P/1 – Obrigado por você estar aqui, que bom que deu pra gente se ver, deu tempo e agenda. A primeira pergunta é muito difícil, qual é o seu nome completo, local de nascimento e data, por favor?
R – Eu nasci aqui na cidade de São Paulo. Meu nome é Roberto de Jesus, só a minha mãe me chama de Roberto (risos), as outras pessoas me chamam de Beto, e eu nasci no dia 30 de outubro de 1962.
P/1 – Beto, sua mãe e seu pai contaram como foi o dia que você nasceu?
R – Sim, inclusive hoje é o aniversário da minha mãe, 82 anos. Nós fomos três filhos, meu irmão mais velho Marcos, eu e o Renato, que é o mais novo, caçula. Quando eu falo caçula, as pessoas pensam que é novinho (risos), ele tem 52. Na verdade dos três filhos, eu fui o único que nasceu em casa, todos os dois nasceram em hospitais. Todos os dois tem nome duplo, eu teria também, eu me chamaria André Luiz, mas quando o meu pai foi me registrar, a pessoa lá no cartório de registros falou: “Ah, André Luiz como aquele espírita”. Aí meu pai disse: "Espírita?”. Meu pai super católico. "Espírita?”. “Ah, sim, sim, do kardecismo.” Aí ele falou: “Ok, nós vamos trocar o nome dele”(risos). E me chamou de Roberto. Meus dois irmãos, um chama-se Marcos Antônio de Jesus, o outro, Renato José de Jesus, e eu me chamo, único e exclusivamente, Roberto de Jesus, igual ao meu pai que chamava Antônio de Jesus. Eu nasci de manhã, a minha mãe sempre que me liga (risos) no aniversário fala: “Você já nasceu”. Porque eu nasci 06h15 da manhã, a parteira foi a minha avó, a mãe da minha mãe que fez o parto, e eu mijei na minha avó quando eu nasci (risos). Assim, uma coisa espontânea e era um dia de trabalho, era uma coisa do cotidiano da casa e minha mãe iria ao hospital, mas ela acabou adiantando e a minha avó fazia parto, minha avó é italiana, minha avó fazia partos e acabou fazendo o meu. É...
Continuar leituraP/1 – Obrigado por você estar aqui, que bom que deu pra gente se ver, deu tempo e agenda. A primeira pergunta é muito difícil, qual é o seu nome completo, local de nascimento e data, por favor?
R – Eu nasci aqui na cidade de São Paulo. Meu nome é Roberto de Jesus, só a minha mãe me chama de Roberto (risos), as outras pessoas me chamam de Beto, e eu nasci no dia 30 de outubro de 1962.
P/1 – Beto, sua mãe e seu pai contaram como foi o dia que você nasceu?
R – Sim, inclusive hoje é o aniversário da minha mãe, 82 anos. Nós fomos três filhos, meu irmão mais velho Marcos, eu e o Renato, que é o mais novo, caçula. Quando eu falo caçula, as pessoas pensam que é novinho (risos), ele tem 52. Na verdade dos três filhos, eu fui o único que nasceu em casa, todos os dois nasceram em hospitais. Todos os dois tem nome duplo, eu teria também, eu me chamaria André Luiz, mas quando o meu pai foi me registrar, a pessoa lá no cartório de registros falou: “Ah, André Luiz como aquele espírita”. Aí meu pai disse: "Espírita?”. Meu pai super católico. "Espírita?”. “Ah, sim, sim, do kardecismo.” Aí ele falou: “Ok, nós vamos trocar o nome dele”(risos). E me chamou de Roberto. Meus dois irmãos, um chama-se Marcos Antônio de Jesus, o outro, Renato José de Jesus, e eu me chamo, único e exclusivamente, Roberto de Jesus, igual ao meu pai que chamava Antônio de Jesus. Eu nasci de manhã, a minha mãe sempre que me liga (risos) no aniversário fala: “Você já nasceu”. Porque eu nasci 06h15 da manhã, a parteira foi a minha avó, a mãe da minha mãe que fez o parto, e eu mijei na minha avó quando eu nasci (risos). Assim, uma coisa espontânea e era um dia de trabalho, era uma coisa do cotidiano da casa e minha mãe iria ao hospital, mas ela acabou adiantando e a minha avó fazia parto, minha avó é italiana, minha avó fazia partos e acabou fazendo o meu. É muito engraçado isso, os meus dois irmãos nasceram em hospitais e eu nasci em casa, eu falo: “Eu tenho só a certeza que eu sou irmão de vocês porque a gente tem os pés muito iguais”(risos). Mas foi isso, segundo minha mãe, um dia super feliz, porque a minha mãe casou muito nova, com 17 anos, e meu pai tinha na época 29, a minha mãe, os pais… O meu avô era português e minha avó italiana. A história da minha avó é que ela foi casada anteriormente na Itália e veio pra cá e casou com meu avô português aqui no Brasil. E os pais do meu avô vieram de Portugal e…nossa me perdi agora, porque comecei a fazer essa referência…
P/1 – Você estava falando da sua mãe.
R – Isso, então… Ah! Lembrei agora. Então, eu era muito referenciado na minha mãe na infância e o meu irmão era muito referenciado pelo meu pai, a minha mãe casou com 17 anos, e a minha mãe não engravidava, então a família do meu pai pressionou muito minha mãe como se minha mãe fosse uma pessoa que não pudesse dar filhos, porque as famílias portuguesas são famílias relativamente grandes e tudo mais, e a minha mãe fez um tratamento pra engravidar, então engravidou 4 anos depois do meu irmão. Quando o meu irmão tinha nove meses, ela engravidou de mim. Então, a gente é muito próximo, eu e ele. Aí 8 anos depois, quando eu tinha 8 anos, veio o meu irmão, porque a minha mãe queria muito uma filha e achava que poderia ter uma tentativa, mas aí veio o Renato e a gente fechou nos 3, a minha mãe nesse ponto, ela meio que… Porque a família do meu pai… A minha tia irmã do meu pai tinha 6 filhos, o meu tio irmão do meu pai tinha 5 filhos, a minha mãe já deu uma segurada e 3 já está super suficiente (risos).
P/1 – E qual é o nome dela?
R – América Glória de Jesus (risos). A gente fala que é um hino (risos) e ela se chama América porque meu avô, o pai dela, se chamava Américo João Neves e não é muito comum uma pessoa se chamar América, tanto que as pessoas quando eu falo, falam: “Como?” Falo: “América”. Mas é, hoje eu escrevi de manhã no Instagram agradecendo muito a minha mãe, ela foi uma grande referência na minha vida, pra tudo, minha mãe é uma mulher guerreira, uma mulher bem longe do seu tempo, tem uma visão das coisas; essa semana ela encontrou o Alckmin e disse, “Eu nunca votei em você e eu nunca votaria, eu só vou votar pra fazer o Lula presidente de novo”(risos). Ela é muito direta, uma pessoa muito especial.
P/1 – Me fala um pouquinho da família dela, você já falou um pouco, mas eles vieram da Europa…
R – Então, a história é assim, e se repete um pouco com a minha mãe: minha avó veio casada da Itália com 4 filhos, ela estava grávida quando o marido dela faleceu e ela se casou com meu avô. Meu avô assumiu essa criança que era a minha tia Ziza e tiveram mais 4 filhos, o Domingos, meu tio Domingos (Mingo), a minha mãe América, o meu tio Zé e o meu tio Toninho que é o caçula. A minha avó era uma pessoa também muito longe do seu tempo. Depois que meu avô faleceu, o meu avô faleceu no ano que eu nasci em 62, então eu não conheci o meu avô, a minha avó fez lá a divisão dos bens e foi para praia, comprou uma casa boa na praia e se mudou. Na praia, ela conheceu o Antônio que é um espanhol e se casou. Ela tinha uma história que eu amava. Primeiro que ela era muito bonita, então quando eu vejo hoje as meninas com os cabelo coloridos, a minha avó já fazia isso 200 anos atrás, uma boa rinsagem, hoje não se fala em rinsagem, mas era uma boa rinsagem, tinha um tom azulado no cabelo, ia para a praia de duas peças de biquíni, gostava de nadar e quando ela ia em especial depois da festa de Iemanjá, 02 de fevereiro, as pessoas mandam as oferendas para o mar, e volta depois, então ela recolhia todos os vestidos de noiva que estavam na praia, levava pra casa, lavava, fazia algum concerto se precisasse, e ela tinha na edícula, um guarda roupa imenso com todos os vestidos organizados, e ela doava o vestidos para as moças mais jovens que não tinham para o casamento, mas tinha uma condição pra ganhar o vestido (risos), ela tinha que… Minha avó lia cartas, então ela tinha que ler as cartas. Ela sentava e fazia toda a leitura e a pessoa escolhia o vestido, era uma mulher incrível assim: Elvira Del Raso, e no final da vida ela saiu da praia e foi morar numa chácara pequenininha em Arujá e teve sua vida nas mãos, teve o controle da sua vida. Quando ela estava muito próxima de morrer, chamou os filhos e conversou com todos, conversou com os netos e morreu. Assim, uma história… E aí eu brinco muito com a minha mãe, porque a minha mãe foi casada com o meu pai 52 anos e, depois que o meu pai faleceu ela, reencontrou o primeiro namorado dela da época da escola e quando eles tinham esse romance lá atrás, isso a gente tá falando do início dos anos 50, ele era japonês e então tinha uma questão, japonês casa na colônia e português casa com patrício, você não mistura, era muito forte isso, e se perderam e foram se encontrar depois que papai faleceu e a história muito interessante, a história deles. Eu estava na Bélgica, e a minha cunhada mandou pra mim um e-mail e disse: “A sua mãe precisa muito falar com você”. Eu falei: “Ih, o que será que aconteceu? Será que ela está doente”. Porque ela era muito ligada ao meu pai, eles faziam tudo junto e ela ficou bem depressiva depois da morte dele. Eu fiquei um tempo com ela, perguntei se ela queria morar um tempo comigo e ela falou assim: “Você tá louco, depois de duas semanas a gente vai tá um arrancando o cabelo do outro. Eu fico na minha casa, quando me der saudade, eu vou te visitar”. Muito autônoma, e aí a minha cunhada falou assim: “Sua mãe precisa falar com você”. E eu fui, cheguei numa quarta-feira, lembro que eu falei assim: “Nossa, será que ela está doente, será que é um câncer?". Já estava com essas conjecturas, aí cheguei: “Mãe, fala o que aconteceu?”. “Ah, só você pode me ajudar”. E eu falei assim: “Só eu? Por que tão especial assim?”. “Ah, sabe o que é? Eu estou querendo namorar”. Ela tinha 70 anos, aí eu falei assim: “Como é que é? Primeiro vamos… Esse seu eufemismo de ‘só você pode me ajudar’ é a forma mais delicada de falar que o veado pode te ajudar, né? Mas que história é essa? Querendo namorar não, você já deve tá namorando, conta essa história”. “Não, sabe o que é?”. Aí ela me contou que tinha reencontrado o Paulo, e o Paulo tinha um Garden e nas quintas-feiras ia no Ceasa, pra quem não é de São Paulo, tem uma grande feira de flores, de plantas, no Ceasa que vai de quinta para sexta, então toda madrugada as pessoas compram plantas pra abastecer os seus negócios, e ele tinha ido comprar plantas e passou na sexta-feira muito cedo na casa dela pra levar uma roseira, porque minha mãe adora São Judas e tem um canteiro de rosas para São Judas, então ele levou uma roseira pra ela e ela chamou ele pra tomar um café, estavam tomando um café, nisso meu irmão mais novo chega, a casa da minha mãe tem duas frentes, a frente da casa dela, aí gente tem a garagem, tem um quintal grande com muitas árvores, o canil, tem uma edícula com forno de lenha, a gente faz (risos) isso é um capítulo à parte, a gente cozinha com lenha ainda hoje quando a gente se junta na edícula, tem forno de pizza e você sobe e vai pra uma outra cozinha, você sobe uma escada e tem uma oficina que é do meu irmão, de carburação que fica virada pra outra rua, só que meu irmão sempre entra pela casa da minha mãe, aí toma um cafezinho com ela, aí ele tinha chegado muito cedo, não era o horário usual dele, por isso eu acho que ela convidou o Paulo pra tomar café e o Renato viu, e ele é muito discreto e seguiu. Ela viu que ele viu e ele não falou nada e eu falei assim: “Tá, e…?”. “Não, seu irmão deve ter achado que ele dormiu aqui”. E eu falei: “Mãe, mas se ele dormiu aqui é problema seu e dele, ninguém tem nada que ver com isso”. “Não, mas eu quero conversar com vocês, eu quero muito uma companhia. Você sabe que eu gosto de viajar como eu fazia com seu pai. Então, se vocês concordarem, eu toco essa história e se vocês não concordarem para por aqui”. Eu falei: “Não, mãe pelo amor de Deus! Tá bom, vou conversar com eles”. Aí conversei com o Renato primeiro e estava o Luís junto, o Luís é o cunhado do meu irmão, e a gente trata como um irmão, e aí o Luiz falou assim: “Nossa, sua mãe nesses últimos meses rejuvenesceu, ela tá mais alegre, ela emagreceu e tudo mais, ela tá ótima!”. E eu falei assim: “Ah, que bom saber. Então, tudo bem?”. “Tudo bem!”. “Ok, então vou conversar com o mais velho.” Eu tinha um pouco de temor de conversar com o Marcos, o mais velho, porque o Marcos era muito… Não, é ainda muito ligado ao meu pai, tanto que quando meu pai faleceu, eu fiquei na casa da minha mãe um período e eu peguei todas as coisas do meu pai, no dia seguinte mesmo esvaziei, perguntei se os meninos queriam alguma coisa e a gente doou para um asilo que meu pai ajudava, todas as coisas dele, e meu irmão, o mais velho, ficou com a bancada, que meu pai tinha uma oficina na casa, e com todas as ferramentas que ficaram lá. Então assim, ele tem um cuidado, a relação dele com meu pai era muito íntima, como é a minha com a minha mãe e… Vamos falar com o Marcos então. Aí o Marcos falou: “Tudo bem, mas a gente precisa conversar com ele, com o Paulo”. E eu falei: “Mas, a gente vai conversar o que com uma pessoa de 70 anos?”