PCSH_HV747- CARLOS-RENNÓ
Entrevista: Carlos Rennó
Entrevistador: Jonas Samaúma
Data: 4 de abril de 2019
Projeto: Conte sua História HV 747
Revisado por: Jonas Samaúma
P/1 - Bem vindo, Rennó! Gratidão por estar vindo contar sua história. Queria que primeiro você contasse seu nome, local e...Continuar leitura
PCSH_HV747- CARLOS-RENNÓ
Entrevista: Carlos Rennó
Entrevistador: Jonas Samaúma
Data: 4 de abril de 2019
Projeto: Conte sua História HV 747
Revisado por: Jonas Samaúma
P/1 - Bem vindo, Rennó! Gratidão por estar vindo contar sua história. Queria que primeiro você contasse seu nome, local e data de nascimento.
R – Carlos Aparecido Rennó, nasci em 29 de janeiro de 1956, em São José dos Campos.
P/1 – E o que você sabe, assim, da história dos seus pais?
R – Meu pai nasceu em Osasco, filho do meu avô Benedito e de minha avó Iracema. Meu avô era dentista e ele e a sua mulher, minha avó Iracema, que eu não conheci, pois ela morreu logo depois de ter tido o nono filho. Meu pai tinha 13 anos. E eles tiveram nove filhos, um deles, meu pai. E, como eu disse, é um fato importante: ele perdeu a mãe quando ele tinha 13 anos. Ela morreu de tuberculose. Minha mãe era uma de quatro irmãs e sua mãe, minha avó, Rita, nasceu no norte de Minas. A família é do norte de Minas, inha família materna. Minha mãe e suas irmãs, minha avó. Embora minha mãe tenha nascido em Mato Grosso, no estado de Mato Grosso. Mas ficou lá por muito pouco tempo, indo em seguida para o norte de Minas, para a região de Montes Claros, Janaúba, Botmumirim, Caçaratiba. E meu avô materno, que eu só vi vagamente, uma única vez, era baiano, do sertão da Bahia. E meu avô paterno era nascido no Paraná. O Rennó vem do lado paterno, depois meu avô se casou rapidamente com outra mulher, com quem ele não teve filho. Eu troquei os nomes. Minha avó que faleceu chamava Clarisminda. E a que se tornou minha avó, mulher do meu avô, que se chamava Iracema. O que mais eu posso lhe falar, que gostaria de saber? A minha avó materna tem muita importância, tem uma importância especial, assim, na minha vida porque a lembrança mais remota que eu tenho é de uma cena vivida com ela. E a primeira frase que eu lembro, a mais antiga frase que eu lembro ter ouvido foi dita por ela. O que mais você gostaria?
P/1 – Qual é a frase? Você lembra?
R – A frase ganha sentido, tem seu sentido explicado se eu contar a cena. A cena foi a seguinte: eu devia ter, talvez, entre três e quatro anos e eu, filho mais velho, né, estava atravessando a rua transversalmente no sentido da minha casa, que ficava na esquina, com as mãos seguras pela minha mãe, a mão direita e pela minha avó a mão esquerda. Foi quando eu avistei, entre três pessoas, a uns três metros de distância, um homem negro, bem negro. E eu não tinha visto, até então, um homem negro. Não sabia que existia um ser da mesma espécie que eu com uma pele de coloração escura, bem diferente da minha. E aquilo, naturalmente, me chamou muito a atenção. Tanto que eu parei, segurei o passo, o andamento. Aí elas olharam pra mim, minha avó olhou pra mim e para o ponto o qual eu estava olhando e entender o que estava se passando, né? Não havia muitos negros, assim, no meu bairro, o bairro de Santana, em São José dos Campos, nessa época, enfim. Havia pessoas mestiças, mas eu nunca tinha visto, até então, um homem negro, bem escuro. E aí minha avó entendeu o que estava se passando e falou: “É, é diferente, mas nós somos todos iguais”. Então, essa é a primeira frase da minha vida. É uma frase realmente muito importante e uma cena de grande importância e que eu vou carregar comigo até eu morrer, né? Até eu ter alguma memória, teve e tem até hoje uma repercussão muito grande em mim a frase da minha avó e o sentido dela.
P/1 – E o que mais você lembra do contato com a sua avó ou com seus avós e sua família, na infância, que te marcou?
R – Puxa, mas são muitas coisas, né?
P/1 – Você brincava do quê?
