P/1 – Primeiro gostaria de agradecer a presença do senhor aqui, de estar dando o seu depoimento e pra começar queria que o senhor falasse seu nome, local e data de nascimento.
R – Bom, meu primeiro nome e Mieczyslaw, sobrenome Dymetman, que significa na verdade ‘homem de diamantes’. Então provavelmente um ancestral meu deve ter sido comerciante de diamantes. E o lugar de nascimento é Varsóvia, que é a capital da Polônia, poucos anos atrás, em 1924, portanto, eu estou com 88 anos de idade e aguardando mais uns 22 para fazer 120 anos. Que mais?
P/1 – Qual o nome dos seus pais?
R – O nome do meu pai e Jacob, da minha mãe é Rana, Shana ou Ana, mas é a versão brasileira.
P/1 – Conta um pouquinho deles, da origem deles, de onde eles vieram.
R – Bom, toda a minha família, inclusive ancestrais, até onde eu tenho conhecimento, eram todos nascidos em Varsóvia. Agora vou aproveitar e contar uma historinha muita curta sobre Varsóvia. Como Varsóvia é a capital, os que nasceram e viviam em Varsóvia se achavam superior aos poloneses que moravam nas cidades menores, no interior, que a Polônia também é país de agricultura. E essa ideia de supremacia dos varsovianos, se a gente pode usar este termo, acaba existindo até hoje. Que não Brasil não tem, né, capital não se acha superior, talvez haja diferenças em regiões, mas não de capital para cidades de segunda linha.
P/1 – Conta um pouquinho da sua mãe, seu pai, como eles eram?
R – Como?
P/1 – Seus pais, sua mãe e seu pai, como eles eram?
R – Bom, eu fui só, filho único, portanto, eu tinha pais muito presentes, muito amorosos, e eu acho que a partir de como foi com todo mundo repete, eu acho que a ligação de um filho com uma mãe é muito mais forte do que a ligação de um filho com o pai. Isto também se deu no meu caso. Tinha uma ligação bem mais afetiva com a minha mãe. E a minha história de vida ficou muito marcada por esta preferência. Eu vou pular, se vocês permitirem, pelo tempo, que eu perdi minha mãe no campo de concentração e eu me culpei de ela ter morrido e eu sobrevivido, embora racionalmente, eu não tinha nenhuma condição de salvar minha mãe, mas tinha uma coisa, a minha mãe foi deportada na minha frente e até hoje, eu fiz 20 anos de terapia pra poder falar um pouco a respeito, e até hoje eu tenho dificuldade. Porque é o seguinte: eu cheguei com meu pai no campo de concentração, num determinado dia,pelas 11 da noite, e talvez mais tarde eu vou dar mais detalhes, eu me encontrei com a minha mãe lá, no mesmo campo. E minha mãe me disse: “Olha, amanhã de manhã eu vou ser deportada. Eu tentei fazer o que era possível para retardar, eu dei um dinheiro que eu tinha para o hospital, para uma enfermeira, que atestou que estou grávida, o que não é verdade, mas depois de uma semana passou para um médico que não dá para corromper e eu fui reprovada e amanhã de manhã vou ser deportada”, o que aconteceu na minha frente. Dois meses depois eu consegui ficar no campo sem ser deportado, porque todos os judeus... O campo se chama Rivesaltes é no sul da França, era um campo onde todos os judeus presos por serem judeus no sul da França eram enviados para aquele campo até perfazer 4.000 prisioneiros, que era a lotação típica de um trem, e isto acontecia praticamente a cada segundo dia e aí todo mundo era deportado. E por motivos que mais tarde eu vou explicar senão eu perco totalmente o fio da meada, eu e meu pai nós não fomos deportados, eu consegui fugir deste campo. Eu acho que de uma maneira cinematográfica. Eu vou contar, embora fora do tema do momento, como eu fiquei no campo, eu comecei a conhecer melhor a rotina do campo, é natural. Quem vai e fica lá um dia mal sabe onde ele está. Eu reparei uma coisa, que naquela época não havia PVC, não havia plástico, não havia nada nesta linha, então a gente dormia em cima de palha. Não sei se vocês, eu acho que nem viram, hoje a época é diferente... E a palha ela deixa o piso, o chão, menos duro para dormir, só. Que a palha retém percevejos, toda aquela bicharada. Então diariamente vinham carros grandes com palha fresca e iam trocando uma ou duas casas a palha, colocando a nova e retirando a velha. Um dia casa número 2, no dia seguinte casa 3, número 4, assim, numa semana, acho eu, ele trocava a palha de todos os alojamentos. E ele era sozinho, quer dizer, ele era o cocheiro e o transportador da palha limpa e da palha suja. Aí me deu uma ideia: “Eu vou me esconder por baixo da palha”. Só que tinha um problema, os guardas também sabiam que era um lugar para se esconder. Então, eles tinham duas lanças especiais, muito compridas, com as quais ele picavamdentro da palha, para se alguém se esconde... Ele não vai longe. Mas observando dia a dia eu percebi que eles sempre picavam aquela lança para cima, não para baixo. Eu suponho que como o piso era de madeira eles não queriam quebrar a lança e, talvez, serem castigados. Então eu vi que no chão, bem embaixo, o risco era relativamente pequeno. E foi o que eu fiz e assim fugi do campo. Quando a carroça foi se adiantando no portão eu coloquei um lenço dentro da boca para não gritar se me ferissem e ouvi as lanças passarem por cima de mim e fiquei na carroça, eu fiquei quietinho porque não sabia onde eu estava, não tinha janela na palha, evidente. Mas quando eu percebi pelo barulho que estava num outro tipo de terreno sabia que já devia estar a uma certa distância, abri a palha, o cocheiro estava bêbado, nem sabe de nada, o cavalo conhece o caminho, porque todo dia é igual... E assim que eu fugi do campo. Mas isso é só no meio porque eu vou voltar neste assunto porque é um momento importante no desenrolar.
Então, voltando, eu estava falando da minha infância, né? Vou voltar...
P/1 – A gente queria saber como era sua mãe, seu pai, o que eles faziam na sua infância?
R – Certo. Muito bem. Na Polônia, naquela época que eu nasci, 1924, a Polônia estava na pior das misérias possíveis, estava terrível. Como hoje se fala da Europa, era 10 vezes pior. Por quê? Porque a Polônia até a guerra 1914-1918, a Primeira Guerra Mundial, fazia parte da Rússia, e com a revolução ela ficou independente, mas não tinha estrutura. E tinha mais uma coisa que eu acho que nenhum brasileiro sabe, nenhum: o comunismo tomou conta da Rússia mais ou menos em 1918, 1917/18. No final da guerra o comunismo era o governo legal da Rússia. Agora, os países capitalistas, basicamente a Inglaterra e a França, não gostavam muito dessa situação, porque são países chamados capitalistas que não podem aceitar o comunismo. Então eles custearam exércitos meio mercenários para tentar derrubar o regime comunista. Acho que ninguém de vocês aqui ouviu falar. É chamado Exército Branco, porque comunista, claro, era Exército Vermelho... Muitos anos, alguns anos de luta no sul da Rússia que é relativamente perto da Polônia, isto também teve um influência muito grande. Então na casa dos meus pais reinava a miséria a tal ponto... E eu era criança, como eu sei? Eu não tinha acesso ao caixa dos meus pais. Mas eu me lembro de uma coisa que minha mãe falava três vezes por dia, por isso eu lembro dela hoje, e que é o seguinte: como meus pais não tinham dinheiro para pagar os impostos, o governo lacrou o único objeto que tinha algum valor, que era um vaso de vidro, mas alto, que não podia vender até pagar a dívida, e a minha mãe me dizia três vezes por dia: “Michel, tome cuidado com este vaso, não vai quebrar este vaso”, tanto que até hoje, decorrido alguns anos, não tantos assim, eu ainda fico com esta lembrança. Imagina a miséria dos meus pais, se tinha um vaso de vidro, vale o quê? Cem reais?Em garantia de débito para o governo. Isto fez que assim que... Meus pais queriam migrar até antes, mas eu era pequeno, e eles esperaram que eu fosse um pouco maior, cheguei a uns 6 anos, eles então emigraram para a Bélgica. Por que para a Bélgica? Porque tinha algum parente, alguns amigos que tinham emigrado antes deles e que mandavam cartas dizendo que na Bélgica é um país que dá para viver, é um país muito livre, etc. Então eles foram atrás. Chegando na Bélgica, eles também chegaram do mesmo jeito que saíram, sem dinheiro, então meu pai começou a ir nas feiras como feirante. Porque o feirante, não sei como está no Brasil, mas naquela época na Bélgica era assim, funcionava da seguinte maneira: meu pai ia a alguns atacadistas e recebia mercadoria que se chama ‘em consignação’, ou seja, se vende, paga, se não vende, devolve. Então meu pai ia com mercadoria que não era dele... E eu lembro que tinha uma feira que ele acordava às quatro da madrugada para chegar na hora adequada no local. E começou assim devagarzinho a se sustentar e a ganhar a vida. De outro lado, minha mãe tinha estudado a parte técnica do dentista, ou seja, fazer os dentes, porque o dentista ele não faz, ele cuida das cáries, etc., ele faz um molde e dá para o técnico, que é independente para fazer a própria peça. A minha mãe tinha aprendido a fazer isso. Mas ela não tinha um diploma válido na Bélgica e não sei quais eram as dificuldades para ela tentar arrumar que o diploma fosse válido na Bélgica. Ela ficou de maneira ilegal. Então ela fazia aquele trabalho e um pouco o trabalho do dentista mesmo, ela arrancava dentes, curava coisas mais simples. Mas quem vai numa dentista que não tem diploma legal? Outros imigrantes que também não tinham muito dinheiro para ir num bom dentista. Então minha mãe fazia isto. Isto levou uns três, quatro anos. Depois de uns três, quatro anos, meu pai já tinha um capital próprio, já não pegava mercadoria em consignação, que é claro, você paga muito mais caro do que quando você compra a dinheiro, começou a comprar com o dinheiro dele, e a barraca dele crescia, cada mês tinha mais mercadoria, e meus pais começaram e a ter uma situação econômica razoável. Aí, tanto meu pai, quanto minha mãe resolveram fazer uma fábrica de confecções, porque meu pai vendia artigos de confecções, confecções femininas, mas eles não sabiam nada como faz, como não faz. Então vou contar um segredo que não pode contar pra ninguém, isso não pode ser sabido por ninguém... Aí minha mãe se tornou espiã, espiã. Ela ia em lugares onde tinha fábricas pequenas, cavava uma certa relação com as pessoas, ficava batendo papo e observando o que estava acontecendo. Aí ela começou a saber onde comprar, onde vender, que tipo de mercadoria sai, que máquinas de costuras são necessárias. Então ela fez uma escola prática. De conhecimento disto, meus pais abriram uma pequena fábrica e ela foi crescendo, foi crescendo, mas era uma pequena fábrica porque nós morávamos num prédio de três andares. Embaixo, na loja, no térreo, havia uma loja com a qual nós mantínhamos nenhuma relação. No primeiro andar era a oficina que fabricava e vendia e no terceiro andar era a nossa moradia, estava tudo junto. E meus pais foram crescendo. E eu fui ajudando meus pais, o quê que eu podia fazer? Era menino, 6 anos, 10 anos, 9 anos, por aí, primeiro eu aprendi a consertar as máquinas de costura, porque vinha um técnico e consertava, eu fiquei olhando e aí aprendi. Depois eu comecei a entrar um pouco na parte comercial, eu entregava mercadoria, eu recebia pagamento, eu fui crescendo como auxiliar, que evidentemente me abriu a possibilidade de ser um comerciante independente que é minha posição atual.
E aí começou os problemas. Eu como jovem... Naquela época não havia televisão e internet com certeza não havia, o único meio de comunicação era o rádio, então eu como jovem fui acompanhando o que estava acontecendo na Alemanha. E assim eu soube que chegou um novo partido político, nazismo, cujo chefe inconteste é Adolf Hitler, que tem como plataforma básica o antissemitismo. Discute-se muito sobre o porquê do antissemitismo de Hitler, eu tenho algumas respostas: primeiro, ele não foi o primeiro e acho que nem o último que usa os judeus como bode expiatório para dar, como é o bode expiatório, toda a culpa deles próprios, para desta maneira levantar a moral do povo. Não é muito clara a minha exposição. Vou falar de outra maneira. A Alemanha perdeu a Primeira Guerra, 1914-1918. Eu sei que havia milhares de judeus que faziam parte do exército alemão e que morreram, mas Hitler inverteu a história. Ele disse: “Nós perdemos a guerra por causa dos judeus, claro, está na cara”, mas ele nunca explicou como é que era. Isto foi muito com para os alemães. “Nós alemães não perdemos. Não. A culpa é dos judeus”. Agora, esse sistema não é só Hitler que usou, tem muitos outros. A partir de quem, de quando tem esta ideia? Quem conhece o Velho Testamento, começou com um faraó há muito tempo atrás. Não sei se vocês lembram, na Bíblia, quer dizer, o Velho Testamento diz o seguinte, antes dele, os judeus foram para o Egito, mas eram poucos, era parece que setenta famílias, porque havia uma fome. Porque naquela época não havia armazéns regulatórios de estoque, quer dizer, o que se colhia hoje ia ser comido amanhã e quando não tinha colheita hoje não tem comida amanhã, havia uma seca muito grande na região e o único lugar que tinha comida era o Egito devido ao rio Nilo, que ele tem sempre água, então lá tinha colheita. Então, não sei quantos judeus foram para o Egito. Então olha o que a Bíblia diz, que o faraó falou, diz o seguinte: “Aqui tem uma raça, um grupo de pessoas, que estão aumentando muito o seu número, vai ver eles vão pegar o poder, então nós vamos ser mais rápidos do que eles, vamos escravizar eles”. É o primeiro caso de antissemitismo claro, não disfarçado, baseado em quê? “Quem sabe eles vão tomar o poder?”. Isto não é um argumento, e não tem nenhuma consistência. O que ele quer na realidade fazer é por a culpa da seca em geral contra os judeus. Esse é o primeiro ato conhecido de antissemitismo. E Hitler usou exatamente a mesma coisa, “A Alemanha não perdeu a guerra, são os traidores judeus que fizeram com que nós perdêssemos a guerra”. Agora isto não tem sentido nenhum porque foi a Alemanha que começou a guerra, só que os judeus não eram do governo. E depois como é que os judeus podiam fazer perder a guerra aAlemanha, que é uma população de, hoje, 80 milhões, não tem sentido. Mas ajuda a subir no poder.
Mas tem uma outra versão, que não sei se é verdade, claro. Eu não estava lá, que é o seguinte: a mãe do Adolf Hitler era empregada de uma casa de judeus e o patrão dela teve relações com a mãe de Hitler, quando ela teve filho ele a mandou embora. Até que ponto é ou não é, não sei, como eu disse, eu não lá estava presente.
Então eu estava ouvindo o rádio, vendo o que estava acontecendo na Alemanha. E todo mundo acho que sabe o que a KrystrallNacht, que é um dia e noite onde os alemães deram liberdade total para matar judeus, quebrar os bens dos judeus, quebrar as lojas, assaltar, tudo o que você quer. Chamado KrystallNacht. Isto aparentemente foi uma resposta que um judeu alemão, em Paris, queria fazer um ato contra os alemães, entrou na Embaixada e atirou e matou o Terceiro Secretário da Embaixada alemã na França. Então isto foi a resposta que os alemães deram para quem não tinha nada a ver com a coisa. Este próprio rapaz, entre parênteses, foi posto na cadeia e quando os alemães ocuparam a França, não preciso dizer o que fizeram, foi fuzilado imediatamente.
Bom, estou falando eu jovem, 12 anos, por aí, ouvindo rádio, eu acompanhei o que estava acontecendo. Aí, naquela época os alemães queriam se livrar dos judeus, autorizaram os judeus “quem quer ir embora, pode sair”, mas ninguém queria receber os judeus. Então muitos vieram para a Antuérpia, onde eu morava, porque lá tem um dos maiores portos do mundo, tem muito navio, e cada um do seu jeito tentava arrumar um visto para algum país, clandestino em barco, cada um do jeito que era possível.
