre ser bonzinho e ser bom.”
P/1 – Obrigada, Raí.
P/2 - Tem alguma coisa que você acha que ficou faltando falar?
R – Tiveram duas coisas da ultima entrevista...
(pausa)
P/1 – Raí, eu queria que você falasse se as suas filhas de alguma maneira se envolveram com a Gol de Letra e quem está envolvida? Como está hoje na vida delas hoje?
R – Bom, teve um... Elas acompanhavam de longe, teve um momento que teve um intercâmbio com a França que minhas duas primeiras filhas a Emanuella e a Raíssa trabalharam como tradutoras, então elas conheceram um pouco mais o trabalho e foi bem interessante. Elas têm muitos amigos que pedem pra conhecer, então elas acompanham e não são muito ativas, mas acompanham o que está fazendo, querem saber e claro, se sentem orgulhosas também do trabalho da Gol de Letra e do meu envolvimento, né? Mesmo que isso tenha tirado também tempo delas, né? Então eu acho que elas sentiram também um pouco isso, mas elas respeitam, né? E quero também incentivar a mais nova, porque eu tive uma filha pós início da Gol de Letra que é a Noáh e que já vai a todas... A cada seis meses no mínimo ela faz algumas visitas, ela participa das apresentações de fim de semestre e brinca, já é conhecida lá. Então eu também faço questão de que ela acompanhe e participa, ela fala que é a escola do papai, né?
P/1 – A Noáh é uma filha do seu segundo casamento é isso?
R – Do segundo relacionamento sério, digamos assim, a gente não chegou a casar, mas foi uma paixão, um namoro sério, uma grande paixão que resultou na Noáh e é minha última filha até porque eu já fechei a fábrica, três meninas está bom, né? Eu tenho a Emanuella hoje com 26, a Raíssa com 20 e a Noáh com quatro anos.
P/1 – Você foi avô super cedo, né? E qual é a experiência de ser avô?
R – Foi bem difícil no início, porque a minha filha era muito nova, mas hoje também a Naira tem dez anos já, também acompanha lá, o pai dela trabalha na Gol de Letra, já trabalhava antes como financeiro. Então ela também acompanha bem próxima e tem um fato engaçado que a Noáh, minha filha de quatro anos é tia da Naira de dez anos.
P/1 – Raí, me fala uma coisa, em que medida... Valores pessoais que você trouxe na sua narrativa lá atrás com seus pais e tal, eles estão presentes na Gol de Letra e de alguma forma você faz questão de passar pras suas filhas, você consegue identificar que valores são esses?
R – Dos meus pais que eu passo pras minhas filhas?
P/1 – De alguns valores que você... Na sua narrativa lá atrás a gente percebe, eu queria que você resgatasse alguns e desse nomes pra alguns valores que seus pais passaram pra você e que de alguma forma está na Gol de Letra e que você também passa pras suas filhas, você consegue identificar esses valores?
R – A minha filha de vinte anos, a Raíssa, está estudando na França e ela veio agora de férias depois de um ano e a gente falando de lembranças, ela se lembrou de uma história que ela devia ter quatro ou cinco anos, ela lembrava e eu não lembrava, portanto é pré Gol de Letra. Era uma historinha pra dormir que tinha, eu vou tentar lembrar aqui, que tinha um menino que era triste, não era feliz, ele tinha tudo na vida e tal e não era feliz e aí chegou uma pessoa, o Pai Noel na historinha, ele falou: “você precisa passar um tempo e vestir a camisa de uma pessoa que é feliz, se você vestir uma camisa de uma pessoa que é feliz, ela vai te contagiar e você vai ser uma pessoa feliz.” E ele foi atrás e aí ele viu uma pessoa pobre cantando, pulando, dançando e não sei o que, aí ele falou: “eu queria uma camisa sua, eu preciso e tal por causa disso, disso e disso”, é tudo história inventada, né? E aí o menino falou assim: “eu não tenho camisa” aí ele pegou uma camisa e deu pro menino que era feliz vestir um tempo pra depois vestir e ficou feliz. Então é uma história que contava pra filha que tem alguns valores embutidos, aí é claro que tinha a ver com os privilégios que a gente dá pra ela, mas é questão de... Meu pai sempre teve uma preocupação de... Ele foi muito pobre e conseguiu e cada vez eu ouço mais histórias de pessoas que ele influenciou, que ele ajudou, que ele incentivou a estudar, a entrar num concurso, o orgulho que ele ficava de pessoas que conseguiam vencer depois de uma luta. E também essa preocupação pelo próximo, né? Eu não falo, num sentido mais ideológico do que religioso e pelo próximo do cotidiano, então pensar no coletivo, nessa preocupação. Então foi uma coisa que com certeza passou e eu acho que ele não falou isso diretamente, mas acho que pra o que ele acreditava, o que ele acha com justiça é que ele acha que a justiça só existe se você for honesto, né? Honesto com você, com as pessoas, se eu trapacear alguém vai estar perdendo mais que outros, né? Você ter essa preocupação de cada ato seu vai ter repercussão, então pensar no que o seu ato quis fazer, às vezes até de forma exagerada, né? Muito preocupado se isso vai atrapalhar, se vai não sei o quê. Eu tenho um irmão que é grande como a gente, ele senta na última fileira do cinema pra não atrapalhar os outros, aí é exagero, né? Então eu acho que são esses valores que eu acho que com certeza passaram e eu quero passar pras minhas filhas.
P/1 – E uma última pergunta pra finalizar Raí, valeu a pena esse trabalho, esse envolvimento? E qual foi o aprendizado disso? Desse valer a pena também?
R – Eu acho assim que aquele entusiasmo que a gente estava falando... E um aprendizado que eu queria dizer que a gente tem aquele entusiasmo de jovem que é bom que a gente mantenha pra sempre, de querer mudar o mundo e querer que as coisas mudem rápido, a gente começa um trabalho e vai... Se você tem boa intenção, só isso basta, né? Boa intenção, bom trabalho e energia, só isso basta, não é, tem toda uma realidade e o desenvolvimento e a história é longa, a nossa participação é curta. Então um grande aprendizado foi que mais do que conseguir aquilo que a gente quer transformar logo é aprender... É você passar também pela maturidade, é aprender a beleza do caminho, né? De conquistar de pouquinho em pouquinho, pedrinha por pedrinha, juntar e de repente dar um tropeço e cair pra trás, mas levantar. Então eu acho que essa é a beleza do prazer do caminho da luta e o que isso traz de crescimento pra gente.
P/1 – Obrigado, Raí.
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