. “A gente precisa conversar com ele”. Eu falei: “Tá bem, então. Vamos marcar um jantar, conversar, convidar todo mundo”. Tá, aí fizemos, combinamos um sábado à noite na casa dela, a gente fez uma noite de pizza, aí fomos todos. Na época eu estava casado também, o meu companheiro foi, estavam as cunhadas, estavam todos, e quando eu cheguei, eu notei uma coisa diferente, a minha mãe estava muito coquete, ela estava assim, com um vestido, unha pintada que ela nunca pinta, muito arrumadinha, aí eu falei: (risos) “Nossa, tá bem hein! Mãe, mas eu acho que tem pouca massa de pizza, vamos fazer mais”. Aí ela, “Se você quiser, você faça, porque eu não vou estragar as minhas unhas”. Isso não combina… Eu falei assim: “Ela tá achando que ela vai ser pedida em casamento hoje”. Ou qualquer coisa, né? Ok, tá bom. Vamos lá. Aí a minha cunhada disse: "Ih, você não sabe o trabalho que ela me deu porque ela quis sair pra comprar esse vestido, ficou escolhendo e não sei o que”. E eu falei: “Ah, tá bom”. Foi super divertido a noite e eu já estava ok, que ele já veio aqui então, e meu irmão mais velho: “Ah, tá na hora da gente conversar com ele”. Eu falei: "Não, não”. “Vamos conversar com ele”. Eu falei: “Tá bom. Oi, Paulo. Então, olha, que bom que você veio, a gente tá super feliz que você tenha vindo, a gente tá…A gente só se reuniu pra dizer que você não precisa vir mais aqui escondido, você pode vir aqui a hora que você quiser, de dia, de noite, de manhã, não importa, fica à vontade, é minha mãe que vai conduzir você e ela é dona dela mesma. Então a gente só tá apoiando”. “Ah, tá bom." Eu falei assim: “Ah, só uma coisa. Eu não sei se a minha mãe falou pra você que eu sou veado e ele é meu marido, e a gente nunca teve problema com meu pai. Então, eu espero que com você também seja tranquilo”. “Não, super tranquilo.” “Bom, a minha mãe só tem um rim e faz um check-up anual e a minha mãe se trata…a minha mãe mora em Ermelino Matarazzo, na zona leste, e a minha mãe gosta muito, se trata em um hospital que se chama Nipo-Brasileiro”, que é um hospital pra comunidade japonesa, se você ligar nesse hospital eles vão atender em japonês primeiro pra depois falar em português, quando você tá no hospital você pensa que você tá no Japão, porque todas as placas são em japonês, a maioria das pessoas que trabalham são pessoas japonesas e aí ela falou pra ele assim: “Eu vou fazer um check-up, você não gostaria de fazer comigo?”. Aí ele pegou e falou assim, e ele é japonês nascido no Japão, ele falou assim, “Não, não, japonês não tem problema de saúde”. Aí ela falou: “Eu não estou pedindo, eu só tô te comunicando que você vai (risos) fazer o check-up comigo”. E ele foi, e aí quando ele subiu na esteira, alguns minutos depois… Ele estava na iminência de um ataque cardíaco e ele foi direto para o Nove de Julho, colocou duas pontes. Um filho dele mora nos Estados Unidos, a filha que mora aqui tinha crianças pequenas, muito pequenas pra cuidar e a minha mãe, ficou dando todo o suporte, quando ele saiu da cirurgia, qualquer pessoa que entrava no quarto, ele falava assim: “Está vendo ela? Ela entrou na minha vida pra me salvar, porque se ela não tivesse entrado, eu teria morrido”. Bom, aí minha mãe, tem hora que ela é super pragmática, tem hora que ela é super dramática, tem hora que ela é super Italiana, tem hora que ela é super portuguesa, mas aí baixou a veia da dramaticidade italiana e ela falou: “O que eu vou fazer agora? Deus já me levou o seu pai e agora eu estou nessa situação”. “Calma mãe, que tudo vai se resolver” .“E como vamos fazer agora, ele mora só, pra onde que ele vai, pra onde ele volta se a filha tem…”.“Você já sabe a resposta, né mãe?”. Ela pegou e falou assim: “Eu vou trazer ele pra casa”. E ele foi pra casa e nunca mais saiu. E aí era muito interessante, porque ele era todo zen, botava ela no eixo, era assim, dava uma acalmada, era muito parceiro e aí também tinha o mesmo ritmo de viagem, de fazer as coisas juntos. Minha mãe adora plantas, começou a ajudar ele no Garden, o Garden cresceu bastante e tudo mais. Quis o destino que ele falecesse também, sete anos depois de estarem juntos, e aí é uma questão muito doida, o meu pai… Nosso sobrinho tinha entrado na Federal de São Carlos pra fazer engenharia de materiais e a minha mãe tinha feito promessa pra São Judas, óbvio, (risos) e aí nós fomos em uma missa em São Judas e a gente ia almoçar todos depois e tal, só que meu pai tinha uma bronquite, uma asma, ele era alérgico a produtos de petróleo, e meu pai sempre mexeu com isso, meu pai tinha caminhão e aí quando chegou em… Ele falou: “Vamos almoçar, eu estou meio cansado, a gente vai almoçar outro dia”. Então cada um foi pra sua casa, chegou na casa dele e pediu pra minha mãe fazer uma nebulização pra ele, enquanto minha mãe estava preparando alguma coisa pra comer. Quando minha mãe veio falar que estava pronta a comida, meu pai estava tendo uma parada cardiorrespiratória e minha mãe mora em frente a um hospital, aí socorreu. Meu pai ficou em coma uma semana e veio a falecer, isso foi em um domingo, no domingo seguinte. Ele estava sentado no sofá assistindo televisão, ela e o Paulo tinham voltado de uma viagem, uma segunda-feira, ele estava assistindo televisão no mesmo lugar e minha mãe estava preparando a comida, minha mãe veio chamá-lo e ele estava tendo uma parada cardiorrespiratória, no mesmo lugar, ele morreu, não teve como prestar nenhum tipo de assistência. Foi uma situação super complicada, e minha mãe um dia... Eu sou anglicano e meu reverendo foi visitá-la e tal, aí ela falou pra ele: “Estou com muita raiva de Deus”. Ele ficou sem palavras pra minha mãe, o Arthur, ele não sabia o que falar pra ela, porque ela estava dando argumentos tão convincentes, dizendo porque Deus tinha tirado da vida dela dois homens que ela gostava muito e aí foi uma situação muito difícil pra ela, depois de 7 anos juntos. Hoje a gente fala do meu pai e do Paulo na mesma frase sem o menor problema, e a gente brinca: quando ela for encontrar com os dois, vai ser a Sônia Braga do céu, porque vai ficar entre os dois, porque a gente não consegue conceber ela sem os dois, porque eles são muito queridos. E teve uma história muito bonita com a morte do Paulo, que durante o velório eles fizeram totalmente conectado com o budismo. Então tinham monges, eram 3 monges, eles montam um altar do lado com coisas do céu, da terra, do mar e do ar, e aí, o monge mais velho, tirou uma súmula em japonês e começou a ler: “Paulo nasceu em tal data, se casou com fulana, teve esse filho”. Começou a contar um pouco a história e minha mãe não aparecia na história, aí ele parou e falou assim: “Eu não posso continuar da forma como tá aqui”. Porque ele era muito amigo do Paulo e ele pegou e falou assim: “E o Paulo conheceu uma pessoa que mudou e mexeu a vida dele”. E começou a falar que inclusive brigava com ele porque eles não tinham tempo mais pra jogarem, pra estarem juntos, porque ele estava sempre muito com a minha mãe. E aí ele fez essa fala toda e antes de você enterrar, os familiares levam flores brancas para o caixão e estávamos todos nós, mas assim, mais para trás, e a filha foi e pegou minha mãe pra ser junto com ela a primeira a levar. Foi uma história muito bonita mesmo. Você lembra que eu falei que minha avó quando o meu avô morreu, pegou o dinheiro e comprou uma casa na praia? Não tem… A minha mãe nunca gostou de casa na praia, acho que deve ter… Isso foi antes da pandemia, ela falou assim: “Ah, eu quero comprar uma casa na praia”(risos). A gente falou assim: “É a história se repetindo”. E no final, a gente comprou um apartamento e tal, porque com a idade dela tem que ter um pouco mais de segurança e tudo mais, e a gente brinca toda vez que ela vai pra praia, a gente fala: “Você tem um voucher pra gastar ainda, hein mãe (risos). Vamos usar, mas assim, é muito…”. É uma história que tem coisas super tristes, mas tem muitos encontros, muito amor, tem muito… E a gente hoje é incrível porque a gente dos dois sem distinção. Minha mãe é uma pessoa muito especial, aí ela ligou pra mim e falou assim, “Eu não quero mais essa sala”. Aí eu falei: “Ah mãe, tá bom, a gente pode sei lá, trocar a cortina, mudar o forro do sofá, trocar o tapete”. Aí ela falou: “Qual parte de que ‘eu não quero mais essa sala’, você não entendeu?”. Aí passou, ela me chamou na casa dela e eu fui, ela tinha chamado o asilo e tinha doado a sala inteira. Refez a sala inteira pra ser um outro ambiente. É uma mulher que tem, hoje completa 82 anos, e extremamente independente. Essa coisa que eu falei do Alckmin, ela…a nossa paróquia lá em Ermelino Matarazzo é a São Francisco de Assis, que é onde estava o Padre Ticão, que faleceu também tem um ano agora e eles eram muito amigos, a gente era muito amigo também e está se construindo um instituto Padre Ticão, então foi nessa atividade que estava o Alckmin, estava a Erundina, que ela falou isso e ela é incrível (risos), ela bloqueia os irmãos dela que são Bolsonarista, lá do WhatsApp. Ela: “Ai, eu descobri aqui que o professor de atividade física lá da terceira idade é Bolsonarista. Eu não vou fazer mais atividade com ele, eu já disse para as meninas, nós não faremos (risos). Organiza as outras senhoras. “Escuta aqui, minha filha. Você está dando salsicha pra nós? Você acha que na nossa idade, salsicha… Você sabe como é feita a salsicha? Salsicha não é pra velho. Eu vou levar a minha nora que é nutricionista pra conversar com vocês, a gente precisa comer fruta”. Aí fizeram uma revolução lá e serviram salsicha de novo, todas elas pegaram o saco, a sacola plástica e jogaram a salsicha dentro da sacola plástica. “Mas vocês estão fazendo o quê? Salsicha é pra cachorro.” Assim (risos) e ela vai movimentando, vai fazendo as coisas e é uma cozinheira de mão cheia, é uma pessoa muito especial. Meu pai era especial também, mas meu pai era mais tímido, meu pai tinha uma máxima que eu amo, ele falava: “Até as coisas boas quando é muito, enche o saco”. (risos)
P/1 – E qual é o nome dele?
R – Antônio de Jesus, só. O meu pai era incrível. A gente já refletiu muito isso quando ele teve essa parada cardiorrespiratória, meu pai era muito cuidadoso. Ele era magro, comia as coisas super adequadas, tinha muito cuidado, era vaidoso. Eu nunca vi meu pai sem bigode, mas eu nunca vi o meu pai com a barba por fazer, sempre cheirosinho, bigodinho cortado. Acordava de manhã, lia o jornal, era muito cuidadoso, tinha os hábitos dele, usava sandália de dedos, não usava blusa fechada, não usava jeans, as camisas só tinham que ser de botão e tinham que ter dois bolsos pra colocar os documentos (risos) só usava, que é português, camiseta branca regata por baixo da camisa de botão, não importa o calor que fosse, sempre era assim que se vestia. Era uma pessoa também muito especial. Uma vez eu me separei de um relacionamento, e eu estava devastado (risos) e eu fui pra casa dos meus pais. Nossa, terminar um relacionamento na véspera, bem próximo do Natal, era uma coisa bem doida, e eu estava meio choroso e meu irmão mais novo falou assim: “O pai está péssimo, ver você chorando”. E aí um dia eu sentei na área, eu estava lendo um livro, ele estava lendo o jornal dele, aí ele sem “tirar” o rosto pra virar, só assim, ele falou: “A vida não é fácil, nem sempre a gente é feliz. A gente luta muito pra ser feliz, mas tem época que a gente vai ter que passar por isso pra poder entender”. Olhando para o jornal e falando. Aí ele pegou e falou assim, “Eu não me importo se você está chorando por um homem ou por uma mulher, eu só quero que você seja feliz e eu só quero dizer pra você que isso vai passar”. Então assim, foi uma conversa tão boa, tão sábia, tão necessária e nesse sentido eu tenho uma gratidão muito grande à minha família, à minha mãe, ao meu pai, aos meus irmãos, às minha cunhadas, porque eu vejo histórias tão tristes de outras pessoas LGBTQIA+ em relação às famílias, a rejeição pela orientação sexual, a identidade de gênero. A minha família foi muito, e é muito, importante. A gente sempre teve uma máxima que você não ama o que você não conhece, você só pode dizer que ama uma pessoa se você conhecê-la. Então é isso, você só pode dizer que ama se você comer junto um quilo de sal, ou seja, sabendo das coisas boas, das coisas ruins, das dificuldades, das fraquezas e é uma pessoa por completo, não uma parte dela. Então, nesse sentido minha família… E assim, com isso eu acabei levando os meus amigos, as minha amigas, é uma casa que todos gostam muito de ir, porque minha mãe é extremamente acolhedora. Tem uma história linda com ela. Eu trabalho, depois a gente vai falar um pouquinho sobre trabalho, eu trabalho com HIV/Aids há muito tempo e um dia eu tinha acabado de chegar na casa da minha mãe e a minha mãe… Tocou meu telefone, eu atendi, era um amigo que tinha acabado de pegar o resultado positivo para o HIV e estava muito triste e choroso e tudo mais, aí eu peguei e falei assim: “Eu acabei de chegar na casa da minha mãe, mas eu estou indo pra sua casa, vamos conversar”. Aí eu falei: “Mãe, aconteceu isso, um amigo acabou de pegar o resultado e eu já estou de saída, já estou indo porque eu tenho que encontrá-lo e tal. A família dele não sabe, ele tá muito triste, também com muito medo”. Aí quando eu estava saindo ela pegou no meu braço e falou pra mim assim: “Deixa eu te falar uma coisa. Se um dia isso acontecer com você, eu quero ser a primeira pessoa… Aconteceu com você, você vai pegar o telefone, e eu quero ser a primeira pessoa a saber disso”. Então isso me dá muito esteio, me dá muita segurança pra poder ser quem eu sou e fazer as coisas que eu faço.
P/1 – Essa casa que você falou da sua mãe, em Ermelino Matarazzo, é a sua casa desde a infância ou você cresceu onde?