R – Eu, desde cedo, me apaixonei por duas coisas: por canção popular, sobretudo a palavra dentro da canção, que me atraía muito e futebol. Então eu, na vida, teria que ser um jogador de futebol ou um compositor. Porque mais tarde também, no meio da adolescência, não só por temperamento, por personalidade, mas também por dados da minha formação cultural, eu teria que seguir algo na vida, em termos de atividade, pelo qual eu fosse apaixonado. Pelo qual eu tivesse paixão. Então, teria que ser uma dessas duas coisas. E, com cinco anos de idade, eu me lembro que teve uma festa de aniversário e eu ganhei uma festa. Eu nunca tinha tido uma festa, uma comemoração de aniversário. E eu lembro que foram muitas pessoas, tios, primos etc e eu ganhei várias bolas e passei o aniversário todo jogando bola. E, automaticamente, já gritando: “Corinthians, Corinthians, Corinthians” (risos) Que se tornou, o futebol e o Corinthians, paixões minhas, entendeu? Então, eu joguei muita bola, desde então, quando eu não estava na escola ou não estava estudando, fazendo tarefas, coisa que eu gostava muito, sempre gostei, fui bom aluno etc eu estava jogando futebol ou jogando futebol de botão, que eu também fazia times de botão. Campeonatos incríveis. Tanto que meu pai acabou fazendo pra mim, no quintal, um campinho, gramado, com trave e tal. Então, eu joguei muita bola.
P/1 – E você pensou, em algum momento, em misturar as duas coisas, em fazer composição sobre a bola, por exemplo?
R – Eu tenho uma canção que vim a fazer mais recentemente, há uns cinco, seis anos, que chama Paixão e que fala justamente da paixão por futebol. Eu fiz a letra sobre uma música do Simoninha. E, curiosamente, o Simoninha é palmeirense. (risos) E aí eu não pude dar nenhuma pinta na letra, que a letra era de um corintiano. (risos) Era simplesmente de um aficionado por futebol, né? Mas antes não me lembro de ter feito nada sobre futebol, não, em canção, entende? Eu lembro que eu joguei muita bola e que parei de jogar em uma certa altura, parei por um tempo porque, na adolescência, com 17 anos, de repente, temporariamente, o futebol se tornou algo careta pra mim. Eu tinha começado a fumar maconha. Então, aquele era um período de muito radicalismo, assim, por um lado, em alguns aspectos. Mas felizmente isso não durou muito porque os Novos Baianos, que foram muito importantes na minha formação, vieram me mostrar que as duas coisas eram perfeitamente conjugáveis, combináveis, entendeu? Futebol, música popular e samba.
P/1 – Já vamos pra sua adolescência, eu queria saber só na sua infância, que você disse que teve o contato com a canção popular, se você lembra como se deu esse contato? O que você ouvia?
R – Eu me lembro da minha mãe cantando, né? Ela cantava coisas de Dalva de Oliveira, Nelson Gonçalves, né? Uma recordação boa que eu tive. Acho que muita coisa positiva, de arte, pode advir da mãe, né? E, do lado paterno não tem ninguém artista, ninguém musical, nada. Mas do lado da família de minha mãe, tem. Tanto que eu tenho primos músicos lá no norte de Minas, em Belo Horizonte, né? Denizar Mota, excelente músico, da turma ali dos filhos do Beto Guedes também, né? O Beto Guedes, que é de Montes Claros, a região lá dos meus parentes, né? Então, eu me lembro disso e lembro de ouvir rádio, acompanhar paradas de sucesso, da mesma forma com eu ouvia os jogos de futebol, entendeu? Eu ouvia muito em rádio, tanto que minha mãe me colocou pra aprender piano. Eu aprendi três anos de piano. E não me tornei músico, mas ela via a minha musicalidade, entendeu? Ela sentia a minha musicalidade, meu gosto por música, né?
P/1 – E você lembra como foi o primeiro verso que você chegou a escrever?