Só por curiosidade, muito fora do meu tema, nós tínhamos uma família, amigos, um homem forte, grande, alto e a esposa dele era muito amiga dos meus pais, e não sei bem em que cidade isto se deu. Ele chegou numa entrada, num outro lugar, num outro porto na França e queria comprar passagem num navio que ia para a África, não sei, para a América, não sei se América do Norte ou algum outro país, e o capitão disse: “Não tem lugar”. Ele disse: “Eu te pago dez vezes o valor da passagem”, “Não tem lugar porque nós não somos um navio que transporta passageiros, nós transportamos carga, todo mundo dorme no chão, não tem mais lugar”, “Não tem mais lugar?”, comprou o navio. Isto é verídico. Comprou o navio. Eu sei que chegou nos Estados Unidos, nunca mais voltou para a Bélgica, e claro, era bem mais velho que eu, faleceu depois pela idade. Mas era, imagina até onde foi.
Bom, eu estou lá em Antuérpia e começam a vir refugiados judeus fugindo da Alemanha. E os judeus em Antuérpia, como em outros lugares, têm grupos de assistência social, como em São Paulo também tem. Porque não é todo mundo que sabe, mas em São Paulo tem um grande número de judeus abaixo da linha da pobreza, que moram em favelas. Acho que pouca gente sabe disto, mas é verdade. Aqui nós temos uma instituição que chama, em hebraico, Tam Iate (?), que significar ‘dar a mão’. Quer dizer, vou te ajudar, vou te dar a mão. Eles distribuem acho que dez mil refeições por mês para judeus que tem fome.
Bom, então a coletividade judaica criou um centro de ajuda para estes refugiados, a maioria fugia sem um tostão no bolso, outros tinham dinheiro, e como eu era jovem me alistei como voluntário. Eu fui servir mesas, eu fui lavar a louça, porque era a única maneira que eu como jovem podia ajudar. E até aconteceu um caso curioso, por isso que eu entrei neste tema. Fiz amizade com uma destas pessoas, alemãs, judeu-alemão, e ele me perguntou: “Escuta, por quê que teus pais ficam aqui?”, “É, eles moram aqui”, “Eles não sabem que tem fogo aqui ao lado?”, “Não. Hitler fez uma declaração solene que não ia atacar a Bélgica pelo menos nos dez primeiros anos, então qual é o problema?” Ele falou: “Deixa eu falar com os teus pais”. Eu falei para meus pais, meus pais disseram ‘tudo bem’, eu peguei ele e fui... Naquele prédio meus pais moravam e trabalhavam. Era um domingo, eu acho, eles estavam trabalhando lá na oficina. Veja a cena, vejam vocês três, ele entrou lá e disse: “Vocês estão aqui? São loucos? A promessa de Hitler não tem valor nenhum. Vocês ficam na fronteira com a Alemanha. Amanhã vocês têm o que aconteceu comigo também, quando o partido nazista começou a subir nas eleições eu disse ‘Ah, é um país democrático, imagina, não vai acontecer nada’, aconteceu. Não fiquem aqui, vocês são burros”. Bom, terminou, eu levei ele de volta onde ele dormia e falei com meus pais: “E agora?”. “Ah, deixa pra lá. Tem gente que sempre espalha um pânico à toa, a gente estava muito mal economicamente, agora que a gente começa a ter um pouco de capital, um pouco de vida melhor, pra você mesmo, uma escola melhor, etc., vamos embora daqui por quê? Quem sabe que Hitler vai quebrar a promessa e invadir a Bélgica? Deixa pra lá”. Eu estou contando isto para mostrar como ninguém sabe o que o futuro trás, o que não é nenhuma novidade, mas as consequências dessa decisão foram terríveis. Agora, tem um outro aspecto, eu falei que eu estava ouvindo o rádio, eu ouvi os discursos de Hitler. Ele tinha uma capacidade de transmitir as ideias dele de uma maneira que mesmo com 88 anos nunca ouvi orador com essa capacidade. Quando ele falava você tinha a sensação, que eu não sei descrever de outra maneira, como se fosse mel que entra pela garganta, era doce, era gostoso de ouvir ele. E de vez em quando ele entrava num transe, ele passava daquela voz de mel, de gosto, passou a uma voz agressiva, ele se exaltava e ele levava o ouvinte com ele naquela exaltação. Eu, que era o alvo dele, fui junto, ele tinha uma facilidade, um prestígio, não sei, era uma coisa inacreditável. Não é à toa que ele ficou o Führer, o chefe, porque ele tinha uma capacidade invulgar, ele era fisicamente nada bonito, não era alto, não tinha nada de militar, de conquistador, mas a voz dele... Como um outro político que nós conhecemos aqui no Brasil, a voz deve dava pra ele a liderança.
Bom, eu estudava na escola e, eu me lembro, eu estava lá na classe e o professor de francês disse: “Olha, nós vamos aprender uma poesia de cor”, eu me senti revoltado, estava no último ano do colegial, né? Eu falei, me levantei e falei: “Professor, nós já gente grande, né, doze anos, quinze anos, aprender de cor? Não foi o senhor mesmo que disse que nós temos que entender a matéria e não aprender de cor”. Então o professor ficou meio acuado. “Ah, é assim? Então amanhã você vai recitar a poesia toda de cor”. Bom, acho que é uma coisa muito trivial, mas daqui a pouco vai deixar de ser trivial. Fui para casa me xingando a mim mesmo, “Porque eu tinha que reclamar, ele é professor”. Porque hoje eu sei que os alunos não são muito obedientes na classe, mas na minha época o professor era representante de Deus.Por que eu vou discutir? Tem que aprender. Eu sei que eu fiquei recitando aquela poesia, fui dormir com a poesia, acordei no meio da noite com um barulho e os meus pais vestidos no meio da noite. A Alemanha tinha atacado a Bélgica. Por isso aquela história era uma coisa muito comum, ficou marcado, foi o último dia em que eu assisti uma aula normal.
Agora vou entrar um pouco na política e a parte estratégica da época: a Alemanha, em 1939, atacou a Polônia e ocupou a Polônia em um prazo curto, em um mês. Porque a Polônia é um país do tamanho da França ou da Alemanha, mais ou menos, é um país grande. E como havia tratados entre a Inglaterra, a França e a Polônia, que eles iam entrar em guerra se alguém atacasse um desses três países. A Inglaterra e a França declararam a guerra para a Alemanha. Mas ficou só numa declaração formal, sem uma atitude. A única coisa que ocorreu é que os ingleses mandaram um exército armado, bem armado, para a França para estar junto com a França. Os alemães não mexeram nem um tiro naquela direção, até... Agora tenho que explicar um assunto: a França, como tinha passada a Primeira Guerra Mundial, sabia que a Alemanha era um problema, então eles construíram uma linha de defesa chamada Linha Maginot, e esta linha correu ao longo da fronteira entre a França e a Alemanha. Bem no norte os dois países não tem mais fronteira comum, eles se separam mais ou menos em um triângulo e nesse triângulo tem a Bélgica e a Holanda. Esquematizando muito, né, claro. E a França sabia que a Bélgica e a Holanda nunca iam atacar a França, então eles pararam a Linha Maginotonde a Bélgica e a Holanda entraram entre os dois países. Porque evidentemente era uma estratégia excessivamente idiota. Fizeram por economia. E então o que fez Hitler? Estava na cara, ele ia atacar a França pela Bélgica e a Holanda. É como se eles tivessem dito: “Você quer atacar? Por favor”. E eu estava na Bélgica. O avanço alemão foi fulgurante. Se na Alemanha... Contra a Polônia levou um mês, contra a França, Bélgica e a Holanda também, levou quinze dias. Que a França perdeu a guerra e foi feito um armistício. Por esse armistício a França foi dividida em duas partes desiguais. Uma pequena parte ficou independente, mas o primeiro-ministro chamado Pierre Louvain e o presidente que era um general, marechal da 1º Grande Guerra, com prestígio, mas que já estava bastante esclerosado (?), mas só tinha o nome, foi o presidente, o primeiro-ministro da parte que se chama ‘França não ocupada’, no restante que era 90%, 80% do território francês ficou dominado pelo exército alemão. Vou fazer um pequeno parênteses para explicar melhor porque que a Alemanha conseguiu vitórias tão rápidas tanto na frente contra a Polônia, quanto na frente contra a França. Havia alguns motivos...
R – Eu acho que vou pular um pedacinho só para atrapalhar a vossa vida.
P/1 – Pode ficar sossegado.
R – É? Eu vou dizer, eu tenho que estar em casa às 6 horas. Com a falta da minha esposa eu tenho uma empregada doméstica. Eu tenho um contrato com ela, porque ela não sai antes de eu voltar, porque não tem ninguém, que ela tem que me esperar, e pelo contrato verbal são 6 horas da tarde, então se eu chego mais tarde a condução é difícil, é... Então...
P/1 – É chato. É verdade.
R – Até lá não tem problema. Vai levar meia hora pra ir pra casa. O motorista deve estar dormindo lá. Não tem problema.
P/1 – Estamos, hein. Podemos voltar.
R – É bom rapaz o motorista.
P/1 – É?
R - Mas sabe, falando baixinho, eu fico tão constrangido de ver o baixo nível da escola brasileira.
P/1 – Judiação.
R – É terrível. Ele não sabe nada de nada e fez aquele curso até onde eu estudei, né, nível de faculdade, mas não tem conhecimento de nada. É terrível. Eu perguntei: “Como é?”, ele disse: “Na minha casa todo mundo brinca, faz barulho, faz bobagem”. Por que tão jogado?
P/1 – O senhor estava comentando sobre a invasão da Bélgica e da Holanda, da França.
R –Bom, quer que eu fale mais sobre a Bélgica? Eu até posso falar, mas não tem nada de interessante para contar. Por exemplo, eu posso contar que a rainha da Bélgica era uma princesa alemã. Tá, eu vou falar, não tem problema.
P/1 – Eu gostaria de saber uma coisa. Nesse período em que o senhor ficou na Bélgica, que a vida corria com uma certa normalidade, a Alemanha ainda não tinha invadido a Bélgica, o que o senhor fazia nessa adolescência?
R – Eu estudava. Eu era criança.
P/1 – Mas vocês saíam, tinham encontros, faziam festas, tinham jogos com os amigos? O que acontecia nesse período?
R – Eu vou dizer a verdade, eu posso falar sobre o que você quiser, mas eu acho que não tem nada que eu possa falar que interesse. Eu era uma criança, fazia parte de uma organização... Lá na Bélgica, na época, não era futebol, mas handball, eu era um péssimo jogador, verdade, e que fazia parte de um grupo judaico que estudava a Bíblia, então eu estudava naquele grupo sempre um dia antes doque ia ser dado em classe, então eu sabia, era o melhor aluno, porque eu sabia de antes. Mas são... Acho que não tem... Isto só passar o tempo sem nada e fazer com que quem escuta se desligue. Acho que se não traz alguma coisa com algum interesse, discordando de vocês, só para falar, eu não vejo... Agora, quem manda são vocês, eu obedece...
P/1 – Não, não. Eu perguntava por curiosidade, pra saber como era a vida na Bélgica nesse período, sem a invasão, porque...
R – Olha, meus pais trabalhavam como eu trabalho hoje, sete dias por semana. Eles começaram com nada. Para chegar a ter um pouco precisa trabalhar muito. Você tem capital, o capital trabalha, você não tem capital, tem que trabalhar muito, Meus pais trabalhavam sempre. Posso contar, ia em férias, mas é coisa tão corriqueira, é todo mundo igual. Eu não sei, eu acho que eu devo falar o que me dá interesse, falar que eu levanto de manhã, vou à escola.. Eu posso contar sobre o antissemitismo na Bélgica. Isto sim. Porque a Polônia é incrivelmente antissemita, mas terrível, terrível, terrível, você não tem ideia. Na Polônia, não sei como é hoje, havia números clausus, termo que latim que significa números clausus, fechados. Na faculdade, o número de judeus que podia entrar era fechado, dois alunos por universidade, em outras palavras, os judeus não podiam frequentar a faculdade. Tinha muitos lugares onde estava escrito “Judeus. Entrada Proibida”. Inclusive num parque que era perto de onde eu e meus pais morávamos que eu não podia entrar. Parece que isso não existe no Brasil. Eu, na Bélgica... Eu acho que eu posso falar tudo isso, se achar bom.
P/1 – Sim, sim, sim.
P/2 – Por favor.
R – Então eu vou continuar. Vou falar lá.
P/1 – Por favor, por favor.
R – Tá bom. Porque eu estou ansioso de entrar no campo de concentração.
P/1 – Mas aqui é que a gente tem que ir, porque parece que não é interessante, mas pras pessoas é interessante.
R – Tudo bem. Eu vou obedecer em partes.
P/1 – Está bem.
P/2 – Conta pra gente como era essa relação dos jovens judeus e os jovens não judeus na Bélgica.
R – A única diferença é o antissemitismo. Eu vou contar alguns casos. Eu não vou fazer um tratado filosófico para estudar, mas eu acho que é caso concreto. Agora onde eu estava na minha conversa que já não sei mais, para dar continuidade. Do quê que eu estava falando? Estava falando da parte porque os alemães ganharam a guerra.
P/1 – Sim, exatamente.
R – Depois disso eu volto pra Bélgica
P/1 – Está bem.
P/2 – Ótimo.
R - E sem ter que pagar passagem, nem ter visto, nem nada. Está muito bom. Muito obrigado.
P/1 – Pode continuar contando. O senhor estava falando da fronteira, que eles passaram a fronteira e o avanço foi muito rápido, em quinze dias eles passaram a Bélgica...
R – Não entendi.
P/1 – Que eles passaram a fronteira e foi tudo muito rápido.
R – Vai ser um hiato porque não dá pra contar na mesma frase, mas vai dar...
P/1 – A gente está gravando, pode contar.
R – Então o porquê do exército alemão ganhar com tanta facilidade os combates que eles travaram. Tem alguns motivos para isto. O primeiro é que os alemães tinham uma estratégia militar muito superior e muito diferente, porque a Primeira Guerra Mundial era uma guerra estática, os alemães de um lado, franceses e ingleses do outro lado. Cada um emtranchée, como chama, aqueles tonéis dentro da terra e ninguém conseguia avançar e ninguém conseguia fazer nada, ficaram lá dois, três anos se matando estaticamente, ficando no mesmo lugar. O que mudou é o tanque, porque o tanque passa por cima, mas naquela época não tinha. O que mudou foi o avião, avião passa por cima. Bom, isso era a situação da 1º Grande Guerra. Os alemães se prepararam para uma guerra de movimento. Qual era a diferença básica? Que eles mandam grupos pequenos na frente que cercam o exército inimigo e que não entram dentro da área ocupada pelo exército inimigo, porque aí precisa de muita tropa, aí demora. Então quando o inimigo se vê cercado ele muitas vezes abandona a luta, porque se vê cercado, não tem suprimento que vem, não tem troca de... Que normalmente no exército, na guerra, um grupo vai para a frente e fica dez dias, depois vai para trás pra descansar, e vem outro que o substitui, quando isso não é possível as tropas se cansam, não dormem de dia, não dormem de noite. Então mudança primeira: guerra de movimento. A segunda é: armamentos modernos. Porque a Inglaterra e a França tinham armamentos antigos. Eles não se renovaram porque, você sabe, toda democracia é uma questão de dinheiro, nunca o governo tem suficiente. Então onde ele não gasta o necessário não há armamento, porque isto não dá votos. Na Alemanha era uma ditadura, então eles tinham armas muito superiores. Primeiramente eles tinham um tipo, que hoje não existe quase, a não ser nos filmes, que foi muito importante, que foi uma motocicleta, chamava, isto em inglês, sidecar, e que tem um carrinho al lado que acoplado a motocicleta onde senta uma pessoa. Por que isto foi uma arma importante? Primeiro porque ela vai rápido, e em segundo lugar o que dirige a moto não tem como atirar porque senão ele cai, agora como tem um outro, que é o atirador, que tem metralhadora, que tem tanque, que tem canhões leves, ele pode realmente atacar ou se defender. Então isto foi uma arma que revolucionou e justamente facilitou a guerra de movimento. A segunda grande mudança são coisas que eu vi, não que eu li, eu estava lá, era um tipo de avião diferente, que se chamava Stuka. O que ele tinha de diferente? Ele estava numa altura que eu não sei avaliar pelo olho, mil metro, dois mil metros, não sei quanto, ele descia á pique,e a velocidade aumentava sempre porque a força da gravidade ajudava, descia, descia, descia, quando estava a 200 metros no chão ele tinha a capacidade de se endireitar e subir. Agora, quando ele estava lá embaixo ele usava metralhadoras, canhões, para matar todo mundo que estava lá, porque de repente... Dava um medo terrível. De repente você via um negócio grande em cima da sua cabeça, que parece cair em cima de você, você não sabe onde se esconder e leva três segundos ele está embaixo, ele vai, metralhadora. Hoje esta arma não existe, não sei por que. Mas foi uma arma terrível, pelo medo e também pela eficiência de matar. São as duas coisa que eu vi. E tinha mais um elemento, que inclusive o Brasil estava envolvido. O Brasil envolvido? O Brasil envolvido, sim. É que a teoria nazista, baseada nas diferenças das raças, pegou muitos adeptos no mundo inteiro. Então, por exemplo, na Bélgica, que tem duas partes, aparte de língua flamenga e a parte de língua francesa, a língua flamenga que pela língua próxima a Alemanha, 80% da população era nazista, então eles não lutavam contra a Alemanha. Na França também tinha um partido nazista muito importante, muito grande, esses soldados não lutavam contra a Alemanha, pelo contrário, transmitiam segredos militares. Então eles tinham o que na época se chamava a 5ª Coluna, muito boa, muito forte, que ajudava. E aqui no Brasil nós também tivemos o partido Integralista que era pró-nazista. E pelo que me parece, o próprio Getúlio Vargas, que era presidente na época, também tinha muita simpatia pelo nazismo, porque até hoje eu sei, o único brasileiro, do sexo feminino, que foi deportado para os campos de concentração do Brasil, quem é? Acho que chama Olga... Esqueci o sobrenome. Que era a amante, a mulher do Prestes.