R – Eu nasci lá. A história é muito engraçada, porque a casa que eu nasci, tem a parte onde é a oficina do meu irmão hoje. Então, quando o meu irmão decidiu montar a oficina, eles iam procurar um terreno pra fazer isso e meu pai falou: “Não, façam aqui. A gente destrói…". Eram duas casas, “A gente destrói uma das casas e vocês constroem a oficina aqui”. Eles falaram: “Ah tá, não sei o que”. E fizeram isso. Só que eu fui o único que nasceu naquela casa, então assim, eles tiveram a delicadeza, os meus irmãos, porque eles desmancharam a casa pra poder doar as telhas, até os tijolos e tudo mais, então foi uma casa que foi desmontada, tirada as telhas e tal, era número 612 e eles me chamaram pra ajudar a desmontar a casa que eu nasci, e aí eles me deram de presente o número 612 que eu tenho até hoje, sabe essas placas azuis e brancas, já bem com ferrugem atrás e eles me deram, e a minha mãe me deu a minha mãe me deu a tesoura que a minha avó cortou o meu umbigo. Então eu tenho um quadro com o número 612 e com a tesoura junto. Tem que explicar para as pessoas entenderem o que significa isso… E aí, a gente morava nessa casa e meu pai estava construindo uma virada pra outra rua, então a gente… Eu nasci ali, eu cresci ali, e essa casa hoje é minha, porque os meus pais ajudaram os meus irmãos quando eles casaram e eu saí de casa muito cedo, e não casei, e conforme os meus irmãos casaram e tudo mais, então tem um acordo que a casa da minha mãe é a minha casa. Só que assim, é uma coisa que é muito complicado, a gente tem… na sexta-feira Santa, sexta-feira passada, o meu irmão entra na parte da edícula onde a gente estava comendo e tem uma mesa bem grande e ele pega uma lima da pérsia, dá pra minha mãe e fala assim: “Olha mãe, como ela já tá”. Era uma árvore de lima da pérsia que meu pai havia plantado, é muito cheio de memórias, muitas árvores que meu pai plantou, o cuidado que a minha mãe tem com a plantas e tal. Então ali jamais seria um local que a gente poderia alugar ou vender… eu brinco que se um dia eu… A casa… Eu ocupar a casa, eu vou passar um muro pra separar a casa do quintal, porque nem a casa… A coisa do afeto nem é com a casa, mas é com a parte do quintal e foi lá que eu nasci e cresci. Engraçado, quando eu conto da minha infância nessa casa, eu vou fazer 60 anos esse ano, quando eu era criança, Ermelino Matarazzo era rural, eu ia buscar lavagem, a gente criava porcos, a gente tinha chiqueiro, a gente criava peru, galinha, pato. Então a gente tinha os ovos das galinhas, a gente não comprava ovos, a gente criava porcos, então tinha que buscar lavagem com carrinho e todas as pessoas que doam lavagem pra engordar o porco… Porque nem era uma época de ração, imagina, ração é modernidade, elas ganhavam um pedaço da carne do porco quando matava, porque era uma coisa muito comunitária a divisão do trabalho. Quando eu conto isso as pessoas falam: “Você morava mesmo na cidade?”. “Sim, morava.” Eu buscava a lavagem para os porcos, lavava chiqueiro. Quando você faz esse evento, era um evento matar os porcos, os homens matavam e tosquiavam, botavam fogo para os pelos… Veganos, desculpem, mas é minha vida essa… E aí eles abriam e cada um tinha uma parte pra fazer e era uma época que você não tinha geladeira, então tinha que preparar toda a carne e conservava dentro das latas da gordura do porco que você derreteu. Isso era um trabalho para as crianças, lavar as tripas. Pra gente, tudo era uma grande brincadeira. Você tem que tirar o cocô que está na tripa, então a gente fazia concurso de quem jogava mais longe e aí ia lá, era muito engraçado, era uma festa isso. Depois você tinha o pau de virar tripa que era umas varetinhas que você virava, lavava, passava limão, virava de novo, deixava bem… Na hora do almoço, a gente enchia a bexiga do porco como se fosse um canudo de mamona, amarrava e jogava bola. Então assim, era uma coisa, contando isso parece assim, sabe “É interior de onde?”. Não era, era aqui na cidade. A gente criava coelho também, isso tudo minha mãe era assim… A gente criava coelho e vendia, vendia já o coelho limpo, minha mãe não deixava a gente tocar, o coelho é a coisa mais linda do mundo e minha mãe nem deixava pra não se afeiçoar, porque depois a gente ia vender. A mesma coisa com o peru que(risos) nós éramos muito malvados, a Associação Protetora dos Animais é capaz de me pegar agora, mas quando você mata o peru ele ainda anda, então a gente adorava ver o peru andando sem cabeça, sabe assim? Coisa de criança, era uma loucura! Mas a gente passava assim, o peruzinho só come ovo cozido, então a gente cozinha ovos, a gente ficava lá segurando os ovos para os peruzinhos comerem. Foi uma infância muito interessante.
P/1 – Vocês tinham cachorro e gato também?
R – Tinha cachorro, tinha um pastor alemão que chamava Nacional (risos). Nacional por conta do Nacional kid que era um filme… Era uma série japonesa, que era um super-herói, se você puder ver, porque é muito engraçado, tem no Youtube. As roupas eram muito estranhas porque a gente tá falando aí de 50 anos atrás, então era muito divertido. Tinha gato também, tinha… Era… E é muito interessante porque minha mãe foi a única que manteve o quintal, quando a gente olha foto do Google por cima é só a casa dela que é verde, aí tem um colégio objetivo do lado e todo mundo começou a construir edifício, então é como se fosse um Oásis olhando de cima a quantidade de plantas.
P/1 – E o seu pai trabalhava do que nessa época? Sua mãe ficava em casa ou não, como que era isso?
R – Minha mãe ficava em casa cuidando da gente e o meu pai tinha caminhão, meu pai fazia transportes. Eram coisas que eu lembro. Hoje a gente vê esses golpes na internet, que você clica e alguém sequestra o seu Instagram, depois se passa pelas pessoas e começa a vender coisas. Naquela época o golpe era, batiam na porta da casa dela e falavam assim, não tinha telefone, não tinha nada: “Ah, o seu Antônio disse que o pneu do caminhão furou e ele tá pedindo, ele não pode sair de lá porque ele tá com carga e ele tá pedindo dinheiro pra consertar”. Aí ela olhava e falava assim: “Ah, pode falar pra ele que não precisa voltar pra casa”(risos). Ela era muito esperta, tinha um monte de golpes e ela que cuidava da gente. Lembro de coisas muito, a gente escutava Zé Béttio de manhã pra ir pra ir para escola, era São Paulo que tinha garoa ainda, era uma São Paulo que ainda era fria de manhã, não tinha essa mudança climática toda, a gente escutava Omar Cardoso que era o cara do Horóscopo, era uma coisa muito engraçada, porque minha mãe lavava roupa, passava e minha mãe separava a roupa que a gente ia usar depois do banho e aí a gente entrava para o banho, eu e meu irmão, a gente tomava banho de porta aberta, essa é uma coisa que como a gente não tinha irmã a minha mãe odiava, ela falava assim: “Se eu entrar no banheiro e tiver um pingo de xixi eu mato vocês. Eu sou a única mulher aqui, não sou obrigada a isso”. Então tinha essa liberdade. Você não tem temporalidade quando você é criança, então se aprontava de manhã… Quando a gente entrava pra tomar banho, ela entrava e falava: “Vocês lembram o que vocês fizeram hoje de manhã?”. “Não”.“Ah, porque vocês fizeram isso…” E vinha bater na gente, eu era terrível e eu falava assim: “É só isso que você pode bater?”. E aí ela falava que hoje o conselho tutelar a levaria algemada, minha cunhada falava: “O conselho tutelar hoje ia levar a sua mãe algemada” (risos). E o meu pai nunca bateu na gente (risos) e o meu pai falava pra ela assim: “Pelo amor de Deus, se você vai bater, é da cabeça pra baixo, não bata na cabeça”. (risos) Era muito cômica, mas ela é muito especial.
P/1 – Vocês cantavam ouvindo rádio? O que vocês ouviam de música?
R – Não, era música sertaneja de manhã, Tonico e Tinoco, era… E tinha um bordão do Zé Béttio: “Olha a água”. Que era pra acordar, então: “Joga água nele”. Então… E a minha mãe era terrível, então ela falava: “Oh, tem que acordar pra ir para a escola”. Ela não falava duas vezes, a segunda ela já puxava a sua coberta, você já ficava com frio, tinha que levantar pra ir pra escola. E ela sempre foi muito cuidadosa, a gente sempre teve tempo pra estudar, tempo pra… Porque a gente trabalhava na casa também, cuidava da casa junto com ela, então isso pra mim não tem preço, a forma como ela nos educou, pra mim não tem preço, de ter responsabilidade sobre a casa. Ontem eu estava conversando com um amigo sobre isso, sobre o rol de gênero que a sociedade estabelece por aquilo que é do homem, aquilo que é da mulher, e como as mulheres saem em muita desvantagem por conta das várias jornadas, então eu só tenho a agradecer essa coisa de aprender a cuidar da casa, de saber fazer comida, de comer de tudo. Minha mãe sempre foi muito austera com carinho, então preparava comida e o mais novo: “Ah eu não quero comer isso”. “Ok, a comida está no forno.” Nem tinha micro-ondas. “A comida está no forno, quando você tiver com vontade de comer você come fria, porque eu não vou esquentar e não vou fazer nada diferente.” E ela dava um repertório pra gente de comida também, então a gente comia absolutamente tudo e ela sempre fala isso: “Você conhece as pessoas comendo o que elas comem, você conhece as pessoas indo no mercado…” Então isso pra mim ficou um coisa de vida, como eu viajei muito por conta do meu trabalho, todo lugar que eu vou aqui ou fora, eu tenho que ir no mercado, eu tenho que ir na feira, eu tenho que ver de fato o que as pessoas comem, o que as pessoas fazem e isso vem da minha mãe, é de um aprendizado muito grande.
P/1 – E vocês são religiosos, né? Como começou isso? Vocês iam à igreja desde quando?
R – Não, a gente ia na igreja… Eu estudei pra ser padre, mas… A gente ia na igreja, frequentava, a minha mãe foi catequista, eu fui catequista também, e a gente participava muito, mais pra frente das comunidades eclesiais de base, tinha uma identificação super grande com a questão da fé e política, não entendia que isso eram coisas que não se misturavam, e a gente teve a sorte de ter tido o Padre Ticão como vigário e a gente fez muitas coisas. A gente começou lá em 80 com o Paulo Freire, fazer grupo de alfabetização, então pra gente a conexão com a igreja tinha uma conexão com a vida, não era carola nem beata, não era essa coisa assim… Era concreta, era ligada aos movimentos sociais das comunidades de base e tal, isso quando eu já estava com 15/16 anos. Nada foi impositivo em casa, em relação a religião ou te obrigar a ir e nada, a gente ia porque gostava muito e eu deixei… Bom, quando o Ticão, ele chega na nossa comunidade no final dos anos 70, começo dos anos 80, eu fiquei muito próximo e eu me inspirava e eu fiquei: “Eu quero isso pra minha vida, quero fazer isso”. E aí eu comecei a ficar muito próximo, trabalhar com ele, eu morei com ele muito tempo no mesmo bairro que a minha mãe. Porque assim, eu já sabia que eu queria ser padre, então eu vou e não sei o que… A gente montou um monte de coisa, isso é um outro capítulo, dá um livro…
P/1 – Isso com 15 anos mais ou menos?
R – É, 15/16 anos. E a gente montou um centro de comunicação e foi muito interessante, isso também foi uma outra parte da minha vida que me moldou, me formou que eu sou hoje. Eu lembro em 2000 quando o Edson Néris morreu, a gente fez uma… O Edson Néris era um homem gay que foi assassinado por skinheads na Praça da República, e aí eu já estava ligado no movimento. Eu entrei no movimento gay em 1995, e aí a gente fez uma atividade, e Ticão foi com uma freira, com a Rosa que também já faleceu e aí depois ele me contou: “Rosa, eu tenho certeza que eu vou chegar lá e o Beto vai estar na frente com megafone”. E foi exatamente assim (risos) porque era a escola, foi a escola que eu… E muito assim o meu engajamento com a luta gay, com a luta LGBTQIA +. Na verdade, não gay só, tem a ver com essa minha trajetória na igreja, essa minha trajetória com… porque eu começo o movimento em 95, mas antes, eu participava dos movimentos sociais na Leste, de creches, de saúde e educação, a gente fazia muitas atividades…
P/1 – Desculpa te interromper, eu queria só antes de… percebi que realmente, então o padre Ticão é um pouco um episódio que começa…
R – É, ele é um marco.
P/1 – Queria só voltar antes de você conhecer ele. Então me conta como era a rotina da sua casa quando você tinha 6, 8, 10 anos, vocês acordavam e iam para escola?
R – Não, a gente acordava e tinha divisão do trabalho, o meu irmão mais velho cuidava dos quartos, limpava os quartos. Eu limpava a sala e o banheiro. Minha mãe cuidava da cozinha e todos cuidavam do quintal. Essa era a divisão do trabalho na casa. A gente ia para escola, se a gente ia de manhã, porque às vezes mudava o turno, se a gente ia de manhã, a gente fazia isso à tarde, se a gente ia de tarde, a gente fazia isso de manhã, assim era. Como Renato era novinho, a gente tinha que cuidar do Renato, só que com 11/12 anos, os meninos na rua, eu já sabia que eu era gay, eu tinha percepção, o sentimento, os meninos na rua eles não faziam, não ajudavam nas tarefas da casa e começaram a provocar o meu irmão e o meu irmão falou: “Ah, eu não vou fazer mais isso não sei o quê”. Eu falei: “Eu vou continuar fazendo”. Então eu continuava, porque eu não achava justo minha mãe ter que fazer tudo sozinha, não que o Marcos não tivesse feito, ele fazia bastante também, mas tinha uma inflexão de uma determinada idade que ele queria… Que é uma pressão muito grande, falava disso ontem também, que é sobre as mulheres exercem e aprendem a maternagem, o cuidado quando elas brincam com bonecas e nós não aprendemos a paternagem, a gente não aprende o cuidado do outro. Então, em um determinado momento, a sociedade faz com que os homens consigam olhar apenas para ele mesmo. Meu irmão não se sentia confortável nesse momento, cobrança, e era mais forte do que conseguir transpor e eu continuei ajudando a minha mãe… Eram muitas tarefas, você imagina o que é ter um quintal com muitas galinhas, a gente tinha que separar as galinhas que botaram das que não botaram, você sabe como que você faz isso?
P/1 – Não tenho ideia (risos)
R – (risos) Então, você tem lá 15 galinhas, a gente tinha mais até, todas poedeiras, tinha as casinhas com os ninhos e tem algumas galinhas que se acabam quebrando os ovos e tal, você tem que enfiar o dedo, você pega a galinha com o rabo pra “cá” e enfia o dedo nela e você sente o ovo, se você não sentir, é porque ela já botou, aí você separa ela. É uma experiência de quem mora na fazenda, e a gente teve essa experiência morando em Ermelino Matarazzo. Era uma coisa de trabalho, mas era divertido… A rotina da casa era uma… A gente tinha tempo de brincar, a gente tinha tempo de cuidar da casa, a gente tinha o tempo da escola, mas tudo fechava com banho no final do dia, que era assim, a hora que a gente voltava para casa, toma banho e as roupas estavam dobradas sobre a cama, que era a roupa que a gente ia vestir depois do banho, que minha mãe que separava. Na minha rua moravam também os meus primos, que são filhos do irmão e da irmã do meu pai, da irmã do meu pai já eram mais velhos, mas tinha minha prima Marlene que era mais nova, que ela regulava a idade comigo, e da casa da minha tia Angelina que era do lado, a gente regulava mais as idades, então assim, a gente tinha… Mas, a minha mãe criou a gente com muita independência, então a gente não teve essa coisa assim, "Ai, eu vou passar as férias com meus primos”. Nunca e quando…você lembra quando eu falei lá atrás que minha mãe falou que se eu e meus irmãos não concordássemos com o romance dela com Paulo, ela não iria para frente, eu, em seguida disso, fiz uma pergunta para ela, eu falei: “Como é que você vai comunicar para as outras pessoas na família?”. Eu vou falar textualmente o que ela respondeu pra mim; “Eu quero que eles se fodam, porque ninguém tem absolutamente nada a ver com a minha vida”. Então a gente sempre teve essa independência da família. Mas tem uma diferença também, porque os meus primos foram trabalhar e não tinha muito essa preocupação deles estudarem e os meus pais, meu pai e minha mãe, sempre foram muito preocupados com coisa de estudar, de ir para Universidade e todos os três foram. Isso era muito importante. Mas meu pai também jogou muito limpo com a gente: “Eu não tenho como pagar a universidade para vocês, mas eu mantenho vocês até vocês terminarem o colégio. Então vocês poderiam fazer um colégio técnico e com isso garantir um trabalho melhor e depois vocês podem cuidar da vida de vocês com independência, porque eu faço isso até aqui”. E a gente fez. Eu e meu irmão mais velho estudamos. Eu sou técnico em mecânica no SENAI, que é outro capítulo também. Você imagina todo mundo estudava no bairro, eu fiz colégio técnico, ele também, a gente saía de Ermelino Matarazzo e ia estudar no Brás e, no SENAI, as aulas começavam às 7 horas da manhã e iam até às 5 horas da tarde. Imagina, para uma pessoa que tem 14/15 anos, a gente acordava super cedo, pegava ônibus superlotado para ir para escola, já era uma questão de entender as classes, de entender de onde você veio, de entender as responsabilidades, a injustiça do sistema. A gente levava marmita, passava o dia e voltava com ônibus abarrotado também. Então, eu e meu irmão estudamos no mesmo SENAI, a gente fez técnico em mecânica, e o Renato fez técnico em plástico também com as mesmas condições. Esse tipo de experiência foi incrível, primeiro porque você saiu do bairro para estudar bem longe na sua casa e a gente tinha quase que uma vivência de trabalho, você começa a escutar a história das pessoas no ônibus, você aprende como que você amarra o seu garfo para não fazer barulho na marmita quando você tá dentro do ônibus, quando você anda, então são várias situações de vida extremamente interessantes, e eu acho que a consciência de classe, o envolvimento político que todos temos, nós três temos, o Marcos é engenheiro, o Renato é Advogado… E a gente até fala: ‘Nossa, se meu pai tivesse vivo ele morreria com o que está acontecendo com o país hoje”. Uma situação extremamente complicada. Então quando a gente termina o ginásio na escola pública, a gente vai para o SENAI e é um outro rompimento, porque você deixa o seu bairro e começa a ir para um outro e assim, era uma realidade muito complicada porque a escola que nós estudamos, o SENAI, chama-se SENAI Roberto Simonsen, fica na rua do Gasômetro que era uma rua de prostituição nessa época, então você começava a ver também toda a situação de exploração das pessoas. Eu escrevi sobre isso hoje, isso plasmou a gente, a gente não podia ser indiferente ao mundo, a gente não podia não se posicionar em relação a tudo que acontece agora ou que já aconteceu.
P/1 – Ginásio seria… Você tinha o que? 12 anos, é isso? Entrando no SENAI, você tinha?
R - Não. No SENAI, eu nasci em 62, eu fui pra escola com 6 anos, a escola me aceitou com um anos antes, então, 6, 7, 8, 9 terminei a quarta série. 9, 10, 11, 12, 13 terminei o ginásio, com 14 anos a gente foi para o SENAI. O meu irmão um ano à frente, que ele era o mais velho e o SENAI tinha uma questão muito interessante, porque chamam você pelo seu sobrenome e o nosso nome é Jesus, e como já chamavam ele de Jesus, era o Jesus e o Jesusinho (risos), que era o mais novo. No SENAI você tem o quarto ano que você faz um estágio remunerado e o meu irmão foi pra fazer engenharia mecânica, seguiu trabalhando, eu estava na iminência, porque quando termina o SENAI eu estava na 14, com 3, 17, foi quando o Ticão chegou na igreja, aí minha cabeça já virou e eu não queria mais, porque eu faria engenharia. Não queria mais fazer engenharia e eu acabei indo para o seminário e fiz filosofia. Obviamente no final do primeiro ano do seminário eu vinha de uma experiência muito de comunidade básica, eu já entrei em choque com o reitor, em um ano, ele já me mandou embora usando a expressão: "Você é como uma panela de pressão, você está quase pra explodir". Porque eu falava, contava, mostrava e indicava as questões que eu achava extremamente equivocadas por parte dele. A gente morava, éramos em 65 jovens no seminário, com realidades totalmente diferentes, era o seminário da arquidiocese aqui de São Paulo, gente vindo de vários locais do país.
P/1 – Onde fica?
R – Fica ainda, chama-se Vila Albertina na Freguesia do Ó, e faltava essa conexão com a igreja dos pobres, com a igreja em que eu vivia… Quando eu termino o primeiro ano, ele fala isso. Eu vou e converso com o meu Bispo, o meu Bispo era o Dom Angélico Sândalo Bernardino, que hoje é um Bispo designado que era a pessoa que cuidava da pastoral operária, super envolvido com as questões sociais e tudo mais. Então eu morei um tempo com um padre, depois morei com o Ticão mais alguns anos, terminei a faculdade de filosofia, mas eu queria fazer teologia, mas eu não queria fazer teologia pra ser padre, queria porque a minha vida estava ligada às comunidades de base, isso foi em 1986. Eu fui pra faculdade de teologia onde os padres estudavam de manhã e à tarde, eu trabalhava nesse centro de comunicação. Foi um momento também muito forte porque durante a filosofia, a gente ainda estava na ditadura, em 83, e a gente tinha uma matéria que se chamava EPB e quem dava aula pra mim era um general, sabe quais eram as minhas notas? 3, 4. Mas não era uma matéria que reprovava, porque senão eu teria bombado, por quê? Porque toda a análise que eu fazia sobre a situação que a gente vivia, não concordava em absoluto com nada, então o que valia era aquilo que ele pensava. Aí eu fui, depois, pra faculdade de teologia, era a efervescência da teologia da libertação esse período, eu já vinha antes e como eu estava numa paróquia de referência lá com o Ticão, todos os teólogos da libertação passavam por lá, então eu conhecia todos eles. Quando eu fui pra faculdade de teologia eu conhecia todos eles…
P/1 – Você fez filosofia e teologia onde?
R – Na FAI, que é a Faculdade dos Associados do Ipiranga, que é a faculdade da diocese, da Arquidiocese. E teologia, na Nossa Senhora Assunção. Eu era extremamente engajado politicamente, vou te dar um exemplo. A gente tinha uma matéria que se chamava cristologia com um professor que eu amo que se chama Ferraro: "Então vamos estudar o rosto do Cristo nos operários, vamos estudar o rosto do Cristo na criança, vamos estudar o rosto do Cristo na população de rua, vamos estudar o rosto do Cristo nas mulheres marginalizadas." E cada um escolhia um tema, eu: "Ai, eu queria fazer o rosto do Cristo nas travestis"(risos). Porque a teologia da libertação ajudava a gente a fazer uma leitura, que a gente chama de leitura dos quatro lados; social, econômico, político e ideológico. Você sempre faz perguntas para o texto bíblico em relação a essa análise, mas a teologia da libertação, ela pecava muito nessa… Não que não discutisse gênero, claro que discutia, em relação a opressão das mulheres, mas ela pecou muito em relação ao o que é do indivíduo. Então assim, acho que pegou um pouco essa coisa do desvio pequeno burguês, do marxismo em relação a sexualidade e aquela coisa toda, e não existia muito essa coisa do respeito de quem você era, agora você não pode ser uma pessoa que luta, se você não é você mesmo, você não pode, então assim, eu não posso anular a minha homossexualidade porque isso é uma coisa que vem depois. Não, ela vem junto. Eu não posso deixar esses meus problemas existenciais pra pensar única e exclusivamente na política, na econômica, na dimensão social, na dimensão ideológica, Então eu vinha trazendo essa discussão, querendo buscar um pouco esse espaço. E quando eu fiz esse seminário na escola, eu levei as travestis e tal, não cabia na sala, então teve que ir para o grande auditório da escola e a escola parou. Foi um momento muito forte de trazer essas discussões pra esse espaço e ao mesmo tempo buscando proteção e apoio para as pessoas, porque eu não era seminarista, eu não tinha que… A minha vida sexual dizia respeito a mim. Eu tive episódios muito engraçados lá na escola. O reitor um dia me chamou e falou, a congregação teve uma reunião e eles questionaram porque você beija as pessoas quando chegam, eu falei assim: "Olha, eu aprendi a beijar as pessoas na minha família e eu não vejo nenhum problema em relação a isso, agora a congregação fala alguma coisa sobre essa castração que vivem os padres e muitos tendo filhos e tendo relações, que é um direito deles terem, mas fala alguma coisa ou não falam nada sobre isso?". E ele tinha uma filha, então eu durante esse período da teologia, foi um momento pra mim muito importante de trazer essa discussão da sexualidade para esse espaço.
P/1 – Desculpa, posso voltar, na verdade não é pouquinho, é bastante porque você falou uma coisa que me pegou aqui: "Ah, com 12 anos eu já sabia que era gay". Como é que foi isso?
R – Na verdade, acho que é uma experiência muito pessoal e eu já gostava de meninos com 12 anos, eu já sabia, me chamava atenção, era… Eu gosto sempre de brincar, a orientação sexual é pra onde o seu pescoço dobra, só você sabe, porque o que passa na rua, o que te chama atenção é aonde você vai olhar. Eu já sabia que eu era, eu já sabia que eu gostava e o que eu queria. Mas nessa época eu tive a vivência, a minha sexualidade foi… Eu tive relação com mulheres, eu tive uma menina que eu transei com sei lá, dos 13 aos 18 anos, mas transava com ela e transava com os meninos também, então pra mim eu fui sempre muito livre e não me preocupava com isso. Não tinha um rótulo pra mim, não tinha um carimbo, tanto é que eu vou entrar em um movimento gay só lá em 95, por que? Porque o meu foco estava com outras coisas, e é engraçado porque as pessoas falam assim, porque o movimento homossexual no Brasil, ele começa a se organizar no final dos anos 70 e início dos anos 80, e eu morava tanto na periferia que não chegava, era uma coisa muito do centro… Você não tinha o que você tem hoje, de comunicação rápida, de internet e essa coisa toda e aí, eu começo em 95 e vou depois fundar a parada aqui de São Paulo. Então assim, e pra mim todas as estratégias e perspectivas… porque pra mim é um campo muito… Eu não… Pra mim isso é importante, eu não concebo a luta LGBTQIA+ se ela não tiver conexões com a luta das pessoas negras, com a luta das mulheres, com a luta das pessoas deficientes, com a luta dos Sem Terra. Muitas vezes o movimento gay, aqui eu estou falando o movimento gay mesmo, sempre teve posições misóginas, transfóbicas, muito centrada no homem, mesmo sendo gay e eu não quero esse modelo, eu nunca quis esse modelo, eu sempre achei esse modelo completamente errado, então eu agradeço muito de ter tido essa formação anterior entendendo a opressão que as pessoas sofriam seja por gênero, seja por raça, cor, etnia, seja por local de residência, de moradia. Isso, quando eu venho para o movimento LGBTQIA+ isso vem junto. Eu quero que o movimento LGBTQIA+ discuta o aborto, porque o aborto é uma questão de saúde pública que diz respeito à todos nós, diz respeito à todos nós, são as mulheres pretas e mais pobres que morrem, porque as brancas tem dinheiro e fazem o aborto de forma mais segura e tudo, não dá pra descolar essas coisas, eu não posso pensar no movimento gay, se eu penso no movimento gay e o único enfoque que eu tenho é o bem-estar dos homens gays, eu estou fora, eu não quero, não é esse mundo que eu quero, não é essa… Então lá atrás, voltando na pergunta eu já sabia com 12 anos o que eu queria, eu já tinha isso super claro e já fazia os meus corres, já fazia os meus atendimentos, e eu nunca deixei que isso definisse qual caminho que eu iria seguir. Então assim, quando eu fui pra teologia, eu trabalhava numa comunidade que chamava Nossa Senhora Aparecida, com uma freira que chamava Pilar, uma freira franciscana junto com o Ticão e começaram os pés, você sabe o que é pé de pato? Pé de pato é policial que mata pessoas, corpos pretos e jovens na periferia, que são ligados ao crime organizado e tudo mais e mataram dois jovens com os quais eu trabalhava. Nessa mesma comunidade, a minha mãe tinha uma padaria comunitária que ela ensinava as crianças a fazerem pães e doces e as crianças vendiam isso, e metade ia para uma poupança da criança e a outra metade comprava o material pra fazer, a gente estava fazendo coisas muito especiais nesse espaço e o Caco Barcellos, ele entrou na minha vida em dois momentos muito engraçados, o Caco Barcellos fez uma entrevista para o Fantástico, eu estava na faculdade de teologia, aquelas coisas que faziam as entrevistas em off com… E ele conseguiu entrevistar lá o crime organizado dessa comunidade, isso foi num domingo e o cara falou que ia me matar: “Ah, tem duas pessoas que trazem problemas para nós aqui que é a irmã Pillar e o Beto.” Que iam matar a gente, agora você imagina no meio dessas coisas todas eu chego na faculdade, eu nem via fantástico, e escutava as pessoas… foi uma comoção, uma loucura. Tinha uma radicalidade nas coisas, sabe assim, a gente descia… O consulado americano era na antiga… lá na rua Padre João Manoel, lá embaixo, agora mudou, agora não, já faz tempo que mudou, mas a gente descia na época do Regan, a gente descia com caixão, botava tinta nas bexigas e jogava tinta vermelha na frente do consulado com sangue, a gente tinha uma conexão com a América Latina, a gente tinha uma conexão com… Assim, tinha muitos sonhos, eu conhecia Daniel Ortega, hoje eu não quero mais conhecer o Daniel Ortega, ele cagou no pau, mas na frente Sandinista eu cantava o hino Sandinista inteiro tinha sabe, tinha… Era a revolução que estava acontecendo, a gente estava muito conectado com todas essas situações.
P/1 – Quando é que você ou alguém da sua família falaram sobre estar na ditadura? Você se sentiu numa ditadura ou não?