P/1 – Do Prestes.
R – Que dizem que era espiã da Rússia que veio aqui para espionar o Prestes, dizem. E ela foi deportada pelo Getúlio Vargas, se não me engano o nome, e morreu no campo de concentração. Então o Brasil também tinha seu partido nazista.
Bom, voltando um pouquinho de novo na Bélgica. O que era meu dia a dia? De um lado era um aluno, estudava na escola, frequentava organizações juvenis esportivas e judaicas. Tinha tido uma vida... Filho único, muito paparicado. Eu sei, me lembro que minha mãe tinha aberto uma conta corrente num armazém lá pertinho de casa, como tem hoje ainda, para eu comprar o que eu quisesse, mas tentava me empurrar frutas e não balas. Eu percebi. Eu recebia uma mesada, sei lá, dois reais por semana, sei lá. Ia com minha mesada, diziam: “Não isso é barato”. Pagava lá dez centavos, moedas brasileiras. Eu não entendi. O quê que é isso? Até descobrir que minha mãe tinha feito um negócio por baixo do pano para me dar a oportunidade de eu comer frutas e coisas assim. Bom, filho único é assim, só tem um. Agora, eu estava dizendo que naquela época em grande parte pela influência do nazismo o antissemitismo cresceu muito. Não vou falar da Polônia, porque na Polônia até hoje... Hoje na Polônia quase não tem judeus, mas antissemitismo tem, forte, virulento. Até no parque perto da minha casa, onde eu morava, tinha um aviso que judeu não pode entrar. Mas vou falar mais da Bélgica, porque já é uma coisa maior, vou contar alguns casos antissemitas na Bélgica, eu como criança. Eu estudava numa escola que se chama judaica, onde você recebe o ensinamento do país, da língua do país, você recebe ensinamento normal como toda escola tem, como carga horária de todas as escolas não judaicas, mas tem duas ou três aulas de assuntos judaicos. Então eu ia numa escola destas. Aqui em São Paulo tem diversas escolas com esse perfil. Então quando eu era menor minha mãe me levava na escola segurando minha mão, quando eu tornei mais velho, 9 anos, 10 anos, eu ia sozinho. Para ir nesta escola judaica eu tinha que passar por uma escola não judaica. E, eu acho que aqui é a mesma coisa, os alunos só entram na escola quando está na hora, até lá todo mundo faz barulho, brinca, na porta da escola. Toda vez que eu passava eu apanhava. Não apanhava realmente, me empurravam, me arrancavam a sacola com os livros, me davam... Em francês se chama croc-en-jambe, que põe a perna na frente e te empurra e você é obrigado a cair. Como chama em português?
P/1 –Rasteira.
R – Rasteira. Eu já sabia. Era pedágio. E quando eu fiquei maior eu pensei: “Mas por que eu não fui por outro caminho?” Era um pouco mais longe, no lugar de apanhar, eu acho que isso faz parte do meu caráter, de não se deixar dominar pelo medo. É por isso que eu sobrevivi no campo de concentração, entre outros motivos. Bom, isso é situação antissemita de criança, que nem sabe o que é judeu. Outro caso de antissemitismo: os judeus, um pouco aqui também, vivem mais ou menos numa área restrita. Por quê? Porque o judeu um pouco mais religioso vai na sinagoga, então morar longe de uma sinagoga é complicado, então ele fica ali, não ao lado, mas fica mais ou menos na redondeza da sinagoga. Porque a sinagoga, não sei se vocês sabem, não é só um lugar de rezar, mas é um lugar de estudar, porque o estudo é muito importante no judaísmo, e é um lugar para confraternizar, quer dizer, é mais do que sinagoga, é por isso que os judeus normalmente não moram longe da sinagoga. Se você abre uma sinagoga aqui neste bairro, vai vir gente dos judeus também, porque tem o que eles procuram. Então um belo dia, e tinha um único cinema, e naquela época não tinha televisão, um único cinema naquela área onde os judeus moravam, e geralmente nós crianças íamos no sábado ou no domingo íamos naquele cinema, mas naquela final de semana eu resolvi com um amiguinho da classe íamos fora do chamado bairro judaico porque lá tinha um filme fantástico. Então nós fomos lá. Na volta, era inverno, neve na rua, quarenta centímetros de altura, fomos interceptados por um bando de jovens que bateram na gente, que todos nós saímos sangrando. Por isso que eu lembro da neve, porque de branco ela se tornou vermelha. Apanhamos bastante até aparecer um policial. Apareceu um policial, ele não fez nada, mas aquele bando foi embora. Eu falei para o policial: “Eu quero dar queixa”. “Judeu não dá queixa”, foi a resposta dele. Fui para casa ensanguentado e termina esta história, porque não teve consequência.
E o terceiro caso, mais ou menos na mesma linha, como os meus pais trabalhavam muito eu ia em férias sem meus pais. Quando eu era pequeno eu ia numa que se chama colônia de férias, onde tem crianças sem os pais e tem convívio entre si. Quando eu fiquei um pouco maior, 12, 13 anos, eu ia em hotéis para adultos sozinho, o que talvez me ajudou a me tornar mais independente. E na Bélgica, é um país, principalmente na parte flamenga onde eu morava, era muito plano, não tem montanha, não tem nada, então o maior esporte era ciclismo, eu também, como todo mundo, tinha bicicleta. E como eu estava num hotel de adultos não tinha muito com quem brincar, então eu andava muito de bicicleta lá, era fora da cidade, era nacampagne, onde não tinha gente. Um belo dia eu topei com um grupo de ciclistas não judeus, foia mesma coisa, me derrubaram da bicicleta, quebraram a bicicleta, bateram o quanto deu e foram embora. Eu tive que voltar no hotel com uma bicicleta quebrada, o que não é nada fácil, por isso que eu lembro do acontecimento. E assim eu fui crescendo e aprendendo pelas lições que você aprende da vida.
Agora vou parar aí e vou pular um pouco do tempo: a Alemanha ocupou a Bélgica, a França e a Holanda e nós juntos ficamos lá dentro. E a gente imaginava, nós judeus, que íamos ter problemas, porque a gente sabia o que tinha acontecido na Alemanha. No começo não tinha nada, pelo contrário. Quem exercia o poder era o Alto Comando Militar Alemão, que as instituições oficiais belgas foram praticamente fechadas. Então esta organização militar, chefia militar, chamou os judeus mais importantes em diversas cidades, judeus que são considerados,assim, mais ou menos líderes do grupo judaico da cidade, e em todo lugar deram o mesmo discurso, que é o seguinte: “Vocês sabem que nós temos um problema com os judeus, mas isto, hoje estamos em guerra isto fica num segundo plano, agora quando a guerra terminar, que nós vamos ganhar, nós vamos arrumar um acordo que satisfaça vocês judeus e nós não judeus, vamos nos separar, cada vai viver no seu canto, tranquilo e feliz. Agora, hoje nós estamos em guerra e eu vou falar pra vocês como nós só temos boas intenções. Como nós começamos a guerra contra a Rússia e nós precisamos de roupas quentes, e os judeus são muito especializados”, isto é verdade, em roupas de couro, em roupas de pele de animal, “Então amanhã eu vou mandar alguns oficiais em todas as fábricas judaicas e nós vamos fazer o mesmo pedido em todas as fábricas judaicas, que é a seguinte: uma vez por semana o caminhão vai passar e pegar tudo que vocês produzirem, dois dias depois o dinheiro está à disposição no banco, e podem ficar tranquilo que enquanto durar a guerra vocês vão ser tratados igual por igual”. E como todo mundo quer ouvir e quer acreditar no que é bom, e não no que pode ser ruim, os judeus ficaram tranquilos, nada aconteceu com os judeus, eu continuava na minha escola, e era início de época de namoro, meus pais continuavam trabalhando sete dias por semana e tudo era normal. Durante aproximadamente um ano e alguns meses.
Com licença.
Mal nós sabíamos o que estava acontecendo atrás da cortina. Primeiro houve o que a gente sabe a reunião de Wansee. Wansee é o nome de um lugarzinho na Alemanha. Naquela reunião a maioria dos ministros do governo alemão decidiu o que eles chamavam de “A questão judaica”, que era o aniquilamento total de todos os judeus da Europa e como executar. Como executar, basicamente levar a banheiros coletivos, que no lugar de ter água na torneira tem gás que mata na hora. Bom, e que isto ia ser iniciado num determinado dia. E naquele determinado dia meu pai recebeu um telegrama com os seguintes dizeres: “O Sr. Jacob está convocado para comparecer depois de amanhã, às 8 horas, na estação principal da cidade de Antuérpia, pode levar o máximo de duas malas com roupas quentes e comida para dois dias para prestar serviços para o governo alemão por três meses”. E quando meu pai saiu na rua para conversar com as pessoas muitos judeus tinham recebido este mesmo telegrama, sempre para os homens. E meu pai ficou conversando, “O que a gente faz, né? Ninguém sabe. E esqueci do final do telegrama: “Quem não se apresentar ele e a sua família serão sumariamente fuzilados”.
Só que eu me avancei no tempo. Tenho que pedir desculpa e voltar um pouquinho atrás.
Estava tudo tranquilo com os judeus.
P/1 – Seu Mieczyslaw, boa tarde! Eu gostaria de agradecer a sua presença e participação. Vamos continuar com a parte dois do depoimento. Gostaria que o senhor começasse contando essa questão da fuga. Como foi?
R – Continuando então, aconteceu o seguinte: Depois dessa fuga eu me machuquei e fui levado para um hospital Francês. Nesse hospital eu pedi ao médico para me deixar o máximo de tempo possível internado como doente, porque para mim, não havia lugar melhor do que o hospital. E ai, como sempre acontece na vida, aconteceu o ninguém esperava: o exército alemão, que tinha deixado uma parte do sul da França relativamente independente, entrou nesta parte, chamada França livre com um exército numeroso. Portanto, eles precisavam de alojamento para aquele exercito, e resolveram desativar o campo de Rivesaltes que antigamente era o lugar onde os soldados franceses viviam e, para ter lugar, todos os prisioneiros tinham que ir embora. A grande maioria, eram Judeus, que foram deportados continuando a finalidade inicial da existência desse campo e, alguns casos, como o meu e do meu pai, que estávamos sobre investigação, fomos libertados. Enquanto eu estava no hospital, de repente o meu pai, que eu pensava estar preso no campo de concentração, veio ao hospital e disse: “Mieczyslaw, ambos somos livres!”. Meu pai me disse que nesse intervalo ele arrumou uma possibilidade de nos, eu e meu pai, ingressarmos num grupo liderado por uma personalidade belga. Na França e na Bélgica, mestre significa advogado. Iamos nos juntar ao grupo deles para atravessar a fronteira da Espanha e, provavelmente, conseguir ingressar no exército da Bélgica, que estava montado em Londres e participaria na ofensiva dos Aliados na França, para chegar até Berlin. Falei com o médico e de repente aconteceu um milagre! Fui declarado são e salvo e fui liberado. Ai aconteceu uma coisa muito gozada: quando se iniciou a deportação dos Judeus na Bélgica, eu estava com um tratamento no dentista. Naquele momento eu tinha oito dentes com remédio, protegidos por algodão. Obviamente, nesse tempo todo eu não fui ao dentista, tinha problemas levemente maiores. No hospital o médico disse que eu tinha um foco grave de infecção e precisava cuidar dos dentes. O hospital não tinha dentista, mas tinha um convênio. Claro que você ia ao dentista algemado, com dois policiais, mas conseguia tratar dos dentes muito bem e gratuitamente. Eu fui ao dentista uma série de vezes, sempre algemado. Os policiais ficavam na sala de espera, vigiando aquele delinquente, que era eu. Quando fui embora para me juntar ao grupo, pensei: “eu tenho que terminar o tratamento”. Livre, fui ao dentista, entrei na sala de espera e quando o dentista me viu disse: “pode entrar”. Quando eu sentei naquela cadeira de tortura, que todo dentista tem, eu vi que ele sumiu. De repente ele grita para mim: “você fugiu da polícia. Eu já liguei para eles. Não mate ninguém nem tire o revolver, pois eles estão a caminho!”. Quando a polícia chegou, já sabia que eu era liberado, e então terminou este incidente, muito fora do que deveria acontecer.