R – Olha, eu tenho algumas lembranças. Meu pai falava sempre e eu tenho uma lembrança que ela nunca foi apagada. Era 1970, eu tinha 8 anos, era copa do mundo, eu estava no quintal numa rede e era engraçado porque eles ensinavam na escola as músicas da ditadura: "Brasil ame-o ou deixe-o. Esse é um país que vai para frente". Sabe assim, era uma era uma loucura isso, como eles introjetavam, e meu pai meio que desconstruía isso, falava… tinha uma visão contrária a isso, e a gente tinha também toda essa parte da censura da… Eu comecei a ter mais entendimento do que a gente passou quando eu estava trabalhando lá no nos anos 80, com o Paulo Freire, fazendo as classes de alfabetização na zona leste, conseguia ter um pouco essa percepção e essa época eu apanhei muito da polícia, porque com Ticão, a gente sempre tinha reintegração de posse, porque a gente ocupava os terrenos ociosos com as famílias, Movimento Sem Terra e eles fazem as desapropriações nunca no final de semana, sempre numa segunda-feira, tipo 8 horas da manhã quando as pessoas tinham saído para trabalhar. Então tinham as crianças estavam nas casas, era uma preocupação muito grande que eu tinha, quando tinha qualquer situação de reintegração, a gente se organizava muito para garantir a segurança das crianças, quando tinha a ocupação de um terreno, a gente tinha essa preocupação de garantir que as pessoas que estavam lá marcando o seu terreno, que comessem. A gente ficava produzindo comida para as pessoas, mas para mim, foi mais claro à partir do final dos anos 70, começo… Uma década quase depois dessa cena que eu tenho da copa do mundo do futebol das músicas, a gente tinha desfile cívico-militar, a gente tinha que usar uma…Todos tínhamos uniforme, primeiro da escola e a gente tinha que usar uma faixa transpassada verde amarela em cima da camisa branca da escola e foi… Não sei se a informação, como a gente estava na periferia, muito na periferia as coisas chegavam mais devagar… Eram mais lentas, e você vai percebendo toda a repressão que houve. A gente tinha… pensando no movimento gay, a gente tinha um delegado chamado Riguete aqui no centro, que prendia as prostitutas, prendiam quem não tinha a ver, na verdade tinha a ver com uma faxina ideológica, uma limpeza do território e aí foi quando a gente foi entendendo muito mais, e óbvio, no final dos anos 70 com essa coisa de fé e política, a gente já vinha fazendo essa… A gente tinha rádios comunitárias, eles iam lá e fechavam a rádio, a gente montava dentro de uma panela de pressão o negócio para fazer rádio comunitária e quando eles pegavam o sinal, iam e desmontavam. A gente teve que ter sempre muita resistência e então quando a gente sai, faz o período de transição da ditadura e teve muito rescaldo ainda, porque a gente teve situações bastante complicadas e meu pai tinha, acho que uma coisa meio que de proteger a gente também… Tinha uma expressão na minha casa, quando eles estavam conversando e a gente chegava muito criança meu pai falava: "Tem gente descalça". Gente descalça é uma expressão que ele falava com a minha mãe de que esse assunto que eles estavam discutindo não era para as crianças escutarem, era um código. Eu falava: "Mas não tem ninguém descalço, eu estou de sandália". Mas já era assim, tipo “vamos mudar de assunto, vamos falar vamos falar sobre outra coisa”, não que tirava a gente, mas tem gente descalço aqui, então "Vamos falar de outro assunto, de outro tema".
P/1 – Quando você foi para o SENAI, você se aproximou mais do centro de São Paulo? Qual era a impressão que você tinha do centro? Como era o centro de São Paulo pra você nessa época?
R – Era tão diferente, porque primeiro que essa época não tinha tantos prédios assim, era só casa. A gente morava em casa, não tinha prédio. Então, pegava aquela Avenida Celso Garcia inteira e era engraçado porque eu passava sempre em frente uma loja que remetia à minha infância, chamava Eletroradiobraz, que depois virou o Jumbo Eletro desse grupo que hoje provavelmente deva ser Pão de Açúcar, eu não sei, mas Eletroradiobraz era loja, grande magazine, você ia lá e comprava as coisas à prestação. A gente estava no momento bem difícil, e minha mãe fazia coisas incríveis, então fazer o pagamento de uma prestação, a minha mãe fazia um lanche e a gente ia para essa loja e nessa loja tinha um parquinho, então a gente ficava brincando. Fazia das tripas coração, fazia dessa coisa, desse momento difícil de recessão, de falta de grana e tudo mais, ela… E engraçado que quando… Isso era lá quando eu tinha 7, 8 anos, e quando eu volto e começo a passar, eu via e ficava sempre com meu… O meu coração acelerava quando eu chegava perto deste lugar porque vinham todas essas memórias desse período que a minha mãe fazia as coisas. Essa época que eu falei dessa coisa da recessão que tinha a ver com a questão da ditadura com todas essas histórias. A minha mãe tem até hoje, a gente tem três coisas que pra mim são incríveis. Quando sobravam arroz e feijão velho, assim, não velho, fez e ainda estava lá, a gente aprendeu que a gente nunca joga comida fora e se você põe no prato você tem que comer, são as máximas da minha família, comida não se joga fora e a grana curta, ela misturava o feijão com o arroz, temperava com um pouquinho de cheiro verde, cebola, colocava farinha, um pouquinho de caldo e fazia como se fosse uma massa, comer isso seria estranho, daí ela pegava uma frigideira, colocava azeite, forrava com cebola, punha sal, forrava com tomate, jogava essa massa em cima e apertava com a colher e fazia uma tortilla que a gente comia, então pra mim o sabor dessa comida é de um afeto que não tem tamanho, toda vez que eu tenho saudade da minha mãe eu faço isso e eu conto para as pessoas, eu mostro, eu tenho muito orgulho disso, foi uma época muito difícil, mas eu tenho muito orgulho de como a minha mãe fazia para que a gente não percebesse essas questões. 70 foi o ano que o Renato nasceu, o meu irmão mais novo, e a gente estava tão sem grana que a gente tomava café da manhã com café e farinha de milho, fazia sopinha de farinha de milho e comia. Pra mim é uma outra coisa assim que é revestida de um… É como se fosse um… Não tem valor pra mim, isso é uma coisa que não tem valor, esse cuidado que ela tinha, de cuidar da gente, e ela faz isso até hoje, mas assim, de cuidar da gente para que nada, nada… nos tocasse… Que era esse momento mais duro. Anos 70 era um momento mais duro, um momento de repressão mais dura, mais forte né.
P/1 – Inflação também, essas coisas pegavam?
R - Altíssima sim, nossa! As fiscais do Sarney foi depois, mas tinha uma inflação absurda. Então você vai entender depois que toda a corrupção que tinha, “Ah, porque” Ainda se vende essa ideia de que… Hoje não mais, depois de comprar prótese peniana, Viagra, Minoxidil, gel lubrificante e só falta comprar boneca inflável agora, que o exército não era corrompido, sempre foi, nasceu corrompido, é uma questão super doida. Voltando ao Caco Barcellos, o Caco fez isso, aí eu ganhei um status na escola que era uma coisa assim, “A bicha revolucionária”. Não que eu queria esse poder, mas eu queria trabalhar contra um estereótipo da bicha louca, da bicha afetada e da bicha despolitizada, então pra mim era muito importante dizer: “Não dá pra ser bicha”. E aí eu adoro uma definição, qual a diferença entre gay e bicha? Gay é aquele que se adequa ao sistema, pink money pra ele, e bicha se revolta sabe assim? Que faz o barraco, que vai pra cima. Então assim, eu queria muito ter essa ação dentro do movimento… Bom eu falei que entrei no movimento em 95, 96 a gente fez a primeira atividade pra parada que foi na Roosevelt, sem caminhada, umas 200/300 pessoas. Em 97 a gente fez a primeira parada, no Masp com 2 mil pessoas saindo dali das escadarias da Gazeta e descendo até a praça Roosevelt, uma kombizinha, um microfone e foi uma experiência incrível. 97 para 98 de novo, em 99 eu me torno secretário…não, ah, talvez tenha que contar isso… Em 95 eu fui no primeiro, no 17º Encontro da ILGA que é International Lesbian Gay Association e a gente voltou de lá achando… E teve uma parada, uma pride e no final do encontro lá na Avenida Atlântica, no Rio de Janeiro, com as pessoas que participaram do evento, a gente pensou que a gente poderia fazer aqui também, fizemos o primeiro evento, depois a gente começou organizar isso, para que… Em 2000 pra mim foi, é a parada mais linda de todas, que a gente chamou de “A parada da virada”, que foi a parada que segundo a polícia militar, teve 125 mil pessoas. Então na minha gestão como presidente da Associação em 99, quando a gente criou a associação, eu fiquei presidente. Eu sempre pensei o seguinte, que é uma coisa que é importante, você tem pessoas que no estrito senso querem ser ativista, mas no estrito senso tem pessoas que são gays, lésbicas, pessoas trans, bissexuais, que não querem o ativismo orgânico porque não cabe de modelo de vida delas, mas elas querem colocar a sua especialidade, o seu conhecimento para a causa, então esse foi o grande start que eu tive e aí eu convidei pessoas pra ajudar a gente nas suas especialidades, pessoas que entendiam de eventos, pessoas que entendiam de comunicação. Então a gente começou a fazer muitas coisas e se você olhar esse período, 99, 2002 foi quando eu saí da associação, a gente falava pra fora, então a gente estava ocupando espaços e sempre se você olhar nos espaços, na mídia, ela é referência para as atividades, porque a gente conseguia conectar as nossas demandas com outras demandas. Por exemplo, a gente fez acho que foi a parada de 2000, a gente fez, “Somos muitos e estamos em todos os lugares”, que era a questão do trabalho, a gente fez sobre a questão da educação, então tinha uma conexão muito forte com essas coisas. Em 2000, o Caco Barcellos cruza a minha vida de novo, porque eu recebi uma bomba, o nosso escritório era no edifício Andraus, a Ação da Cidadania Contra a Fome e a Miséria tinha um andar lá, eles doaram pra gente, cederam, uma sala lá onde ficava a associação, então lá era onde a associação se reunia e teve uma, na segunda-feira eu não tinha passado por lá, fui na terça, quando eu cheguei na terça, o cara fala pra mim assim na portaria, “Ah, chegou esse pacote pra você”. Para Beto de Jesus, e era uma caixa, como uma caixa de sapato embrulhada em papel pardo e o remetente era a Congregação Israelita do Brasil. Aí eu subi e achei estranho, sabe assim? Fiquei com uma coisa… Aí eu lembrei que na segunda-feira tinham falado de uma bomba em Higienópolis, daí eu não abri e liguei para o Eduardo Piza, é um grande amigo meu advogado, que foi ele que quando eu falei de trazer os especialistas… O Eduardo é um advogado super ocupado, que não tem tempo pra estar no ativismo orgânico, mas é um homem gay que quer colocar os seus conhecimentos. Foi nesse ano, o metrô não queria deixar… Olha como as coisas mudam, quando você começa a pensar a história em perspectiva, o metrô não queria deixar que a gente colocasse os cartazes da parada naqueles locais destinados à comunicação do metrô, e nós entramos com uma ação contra o metrô e foi Eduardo que entrou, e a gente venceu, a gente ganhou, e eu falei: “Eduardo, chegou aqui uma bomba, uma caixa com uma bomba”, ele falou, “Não abra, estou indo para aí”. Ele veio, a gente chamou o esquadrão antibombas, foi uma coisa doida, porque bomba sempre mobiliza, evacuaram o prédio, sei que a gente ficou o dia inteiro na televisão falando, tinha muita visibilidade. No final do dia eles explodiram e de fato era uma bomba mesmo, se eu tivesse aberto eu poderia ter morrido ou poderia… Porque tinha cacos de vidro, tinha pregos, tinha parafuso, daquela coisa que você tá, que você abre aquilo explode e vem tudo na sua cara, vem tudo em você, podia ter ficado cego sei lá um monte de coisa. Um dia o Caco me liga e vai lá na minha casa para fazer uma entrevista, aí eu estou conversando com ele e ele falou assim: “Se eu te falasse que a gente sabe quem foi a pessoa que entregou a bomba para você”. Eu gelei, caí duro e aí ele havia me contado quem tinha sido a pessoa que tinha enviado a bomba, foi uma sensação muito estranha, muito complicada a gente ficou… na verdade quem mandou a bomba para mim foi uma pessoa que trabalhava na anistia, no escritório da anistia Brasil, a gente ficou muito tempo sem a anistia do Brasil por conta desse episódio, porque esse rapaz ele… A anistia tem um protocolo não sei se ainda tem, mas se alguma pessoa do seu time da anistia sofre qualquer atentado, eles retiram a pessoa do país. Se a pessoa está com risco e ele queria ser transferido para outro país, ia custar qualquer dano a mim, mas eu não sabia disso e dentro da caixa quando você abria, na caixa e tinha um monte de coisas de Suástica, de skinhead e tal. Cada um escreve… é única a sua escrita, minha escrita é única, como você corta, como você pontua, e fizeram esse estudo e chegaram nele, então foi bem triste porque era uma pessoa que convivia comigo nas reuniões, a gente fazia coisa juntos e ele ter que estar em um tribunal foi muito complicado.
P/1 – Isso foi em 2000 e?
R – Isso foi 2000, acho que agosto ou setembro de 2000.
P/1 – Com essa idade que foi para o SENAI, você falou que começou conhecer uma outra realidade. Me conta como era o cenário nessa época? Um outro entrevistado disse que fez SENAI também e falou que só tinha homens, como era esse ambiente? Você queria ser mecânico, engenheiro e aí mudou de ideia, como é que foi isso?
R – O SENAI, agora não, é diferente, mas na época era um espaço muito masculino, alguns cursos tinham mais mulheres, mas em especial no curso de mecânica, se eu não me engano, eu acho que tinha uma menina só, o resto eram todos os homens.
P/1 – Muito japonês?
R – Não, não era isso, porque eram mais os cursos de computação talvez, mas a escola… O técnico em plástico que o meu irmão fez tinha mais meninas, mas o em mecânica, não. Era um ambiente tóxico, totalmente tóxico, misógino e era um momento que os hormônios estavam pulando assim, sabe, estava aquela loucura toda, mas foi importante também ter ido para esse espaço, pra poder perceber… Eu acho que hoje o SENAI se reviu muito, tem coisas incríveis e tal, mas isso também era muito fruto do militarismo. Eu lembro que a gente estudava no 5º andar, então tinha que subir os lances de escadas e tudo, mas a gente tinha tudo muito marcado, as questões cívicas, e a escola é uma escola bonita, tem duas quadras na parte de baixo, tem cantina e refeitório e na parte de cima tinha alpendre, da onde ficavam os professores quando tinha as comemorações para hastear a bandeira, então tinha uma coisa de disciplina, tinha uma coisa que você não podia ir para o SENAI de camiseta, você não… Eu ia… Você não podia ter cabelo comprido, você tinha que cortar o cabelo, era de uma disciplina muito militarizada, sabe assim? De uma instrumentalização dos corpos, da postura, da posição, e a gente quebrava muito isso, fazia muitas… Pra você ver o nível de pressão conosco era tão forte que isso se revertia depois em escapes de alunos que botavam bombinhas dentro dos vasos sanitários pra explodir, essa pressão que era exercida, como que se nós devêssemos sair de lá formados para não questionar, simplesmente para executar, não era uma… Não foi um período de escola que me trouxe nenhum tipo de reflexão crítica, era totalmente instrumental para você ser um operário padrão, o técnico padrão, isso era muito claro e obviamente isso estava muito conectado com o que acontecia com o país à época.
P/1 – E nesse mesmo período ou paralelamente você foi conhecendo as comunidades da região de Ermelino Matarazzo, é isso?
R – Isso.
P/1 - Você falou em comunidades e eu fiquei me perguntando, não eram exatamente seus vizinhos ou eram?
R – Não, porque na verdade eu comecei a…foi bem na transição. Quando eu estava no SENAI, os três anos que eu fiz, eu não tinha tempo para absolutamente nada. Quando eu fiz o estágio foi quando comecei a me ligar mais à comunidade e tudo mais… Não, foi no quarto ano e a paróquia, o modelo… porque era muito interessante, era o momento em que a igreja estava muito avançada. A igreja foi um espaço extremamente importante na ditadura, de ter acolhido pessoas, de ter protegido a vida de pessoas. Nesse momento, a organização das comunidades eram muito fortes, a paróquia acabava tendo núcleos e a gente tinha várias pequenas comunidades ligadas a nossa paróquia. Quando eu estava no SENAI eu não sei se isso é uma coisa da família, da formação nossa de questionar as coisas, mas eu, já nessa época questionava, tinha muita imposição por parte dos professores, eu não sei se era cobrado deles também como postura pra isso, então tinha muita humilhação, rebaixamento, e foi uma época de uma intensa vida sexual que eu tive, eu estava no espaço só com homens, os hormônios de todo mundo iam… já gay e assim… Isso para mim também foi uma coisa muito importante, eu nunca deixei ninguém me chamar de veado porque eu me apresento como veado, então eu tiro a sua surpresa, você pode falar o que você quiser de mim, você não vai falar que eu sou veado porque eu estou dizendo para você que eu sou veado, lembro de um… Fui trabalhar no início dos anos 2000, final de novembro… Não, que 2000 nada, menino, final de 1991, era o Quércia o governador, e tinha um programa da secretaria do menor com a Alda Marco Antônio e as empresas estatais financiavam equipamentos de cultura e esportes e eu fui trabalhar numa casa, chamada Casa Leide das Neves em Itaquera. Quando eu fui para lá foi muito engraçado, porque no processo seletivo eu fui como evangélico porque não queria… Porque eu já tinha vivido uma experiência no Banco Itaú que eu fui reprovado, passei em todos os processos e fui reprovado no final e foi por conta disso, e é muito engraçado que décadas depois eu vou dar consultoria para o Itaú por conta de uma pessoa trans que trabalhava no CTO, no centro operacional deles, e foi onde eu fui negado de trabalhar. Quando eu vou para esse processo, para a secretaria do menor eu fui como evangélico, só faltava colocar a bíblia embaixo do braço, sabe assim, formatado, mas eu falei assim: “Minha vingança vai ser depois que eu passar”. Eu fui trabalhar no primeiro dia com uma calça que ninguém usava isso, é uma calça com estampa de rosas assim, era uma coisa, é muito engraçado, eu uso dois brincos quando ninguém usava, na verdade são piercings, eu uso quando ninguém usava assim, então hoje eu vejo as pessoas, minha vó pintava cabelo a 200 anos atrás, então hoje eu vejo as pessoas fazendo essas coisas, eu pintava o meu cabelo de abóbora a 200 anos atrás, então assim, não sei se é uma coisa da família, mas assim tinha um pouco essas questões e lá no SENAI eu tive várias… Transei com várias pessoas da minha turma e voltando a Casa Leide, quando no primeiro dia de trabalho, a gente estava almoçando, era uma segunda-feira, e as pessoas comentavam assim: “Ah, ontem eu e meu marido fomos não sei o que.” Aí eu falei assim: “Ah que legal, ontem eu e o meu marido...” Estou falando isso de 1991, o projeto da Marta, ela apresentou em 1995, naquela conferência que eu falei da ILGA no Rio de Janeiro, falando isso antes disso, e quando eu falei: “Eu e meu marido”. Silêncio de você escutar o barulho dos garfos, aí eu peguei e falei assim: “Aproveitando que a gente está junto, eu queria dizer para vocês que quando o meu marido ligar, ele é o meu marido, ele não é o meu amigo, ele não é o meu primo, ele é o meu marido! Porque quando o seu marido ligar eu vou falar, eu vou deixar um bilhetinho para você: ‘O seu marido ligou, não sei o quê, não sei o quê, não sei o quê’”. Isso é um processo de educar as pessoas também. Você desconstrói quando você tira da mão delas a possibilidade dela te oprimir por aquilo que você é. Eu tive muito problema com Facebook, porque o Facebook tem um algoritmo, tinha, não sei não sei se mudou porque eu não uso mais a rede, totalmente estúpido! Porque quando eu estava desconstruindo a palavra marica, a palavra veado, a palavra bicha, que eu escrevia, é tentando mostrar que você pode tirar essa picha, eles me bloquearam e me censuraram, eu fiquei 2018 na eleição, última de 2018, um ano tomando bloqueado Facebook. Porque o Facebook nesse algoritmo, se eu escrevo “bicha” e eu te denuncio ele vai lá e… eles me davam medo, foi… Tive oportunidade de conversar com o pessoal do Facebook numa atividade depois, que eu fiz, porque paralelamente uma outra atividade que eu fiz, junto com Reinaldo Bulgarelli foi ter fundado o Fórum de empresas e direitos LGBTQIA+, que é um Fórum onde reúne grandes, a maioria das grandes empresas para discutir as políticas para comunidades LGBTQIA+ dentro do seu espaço e em um dos fóruns que o pessoal… Quando o pessoal do Facebook entrou eu falei: “Olha, alguma coisa aqui precisa ser revista”. Então tirou, tira um pouco essa coisa da opressão, tira um pouco essa possibilidade da pessoa te reprimir por conta disso. A vivência gay é uma vivência muito difícil, a vivência de uma pessoa preta também é difícil, mas quando uma criança preta chega e fala para o pai ou para mãe que ele sofreu algum abuso de racismo, os pais vão na escola saber agora, quando uma criança, um jovem gay ou lésbica, ou bi, ou trans vai falar para os pais, primeiro que não vai falar, se falar pode tomar uma surra dos pais e os pais vão falar “Eu tenho vergonha de você”. Então hoje a gente aprende a se defender desde cedo e eu aprendi que na verdade o gueto deve proteger você, mas ele tem que parir você para você viver na sociedade e não viver dentro dele, muita gente só vive essa sexualidade dentro do gueto, dentro desse espaço protegido. Não! A função do gueto é te fortalecer e parir você para viver, quanto mais visível você for, parece, é dicotômico isso, mas quanto mais visível você for, mais seguro você está pensando isso a longo prazo. Então a gente tinha essa máxima, a gente plasmou o conceito de visibilidade massiva com a questão das paradas. Imagina o que é você morar numa cidade do interior, vivendo tudo isso de forma muito fechada e chegar na parada, encontrar três milhões de pessoas na Avenida Paulista, isso faz um bem! Isso te robustece, isso te dá uma carga para enfrentar a sua vida. O que a gente não pode é ficar na mão do algoz, a gente não pode deixar que ele vá nortear a tua vida por aquilo que você é. Isso foi para mim, uma questão muito importante. E no SENAI eu estava pouco me importando com essa situação, era um espaço extremamente homofóbico, masculino tóxico…
P/1 – Só uma coisa interessante é, tudo isso que você falou, mas você teve muitas relações lá, as pessoas com quem você tinha relação, teve, se mostravam também ou não?
R - Não. Era o sexo funcional só, sabe, e eu estava pouco me importando com isso também, quando você tem essa idade, você quer gozar, um beijo e vai para torcida, mas é engraçado porque isso mexeu com muitas pessoas. Anos atrás eu estava dando uma entrevista para televisão e eu dei uma gargalhada, estava na sala, uma pessoa que estudou comigo e ele me reconheceu pela minha gargalhada, ele voltou e era muito próximo de mim na escola, mas tinha uma resistência com a questão da sexualidade e ele me procurou, já adulto, e me disse que tinha se casado e tinha uma filha, mas tudo isso por convenção, mas que ele era gay. Foi um reencontro super lindo e ele falou para mim assim: “Você não imagina a inveja que eu tinha de você enfrentando as pessoas na escola”. E ele é imenso, ele tem quase dois metros de altura. “E eu não conseguia fazer nada, a não ser ficar do lado daqueles que oprimiam você”. Era uma coisa doida então assim, eu tinha transado com um cara na escola, na escola (risos) é isso, e aí a gente saiu mais tarde, e um dos meninos da minha turma viu a gente saindo e aí no outro dia pegou e falou alguma coisa na aula de desenho “que eu era a mulherzinha do fulano” porque tinha visto e não sei o quê, aí eu peguei e falei assim: "Aí, dá tempo cara, sabe assim oh, se você continuar que eu vou dar um soco em você, hein!”. Nossa foi rastilho de pólvora: “Ah, vai ter briga”. “Vai ter briga, não sei o que, não sei o que...” Aí eu falei: “Ai, meu Deus do céu, que saco!”. Aí saímos da escola, estava a escola inteira fora, aí ele estava lá, eu peguei e falei: “Vamos acabar com essa parada logo”. Eu não queria brigar, mas assim, aí, um olhando para o outro e “Eu não quero bater em você, menino”. (risos) Só sei que eu bati muito nele, mas eu bati e ele lembrou disso, e aí foi muito engraçado porque essa coisa tóxica masculina, que… aí me colocaram em cima dos ombros, me carregaram e as prostitutas que estavam nas janelas batiam palmas, uma cena surreal, sabe assim, bem Almodóvar, uma coisa é muito estranha, mas aí ele lembrou disso, ele pegou e falou assim…E aí é muito difícil, mas assim, em muitos espaços você tem que… O respeito às vezes ele é conquistado não pela palavra, às vezes você tem que… não que eu esteja defendendo a briga nada, mas assim, era a linguagem que eles entendiam naquele momento, para calar uma boca homofóbica, foi um pouco uma situação que aconteceu, e a gente tem contato até hoje, ele tá casado com cara, tá super bem. Acho que eu sempre fiquei buscando um pouco as oportunidades. Uma coisa que também me lembra muito essa época, eu perdi muitos amigos para o HIV, muita gente morreu, e eu só não me infectei com HIV porque no período forte da infecção aqui, assim quando começa, de 86 a 90, eu estava muito conectado com a luta e era seminarista, mas eu tinha uma espiritualidade muito forte e eu queria toda minha força, toda a força do meu corpo, todo o meu desejo, tudo! Eu queria que tivesse canalizado para luta e eu decidi por minha própria conta não me relacionar com ninguém nesse período, e eu não transei com ninguém de 86 a 90 e eu não me infectei por isso, porque senão teria me infectado como os meus amigos se infectaram. A AIDS entra na minha vida em 1983, quando começa a pandemia e eu estava no seminário e a gente… E eu fui participar do primeiro grupo de apoio no hospital Emílio Ribas, quando não sabia muita coisa sobre o HIV e sempre foi uma grande preocupação minha, porque a AIDS trouxe a discussão da sexualidade, trouxe o bode para sala, mas com ela veio também toda a discriminação, toda a violência que reforçava ainda mais, no começo falava em câncer gay, em peste rosa e que era uma doença de homossexuais. Além de você ter a pecha de ser homossexual, tinha uma doença incurável que as pessoas morriam e as pessoas evitavam tocar, beijar, abraçar, não sabia… Ainda tem muita gente ignorante hoje em dia, com 40 anos de pandemia de AIDS, ainda com essas ideias tão preconceituosas. Para mim sempre foi um tema, seja nos grupos de apoio atrás, durante e do trabalho que eu desenvolvo hoje, eu nos últimos… Nós estamos em 2022, nos últimos 15 anos eu tenho trabalhado especificamente para a questão do HIV, hoje eu dirijo escritório brasileiro da Aids Oscar foundation aqui no Brasil, uma organização americana que também tem mais de 30 anos, a gente está aqui no Brasil há 6 anos, e a gente trabalha em várias regiões ajudando as pessoas a terem seu diagnóstico, primeiro não se infectarem com ações de prevenção diagnóstico, se der positivo colocar a pessoa o mais rápido possível em tratamento. Hoje a gente sabe por evidências científicas que uma pessoa indetectável, uma pessoa que não transmite, com isso você diminui os novos casos, então acabou virando para mim um… Hoje para mim é o grande espaço onde eu atuo, obviamente eu dei uma arrefecida no movimento LGBTQIA +. Eu tive muita participação no movimento internacionalmente, eu falei que em 95 eu tinha ido para aquela conferência, em 95 fui para a conferência e em 2001 eu me tornei secretário da associação para América Latina e Caribe foi do bode internacional, fiquei praticamente mais de 10 anos nessa atividade e hoje eu consigo… A gente ainda tem a população gay e a população trans, ainda tem altíssimas prevalências para infecção, tá ligado à toda a questão do estigma e discriminação, então tem muito trabalho pela frente assim, é engraçado porque quando eu falo que eu fui 83 para fazer o trabalho lá no Emilio Ribas como voluntário, mas isso vem também de uma ação das comunidades de base que a gente fazia um projeto que chamava projeto esperança em São Miguel que atendia as pessoas com HIV, que era aquele momento, que quando as pessoas sabiam que alguém tinha HIV, expulsava de casa, a pessoa tinha então… Era uma situação bastante diferente do que é hoje, mas necessitava outro tipo de ação.
P/1 – Me conta um pouquinho se você puder, como foi ver os seus amigos dando essas notícias, você falou um pouquinho dessa história que você… Da sua mãe, se você por acaso conta para mim como é que foram esses anos pessoalmente para você? Como é que era o clima?