Bom, estando livre, fui de encontro ao grupo que estava reunido, que era em num vilarejo pequeno, e nós todos estávamos em um hotel, muito bom. Um dos grupos saiu, e eu e meu pai pensamos que não deveríamos sair, pois eu estava muito debilitado. No hospital eu não comia o suficiente. Naquela época, a alimentação era racionada. Assim como as pessoas, eu consegui me virar no mercado negro, mas consegui pouco. Preso em uma casa é pouco complicado. Então eu estava fraco. Todos os meses saiam grupos, que faziam o seguinte: daquele lugar à um outro lugar mais perto da Espanha, atuava um grupo de voluntários para ajudar o governo Frances. Acontece que, na madrugada, ouvimos muitos passos de pessoas correndo pelos corredores do hotel. Na verdade este grupo não fazia nada para a França! Do grupo que ficou, fomos todos presos, levados para uma cadeia e interrogados pelos policiais. Ninguém falou nada. Apanhamos, como era costume. Então o nosso chefe, mestre Furkan foi solicitado a descer e seguir dois soldados. Nós vimos pela janela o que aconteceu: Ele passou por uma área descoberta, no meio do prédio, os soldados andaram mais devagar, de forma que o mestre ficou um pouco a frente, então os soldados pegaram os fuzis e mataram ele lá mesmo. Ele nem teve o tempo de saber que estava sendo morto porque era midialista para o pais dele. Apanhamos mais uma vez e fomos colocados em um trem que nos levaria até o campo de concentração de Mauthausen, na Áustria. Vou fazer uma breve descrição dessa viagem: Não era nem primeira, nem terceira classe. Eram vagões para transporte de gado. As portas foram fechadas com taboas pregadas, para não poder abrir. Claro, não havia bancos nem janelas – e isso era início de verão - havia apenas uma pequena abertura de uns 20 por 30 centímetros, que eu acho que servia para quem estava fora do vagão poder espiar o que acontecia lá dentro. E como gados fomos tratados. A viagem levou três dias e duas noites. Não recebemos água nem comida, éramos tão apertados em pé, que se você tirava a mão da onde ela estava, esse lugar já era imediatamente preenchido por outro. E aonde é que nós fazíamos as nossas necessidades fisiológicas? Acho que não precisa pensar muito: sobre nós mesmos. Não havendo ventilação, o cheiro se tornou insuportável. Além do mais, como não tínhamos nenhum tipo de apoio quando o trem fazia uma curva, todos se inclinavam naquele sentido. Quando o trem parava, todo mundo batia lá na frente. Quando chegamos na estação de Mauthausen, abriram-se as portas e nós saímos, e ai nós percebemos que em cada vagão, mais ou menos dez prisioneiros tinham morrido em cada viagem. Mas ninguém percebeu porque estávamos pressionados uns sobre os outros. Assim que fomos descendo do vagão, aqui e ali caiam corpos mortos. O ambiente, além de mal cheiroso era muito quente, o que não permitiu que percebêssemos também os corpos esfriando. Essa foi a nossa chegada ao campo de concentração de Mauthausen. Do nosso trem saiu um grupo compacto, os fiscais que estavam por lá nos pediram para ficar em cinco pessoas de largura e, como o trem estava muito cheio, aquelas filas foram ficando compridas. Por coincidência, pela posição do vagão, meu pai e eu ficamos razoavelmente no final dessa fila. Quando este grupo estava razoavelmente organizado, um autofalante disse: “tomo mundo tira a roupa! Façam um montinho e vão tomar banho, porque vocês cheiram mal!”. Como se fosse nossa culpa. Depois do banho, vocês vão pegar as roupas de volta. “Quem esconder algum objeto de valor, será fuzilado aqui mesmo. Não tentar passar coisas por contrabando”. A fila começou a andar e depois de cinco minutos se ouve barulho de fuzil. Fala ao megafone: “esse idiota achou que iria enganar os oficiais? Está morto! Cuidem-se para que vocês não tenham o mesmo fim”. Apesar disso, mais uns dez minutos, enquanto a fila avançava, outro tiro, outro discurso: “vocês veem o que acontece? Ninguém aprende? Paga-se com a vida”. Com o tempo ficou só um, basicamente chateado com aquele trabalho. Então ele começou a deixar passar: “vai! vai! vai!”. Então ele começou apenas a verificar um em cada dez prisioneiros. Como essa verificação era feita, todo mundo sabe. Em um corpo nu, só tem duas cavidades onde a gente pode esconder algo. Vou dar dois segundos para todo mundo pensar. Agora vou dar a resposta: na boca e no ânus. Quando se mandava parar para a verificação, a gente abria a boca bem grande, se abaixava e abria as duas metades do bumbum. A fila foi andando, andando, cada vez mais mandava, passar sem vistoria, chegou a nossa vez. Eu passei primeiro e sem ele pedir, fiz o que deveria fazer, abri a boca, abaixei e ele me liberou, assim como liberou o meu pai. Depois de ter passado uns vinte metros desta investigação, meu pai disse: “Michel, eu tenho coisa no ânus. Não anda depressa porque vai cair“. Falei “mas para que? O que você vai fazer com diamantes?” Ele disse: “olha, eu trabalhei duro. Não tenho coragem de jogar isso fora”. E você sabe que essa história dos diamantes deve consequências imprevisíveis também naquele momento. Fomos ao banheiro, não saiu aquele gás que mata as pessoas, como em outros campos de concentração, saiu água. A gente se lavou, recebemos roupa nova, aquela listada e vimos que as nossas roupas estavam no mesmo lugar, mas com outros detentos descosturando tudo e um vendo se o próprio prisioneiro não está escondendo alguma coisa. Então tudo o que tínhamos na roupa, não ficou para nós. Entramos no campo de concentração. Inicialmente, toda nova chegada de prisioneiros passava por uma quarentena. O que é uma quarentena? É um nome antigo que, para ter certeza que este pessoal não tem nenhuma doença transmissível e mortal, ficava-se segregado por 40 dias. E tinha um problema real: na primeira guerra houveram diversos campos de prisioneiros. Naquela época não eram campos de concentração. Isso naquela época, não sei hoje. Então nós também ficamos isolados por 40 dias. Neste período, não trabalhávamos. Não podíamos sair de uma área que tinha fios em volta. Uma tarde eu percebo que de repente um prisioneiro, que não era do nosso grupo, que era bem nutrido, com roupas limpas e novas, com outro corte de cabelo dos prisioneiros comuns. Era um prisioneiro VIP, que exercia função administrativa no campo. Eu vi várias pessoas em volta dele e pensei: “deve ser alguma coisa boa. Vou lá!” E ele estava dizendo que precisava de uma pessoa que sabia perfeitamente o flamingo, que é uma língua que se falava na Bélgica, e o alemão. Eu conheço as duas linguas!
P/1 – Onde o senhor aprendeu as duas línguas?
R – O flamingo porque eu morava na Bélgica, que era bilíngue – se falava flamingo e francês. E o Alemão, assim como outras línguas, eu aprendi porque era um rapaz que gostava de estudar, então aprendi sozinho. Também aprendi o inglês assim. Não vou falar do português, porque aprendi quando cheguei no Brail. Eu disse: “Eu! Eu! Eu!”. E então ele deu um papel razoavelmente importante para mim. ele era luxemburguense, porque no campo de concentração, nós tínhamos um tipo de identificação na nossa roupa. E ele disse: “você tem certeza que fala bem? Que consegue fazer uma tradução? Porque se você mentir, eu te mato na hora! Mas se você souber e fizer um bom serviço, vai ganhar uma sopa, da comida dos nossos. Esta sopa vale mais ou menos uns 10 milhões de reais. Eu entro no escritório dos e tem lá: umas 20 mesas, uns 56 trabalhando, me sento em uma cadeira em frente a uma escrivaninha com uma caneta. Era uma compilação em alemão, que eles queriam traduzir para todas as línguas da Europa. Da qual, claro, o Flamingo faz parte. Enquanto estou lendo o texto, sem qualquer dificuldade em traduzir, eu vejo que tinha um negocinho lá, um barulho, virei a cabeça e o que eu vi? Um homem no chão, gemendo, gritando de dor, apanhando de não sei quantos que tinham caibros na mão e que batem só nas pernas e braços dele, fazendo com que ele não consiga se levantar do chão. E gritam: “Você pensou que iria nos enganar? Seu judeu nojento, judeu, judeu, judeu”. E o homem responde: “eu não sou judeu. Soube só agora que meu avô era judeu. Mas fui educado cristão. Quando nasci aquele avô já estava morto”. Ele apanhou até não conseguir se mexer. Eu, estava a dois metros dele, cincuncisado, o que pensei no momento? Eu traduzi o texto, comi aquela sopa e voltei a quarentena. Agora, vou fazer um breve resumo de como o campo de concentração funcionava: tinha uma administração do tipo de exército que prestava serviço nos campos de concentração. Inicialmente, quando Hitler tomou o poder, aqueles eram escolhidos a dedo. Porque eles eram fanáticos pelo nacional socialismo, pelo Hitler, e tinham uma série de regalias. Todos eles tinham uma tatuagem escondida debaixo do braço. Era uma tropa de elite. Mas claro, na guerra, acabaram entrando outras pessoas, mas era um exército especial. Eles é quem guardavam o campo de concentração. Havia uma supervisão e uma outra parte para os prisioneiros. Porque na realidade, os só faziam duas coisas: os que vinham dentro do campo, mostravam o seu sadismo. Matavam, machucavam, batiam gratuitamente. Era um passatempo. E outro grupo acompanhava os grupos de prisioneiros que faziam trabalho externo ao campo e vigiavam os prisioneiros. Eles também fizeram atos de barbaridade, mas a função essencial deles era realmente não deixar ninguém fugir. Quando se saia do campo, éramos contados, grupo por grupo. O grupo se chamava comando, que tinha um chefe dos prisioneiros, que se chama cappo e quando se voltava, tinha que ter o mesmo número, vivos ou mortos. Normalmente cada comando que voltava tinha um pouco de mortos. As vezes mais, as vezes menos. Os prisioneiros, como falei há pouco, tinham um retângulo costurado em cima do casaquinho que tínhamos como roupa, e a cor deste triângulo era de acordo com o crime pelo qual eles estavam no campo de concentração. Como isso já data uns 70 anos, não me lembro muito das cores, mas vermelho, eram prisioneiros políticos. Havia uma cor para estupradores, ladrões, etc. Agora, esse triangulo tinha duas posições. A ponta em cima ou em baixo. Uma posição, não me lembro qual, significava preso condenado e a outra preso sem processo. Em certos campos os judeus tinham um triângulo amarelo. Em Mauthausen não. Tinham uma cor pela ofensa e uma faixa em cima do triângulo, na cor amarela. Quem realmente administrava o campo, eram os prisioneiros. Na nossa entrada no campo, éramos pouco mais de 4 mil prisioneiros, saiam vivos 22, entre os quais, meu pai e eu. Nessas três filiais, cada vez que eu entrava, eu era soldado raso, mas em cada uma dessas três eu consegui um cargo na administração, e o motivo pelo qual meu pai e eu sobrevivemos, primeiramente porque Deus assim quis. Porque aconteceram fatos, que vou narrar daqui a pouco, que muito ilógico, impossível de acreditar, que consegui fazer o que fiz. No primeiro campo eu fui secretário de campo. Isso foi relativamente simples. Quando a gente chegou naquele campo, todo mundo em posição de sentido, ele fez um pequeno discurso dizendo que aquele grupo era o desbravador daquele campo, que ia, como todo campo, ter 4 a 5 mil prisioneiros, e que estávamos em uma vanguarda para instalar as coisas. E que o primeiro ato dele era nomear pessoas para administrar o campo. Ele escolheu cozinheiros, limpadores, enfim, assim por diante. E ele disse, “agora eu preciso de um secretário que fale alemão”, ai fui na frente e disse: você lembra que me deu uma sopa? Você sabe que eu falo em alemão”. Ele disse “Ahhhh! Sim!”. E fiquei secretário. Evidente que como secretário eu não fazia absolutamente nada. Eu ficava em uma sala grande, um escritório, ficavam no meu turno batendo papo. E com eu falava bem o alemão, queira ou não queira, eu entrava na conversa e era tratado igual por igual. Porque? Porque eles precisavam de mim também. De vez em quando se precisava fazer um relatório, fazer umas coisas sob nome falso. Claro, porque todo esse tempo eu vivi em nome de não judeu: Franz, Francisco, em português. “Ahhh Franz! Eu preciso disso, preciso daquilo”. E eu fazia. Mas fazia mais outra coisa. Primeiro eu arrumei um bom lugar na administração do campo para o meu pai. Eu tenho certeza que ninguém está me ouvindo, então imagina qual é o cargo que o filho dá para o pai? Limpador de banheiros. Porque era o melhor cargo? Porque ele não tinha um superior. Segundo, os banheiros eram azulejados, a limpeza embora fosse cheiroso, se fazia com uma mangueira, só com água. E na realidade, se trabalhava umas duas vezes por dia, o que dava umas duas horas. Quando todo mundo saia para trabalhar, se limpava o banheiro coletivo. Quem tinha algum cargo, tinha acesso a outros banheiros. Quando todo mundo voltava, tínhamos uma hora para ir dormir. Quando todos estavam dormindo, ele tinha autorização para limpar de novo. Ou seja, ficava no abrigo, sem trabalhar demais e sem ninguém para bater nele. Agora volto a dizer o que eu fazia: eu ia na cozinha e dizia: “oi! Tem dois soldados no escritório que estão morrendo de fome. Eles me pediram dois pratos de comida e me pediram bastante carne”. Agora adivinha quem eram os dois soldados que queriam a comida com bastante carne? Era meu pai e eu! Eu ia a área do banheiro, sentava de um lado, meu pai de outro e limpávamos o prato. Desta maneira deu para sobreviver. Ai chegou um dia, onde começaram a vir muitos prisioneiros, onde fomos transferidos para o segundo campo. Embora todos os campos tinham aproximadamente o mesmo comportamento, a personalidade do chefe determinava um tipo de trabalho diferente. Quando cheguei no segundo campo – agora vou fazer um pequeno parênteses, me desculpem – porque naquele campo primeiro ocorreu uma coisa muito interessante – Eu me dava bem com as pessoas que trabalhavam lá, até com o meu chefe, que era professor de faculdade. Um belo dia aparece um soldado no campo. E alguém me disse: “Franz, agora chegou a minha última hora. Este novo soldado, que tinha o nome de Fritz - não sei uma tradução para o Português, mas um nome muito comum na Alemanha - ele vai me matar”. Mas porque? Normalmente os que tinham cargos eram os donos do pedaço. “Aconteceu o seguinte: num campo anterior aconteceu uma irregularidade, onde houve investigação por parte dos cargos mais altos deles eu fui obrigado a testemunhar e dizer a verdade, porque outros prisioneiros já haviam dito a verdade. Então eu fui obrigado a confirmar deslizes do soldado, e como punição, ele foi enviado a frente de guerra na Rússia. E lá, evidentemente, a possibilidade de morrer era grande”. Esse Fritz era amigo intimo daquele soldado que acabara de entrar. E ai ele me disse: “olha, ele vai me matar”. Dito e feito. Aparece aquele Fritz, que era bonito como um deus. Era jovem com olhos muito fortes, que penetravam na gente, sádico, como vou contar daqui a pouco, mas lindo, bonito, o tipo clássico do alemão como o Hitler pintou a raça ariana: loiro, vinte anos. Quando ele entrou, falou para o Albert: “Albert, dê três voltas ao redor do campo. Eu te dou 10 minutos. Por cada minuto a mais, vai apanhar”. E não bem naquele dia, em outro, mas tanto faz, ele realizou na minha presença, e entendeu que se o Albert me colocou naquele cargo, eu deveria ser um amigo dele, ou o que eu tenho até vergonha, mas vou falar amante dele – no campo havia muita relação homossexual. Afinal, porque Albert teria me colocado lá? Vou descrever a cena: Ele me disse em alemão, “posição de sentido!”. Ele lentamente coloca as luvas, que significa “eu vou bater em você, mas a minha pele não vai tocar na sua”. Ele disse, “Franz, o que você fez de errado hoje?”. O que eu podia responder? Eu disse: “eu não sei, mas se o senhor afirma que eu fiz alguma coisa errada, eu posso pedir desculpas. “Ahhh, você não sabe?!” Paff, paff! Me deu dois tapas e eu cai no chão. Ele disse: “sentido!” E tudo girava em volta da minha cabeça. Ele diz: “eu vou lhe perguntar mais uma vez: o que você faz de errado?”. Eu respondi: “sinto muito, não sei”. Paff, paff! Cai novamente. “Levante-se”. E foi assim umas dez vezes. Ele só parou porque Albert voltou das três voltas do campo. Ele disse: “Albert, você está aqui, vamos brincar”. E então me deixou em paz. Eu estava completamente tonto, e acho que naquele momento começou a minha surdez, que hoje me atrapalha bastante. Durante os dois dias seguinte eu não ouvia nada. E pensei, o que eu faço? Porque ele vai matar o Albert e depois vai me matar também. Eu tenho que sair desse emprego. Mas lá não tem carteira assinada (risos), não tem como pedir demissão. Ai fiz o seguinte: eu sabia que tinha um prisioneiro que falava alemão, não muito, mas o suficiente. Um dos cargos que eu tinha na secretaria era a classificação dos prisioneiros nas fichas de cadastro, então conhecia a todos. Fui lá e falei: “fulano de tal, o Albert me mandou embora do cargo e ele quer alguém para o meu lugar, então eu vi a sua ficha, vi que falava alemão e já te coloquei no meu lugar. Amanhã, as oito horas, você vai lá”. Tá bom. Sai do emprego, mas precisava viver. Como eu conhecia bem o campo, pensei, o que posso fazer. Como não trabalhava no comando, de manhã eu acordei e não tinha aonde ir, porque não me coloquei em lugar nenhum. Ai tive uma ideia: no campo havia uma área pequena onde havia um sapateiro e um alfaiate. Eles faziam o conserto dos capacetes e botas. Eu fui lá, me lembro que o alfaiate, falei, “você não sente falta de conversar com os soldados que vem fazer os serviços e falam em alemão? Ele respondeu que sim. Eu disse que como estava de folga, por isso e por aquilo, ficaria ali para ajudá-lo. Ao entrar o primeiro soldado ou ajudei a traduzir e depois perguntei a ele: “você não teria meias para cerzir. Eu acho que hoje as mulheres não cerzem muitas meias, mas naquela época, toda mulher cerzia e eu via a minha mãe fazendo, e não é complicado. Na verdade é um fio trançado. Eu dizia: “pode trazer que eu vou consertar s suas meias!”. Bom, o soldado ficou feliz da vida porque ele não recebia meias como queria, e me trouxe meia dúzia. Eu peguei a linha e tesou do alfaiate e comecei a consertar. Cada soldado eu fazia a mesma pergunta e depois de duas horas eu tinha meias para um ano! Depois aparece outro que eu vejo que era mais simpático e digo: “você não acha que esse serviço é importante”, “ah, muito! Vá ao escritório e peça para me colocar num novo comando, que chama cerzidor de meias dos soldados, ai eu posso vir amanhã aqui”. Ai foi o que ele fez. E era fantástico! Ficava sentado, comida não ajudava muito, mas eu estava em um lugar onde era bem tratado pelos soldados porque eu ajudava eles. Fiquei assim uns 15, 20 dias. Em determinado dia, eu desço a escada para chegar no térreo. A escada tinha patamares e quem eu encontro!? Plaft! O nosso querido Flitz. Ele disse: “ahhhh, você Franz! Eu estava te procurando, que bom que te encontrei! Vá buscar um balde de água”. Balde de água? Trago um balde com água e ele pede para eu derramar no patamar e diz: “olha Franz, vamos fazer um negócio? Eu vou sair para tomar um ar fresco e vou ascender um cigarro, quando eu voltar, se aqui tiver uma gota de água, você vai apanhar cinco vezes”. O que era isso? Um cabo de alta tensão que os alemães usavam para bater nos prisioneiros, mas de uma maneira muito sádica. A gente tinha que deitar parcialmente num banco, com a cabeça quase no chão e as pernas de outro lado, tinha que descer as calças e eles batiam com aquele cabo de alta tensão. A gente sabia que com cinco, a pessoa estava meio desacordada. Com 10, ou morria na hora ou nunca mais se recuperava e morria no hospital. Depois de duas batidas, a pele está completamente rasgada, então ele não bate na pele, bate na carne. Não preciso dizer que em menos tempo que descrevi esta cena, o piso estava seco. E em volta ele disse: “Franz, gostei, você fez um bom serviço. Mas eu pensei melhor e vou te dar as cinco pancadas. Vá buscar uma cadeira”. Era uma cadeira sem encosto. Eu pensei “não vou gritar”, mas depois do primeiro, não dá para segurar. É como um animal que está sendo morto, que no final, era a minha posição. Depois dos cinco, entrei no hospital. Lá, se você fica muito tempo, acaba morrendo. Fiquei uns dois dias e sai. E em grande parte por isso que fui para o outro campo. As vezes tinha jeito, eles separavam os que iam para o outro campo, mas não era a ferro e fogo, dava para se enfiar. Foi por isso que mudamos de campo. E ainda esqueci mais um pedaço: quando eu estava como cerzidor de meias, o chefe do campo, que é o major, recebeu uma semana de folga. Então veio um substituto. A primeira coisa que ele fez foi ir a alfaiataria e na sapataria e disse que como tinha acabado de voltar do campo de batalha com a Rússia e só ia ficar uma semana, não estava nada interessado na administração do campo. Ele tinha tecido para dois ternos militares e tinha uns consertos de bota, onde os dois ternos ele queria ver se terminava em uma semana. Eu perguntei ao alfaiate se era possível fazer os ternos em apenas uma semana, e ele me que só seria possível se o major ficasse a disposição dele, para que as medidas fossem tiradas. Antes de traduzir o major me disse: “olha, vou dizer a verdade, eu não estou interessado no campo, estou interessado nisso. Enquanto o alfaiate precisar, vou ficar aqui. Quero acompanhar o serviço. Para mim, a única coisa boa de estar aqui são os dois ternos”. E o que vai acontecer? Um major, 55 anos, mais ou menos. Eu jovem, prisioneiro, de 18, 19 anos. Os dois falavam alemão, então se criou uma relação pessoal muito forte. Ele me usou como confidente, ouvi os problemas e ajudei a ele suportar os problemas com a esposa. Ele tinha dois filhos no exército, um deles lutando em uma área muito perigosa. Se estabeleceu uma relação incrível. No último dia dele no campo, os dois ternos estavam prontos e ele me disse, Franz, o que eu posso fazer para te ajudar? Me desculpe voltar um pouco, mas a vida é assim mesmo, cheia de zigue-zagues.
P/1 – Não tem problema!
R – Só um pouco mais de estatísticas, que são as provas de tudo isso. A população do campo flutuava em torno de 4 mil prisioneiros. Como todos os dias pessoas morriam, a cada dois dias chegavam novos prisioneiros. E quantas pessoas morriam por semana? Morriam só mil por semana, ou seja, a vida média do prisioneiro era de quatro semanas, um mês. A mortalidade por semana era de 25% da população. Porque? Porque naquela época os alemães começaram a construir aqueles foguetes, e começaram a fazer isso em uma montanha. Fizeram porque a supremacia até então era toda dos americanos. Eu e todo mundo que estava lá viu, centenas e centenas de aviões americanos passando, e nenhum alemão. Eles já tinham perdido grande parte dos aviões. E nós fomos encarregados de transformar uma antiga fábrica de cerveja, cheia de toneis, para alarga-la, a ponto que pudesse liga-la a um túnel, para carregar e descarregar de uma maneira desprotegida dos aviões. No tempo que ainda não se existia geladeira, o único lugar frio era no túnel dentro da montanha. E as fábricas que cerveja possuem esse sistema. Ficou então decidido que duas turmas trabalhariam nessa expansão: uma turma de dia e outra de noite, com 12 horas de trabalho cada. No papel papel isso funciona, mas como muitos morriam, nem sempre eram substituídos, então saia-se a turma da manhã e quando a outra turma voltava, já estava reduzida, porque muitos que faziam parte dela morreram. O que faz então? Se utiliza o prisioneiro que estava na jornada de trabalho anterior para trabalhar dobrado, ou seja 24 horas.Ou seja, o prisioneiro que entrava nesta, morria, porque não dá para trabalhar 24 horas sem dormir e quase sem alimentação. Pela manhã se tinha um café que se parecia com água suja. Só. No almoço, recebíamos um litro de sopa com verduras, de vez em quando tinham pedacinhos de carne microscópicos. O prato principal era a noite: um pão, com tamanho quase que do punho e as vezes uma tira de geleia ou algum doce, as vezes.
Agora, o trabalho dentro daquele túnel era muito pesado, porque era praticamente tirar terra e colocar nos trilhos para ser jogado fora. Era um trabalho pesado, ainda mais para subnutridos como todo mundo já viu fotografias. Isso explica o porque este campo era o pior de todos. Na semana que fiquei lá com o meu pai, qual foi a minha surpresa? A minha salvação! Aquele major do outro campo esta chefiando este campo. Ai eu disse para o meu pai: “sabe, amanhã eu não vou sair para trabalhar. Vou me esconder e se eu ver o major, estamos salvos. Normalmente o chefe do campo vai tomar um ar em algum momento. Não fica nos aposentos dele o dia inteiro. Ai meu pai me diz: “e se ele ficar? Você sabe o que acontece: quando o comando volta, você tem que estar ai para receber o pão, se não o te mata com cabos. É uma morte dolorosa”. E o que fazem os filhos? Não obedecem, é claro! De manhã eu me escondi, meu pai me procurou e não me encontrou. O major tinha que aparecer, se não, eu e meu pai morreríamos! Seria impossível sobreviver. Deu 8 horas, se serviu aquela sopa horrorosa, 12, 13, 14, 15, 16 horas e ele não aparece. Eu sabia que tinha duas horas de vida. E ai acontece um milagre que eu até hoje não consigo entender. Eu estava desesperado. Porque além de eu, meu pai também morreria. E eu vejo de repente um soldado chamado Otto, um sádico dos piores, que estava parado e, sem nenhum plano, sem saber o que estava fazendo, ponho a mão em cima do ombro dele e falo: “Otto, você está aqui! Você lembra de mim, não é?!” No campo anterior ele estava também, que sabia que ele estava antes, ele era amigo do Flitz, não curei a moça que tinha sífilis, você lembra? Imagina que eu, como médico, fui colocado com os prisioneiros comuns?!” E ele acredita nesta história sem pé nem cabeça. Até hoje não entendo o que aconteceu. Não pelas palavras, mas pelo jeito do prisioneiro tratar quem faz aquelas atrocidades, quem mata a torto e a direito! E ele dá um grito ao chefe de campo dos prisioneiros, que tinha uma cara de assassino como eu nunca vi. E o soldado, o que ele faz? Diz: “Como é que você não sabe o que se passa nesse campo? Se não fosse eu você estava perdido! Ele é um grande médico e você coloca ele como prisioneiro comum? Da próxima vez eu caço o seu titulo e você vai trabalhar como todo mundo. Faça tudo que for necessário para ele assumir o hospital já!”
P/1 – Como você aprendeu o oficio de médico? (74:47)
R – Bom, é o seguinte, não dá pra contar tudo, mas quando a história com o Flitz, eu não contei os detalhes pra vocês. Era que um dos prisioneiros tinha liberdade de sair do campo, roubava coisa e com o dinheiro do roubo ele pegava umas putas e bebidas, trazia par ao campo, ele com a turma dos soldados e trazia par aquela base. Eu me basiei nisto, mas foi feito inconscientemente. Me levou aonde tinha o cabeleireiro e me fez um corte dos VIPS, por que os VIPS tinham um corte de cabelo diferenciado. Recebo um banho, roupas novas limpas e bonitas, e ai eu sei que é a hora que meu pai deve voltar, mas dá ainda um pouquinho de tempo, primeiro precisaria me apresentar ao Cappo do hospital, que é uma personagem fora do comum. Fui lá e disse "olha, agora fui nomeado o chefe dos hospital" ele se chamava Käse. Käse significada queijo, não era nome, devia ser um apelido. Olhou pra mim e disse: "você é médico? mas não tem idade! " Eu resolvi falar a verdade "não sou médico, mas estou trabalhando contando histórias" Ele disse: "ah, agora eu gostei, enganar eles é meu maior prazer! o que você quer além de trabalhar aqui? respondi que estava morrendo de fome! Ele abriu um armário, que estava mais cheio de comida do que um supermercado daqui. ele disse pra que eu escolhesse o que eu quisesse. Peguei um salsichão de 80 centímetros que ele me deu pra comer. Peguei esse salsichão e fui aguardar meu pai, que não sei como, já sabia que eu era médico. Dei todo o salsichão pra ele. E ai eu virei médico! Tinha mais ou menos 18 ou 19 anos, não precisa dizer que não tinha conhecimento nenhum de nada, no hospital tinham mais ou menos mil doentes, e todos os dias uns morriam, outros saiam, e ai o Kase me diz, "olha, existe um outro médico no campo, um polonês, mas ele só trata dos soldados, e a única coisa que faz pros prisioneiros é matar, ele dava uma injeção de gasolina no coração. Mas ele não se meterá, vou falar com ele pra que não tenha medo que você pegue o cargo dele, se não você está pedido. E eu tinha meus pacientes, mas não sabia fazer nada, tinha que me virar. O Käse falou também que eu estava como na quarentena, não poderia sair nunca do hospital por que eu lido com os doentes, se me pegassem fora do hospital era capaz de perder o cargo. Ai eu perguntei o que fazer, ele disse "procure entre os doentes quem é médico". eu achei um Frances que também é um personagem interessante que darei os detalhes, que era médico, disse que tinha me tornado médico sem entender nada. Remédios praticamente não havia, então não adiantava saber que remédio se dar. Mas o que havia bastante, apetrechos, ferramentas, remédios para combater doenças decorrentes de batidas, com pus, esse tipo de coisa. Ele me ensinou a fazer um dreno - um dreno você tem uma ferida, pega um algodão, coloca lá dentro par ajudar o pus a sair - eu aprendi a fazer operações simples, geralmente costurar pele cortada, mãos quebradas para operar, por que mãos apanhavam muito, e fora isso não havia o que fazer. Outra parte que me cabia era decretar a morte do prisioneiro em termos práticos, não só no papel. Recebíamos da matriz, caixões, mas como sempre faltavam caixões eu colocava dois no mesmo caixão e as vezes o de baixo ainda gemia um pouco, por que quem sou eu para constatar a morte? Peguei um doente que transformei em Office boy. Ele levava a cada dia comida para meu pai e fazia algumas coisinhas dentro do campo por que eu não podia sair. e de onde que eu tinha comida? Primeiro por que vinha comida para os prisioneiros e metade não comia, mas principalmente vinha próprios cozinheiros, por que o cozinheiro sabia que se ele fica doente e vai pro hospital, um outro substitui e ele não volta, não tinha estabilidade neste emprego. Então ele fazia muita questão de não ficar doente, ou ter o máximo de apoio que era o grande médico Franz. Agora vou contar um episódio. um belo dia arrumei um pão inteiro para mandar par ao meu pai. Mas eu não podia mandar o Office boy com um pão, iam matar ele no caminho. disse pra ele falar pro meu pai vir até uma área - por que o hospital estava no final do campo, depois do hospital tinha uma pequena área, depois tinham os arames farpados eletrificados - disse pro meu pai ir com uma vassoura lá, fingir que estava varrendo. E de fato meu pai foi lá com uma vassoura, eu vejo que não tem ninguém, abro a porta que dá acesso para este lado no hospital... Agora preciso contar mais um detalhe... muitas vezes havia muito mais mortos do que caixões. E o que fazia com os mortos? não dava pra jogar fora! Então eu os empilhava que nem tijolos - dois assim, dois assim, dois assim, dois assim até o teto... quando chegava no teto começada uma nova torre. Naquele dia tinham uma três torres de mortos. E onde eu colocaria um pão inteiro? Levantei a bunda do morto e coloquei no meio" por que é a única geladeira que eu tinha acesso! meu pai entrou, levantei o bum-bum, tirei o pão e dei pro meu pai, e ai eu vi até que grau de bestialidade que eu cheguei. Meu pai viu o pão saindo do bum-bum do morto e vomitou tudo! E assim eu fiquei com meu pai oito meses naquele campo, até ser desmanchado e fomos para o terceiro. Cheguei no novo campo, João ninguém como todo mundo. Lá não era tão terrível mas não era nada bom. eu encontro um prisioneiro a quem eu já tinha ajudado em outros campos. disse "fulano, eu não te ajudei? Me ajuda também! sei que você tem um pequeno cargo, me dá uma mão?" disse "eu posso te dar uma mão parcial, o da cozinha me pediu par ajuntar umas 50 pessoas aqui no campo e ele vai escolher uns 10 para trabalhar na cozinha. O que eu posso fazer é por você entre os 50, mas a escolha eles que iam fazer, não eu" Tá bom, era melhor do que nada! Nos reunimos umas 50 pessoas mais ou menos, apareceu o cozinheiro, típico cozinheiro gordo, ele sobe num negócio de madeira para ver todo mundo e anuncia que vai escolher 10 para trabalhar na cozinha. Ele pedia pros escolhidos irem subindo, e depois do segundo a ser chamado eu já percebi que não seria, por que ele escolhia os mais altos, fortes, e com pouco tempo nos campos, que ianda tinham corpo de gente, não de moribundo... Sai da fileira, e como eu sei como falar com os soldados, uma linguagem bem diferente do que a gente usa aqui, mais ou menos o seguinte "o prisioneiro... como se traduz isso? com muito respeito, pede licença para dirigir a palavra para vossa excelência" Como os prisioneiros, poucos falam alemão, sabem poucas palavras, não sabem se dirigir deste jeito... disse "Olha, sou cozinheiro de profissão, eu era cozinheiro do Piccadilly em paris (o Piccadilly tem em todo lugar) e sei fazer La Bouillabaisse, - que é um prato típico Frances, que de fora da frança vinham comer - como vocês ocupam Paris, e provavelmente a sua Excelência já teve alguma folga em Paris, aposto que o senhor já deve ter comido a minha Bouillabaisse"... ele diz "suba". Então estava os dez escolhidos, cozinheiro de mão cheia. Disse "me sigam que vou levar vocês até a cozinha". Ele vai na frente, nos em fila indiana, aqueles dez, atrás dele. No caminho passa uma caminhonete e ele a para e diz: "já que vamos a cozinha vamos descarregar este carro com sacos de farinha, cada um pega um por vez e vou mostrar ao primeiro onde deixar" Quando foi minha vez eu quase desmaio! O saco pesa 120kg! Eu nunca carreguei nem este peso nem nenhum outro! Não sei nem colocar nas costas! Os dois motoristas ajudantes colocam, eu comecei a andar para levar o saco no lugar adequado, e vejo que não vou chegar, era impossível! Eu sei que no fim da guerra eu pesava trinta e poucos quilos, imagina carregar 120kg! Mal e mal eu consigo deixar o saco lá e eu sei que tenho que voltar! Pego o segundo saco e me sinto que nem uma barata que a pessoa põe o pé em cima! Não conseguia andar, com muita dificuldade deixo o saco e penso "vou ver se consigo fugir, por que sei que não vou sobreviver" estava pensando nisto e vejo que tem dois prisioneiros no canto da cozinha tinham dois prisioneiros descascando batatas. O Essex já tinha ido embora e estava o Cappo da cozinha. Me aproximo deste Cappo e disse "olha, eu sou pianista e o major tal (eu disse o nome) já me ouviu tocar e gosta muito da minha maneira de tocar e por isso que ele me colocou aqui, para eu não morrer. Pianista tem mãos ágeis eu sozinho faço mais trabalho que esses dois, mas não me faça carregar sacos de farinha!" Ele me olha assim com suspeita.... e disse "você conhece o major? me dê uma descrição" dei pra ele a descrição e virei descascador de batata. De onde veio essa idéia de ser cozinheiro do Piccadilly? De ser pianista? E persuadir pessoas que estão acostumadas a ouvir mentiras? não sei. Virei o terceiro descascador de batatas. Passou um pequeno tempo e os dois não vieram mais. Ou foram transferidos ou foram mortos pro algum incidente. ai falei para o Cappo: "olha, eu tenho um amigo que é bom descascador de batatas, vou trazer ele tá bom?" deixaram! Todo mundo sabia quem era esse meu amigo, né? Então imagina o paraíso - por que no campo de concentração usávamos este termo - o paraíso da minha situação! eu e meu pai em frente, os dois batendo papo o tempo todo, um balde de batatas a serem descascadas, cada um tendo o seu e no meio um balde maior onde jogávamos a batata descascada. Dentro da cozinha, comida a vontade, não tendo chuva, não tendo nada. É com isto que eu sobrevivi. é por isto que não fomos os 22 a mais de 4000. Eu digo: eu sobrevivi, e meu pai, primeiramente por que Deus assim quis, e em segundo lugar pelo fato de eu falar o alemão fluentemente, e em terceiro lugar, estando os dois juntos é bem diferente de estar em individual, por que eu lutava pelo meu pai e meu pai lutava por mim. Pois lembra, em um determinado momento, uma turma ia pra um campo, meu pai pra um lado e eu pro outro. A gente sempre ficava na mesma fila, mas cada hora o Essex pegava a fila de um jeito... eu me lembro que eu fiz de tudo e consegui passar para o outro lado. Agora voltando bem para traz, quando fomos presos na França, fomos presos eu e meu pai, junto com 100 ou 200 outros prováveis judeus e fomos para uma cadeia onde a coisa foi se desenrolando. Nos andávamos em fila, um grupo, 4 ou 5 de largura, e a policia francesa ao lado nos vigiando. num determinado momento, a gente teve que fazer uma curva. Não sei se meu pai fez por querer ou sem querer, mas meu pai continuou reto e saiu! De repente eu vi meu pai fora daquele grupo como publico que estava olhando essa turma de terroristas passar. Tentei fazer a mesma coisa, o guarda viu e me deu uma batida com um fuzil e meu pai voltou pra fila! Meu pai voltou, não ficou livre! Pra mostrar como as pessoas são diferentes. Não que eu me faça de bonito, ou meu pai de bonito, mas é a realidade. Agora vou contar o contrário. No hospital um dia entraram dois franceses que eu conhecia, pai e filho também, eu achei o seguinte, para proteger eles um pouco dos Essex que vinham fazer uma onda, aquelas camas tinham 3 andares, coloquei eles no 3 ° andar, o Essex vê o primeiro, o segundo, mas o terceiro ele não vê. De manhã eu acordava e fazia a ronda dos meus pacientes e vi de um dia o pai no chão morto. Perguntei pro filho "Mas o que é isso?" "Ah, meu pai não quis me dar o pedaço de pão dele. Eu tneho mais força que ele, eu tenho mais possibilidades de sobreviver do que ele. Nós lutamos e eu joguei ele da cama" é duro, mas é realidade. Agora vou contar mais alguns episódios no campo, certo?