R - Olha tem uma… Durante o seminário eu conheci um grande amigo, chamava-se Lázaro André Bezerra de Freitas. Quando eu cheguei no seminário, foi a primeira pessoa que eu vi, estava na mesa estudando, quando meu pai me levou para o seminário, e a gente se tornou grandes amigos, inseparáveis, e o Lázaro se infectou de HIV e morreu antes do coquetel em 96 e eu acompanhei ele todo tempo da doença, inclusive organizando o funeral dele, conversando com ele e fazendo a vontade dele. Tem uma história incrível porque (risos) durante um tempo, a gente fazia drag de prevenção, então a gente ia nas boates gays fazendo prevenção, era eu, Lázaro e o Sales, Sales é bem famoso, hoje chama-se Salete Campari, que faz muito sucesso, e a gente fazia roupas iguais e ia fazer a prevenção, vendia cachorro-quente, o dinheiro para a Casa Brenda Lee, a gente fazia um milhão de coisas. Acompanhar todo o processo dele e no leito de morte ele pediu que… Já sabia toda a celebração, como ia ser e tal, queria ser cremado, e aí ele pegou e falou: “Eu quero que a Dorothy vá”. (risos) Dorothy é a minha drag e aí eu falei, “Na missa de sétimo dia?”. “É, na missa de sétimo dia.” “Tá bom.” Pedido, né! E aí foi na igreja de Santa Cecília, tinha uns 10 padres, igreja lotada, e aí o ambão é aquela parte onde você faz a leitura, aí eu baixei, estava com…A paróquia era uma grande amiga nossa, eu abaixei e embaixo eu rapidamente me maquiei e quando eu levanto, eu levanto com chapéu preto imenso (risos) um óculos escuro, com um boá de plumas, então botei o óculos escuros e só tinha pintado a boca, então eu estava assim, e aí o meu pai, minha mãe e meu irmão na primeira fila (risos) eles nunca tinham visto, aí eu peguei e falei, “Olha só, eu preciso dizer uma coisa para vocês que eu aprendi com meu pai, ‘que você nunca quebra uma palavra dada, então eu estou de Dorothy porque Lázaro me pediu isso e é um irmão que eu amava, então assim, vai ser assim”. E foi muito engraçado porque assim, eu fiz toda a celebração dentro da igreja católica vestida de Dorothy (risos) foi muito engraçado. Agora era muito triste porque as pessoas morriam muito rapidamente, porque não tinha medicação, não tinha nada… Uma época começou o AZT, mas o AZT tinha tanto efeito colateral nas pessoas, ainda hoje assim, para mim ontem mesmo, ontem eu estava no escritório e a gente tá abrindo uma clínica aqui na República de tratamento DST e para testagem de HIV, sífilis, hepatites, e para fazer essa vinculação mais rápida do tratamento das pessoas, e a gente recebe muito pedido, eu falo com muita gente, então assim, essa semana… E para mim isso é um compromisso, uma pessoa que veio do Peru transferida para o trabalho em Cascavel, que tinha que vinculá-la assim, uma pessoa que eu nunca vi na minha vida, que eu fiquei monitorando até ela pegar a medicação. Ontem eu estava na clínica, era um uma pessoa da Índia que tinha me escrito, que estava no país e estudando aqui e o medicamento dela tinha acabado e aí ontem a gente se encontrou pela primeira vez, que ela estava pegando uma receita conosco para poder pegar medicação, então para mim isso hoje é uma coisa muito forte na minha vida. Acho que a pandemia da covid fez com que as pessoas não se testassem, ela fez com que algumas pessoas não conseguissem pegar suas medicação, a gente tem recebido pessoas muito doentes, assim como a gente nunca tinha visto antes, com CD4 muito baixo, carga viral muito alta, tudo aquilo que a gente avançou, a gente tá perdendo por conta disso. Mais problemático ainda é com o governo que a gente tem. O governo Bolsonaro é um absurdo a destruição do país, a destruição do que a gente tem de melhor. Se a gente tem hoje e teve essa resposta e a vacina se mostrou eficaz e a gente tá em um momento mais tranquilo da pandemia, a gente não precisaria ter tido mais de 260 mil pessoas mortas se esse animal, se esse energúmeno, se essa pessoa… É nojento, é feio falar isso sobre essa pessoa, mas é horrível. Então quando você pensa na questão do HIV, no desmonte do programa de HIV, da retirada do Dome AIDS, do programa, de parar de comprar gel lubrificante, então assim, é deliberado… A gente vive… Achille Mbembe trouxe um conceito de necropolítica pensando nas relações raciais e a gente pode transpor esse conceito para o que a gente vive hoje, então assim, são corpos escolhidos para morrer deliberadamente, o estado decide quem morre, são pretos, são pobres, são periféricos e a gente tem muito receio, então assim, que a gente possa voltar no estágio pra questão do HIV que a gente só via no início e a gente está vendo agora a pessoa chegando para se testarem, não com HIV, mas já doente de AIDS. Tem uma diferença entre HIV e AIDS. AIDS é quando você tem as células já abaixo de 200 e você já tem alguma infecção oportunista debilitando o seu organismo. Hoje a gente vive um momento muito duro e fazendo uma conexão com a questão da ditadura, ele é um filhote da ditadura, ele é um rato da ditadura, é uma pessoa desprezível que não tem a menor afeição, não tem o menor cuidado, não tem a menor empatia com o ser humano. Acho que foi o pior desastre que poderia ter acontecido conosco, acho que quando eu vejo um pouco a trajetória da minha vida, o quanto a gente viveu, e tudo que a gente viveu, não era para gente tá vivendo o que a gente tá vivendo hoje, nem estou falando de um país desmontado, dessa geração da covid, essa geração da covid tem estudos apontando que esses jovens perderam seis, equivalente a seis anos de estudo, é uma geração que vai ficar marcada e vai ficar marcada por uma escolha, uma escolha de morte, uma pessoa que dá continência para morte, e que nesse momento, a retirada da situação de emergência da covid pelo Ministério da Saúde é mais uma cortina de fumaça para que a gente esqueça da pandemia, e ele foque o seu projeto para ser presidente outra vez, eu espero que isso não aconteça, porque o que esse cara merece, ele merece ser julgado, ele merece ser preso, porque ele é um assassino! É uma pessoa sem a menor empatia.
P/1 – A pergunta que eu quero fazer, aproveitando esse gancho que você tá falando sobre hoje e sobre autoritarismo como que era a relação da comunidade LGBT na época em que você começou nas comunidades, como era a relação da polícia com travestis, com gays e lésbicas, como era isso?
R - Então, essa é uma questão interessante, até eu acho que a gente precisa vê-la historicamente. Quando eu estava nas comunidades, eu nunca escondi que eu era gay, mas não era uma causa pela qual eu militava, porque não tinha informação sobre esse ativismo, ainda era uma coisa muito do centro, muito conectada com uma classe de homens brancos. Claro, eu sou um homem branco, mas assim, de homens brancos que viviam no centro da cidade, que não conseguiam fazer essa ponte para periferia, então assim, a minha abordagem sempre era: “Bom, as pessoas sabem que eu sou gay, mas isso é coisa que faz parte de mim, não é algo que nesse momento eu precise fazer alguma coisa específica, eu fui entender isso em 95 quando eu fui para um espaço, conheci as pessoas. Então hoje eu tô muito feliz, eu ajudei e tenho ajudado vários coletivos a fazer essa discussão, e a gente tem que capitalizar essa discussão. Hoje você vê, pela primeira vez agora em Brasília teve o encontro dos povos indígenas e teve uma assembleia LGBTQI+, mas aí a gente inaugurou isso com movimento Sem Terra, que já tem grupos organizados e quando a gente começa esse trabalho com as empresas você começa a ter vocalização dessa discussão dentro de um espaço, então é óbvio que isso… Hoje se você entra… Claro que tem a ver com o pink money, que tem a ver com algumas questões, mas também a gente não pode jogar água, bacia, sabonete e a criança pela janela, certo? Então era impensável antes, esses dias eu fui na farmácia e tinha um creme nívea e a latinha era rainbow. A gente tem visto vários produtos, as pessoas fazendo vários produtos, ok é mercadológico ainda, mas isso cria uma visibilidade importante, cabe a gente como manejar isso, como não cair no canto da sereia do pink money e garantir que isso se estabeleça como políticas públicas e como… Para a perspectiva do privado, do trabalho, de abrir possibilidade de contratação de pessoas trans, como foi feito pelas mulheres, como você que pelas comunidades negras. Isso é extremamente importante. Quando eu começo a me aproximar mais, isso é 1995 só que são 15 anos de quando teve o “Somos” no final dos 70, começo dos 80, são 15 anos, 80 para 95 e ainda foi uma organização muito seletiva. Se você não capitalizar essas discussões, porque no fundo eu sempre reverencio os gays periféricos, que enfrentam o trem para vir para o centro sob qualquer sorte de preconceito, de violência, mas que são resistência, então hoje se as bichas brancas podem casar, elas devem bater palma para as bichas periféricas, que foram elas que sempre fizeram enfrentamento e eu luto muito, por exemplo, eu desde o primeiro momento, eu fui muito, incondicionalmente favorável a gente aprovar um projeto para casamento das pessoas do mesmo sexo, o que me desagradou no determinado momento é que ele foi cooptado por uma parcela gay branca que se considerava e ainda se considera, os gays de fino trato, que tem problema com a travesti da rua, que tem problema com a lésbica mais masculinizada, que tem problema com a trans, que tem problema com o gay afeminado e que acha que isso é o modelo. Eu combato muito isso, eu estou de saco cheio de gente branca casando como se fosse heterossexual, adotando uma criança preta, fazendo a foto da Benetton “e viva a diversidade”. Não! Isso não dá mais, é inconcebível. Eu não gastei a minha vida para nesse momento assinar sobre isso. Não, tem que ser para todo mundo e as pessoas que fazem isso mesmo elas sendo gays, têm que ser denunciadas, porque senão… Aí para mim isso é quando eu lembro do Ticão, quando eu lembro do Dom Angélico, quando eu lembro da comunidade, quando eu lembro das coisas que eu tive no SENAI, quando eu lembro de toda essa minha história, da marmita, do ônibus apertado, é impossível você querer garantir cidadania para comunidade LGBTQIA+, se você não conectar essa comunidade com os outros marcadores. Quando eu falo gay imediatamente vem o estereótipo do homem branco do centro, não vem outro, por que? Porque esse foi o modelo que foi plasmado, o modelo de corpo. Hoje a gente tem que pensar sobre isso, e aprender com as mulheres, aprender com as feministas, com as pessoas pretas que já tem essa trajetória. Isso é extremamente importante, para mim hoje é um momento de que nós pessoas cis, gays e brancas, a gente tem que começar a se afastar das decisões, tem começar a pensar que é necessário que outras pessoas ocupem esses espaços, que os jovens pretos periféricos, gays, trans, lésbicas comecem. É necessário escutar essas vozes. A transformação tá na mão deles e eu acho que é como uma carga, eu acho que chega um momento que você precisa entender que o outro ou a outra, o outre precisa… Não é que ele está comigo, ele precisa assumir esse local, ele precisa dar o comando, ele precisa dizer para onde que vai, a mudança só se dá dessa forma, porque se não gente vai continuar com as mesmas bichas brancas, cis, dando o tom do movimento. Ainda é assim, infelizmente. Eu acho que tem uma força na comunidade trans se organizando, ocupando esses espaços, ensinando a gente a perceber que esse é o novo tempo, esse é o tempo das pessoas, esse é o tempo dessas pessoas. É triste a gente vivendo tudo que a gente vive. Essa semana passada, duas semanas atrás, estavam fundando uma associação do orgulho gay, mas só do orgulho gay, que merda é essa que precisa de orgulho gay para homem branco, caralho? Sabe, já não tem privilégios suficientes? Já não cansou dos privilégios? Quer mais privilégio? Sai do foco, sai do holofote, fica de fora, deixa as pessoas assumirem e trazerem o novo e a gente precisa disso. E as travestis vivem a questão de gênero, mas elas vivem no corpo toda a opressão da sociedade, elas vivem a falta da escola, a falta da casa, a falta da comida, a necessidade de submeter à outras pessoas para poder viver. A gente tá num grande momento e a gente precisa virar essa mesa, a gente precisa sair de cena, a gente precisa que essas pessoas tomem a cena. Mas não tomar cena como uma foto, mas que elas tomem a cena para dirigir. Enquanto isso não acontecer, a gente não vai ter mudança, a gente não vai mudar e são as pessoas que estão em extrema vulnerabilidade. Essa coisa da foto da Benetton já deu, já foi, me cansa essa coisa da reprodução do casamento gay, como é um casamento hétero, me cansa isso: “Ah, é seu sonho, e você faz o quê com isso?” Acho que ok e você faz o que para essa comunidade. O Brasil é o país que mais mata travestis no mundo e você faz o quê? Não é da tua comunidade? Não é? Então acho que triste isso, a gente não vive mais a ditadura, a gente vive uma democracia, mas o comando do país, hoje ele segue na lógica da ditadura, quando você pega a quantidade de militares, generais das forças armadas que ocupam espaços estratégicos de tomadas de decisão, gente corrupta, gente mal preparada e que tá determinando quem vive e quem morre, é um momento muito difícil. A gente tem trazido essa discussão do período da ditadura, mas aquele período era uma coisa muito mais explícita. Então a gente vive uma ditadura velada, não explícita, o volume de mortes, o volume de desmandos, de intervenções em universidades, o que estão fazendo com o país que diz assim, acho que é um momento muito agudo, é um momento muito difícil. A gente vive hoje o que eu chamo de cotovelo da história, que é aquele período que você nunca vai esquecer, que daqui a 20 anos você vai lembrar desse cotovelo, onde tem esse entroncamento, o que a gente viveu nesses últimos 4 anos aqui nesse país, muito duro.
P/1 – Me fala um pouco sobre o padre Ticão e Dom Angélico, você falou esse homem, essa pessoa, como é que foi pra você conhecer ele? Fala um pouquinho das ações dele.
R – O Ticão foi um grande amigo, foi o meu mentor mesmo, a pessoa que me deu luz. Ele era de Urupês, interior de São Paulo, e era uma pessoa incansável, acordava muito cedo… A gente fazia muita coisa junto. O dia não parecia que tinha 48 horas de tanta coisa que a gente fazia, era extremamente devotado para as comunidades. Se a gente tem a USP Leste hoje, é da luta do movimento de educação, o Ticão pegou isso muito forte. O hospital que a gente tem Ermelino Matarazzo, foi uma luta também que inicia dentro da igreja, era um momento, a gente viveu esse momento da utopia e da possibilidade da renovação e muita coisa foi feita, e como tudo, a igreja deu uma guinada à direita, absurda, tirou da pauta essas discussões. Então você tem pessoas como Júlio Lancellotti, que é meu amigo também que… Padre Júlio, que estudou comigo, ele era 12 anos à minha frente na faculdade teologia, que são profetas, são pessoas especiais que precisam alertar a gente sobre as coisas que estão acontecendo, sobre tudo isso. Chegou o momento da minha vida que eu já não sentia mais… A igreja se apresentava em um modelo que não cabia mais na minha vida, respeitando obviamente todas as pessoas da igreja que eu respeito e que eu amo, mas como estrutura, como instituição, ela já não cabia mais na minha vida e sem querer eu fui para uma atividade do dia primeiro de dezembro, numa igreja, que era uma atividade ecumênica, na igreja anglicana e o meu olho brilhou quando eu encontrei esse espaço com todas essas denominações, fazendo uma celebração, comemorando o dia de luta contra o HIV, com uma religião de matriz africana, religiões orientais, protestantes, católicos e comecei a me aproximar de novo, esse meu pezinho (risos) e hoje eu sou anglicano, desde 2008 eu me converti ao anglicanismo. Dentro da igreja anglicana a gente começou um trabalho muito forte e hoje a igreja anglicana do Brasil reconhece o casamento entre pessoas do mesmo sexo e ela celebra, você pode fazer uma celebração de casamento na igreja. Esse foi um trabalho também que eu me envolvi muito, viajando o país inteiro, fazendo encontros, até que a gente conseguiu depois de cinco anos de trabalho fazer votação no sino da nossa igreja e aprovar por unanimidade o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Então hoje eu vivo nessa comunidade da paróquia da Santíssima Trindade em Santa Cecília e é uma coisa que faz parte da minha vida, tá em comunidade para mim foi super difícil, os dois anos da pandemia, quando a gente não podia se encontrar, não podia se ver, não só com a igreja, mas também com os amigos e tudo mais, as amigas, e espero que a gente comece a voltar o mais breve possível a normalidade, porque a gente tem que mudar esse país esse ano, votar direito e concertar esse país, porque não é justo que essas gerações tenham que viver da forma como elas estão vivendo, por um inescrupuloso, por um uma pessoa incompetente, doente, que tem que ser punida, que tem que ser presa, tem que ir para o tribunal e tem que ser presa.