P/1 – Bom, eu tenho algumas perguntas...você tem ainda contato com as pessoas que saíram do campo pro senhor?
R – Não, mas sobre isso posso falar alguma coisa...
P/1 – Seu Mieczyslaw, o que ficou da experiência no campo de concentração? As lembranças, esse trauma, como o senhor trabalha isso e vive no dia a dia e vive no dia a dia essa experiência?
R – Bom, vou contar da minha parte e também da minha esposa, que até agora não falei dela, que também teve uma experiência um pouco diferente da minha. Em poucas palavras ela, os irmãos e os pais dela ficaram escondidos numa casa de não-judeus na cidade que eles moravam, Liège... Vou falar um pouco do meu sogro, que vivia em Liège, é a terceira cidade da Bélgica, cuja população na época era 8 milhões de pessoas, é uma cidade que tem cerca de 100 150 mil pessoas. em termos do Brasil, parece uma aldeia. Lá também haviam Judeus mas não muitos. eu não tenho dados reais, mas eu acho que uns 5000, 6000, tinha um grupo mas que era relativamente restrito. Meu sogro é uma personagem que eu nunca tive relação com outras pessoas com essa qualidade, esta capacidade que vou falar agora. Onde ele ia, ele tinha uma turma de gente que ia atrás dele como se ele fosse um grande líder,. Ele tinha uma capacidade carismática muito forte, onde ele ia, dois minutos ele levava para ficar amigo das pessoas, não só amigo de bate papo, mas um amigo com uma superioridade dada pelo outro em relação a ele, em todo lugar. Saindo um pouco talvez do roteiro vou contar um detalhe, acho que depois vou entrar melhor, mas estive uma época com meu sogro dia e noite por uns 3 ou 4 meses, então o conheci profundamente. ele tinha esta capacidade incrível, nos vivemos no Brasil, no Uruguai, etc., onde dois minutos ele tinha pessoas que falavam para ele o que não se fala pra um estranho, e ele era muito bondoso e não era apegado a dinheiro. Bom, enfim, meu sogro, naquela cidade relativamente pequena, era presidente de todas as organizações judaicas. Onde os judeus se estabelecem criam uma sinagoga, uma instituição de ajuda aos pobres, as moças que não tem dinheiro para casar, para ajudar a casar, isto é automático. Criam uma escola para crianças e mais uma pra adultos... E tem uma coisa que em hebraico se chama mikvah que acho que é pouco conhecido. É um tipo de banho ritual. A água é composta por uma porcentagem de água de chuva e uma outra porcentagem de água corrente e tem um símbolo que lembra um pouquinho os Essênios, a parte dos cristais, aquele banho de submersão, não é bem igual mas tem alguma coisa aí... O Judeu religioso vai uma vez por semana e o não religioso, como é o meu caso, vai umas duas vezes na vida e onde a noiva vai antes de casar. É uma purificação simbólica que os judeus fazem isso em todo lugar. Meu sogro era presidente de todas essas organizações, inclusive uma organização que existe em todos os lugares da Europa, que os judeus e não judeus criaram em todo lugar, que era uma organização para boicotar os produtos vindos da Alemanha. isto, na época que Hitler tomou o poder na Alemanha e antes da guerra. O visinho do meu sogro, quando os alemães entraram, denunciou meu sogro que era o presidente desta entidade, e por este motivo ele foi colocado no campo de concentração belga... Não era um campo que matava, mas era trabalho físico puxado, basicamente os prisioneiros deste campo tinham que encher carrinhos de terra e levar para um outro lugar, e quando o outro lugar estava cheio eles traziam de volta. Era um trabalho físico pesado, mexer com terra, mas o principal é que tinham oito carrinhos e três trilhos de trem para estes vagonetes... Os Essex começaram a puxar rápido rápido rápido e um carrinho batia no outro. Quando os carrinhos batiam uns nos outros era a grande festa dos guardas belgas. meu sogro ficou lá um ano e foi liberado ninguém sabe por que, de repente, só que ficou obrigado a trabalhar para a prefeitura, fazia limpeza e pequenos concertos da cidade por conta da prefeitura. Meu sogro fazia parte da resistência belga, então ele usou este trabalho para transportar armas, por que tinha caro, com ferramentas, com um monte de bugigangas que dava para esconder. Quando começou as perseguições contra os judeus na Bélgica, meu sogro que tinha estado um ano no campo de concentração e que tinha que ir no departamento da policia alemã toda a semana, par amostrar que estava lá e não tinha fugido, uma vez que ele foi lá era muito capaz de criar laços de amizade, um dos guardas disse a ele "não volta a semana que vem". meu sogro entendeu. Eles pegaram objetos de casa e foram se esconder na casa de um companheiro de resistência onde meu sogro e suas duas filhas ficaram mais ou menos 3 anos. Agora imagina só minha futura esposa ficar 3 anos só com os pais e a irmã, nunca ver ninguém, nunca saiam, com medo de falar alto por que o visinho vai ouvir, com medo de fazer lixo por que o visinho vai perceber... viver 3 anos assim. E a minha futura esposa que era a mais velha das duas se sentia um pouco responsável pela casa, então ela ficava o dia inteiro na janela para ver se um carro da policia, de Essex vinha para pegar eles... ela ficava o dia inteiro com medo. Imagina o que isto faz com uma moça de 12 anos... E isto fez com que depois da guerra a minha esposa e eu ficássemos com traumas que eu vou descrever: todo mundo sabe que carro militar chega a 200km por hora e breca com toda a força, em todos os exércitos do mundo... simples! eles não pagam nem a gasolina, nem o freio se estraga, a lona, nada! Então eles fazem uma maneira de chamar atenção... no mundo inteiro... a minha esposa estava sempre com medo de ouvir este barulho, ate o ultimo dia de sua vida que ocorreu faz 3 anos e meio que ela faleceu. Quando na televisão você ouvia o barulho de um carro militar parando, minha esposa pulava da cadeira. Pior ainda, a guerra terminou em 45, nós imigramos para o Brasil em 51, seis anos depois, minha esposa não conseguia adormecer se a porta de entrada do apartamento não estivesse aberta para ela poder fugir se os Essex aparecessem. Seis anos depois da guerra, no Brasil, eu, como bom marido, ninguém vai poder me desmentir, eu ajudei a minha esposa a passar por este período, que durou uns 10 anos pelo menos. a porta ficava aberta, eu não dormia até ela adormecer e eu ia fechar a porta por que dormir num prédio, num apartamento com a porta aberta no Brasil... Isto foi por parte da minha esposa, o nome dela é Mimi... Agora a minha parte... Eu contei não me lembro com quantos detalhes que lá na França no campo de Revsalt, meu pai e eu chegávamos a noite por perto das 11h e no dia seguinte de madrugada minha mãe foi deportada. No dia seguinte quando estávamos no campo e estavam averiguando se éramos cristãos ou não, comecei a conhecer o campo bem... Um belo dia apareceu uma delegação de judeus da cidade grande ao lado e dentro deste grupo, que naquela época só se deportavam os judeus não-franceses, por que a Alemanha para conseguir matar milhões de judeus fez de tudo para dividir os judeus de diversas maneiras, apareceu um amigo da minha escola da Bélgica que devido a guerra acabaram chegando ali e não votaram mais pra Bélgica, e ele me disse o seguinte: "Eu trabalho com a resistência, eu posso arrumar uma carteira de identidade francesa que é impossível de saber que ela não é verdadeira por que ela é emitida por uma prefeitura que foi destruída " por que na Europa pelo menos na Bélgica e na frança quem emite carteira de identidade é a prefeitura e não o federal. Meu pai que não falava Frances, fiquei de arrumar uma carteira de estrangeiro, não judeu, morador legalmente na frança. Era muito simples fazer a minha, mas a do meu pai era um pouco mais demorado, mas os dois teriam papeis aparentemente genuínos. Foi como contei na primeira parte desta entrevista, fugi do campo, fui pra casa dele e tudo mais. depois me deu um complexo terrível e ilógico, por que os sentimentos não tem nada a ver com a lógica. Fiquei com a seguinte pergunta: como é que eu consegui fugir do campo e eu deixei minha mãe ser deportada? ela que deveria fugir, eu é que deveria ter sido deportado? E a maneira que eu descrevia os fatos era impossível, por que minha fuga foi uns dois meses depois, mas esse pensamento me deixou mal. eu fiz mais de 20 anos de terapia sem falar disto sem chorar e ainda hoje eu ainda choro quando entro nisso. Quando terminou a guerra e meu pai e eu voltamos para nossas casas, todos que forma deportados e colocados em prisão, todos voltaram para suas cidades de origem na expectativa de encontrar outros familiares. eu também estava esperando minha ame voltar... então como naquela época nos começamos ou continuamos o negocio dos meus pais de antes da guerra, que era uma fabrica de confecções, eu viajava muito inicialmente de trem por que não tinha dinheiro, desembarcava na estação e eu não conseguia ir par a casa a pé, eu corria que nem um atleta, com a certeza que minha mãe voltou. e toda vez que eu via que ela não voltava, não preciso descrever meus sentimentos... Esta idéia 'minha mãe vai voltar' não só ficou na Bélgica estes 6 anos, mas pelo menos 5, 8 aos aqui no Brasil. Quando eu via de longe uma mulher de costas, mais ou menos tamanho e altura da minha mãe eu tinha que correr e ver o rosto. Pensava "minha mãe voltou, encontrou os amigos mútuos que disseram que estamos em São Paulo no Brasil e ela está aqui" era realmente muito ilógico... estes são meus complexos... Além do que eu falei a pouco que quase todos os dias falando qualquer palavra que não... só tem um ponto de igualdade, um ponto de relatividade com a experiência do campo de concentração que me vem na cabeça... posso falar de qualquer coisa... tem um escritor judeu italiano, Primo Levy, que escreveu o seguinte "eu não fui do campo de concentração, o campo de concentração está em mim" é exatamente o que eu tento dizer aos outros.
P/1 – E essa escolha de virem para o Brasil? Por que escolheram o Brasil?