P/1 – Curiosidade que eu fiquei, como é que… Como é e quando foi que você falou com seus pais, “Olha eu sou gay”. Como é que foi isso? Quantos anos você tinha? Teve essa conversa?
R – Teve, claro que teve. Isso foi, acho que eu tinha… O meu irmão mais velho estava começando a namorar com uma menina e aí teve a conversa na mesa do jantar, e aí eu peguei o gancho, eu acho que eu tinha 15 ou 16 anos, é óbvio que minha mãe já sabia, porque minha mãe já tinha me visto beijar um menino na rua, mas o meu pai tinha me pegado transando com uma menina, então (risos) e aí eu falei assim: “Aproveitando então essa conversa que a gente está tendo, eu queria dizer que eu gosto de meninos, que eu não vou namorar menina”. Meu pai olhou e falou assim: “Isso não é uma conversa para você ter aqui na mesa”. Eu falei: “Eu só estou comunicando”. A minha mãe já ficou assim, porque é uma questão muito interessante; eu vejo isso na história dos meus amigos e amigas, quando eu falei que na minha família a gente sempre trabalhou com essa máxima de que você só ama o que você conhece e a verdade como diz São João lá na Bíblia, “ela liberta”. “A verdade vos libertará”, e liberta mesmo, só que ela tem um custo, e às vezes o custo é alto demais, mas ela tem. Então por que a minha mãe não queria que eu fosse homossexual quando eu falei? Ela nem tinha motivos reais para isso, mas a sociedade trabalha com as informações que lhe convém, como fazem com a comunidade negra, como fazem com os nordestinos, é horrível. Quando falam que, “uma coisa mal feita é uma baianada” isso é um absurdo, ou quando falam das pessoas pretas e como falam de nós homossexuais, então cada vez que você escuta uma coisa dessa, é como se você ganhasse um tijolo e você coloca entre você e a pessoa, porque você não quer aquilo e aí você vai colocando, “gays são pessoas irresponsáveis”, “que eles não são pessoas sérias”, “os gays sofrem”, “os gays vão ter AIDS”, “os gays vão morrer de AIDS”, são tijolos que você vai ganhando e vem todo lugar essas informações, vem da igreja, vem da escola, vem da família, vem da própria mídia, quando você percebe, entre você e a pessoa tem um muro com todas essas coisas que você botou e você não enxerga mais ela e aí você não consegue mais falar com ela, você não consegue mais conversar com ela, não significa que minha mãe não me amava, mas significa que minha mãe foi sujeita a esse tipo de formação e de informação, então garantir e trazer para as pessoas, as informações corretas e você desconstruir esses estigmas e toda essa discriminação, vai descendo esse muro e você começa a olhar outra pessoa e ver que ela é igual a você, independente da escolha, do desejo, do que ela quer fazer. Então a gente viveu esse processo na minha casa. Toda a criação dos meus sobrinhos, eu tenho dois sobrinhos, Vinícius e a Milene, filha do meu irmão mais velho, meu irmão mais novo decidiu não ter filhos, eles já foram educados sabendo que tinha um tio gay, sempre tiveram muito orgulho disso, porque é uma conexão. A minha sobrinha tem uma história de que, a professora na escola ridicularizou uma menina porque tinha falado em inglês, escola privada, hein, tinha falado em inglês errado, o sotaque estranho e a professora fez… A minha sobrinha ficou indignada e a minha sobrinha falou para ela em inglês, que o inglês dela não era tão bom para ela fazer isso, porque ela estudava inglês desde pequena, a professora se sentiu ofendida e foi para a diretoria, mostrando o poder dela, chamaram a minha cunhada, a minha cunhada foi na escola, chegou lá a minha cunhada perguntou, “O que foi que aconteceu?”. “Ah, ela fez isso!”. “Ah, ela fez isso? Ela está coberta de razão, a professora não podia ter feito isso”. E a minha sobrinha vira para a diretora e fala: “E vocês tiveram sorte que foi a minha mãe que veio, porque eu devia ter chamado meu tio, sabe quem é meu tio? Meu tio é gay, é aquele que que organizou e que organiza a parada gay aqui em São Paulo”. Então assim, para eles isso nunca foi um problema, porque foram educados assim, então é possível você… porque o preconceito é uma construção, você não nasce preconceituoso, você se torna preconceituoso pelas informações que te dão. Eu tenho uma sobrinha neta que hoje é o meu xodó, chama-se Laura, Laura vai fazer agora dia 24, três anos ,e já tá sendo criada para a diversidade, os presentes que a gente dá, os brinquedos, as cores, já tá sendo, como foi, tanto a Milene como foi o Vinícius, criados com essa mesma perspectiva. Então é possível você fazer diariamente essa revolução, se a gente conseguir nesse processo de educação e mostrando a possibilidade das diversidades, conviver com a diversidade hoje é o que você pode oferecer de melhor para o seu filho e para a sua filha, porque hoje quando você convive com pessoas que têm orientação sexual diferente da sua, identidade de gênero, ou que não é da sua etnia, ou que têm alguma deficiência, cada vez que você se relaciona com as pessoas, você ganha um óculos diferente para olhar o mundo, você começa a entender que quando uma pessoa preta fala, que quando ela entra numa loja e os seguranças começam a persegui-la, você consegue entender como racismo é estrutural nesse país e como as pessoas pretas sofrem, se você convive com uma pessoa que tem algum tipo de deficiência, uma pessoa uma pessoa cega, por exemplo, você consegue entender o quanto a cidade não é acessível e que nós precisamos de uma cidade acessível, então você vai ganhando óculos, para olhar a partir da necessidade, isso é alteridade da necessidade do outro e não só a partir do seu próprio umbigo, que é a lógica que a gente é educado, então quanto mais a gente perceber da necessidade de não só se relacionar, mas como de defender essas causas, entender que uma agenda de transformação passa por você, e ter essas conexões com as outras lutas, essa é a chave para revolução, essa é a chave para grande mudança, não é cada um no seu quadrado, é um quadradão onde todo mundo tá dentro ou fora, mas onde a gente tá junto e entende, porque também a gente reproduz, eu falava lá atrás assim: “Eu não posso ter um gay falando, ‘ai credo essa racha’ diminuindo uma mulher”, porque nós aprendemos muito do movimento feminista, eu não posso fechar os olhos e achar que eu como um gay branco sou tratado da mesma forma que um gay negro, eu não posso achar que eu, por mais bacana que eu possa ser, que eu sou uma pessoa cis, que eu sou tratado igual uma pessoa trans, não. Então para mim essa é a… O Paulo Freire falava que “O refinamento do sistema é quando o oprimido se torna opressor”. Porque você consolida o sistema, e se a gente quer fazer a mudança, a gente precisa fazer essas conexões, a gente precisa pensar onde que a gente esbarra e a gente assimilar essa agenda, e não é apropriar, não é ocupar lugar de fala, não é nada disso, mas é de poder entender que a sua luta tem que ser apoiada por mim, porque a minha luta vai ser apoiada por você, a luta dele vai ser apoiada por ela, porque eu ainda sou, ainda tenho essas coisas das comunidades de base, essa perspectiva, a gente cantava: “Quero a utopia, quero tudo e mais…” Então, é isso. Hoje a gente tem que usar o verbo esperançar, trabalhar na perspectiva da esperança, na perspectiva da mudança e ela só virá coletivamente, ela não virá de outra forma.
P/1 – Beto, infelizmente foi dando o horário, mas eu queria te perguntar, não sei se você já tinha contado algumas coisas que você acabou contando com relação à infância, enfim, mas queria saber como é que foi contar um pouquinho da sua história, teria tantas outras coisas para explorar, mas, como é que foi contar isso que você contou para gente hoje?
R – Sabe que eu falo mais que o homem da cobra, então eu gosto de contar essa história, e eu gosto de contar da onde eu vim. Eu sou um menino que veio de Ermelino Matarazzo, de um pai que tinha um caminhão, que criava porco, que limpava o chiqueiro, que ia buscar lavagem com carrinho, então se hoje eu ocupo o espaço que eu ocupo no meu trabalho, ou tenho algum tipo de representação, eu devo tudo isso essa história, não posso negar essa história. Eu acho que o trabalho que o Museu da Pessoa faz, resgatando a vida das pessoas, primeiro que é um exercício incrível para mim, não sei quantas sessões de terapia foi fazer essa volta, essa reminiscência, por outro lado isso tem que afirmar gente, da onde eu vim para onde eu vou, o que eu quero para minha vida, o que eu quero para esse mundo, então a gente não é nada pela gente, não tem meritocracia aqui, é uma construção coletiva, é importante rememorar as pessoas que te ajudaram a plasmar você e da mesma forma que hoje eu não estou pronto, estou vivendo coisas que daqui a um tempo eu vou olhar para trás e ver o quanto foi importante, que eu sempre fui uma pessoa destemida e sempre queria aprender, então quando vocês me trazem para cá, para contar um pouco da minha história, eu não sou exemplo para nada, eu não sou exemplo para ninguém, porque cada história é uma história, é única, da mesma forma que cada pessoa tem a sua escrita e aquela bomba que eu falei para vocês foi descoberta por conta da escrita da pessoa que mandou, cada um tem a sua a sua história, cada um vai viver. Às vezes as pessoas falam: “Ai, eu queria ter nascido na sua família”. “Ah, porque a sua mãe é legal”. A minha mãe é legal, mas isso não significa que a gente não teve embates, não significa que a gente não teve discussão… então é muito importante a gente tá atento àquilo que a gente tem também e começar a olhar para sua vida. Eu sou sempre a pessoa que vai olhar para o copo e vai falar que ele tá cheio, metade cheio e não metade vazio… Esse sou eu, eu sempre falei assim, “Ah, até a metade cheio”. Olhando com a perspectiva de que tá melhor, porque se eu não fizesse isso, eu teria sucumbido nesta pandemia e teria sucumbido o que a gente tá vivendo. Hoje eu tenho sangue nos olhos mesmo! Porque a gente precisa, necessita destruir esse fascismo, essa serpente, esses ovos que geraram tudo isso… Isso deve ser para todo mundo, mesmo que você não foi tocado com a tua vida, você manteve seu trabalho, você não teve… não dá, é sangue nos olhos e mudança. Então foi bom lembrar de coisas que a gente fez lá atrás, que pareciam impossíveis, mas a gente foi lá e fez e a gente pode ir lá agora e fazer, tirar o Bolsonaro, essa é a minha… é meu mantra, fora Bolsonaro!
P/1 – Última pergunta mesmo. Esse projeto tem muito um objetivo, digamos assim, o nome Cotidianos, de justamente ilustrar, acho que principalmente para os mais jovens, que um governo autoritário, ditatório, ele não cai só nas pessoas que foram lá, na luta armada etc. e tal, mas que todo mundo paga por isso. Gostaria que você falasse o que você acha, o que você falaria para as pessoas que são mais jovens hoje e acham que talvez não teriam problema com o retorno de um governo dessa forma ou o governo que tá aí agora?
R - A conta já chegou e todo mundo tá pagando, todo mundo vai pagar essa conta. Eu tenho muita esperança na juventude, eu não posso chegar com 60 anos e achar que não, porque seria como pegar a minha história e jogar com sabonete, a criança e a água pela janela, então eu acho que a gente tem visto coisas incríveis. Eu trabalho em vários locais, no Amazonas, em Recife, em Porto Alegre, aqui em São Paulo, no Rio e no Amazona eu trabalho em Manaus, em Tabatinga na divisa do Peru e Colômbia, em Parintins e eu gosto sempre de observar por onde eu viajo a trabalho e ver o que… É assim, tem uma esperança sendo germinada com jovens. Eu vejo isso pelo meu sobrinho, eu vejo isso por outros jovens, têm uma esperança sendo germinada, agora as pessoas precisam entender que se a água não bateu na sua bunda, porque ela vai bater! Então, acho que a gente tem um problema muito sério, quando a gente pensa na luta de classes e quando a gente pensa uma classe média, que acha que tem, que acha que não afeta ela, porque tem esse complexo de inferioridade em relação aos ricos, eu acho que é com essa classe que a gente precisa dialogar, quando a gente olha um pouco a possibilidade de mudança, a gente vê que as regiões mais pobres têm uma resposta muito mais imediata e a gente tem um conservadorismo muito mais forte aqui no sul e sudeste, Minas, São Paulo, Rio e pegando todo o sul, que são as pessoas que têm mais grana e que acham que a sua vida não mudou. Mudou, e a água tá subindo, então assim, é com essas pessoas que a gente precisa dialogar hoje… A gente teve um aumento aqui na cidade de São Paulo de 25 mil, para 32 mil pessoas morando na rua e eu moro em Santa Cecília, a gente tem visto pessoas na rua, que são pessoas que não têm história de viver na rua, é gente que perdeu o emprego e não pode pagar o aluguel e foi para a rua, é gente que não sabe viver na rua, você vê nitidamente que tá na rua em uma situação extremamente dura, difícil, pessoas que ficaram mais pobres porque viviam do trabalho autônomo e não podia sair para vender as coisas e tudo mais, então a gente tem que pensar que não é diferente. Quando eu luto para melhorar a qualidade de ensino, é para todo mundo, quando eu luto para melhorar o SUS é para todo mundo, o SUS que o Bolsonaro tentou a todo custo destruir, é o que salvou o Brasil na pandemia da capitalidade que ele tem nas salas de vacinação em todo território. Independentes dos projetos, você tem uma resistência de algumas pessoas ainda nesses espaços e o SUS não é para pobre, o SUS é para todo mundo, para as pessoas poderem ser tratadas, serem cuidadas. Quando eu luto por saúde pública, isso é classe média tem que entender, quando eu luto por saúde pública, quando eu luto por escola de qualidade, quando eu luto por equipamento de cultura, isso é para todo mundo, inclusive para ela, não é uma coisa menor ou tem que ser vista de…Porque tem esse complexo de inferioridade, então é uma chave que a gente precisa desligar.
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