R – Minha história de vinda para o Brasil é também um pouco fora do comum. é o seguinte, nós vivíamos na Bélgica traumatizados da guerra, e surgiu na política internacional - hoje parece bobagem, mas na época gente já viveu, não era bobagem - nos estados unidos o presidente era Truman, e o MacArthur era o general chefe do exercito americano no pacifico, que derrotou o exercito do Japão. e Ele era casado com uma mulher muito rica que na época era dona da Sears, que no Brasil a uns anos atrás ainda existia, não sei se existe no mundo ou não mas naquela época havia lojas no mundo inteiro. então havia um antagonismo entre o presidente que tem o poder legal na mão e o general MacArthur que tinha além de muito dinheiro a disposição o comando do exercito que ainda estava mobilizado - que a guerra na Europa terminou antes. e os dois entraram em choque. MacArthur queria jogar uma bomba atômica contra a china. Se ele tinha razão ou não é bastante discutível, por que de fato hoje, a china é concorrente dos estados unidos. ele via isto e queria destruir a força da china, e claro, o Truman, o presidente não estava de acordo. ai o MacArthur começou a desobedecer as ordens do Truman, e no pais dos Estados unidos o presidente é o chefe supremo do exercito. Se falava muito que o MacArthur ia jogar a bomba com ou sem autorização do presidente e anunciar uma nova guerra mundial. E ai muitas pessoas da Bélgica foram embora da Bélgica "chega de guerra. vamos para o lugar mais longe possível da Europa num lugar que nunca vai ter guerra" Nós não escolhemos o Brasil, escolhemos o Canadá. Com dificuldade de arrumarmos vistos par entrar no Canadá, começamos a vender nossos pertences, íamos imigrar 3 famílias ao mesmo tempo. Meu pai e uma segunda esposa, também tinha umas coisas com campo de concentração onde ela perdeu o primeiro marido e dois dos 3 filhos que ela tinha, meu sogro e a esposa dele, e eu e minha mulher já com uma filha nascida na Bélgica. Quando eu recebo uma carta de montevidéu de um grande amigo meu que morava lá e pelo mesmo motivo tinham imigrado par ao Uruguai alguns meses antes. Recebo uma carta dizendo que no Uruguai era um paraíso, que lá era tudo muto bem, que eles tinham arranjado um emprego, que tinha um apartamento melhor do que tinham em São Paulo e estavam felizes da vida. Naquela época, todo mundos abe, ninguém vai me contestar, não havia internet, não havia celular, havia telefone, única maneira de se comunicar mas muito pouca gente tinha. Então nos reunimos, meu pai, meu sogro e eu "a gente via par ao Canadá ou não?' bom, eu tinha recebido uma carta dessas e nos decidimos que eu e meu sogro iríamos para o Uruguai para ver como estava de fato por que o visto tinha um prazo, tínhamos que resolver já. pegamos um avião, e naquela época o trajeto Bruxelas - capital da Bélgica - e montevidéu não existia. Fomos de Bruxelas para Londres e de Londres par o rio de janeiro onde íamos pernoitas e do rio de janeiro para montevidéu. Nós embarcamos, chegamos ao rio de Janeiro pelas 5 u 6 horas da tarde e pensamos "bom, não vamos ficar no hotel, vamos passear um pouco pela cidade" e foi o que aconteceu. fomos andando, e não sei hoje o que era o que não era e chegamos a um lugar que tinha um tipo de mercado a céu aberto, já era de noitinha, e tinha gente em plena feira livre. e meu sogro, como disse, em dois minutos conquistou umas pessoas e contou que nós passamos pela guerra, nós vivemos na Bélgica e que nos pretendíamos morar em montevidéu. e todos eles disseram "você esta louco? Uruguai é um pequeno pais, só tem uma cidade, é tudo adormecido! onde tem expansão, onde tem futuro é na Brasil, como assim vão par ao Uruguai? sã idiotas" bom, nós ouvimos, mas já tínhamos passagens compradas e tudo mais, fomos para montevidéu, ficamos no hotel, deixamos as malas, pegamos um taxi para ir a casa do meu amigo. conforme a gente foi se aproximando, a gente percebe que a vizinhança é cada vez mais pobre, mais suja, até chegarmos na casa do meu amigo. Tocamos a campainha, ele abre a porta, surpresa geral, os pais dele ele próprio, filho único, tão na maior miséria! Ai eu viro e falo assim 'escuta, por que você escreveu que esta tão bom' 'falarei a verdade, estava com vergonha de falar. você também não disse que pretendia vir. se você tivesse mandado uma carta teria dito pra não virem, não imaginava que vocês viriam" eu estava preso pelo prazo, tínhamos que decidir em poucos dias, por isso fomos para lá. eu e meu sogro ficamos pensando "voltamos? falaram tão bem do Brasil, já que estamos ai vamos par ao Brasil" fomos par ao rio de janeiro e realmente a gente descobriu que o Brasil é um lugar para o novo mundo. assim que nos chegamos a morar no brasil. no Brasil aconteceu mais uma coisa. meu sogro voltou par a Bélgica para ajudar as 3 famílias para vir aqui, e eu fiquei aqui par estabelecer contatos comerciais para ver o que íamos fazer. La no rio tinha um calor desgraçado que era verão, então eu vim para são Paulo onde eu vi que era o lugar adequado, fui para Porto Alegre que na época era uma cidade um tanto adormecida mas o clima era mais próximo do que estávamos acostumados. Quando as 3 famílias vieram eu as aguardei em Santos e disse 'olha acho que temos que nos estabelecer em são Paulo, lá tem industria que vende para o mundo inteiro e Porto Alegre é um pouco que nem o Uruguai." meu pai e meu sogro disseram "não, no rio a gente não agüenta de calor, São Paulo deve ser igual, porto alegre é um pouco mais próximo do clima europeu. Porto Alegre" fomos para Porto Alegre, compramos cada um apartamento, me lembro que o meu foi na rua Venâncio Ayres, os outros dois não lembro, e começamos a nos mexer comercialmente e então vimos que Porto Alegre não era o lugar ideal. Vendemos os 3 apartamentos sem prejuízos, felizmente, e viemos para São Paulo. Agora eu vou contar um pouco de São Paulo, chega de campo de concentração! Meus pais tinham uma fábrica de confecções, pequena mais rentável. eu como bom filho aprendi tudo lá... Aprendi a concertar as máquinas de costuras industriais... Aprendi tecelagem, a trabalhar com aquelas maquinas circulares que fazem tecido tipo malha, aprendi tudo isso... e nós vendemos todas as maquinas antes de vir pra ca, por que não dava para transportar máquinas usadas... Nós recomeçamos uma pequena fábrica, e quando mal estávamos nos estabelecendo, no mesmo dia, parece ilógico, mas depois eu entendi... meu pai e o meu sogro no mesmo dia tiveram problemas de coração... contratamos um médico que cuidou dos dois, internou os dois no mesmo hospital, na vila mariana e eles não tiveram bem infarto, mas próximo... como isto se passou a muitos e muitos anos atrás, nem se sabia da existência do colesterol, o tratamento era diferente, ficar em repouso absoluto. meu pai e meu sogro ficaram dois meses em repouso absoluto, exatamente o oposto do que a ciência médica diz hoje, e nós tínhamos apenas começado uma fábrica. então eu dormia a noite com meu pai no quarto do hospital, de manhã (tinha carro depois vou falar da historia do carro)eu vinha pra fábrica para tentar dar um impulso nela, onde minha esposa era a única a chefiar um negócio começante, e de noite voltava para o hospital. O mais curioso, parece piada, meu pai dizia "eu não entendo seu sogro, não vem me visitar..." e eu não ia contar que ele estava hospitalizado dois andares a baixo, e meu sogro dizia "mas escuta, não quero te magoar, mas não entendo seu pai, ele não veio me visitar" e a gente mentia descaradamente. Bom, os dois se curaram e ai a fábrica realmente começou a funcionar. nós tínhamos alugado um salão na rua José Paulino, que é o centro, naquela época e hoje, de roupas, basicamente para mulheres, e a firma foi crescendo, foi crescendo, e a gente começou a ter um capital razoável... neste ínterim, naquela época 56, 57, não sei, comecei a sentir que os imóveis davam um bom lucro. Foi uma época parecida com o ano passado aqui. Mas eu não tinha montante, não tinha nada. e ai comecei a comprar alguns imóveis velhos, que meu capital permitia, então comprei uma casa de 6 x 30 mais ou menos numa travessa da José Paulino, acho que Barra do Tibaji, não tenho muita certeza... todo mês ia na casa do vendedor para pagar a prestação e fomos pagando. Eu precisava alugar a casa, a casa era velha caindo aos pedaços... quem aluga uma casa assim? ninguém vai adivinhar mas tem gente... teve alguém que foi criar acho que abelhas na casa... ele conseguiu... não entendo muito de abelhas né, ele conseguiu ter não sei quantos ninhos e ia muito bem com este negócio e me pagava o aluguel que me ajudava a pagar a prestação... o tempo passando o aluguel subiu e a prestação ficou estável, por que naquela época se vendia imóveis pela tabela Price, que era um tipo de juros que é embutido na prestação mas que fixa por 10 anos, então em poucos meses o aluguel valia mais e a prestação ficava igual. Eu acho que por causa dessas abelhas a casa ao lado, o inquilino saiu e ninguém quis alugar. quando fiquei sabendo disso eu comprei a casa ao lado e fiquei com um terreno com uns 15m na frente e uns 30, 40 de fundo... E a outra casa também foi alugada, não me lembro exatamente, também para alguma coisa que também era compatível com as abelhas do lado.. e um belo dia eu entrei em contato com corretores "o que eu posso receber por essas duas casas como entrada, e vão pagando prestações..." então me aparece uma pessoa da idade que eu tenho hoje uns 80 anos por ai, cujo filho se formou engenheiro, e ele precisa desesperadamente uma obra, para mostrar a placa dele para começar a criar uma clientela... ele tinha um prédio na José Paulino que valia bem mais, mas naquela época havia uma lei de inquilinato que os alugueis eram congelados e você só poderia quebrar o contrato par auso próprio, não para outro uso. como o dono daquela área era um idoso, ele não podia alegar que era pra ele... Talvez para alegar que era pro filho, mas era complicado de conseguir, então ele vendeu aquela imóvel barato e com os inquilinos... tinha um térreo e dois andares. no térreo tinha uma loja boa como é hoje a José Paulino, e os dois andares eram meio de segunda... tinha um inquilino que fabricada ternos muito bonitos... E ele tinha um contrato de 5 anos. Não é todo mundo que sabe o que é um contrato de 5 anos.. um contrato de 5 anos dá direito ao inquilino entre um ano e seis meses antes do vencimento do contrato a pedir um novo contrato... e o proprietário tinha que ter motivos muito fortes para recusar e o contrato, logicamente, ia ser na base do anterior que ficou fixo em 5 meses, máximo aumentado numa certa porcentagem... quer dizer, o inquilino dono do imóvel ia pagar muito bem, por isso ele tinha dificuldade de vender... mas eu topei o negocio... dei as duas casas de entrada e uma prestação relativamente compatível com a entrada da nossa loja também na José Paulino. Então fui conversar com os inquilinos, lá na loja eu disse "olha, eu tenho uma posição para mim muito garantida" e era mesmo... mas por outro lado se eu peço para uso próprio, eu tenho 20 poucos anos, eu vou ganhar... então ao invés da gente brigar e os advogados ficarem com o dinheiro, vamos fazer acordo... o consenso leva mais ou menos dois anos, dois e meio. a gente fica esse período com o aluguel um pouco maior do que paga, mantém abaixo desse valor, e depois de dois anos e meio você desocupa... bom ele achou registrar em juízo e eu também, foi feito um contrato deste teor, que hoje não é permitido, e de fato depois de dois anos e meio ele saiu então eu tinha uma loja na José Paulino vaga, que dá um bom aluguel... no primeiro e no segundo andar ele esqueceu o prazo... quando ele percebeu ele tinha que faze rum pedido de renovação de contrato antes do tempo, este prazo tinha estourado, então ele perdeu a vantagem de ter um contrato de 5 anos. Então fizemos um acerto semelhante, fica 2 anos, etc... então 2 anos depois eu tinha o prédio todo vago e comecei a receber um aluguel bastante polpudo. Por este caminho entrei um pouco na construção.. Mas em quanto meu pai estava vivo eu não tinha como sair da loja. ela dava rendimento, e infelizmente meu pai faleceu aos 56 anos de idade. Ai eu realmente fechei a loja, vendi a mercadoria e entrei em construção. da construção tem dois pontos importantes. Um é o dinheiro de quem sabe fazer a construção e o outro é o advogado, por que na construção e na venda dos imóveis decorrentes da construção é tudo papel oficial, então você tem que entender. o pouco que eu vivi no campo de concentração, eu virei quase engenheiro e um advogado melhor do que a maioria dos advogados só que eu direito imobiliário. Ai eu comecei a fazer construções. Construí durante uns 20 ou 30 anos mais ou menos uns 10 prédios. comprava o terreno, fazia a construção sem pegar empréstimo no banco, com capital próprio, e quando estava próprio eu vendia. Cheguei a uma situação que tinha um prédio começando e um terminando, terminava aquele, vendia, pegava o dinheiro, punha no outro e sempre... e eu acabei por que eu entendi bem do ramo de construção, e só tinha uma parte dos terrenos com um problema, ninguém queria comprar. Quais são os terrenos que ninguém quer comprar? as vezes a parte jurídica, mas geralmente a topografia física. Comprei diversos terrenos com declive de 45° ou mais. comprei uma vez, isso vou contar com mais detalhes... Um belo dia me telefona um corretor "Olá! eu tenho uma galinha morta" bom, claro, ele só tinha galinha morta... tem 26, 28 herdeiros e terminei formalmente de partilhar agora e são dono de 2 casas velhas. hoje é sábado eles ja venderam para um grupo que na segunda feira vai efetuar a transação, mas nesse sábado e domingo eles agüentam... se você de rum pouco mais um pouco... só que tem que ser até o final de domingo, por que segunda eles ja tem um cliente, e são 26 herdeiros, é muito complicado. entre eles tem 3 casais desquitados que não vão assinar nada na presença um do outro tem que ser em salas separadas e tem uma que é uma freira que está num ministério do norte que fez foto de silencio. É a única que não deu a procuração, mas você tendo 25 de 26 avos está bom.... Vamos ver os terrenos, um era na rua Martins Francisco e outro era na rua bela Cintra. Agora preciso contar um detalhe da legislação para construções. naquela época começou a idéia de que um prédio tem que recuar 3 metros de cada lado, mas a área a ser construída é a mesma, quer dizer, o prédio fica um pouco mais alto... é uma idéia muito lógica, tem uma área para ventilação... é muito mais inteligente do que cada prédio construir na divisa... ai tem que faze rum poço interno para poder colocar janelas, mas entre um poço interno e uma área de 6m de largura pelo comprimento do terreno é evidentemente melhor. Só que esta lei estava sendo colocada em pratica devagar por que não dava pra tumultuar o mercado de construção de uma vez. Então a cada mês, a cada 2 meses é mais uma área que tem que entrar na nova lei, em quanto as outras continuavam na lei antiga... agora, a prefeitura fica fechada sábado e domingo, não existe um livro, um mapa detalhado, só na prefeitura, por que estava em constante mudança... mas como eu iria comprar um terreno de 6m e outro 8m de largura? O de 6 metros se eu recuo 3 de cada lado, e o de 8 metros... fica só dois metros de largura o prédio... não dá! Agora se eu não construo um prédio construo uma casa, não vale nada... quer dizer, vale, mas vale muito menos... mas ele só vendia os dois juntos. Vamos olhar. Como disse um estava na Martins Francisco... eu vejo em toda rua um prédio colado um ao outro então a chance de poder construir sem recuo era grande. Nenhum prédio tinha este recuo lateral. Vou a bela Cintra e lá era metade metade... bom, se já haviam prédios com recuo lateral lá seria obrigatório, então só queria comprar o da Martins Francisco... ele disse "ou compra os dois ou nada". eu pensei "como que eu faço? primeiro eu não tenho certeza, pode ser que possa construir na bela Cintra também, não sei.. eu acho que não.. e na Martins Francisco também eu acho". Decidi comprar os dois imóveis, dou um sinal de 100 mil reais para cada um, mas a escritura da Martins Francisco é daqui a 60 dias e a da bela Cintra é daqui a 90. Por que fiz assim? Por que bela Cintra estava mais arriscado. Se não der pra construir eu perco 100 mil e se puder construir na Martins Francisco estes 100 mil perdidos são largamente compensados pelo preço baixo que estou pagando pela Martins Francisco. Se os dois prédios pedirem recuo eu perco. Fiz esta proposta, os vendedores aceitaram, as 8h do dia seguinte estava lá na prefeitura e a Martins Francisco não tinha recuo e da bela Cintra tinha. Fiz a primeira escritura, paguei o saldo do preço, chegou a época da segunda eu disse "olha, não, tem obrigação de recuo, eu não posso ficar, sinto muito, dei 100 mil reais de sinal, perco 100 mil reais, não faço confusões ou dizer que fui enganado, etc, fica assim... E assim toda construção tem seus percalços, não é simples... A mão de obra é complicada... e Devagar fui construindo uns 10 prédios, construí um pouco de casas até começar a fica rum pouco velho. quando cheguei aos 60, 65 anos eu senti que era hora de parar, por que enquanto eu construía meu dia era dividido da seguinte maneira: das 8 até as 6 eu ficava ou na obra ou comprando material,. das 8 até meia noite eu tinha o segundo expediente que era com os corretores para vender os imóveis terminados e naquela época não havia computador, então eu batia centenas de contratos naquela máquina de escrever onde você faz um erro tem que recomeçar tudo. Então o ultimo prédio que eu construí comecei a faze rum prédio para vender, mas durante a obra pensei "Chega. Vou transformar em hotel" e eu tive essa idéia por que na época eu viajava e estive em Viena indo a um hotel que já tinha ido outras vezes. chegando lá com a minha esposa disseram "Ah, está tudo lotado, não tem lugar, mas se você quiser aqui perto fizemos um novo tipo de hotel que se chama Flat Service, dá uma olhada lá, lá tem vaga" E quando eu fui lá vi que era muito melhor para mim. Aqui quase ninguém sabe a diferença entre hotel e flat. em tese, hotel é para curta permanência e flat para longa permanência. Hotel tem normalmente restaurante, o flat não, agora o restaurante para manter grande, dá lucro, para manter médio, não dá lucro por que você prepara a alimentação e os empregados comem de graça. No meu caso tenho 65 quartos na bela Cintra e tenho 22 empregados. Então só dá prejuízo, além de muito trabalho. então eu diz um hotel a 30 e poucos anos atrás, terminei a obra em 78, e estou administrando ele, por que assim eu tenho duas ou três vantagens e nenhuma desvantagem. A primeira é que estou ativo, não consigo não ser ativo. Ainda vou todos os 7 dias da semana no hotel, não vou 8 por que não tem. Quando comecei a ficar mais velho, depois de uns 10 ou 15 anos de ter montado o hotel, eu comecei a ver que estava ficando um pouco complicado por estar mais velho e eu tinha um sonho, tenho duas netas e queria que uma das duas se interessassem pelo hotel. Tinha duas opções, ou eu vendo, ou eu deixo de herança, e felizmente uma das duas netas, a mais velha, que tem agora 32 anos se interessou muito, é muito capaz, muito inteligente, trabalhadora, então começou a me ajudar. Os anos passando inverteram-se os papeis, agora eu ajudo ela, e eu estou muito feliz com a situação por que eu deixo de herança uma coisa que permite viver tranquilamente. Bom, agora como falei um pouco, eu tenho uma filha que é uma intelectual, ela é professora na São Judas Tadeu, mas além disto ela criou uma nova cadeira lá na faculdade e está também trabalhando por conta própria numa coisa nova que é resolução de conflitos. Hoje tem bastante disto, mas minha filha de maneira diferente, vou descrever isto por que é realmente de interesse de cada pessoa. Ela resolve os conflitos não pela via jurídica, mas pela via psicológica. ela segue o seguinte principio: quando tem um conflito, ele pode pegar como forma, dinheiro, mas por baixo tem outra coisa, tem algo que criou um mecanismo, uma situação de raiva, inveja, conforme é o caso. ela trabalha com as partes não no lado jurídico, mas no psicológico. Se me permitir vou contar um caso concreto. Quando ela começou na faculdade uma aluna de lá que sabia deste projeto disse a ela: "Olha, meu marido tem uma firma de transporte, tem caminhão, etc. Faz transporte pra grandes firmas, e estas firmas de transporte usam corretores para criar a ponte entre o transportador e a firma que tem coisas para serem transportadas. Este corretor - para facilitar vou chamar de corretor - era muito amigo do meu marido, então meu marido disse, sabe, "você me vende muitas vezes clientes e ganha comissão, eu vou te permitir fazer seu trabalho aqui. Eu tenho muito espaço, tenho telefone a disposição e você me faz um preço mais baixo, sei lá..." Mas era por amizade, e foi o que aconteceu. Durante muitos anos o corretor trabalhava como transportador, tinha seus negócios fora e estava naquela própria firma. Um belo dia ele fez um processo trabalhista dizendo que era funcionário da firma não registrado, a melhor prova é que ele usava o espaço e telefone da firma e pede indenização. E o transportador foi sentenciado a pagar 600 mil reais, é uma nota! Isso foi para justiça, ele perdeu tudo e tinha 8 dias de prazo se não iriam confiscar os caminhões. Parecia uma situação sem solução, já tinha a causa ganha, ou arrumava os 600 mil ou dava os caminhões! daí minha filha fez o seguinte... Falou primeiro com o corretor, "mas o que aconteceu? se vocês que eram amigos, por que deixaram de ser, sabia que era por amizade que você estava lá e que deveria ter acontecido alguma coisa que ele você não diz, mas para mim pode falar..." Ela pressionou de tal maneira que ele contou o seguinte: Um belo dia a esposa do transportador entrou lá onde ele estava e falou algumas coisas que o magoaram muito... E eu pensei "se ela pode falar isso pra mim eu vou me vingar. Eu não quero dinheiro, quero vingança" minha filha foi falar com a mulher, com a aluna dela e ela disse que havia se expressado mal, que não pensa o que ele entendeu, que eram amigos e longa data... Resumindo ela falou com o advogado dele para ele entrar em acordo pra ter 30% das ações, do lucro dos ganhos, falou com a filha do casal, conseguiu reunir todo mundo, onde se expôs que a mulher falou mas que não era bem isso que ela queria falar... O corretor perdeu a raiva e resolveu abrir mão dos 600 mil reais mas recebeu em compensação um terreno que o transportador tinha uqe valia 200 mil e os dois iriam construir juntos 6 casas para vender. Dando um exemplo onde se vê claramente que o problema não é dinheiro, o problema é que ele havia se sentido magoado e pela aparência das palavras era pra ser magoado, mas no lugar de dizer para a senhora, a aluna da minha filhas 'olha por que você falou isso'? faze rum dialogo logo em seguida sobre o assunto, ele engoliu e ficou com raiva, na verdade falta de comunicação. então dei um exemplo do que minha filha faz e agora ela tem uma firma onde dá aula fora da faculdade sobre este tema, ensinando as pessoas a pode fazer este trabalho, ela tem vários cursos, acho que este mês tem 60, ou 80 alunos inscritos que são todos que ou terminam a faculdade de direito ou advogados jovens formados que procuram caminhos mais eficientes do que a justiça. Acho que todo mundo vai concordar que a justiça não é justa. A justiça tem uma legislação, Jean Jaques Rousseau falava isso, e as leis são feitas pelos poderosos para se beneficias. Hoje não é mais tanto assim por que tem direito social, etc., mas ainda hoje quem faz as leis são os advogados... por exemplo, no meu caso concreto... quando eu trabalhava na José Paulino eu tinha uns 200 empregados, uns trabalhando dentro a maioria eram serviços para a casa deles. quando fechei a josé Paulino, eu tinha 200 empregados que foram demitidos... Tive não sei quantos processos trabalhistas, mas eu não precisava de advogado por que eu fechei a firma, ninguém podia me obrigar a manter a firma aberta... Uns paguei, outros não paguei, mas não importa, por que não preciso... hoje não pode, é proibido entrar em juízo sem advogado... quem faz a lei? Os advogados, então eles tem um mercado de trabalho maior...
bom, acho que vou encerrar com uma parte mais final da mina vida. Com o hotel estou trabalhando, mas a idade não poupa ninguém. Hoje tenho 82 anos e tenho uma série de problemas físicos aqui e ali, mas luto com a máxima da minha capacidade para me manter vivo, atuante, sinto uma responsabilidade para com as minhas filhas, com as minhas netas, eu luto para sobreviver. E acho que da minha parte está encerrado. você tem uma pergunta?
P/1 – Só uma perguntinha... eu gostaria de saber lá atrás como foi o namoro com a Lili, o casamento...
R – O seguinte, terminado a guerra em 1945, meu pai e eu, como eu falei, voltamos para Antuérpia e recomeçamos uma pequena fábrica. No início nos alugamos um quartinho, mais ou menos 3x4, mais um pouco talvez, e ainda havia a cama que não existe mais mas se vê nos cinemas - aquela cama que se coloca dentro da parede quando não em uso desocupando espaço e quando abaixa a gente dorme. Neste quartinho nós colocamos a única máquina de costura industrial que sobrou de antes que um visinho pegou e guardou para nós. Então nós tínhamos uma maquina de costura, uma mesa para cortar tecido, e então começamos a trabalhar que se chama "a fracción" que é uma expressão francesa que significa o seguinte, a pessoa nos dava tecido, pagava e nós devolvíamos costurados prontos para a venda. Par anão mentir, isto levou um ano, que não tínhamos capital. Neste ano que fazia só 3 coisas: dormir, comer e trabalhar na maquina,. Não sai na rua praticamente e isto permitiu depois de um ano chegarmos a ter capital para poder comprar tecido e assim por diante. Também a época era muito favorável por que era o final da guerra por que tinha todas as fabricas viradas para produção de material de guerra, de roupa para guerra, etc., e até elas se transformarem para uso para população civil demorou uns dois anos, então se ganhava muito com pouco tecido, por que não tinha! Como meu pai tinha uma fábrica de antes da guerra ele recebia uma determinada cota de tecido que só o tecido valia umas 5 vezes mais... ai lentamente ficamos uma firma.. compramos mais uma máquina, contratamos um funcionário, etc. E então começamos a ter capital, a sair um pouco do campo de concentração, mas nós éramos dois solteiros sem uma casa normal por que uma casa sem mulher não é uma casa e ambos queríamos recomeçar a vida normal. Ai eu decidi que ia casar. E devido a confecção que nós fazíamos eu fui o vendedor, já não trabalhava mais na costura, meu pai ficava mais na parte da fabrica. A Bélgica é pequena então vendi em diversas cidades da Bélgica. Numa dessas cidades, a cidade de Liège, onde meu sogro com as duas filhas moravam... entrei numa loja para apresentar a mercadoria e adivinhem... entrou lá e deu aquele instante mágico que num momento me apaixonei. Fui procurar quem são os pais, etc., fui lá, conversei e nós ficamos noivos 3 meses depois e mais 3 meses nós nos casamos. eu esperava muito ter um lar. Dois homens era um acampamento. Ninguém cozinhava, comprava tudo pronto, nem a cama estava feita e assim por diante. e até a Lili morrer nós éramos um casal muito unido, muito unido, nós vivíamos realmente um par ao outro. Não digo que eu fui melhor marido do que ela esposa, nós dois fazíamos de tudo para o outro. Depois de mais velho tive, com internações problemas de coração, isso e aquilo, a Lili ficávamos no hospital, nem voltava para casa, da mesma maneira quando se soube que ela estava com câncer, também não larguei, ficava em casa, nós éramos muito unidos. E exatamente por isso que quando a Lili morreu eu tive continuadamente ate hoje um colapso físico. nesses 3 anos e meio eu perdi muito da minha capacidade física por que a dor dela não estar aqui é muito forte, um pouco ela simbolizava minha mãe. Acho que acontece muitas vezes no casamento..não tem nada, nós trabalhávamos juntos, na Jose paulino, na construção, onde eu trabalhava ela sempre foi junto, a Lili nunca mediu esforços, nunca fez algo assim particular, nem eu nem ela tínhamos amigos pessoais, nós só tínhamos como amigos outros casais, nossa vida foi muito junta. Se tem algum mérito que eu tenho na minha vida é exatamente este convívio profundo e sincero. Não havia "eu" e "ela" havia sempre nós. E posso continuar falando mais uns dois dias, desde que tenha algo para molhar a garganta...
P/1 – Agora uma pergunta final para terminar. você vai par ao hotel, descansa, como é o dia a dia do senhor?
R – bom, eu vou permitir uma licença... vou responder e quero falar mais um negocio... Meu dia a dia é o seguinte, acordo 6 6:30, tomo café em casa, tenho empregada, não tenho mais carro, tenho motorista, ele me leva ao hotel e o dia inteiro eu trabalho, indo ao hotel, fazendo compras ou indo em médico, até as 18h. a noite volto pra casa, sento no computador e termino o que eu não consegui fazer durante o dia no hotel...
P/1 – Você lida bem com computador...
R – Sim. Eu assisto muito pouco televisão... eu vejo televisão basicamente na hora das refeições, por que como sozinho na mesa e não tem diálogo. Raramente quando me sinto cansado vou assistir televisão por assistir, mas umas duas ou três noites por semana no máximo. eu basicamente trabalho. de sábado e domingo é quase igual. Feriado amanhã é quase igual. É um pouco mais curto o expediente. Devido o meu estado de saúde tenho alguns problemas pra administrar que resolvo com trabalho. tenho problema do coração, de falta de equilíbrio e de digestão, por isso não como em restaurante, como em casa. No feriado não vou voltar pra casa pra almoçar, levo marmita e como no hotel. não digo que tenho uma vida exemplar, mas é a única maneira pra me sentir útil, vivo, e não ficar em casa chorando mágoas e fazendo a conta de tudo que me falta. Na saúde física procuro ver o que me resta e não o que falta. Agora eu gostaria de falar um pouquinho sobre outro aspecto do holocausto. Os judeus dizem que tudo que acontece na vida da gente deve servir de lição. e o que é o holocausto, este drama, nos ensina? Pra mim eu vejo diversos ensinamentos... em primeiro lugar o mais óbvio, que isto deveria servir para atos desse jeito não se repetirem, ou seja, achar que o outro e menos do que a gente, achar que o outro pode ser morto sem arrependimentos. Ou seja, a gente tem que tolerar as desigualdades entre as pessoas, em termos econômicos, de beleza, de nacionalidade, de religião, qualquer coisa, por que na realidade ninguém sabe quem tem razão. A pessoa que tem uma opinião tem seus motivos e tem que ser respeitados, e não mortos. Vou dar um exemplo, minha esposa dizia que não queria saber nada de câncer. Preferia morrer do que permitir que lhe cortem pedaços e que sofra não sei quantos anos com quimioterapia, não queria fazer... minha esposa viveu não sei quantos anos no Brasil, acho que é a única mulher no Brasil que nunca fez papa Nicolau e ela morreu de câncer. que podia não evitá-lo, mas podia ser visto no início viver mais alguns anos, mas quem sabe com quanto sofrimento? Agora eu, do meu lado, não tinha essa idéia. eu achava que exame periódico, principalmente de câncer de próstata deveria se fazer regularmente. sei que as estatísticas dizem que 1 a cada 4 anos tem isto e 70 anos 1 em cada 3, portanto a incidência desse câncer é muito grande. Fazia sempre exames, fui constatado com início de câncer, fui tratado, por meio de raios que matam as células cancerígenas. Mas o que aconteceu? Estes raios não tem muito endereço, eles matam células sãs também, que me causou problema no cólon e que é motivo das minhas dificuldades digestivas... Por acaso, nem faz um mês, eu vi numa revista científica que hoje muitos médicos não aconselham a fazer tratamento pro câncer de próstata, por que? Por que ele é muito lento. pode demorar 20, 30 anos para ser visível, e as vezes muitos não se desenvolvem, e os efeitos colaterais são piores do que o câncer. Usar isto como exemplo, do que eu vivi e estou vivendo que a verdade não existe. Principalmente na ciência, por que as coisas mudam, né? Primeiro, em decorrência do holocausto, ser tolerante e saber que ninguém é pior que ninguém, e que ninguém tem razão, a segunda lição que eu aprendi é que eu gostaria que esta fosse o efeito do que eu falei até agora é que a gente não pode se deixar ser derrotado, a gente tem que sempre lutar, não pode jogar a toalha. Imaginem vocês no campo de concentração, a Alemanha estava avançando na Rússia, a guerra quase terminando coma vitoria alemã, nós vivendo piores que escravos, por que escravos em Roma tinham valor comercial, então os donos cuidavam. No campo de concentração não, valíamos menos do que escravos e sabíamos que no final da guerra íamos ser mortos todos. muitos se jogaram nos fios eletrificados e se suicidaram e diziam "eu vou lutar? eu vou sofrer? vou apanhar pra viver mais duas semanas? vou embora de uma vez e chega!" eu não tinha essa idéia, como eu contei que luto hoje, eu digo a todos "não existe uma situação que não tem saída boa" mesmo eu com meus 89 anos. a gente não pode se deixar derrotar. Como eu disse para alguém, para quem se prepara via chegar sempre um novo sol, todo dia um novo sol, e esse sol vai dar luz, vai dar calor pras pessoas, quem se prepara quem está pronta a receber esta luz. Isto eu acho que par aos brasileiros que não tem nada a ver com o holocausto, onde o anti-semitismo é muito pequeno, a maior lição. Obrigada
P/1 – Obrigada, em nome do Museu da Pessoa agradecemos sua participação.
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