R – Isso já na adolescência, né? Mas eu acho que é bom eu completar aquela história relacionada com a minha avó, porque ela teve dois desdobramentos importantes na minha primeira infância, né? Quando minha avó disse, em relação ao negro que eu estava vendo e admirando, que nós éramos todos iguais, ou seja, brancos e negros e muito possivelmente índios também porque ela tem uma parte do sangue dela indígena também, (risos) como de todos nós, né? Ou de muitos de todos nós. “Índio é nós”, como diz o slogan que surgiu no Rio de Janeiro há alguns anos. Ela lançou um conceito, né, que eu não poderia compreender na idade que eu tinha, né? Como nós somos iguais, se nós somos diferentes, né? Mas eu, com certeza, intuí o que ela quis dizer na sua humanidade. A humanidade dela foi, por mim, intuída, de alguma maneira, né? Ela, naturalmente, disse aquilo porque sabia que os negros, na nossa sociedade, eram considerados inferiores pelos brancos. Eram discriminados, né? E eu vim a entender melhor isso, compreender intelectualmente isso, dois anos depois, quando eu estava jantando com meu pai e aí surgiu um primo dele, chegou e começou a falar mal de uma pessoa. Começou a falar mal, mal, eu achando esquisito ele falando mal e aí ele finalizou a fala dele dizendo: “Um negro safado”. Então, quando ele falou isso, eu entendi o que a minha avó quis transmitir pra mim porque, no discurso dele, ele mostrava considerar as pessoas da etnia daquela figura de quem ele estava falando, inferiores, entende? Então eu vi, ali eu entendi: havia brancos que consideravam os negros inferiores, né? E aí eu entendi o que minha avó quis dizer, e eu abominei esse primo do meu pai. Chamava-se Toninho. Eu tive aversão a ele. Nojo. Asco. Entendeu? Porque eu tinha me identificado, já, com a minha avó. Eu já tinha aprendido com a minha avó que todos somos iguais, entendeu? Não adiantava aquele discurso, né? O Mandela disse uma vez que ninguém odeia ninguém, a princípio, por razão de cor, raça, gênero, religião, né? E que assim como aprende a odiar, pode aprender a amar, né? Então, eu sei disso na alma por causa da minha avó materna, né? E aí, desde então, no que diz respeito a isso, a racismo, né, eu desenvolvi uma sensibilidade para as manifestações mais sutis de racismo, precocemente. Eu me lembro que eu ouvia piadas discriminando negros e eu achava horríveis, feias, eu nunca me identifiquei com aquilo, entendeu? Aos oito anos eu lembro que eu tinha um amigo pretinho na minha classe e, na minha escola, havia poucos negros. Era uma escola cristã, assim, onde eu estudei o primário. E ele se chamava Célio, esse menino. E um dia eu combinei de ir visita-lo na casa dele, depois do almoço. Eram outros tempos, mesmo, porque uma criança saía sozinha com oito anos e ia visitar alguém em outro lugar, entendeu? (risos) Outros tempos, mesmo. Embora não fosse muito longe de casa, a cho que era umas três quadras de casa. E era uma descida, não lembro o nome da rua, que ia dar na matriz do bairro. Quando eu cheguei lá, era a frente da casa dele, tinha uma espécie de um barranco, assim, onde outras casas vizinhas tinham jardins, mas só estava a terra onde seria o jardim, tinha uma escadinha de cimento que dava para uma varanda e a varanda pra sala. Aí eu entrei, tal, subi a escada, o encontrei na varanda e vi que o chão da varanda era de terra. E eu olhei pra dentro da sala e o chão da sala também era de terra. Aí ele explicou pra mim que o pai dele estava construindo a casa e estava... como se diz?... criando assoalho, teto, entendeu? E ele fazia isso no fim de semana. O pai dele, desse Célio, né? E aí eu perguntei pra ele da mãe dele. Aí ele falou – isso me tocou muito – que a mãe dele estava trabalhando e que ele passava o dia sozinho. Então ele era uma criança como eu, de oito anos, que, ao contrário de mim, que tinha ali a mãe do lado, uma tia, uma avó e uma empregada doméstica, entendeu, me servindo. Quer dizer: me atendendo, me protegendo, próximas de mim. Ele não tinha nenhuma mulher, não tinha a sua mãe, né? Falei: “Como é que ele pode, poxa, passar o dia todo sozinho?”. E eu lembro que ele estava com um ranho aqui. Ele estava resfriado. Sabe ranho? Catarro. Aqui, sabe?(Apontando para o rosto)
Isso me impressionou muito, assim, porque ali eu comecei a ver as diferenças sociais relacionadas com as diferenças raciais.
P/1 – Ele era negro?
R – Negro. Era um pretinho, mesmo. O Célio. Agora, antes disso, entre os meus cinco e os 13 anos, entre os dois fatos que eu contei aqui relacionados com racismo, teve outro muito importante, com quatro anos de idade, assim, que eu vivi. Com quase cinco. Que é relacionado com sexo. Eu tinha saído com a minha mãe e minha tia, uma tia irmã de minha mãe, que morou um tempo, até se casar, em casa. Marilene. Minha mãe, Marlene são, ambas, vivas. Aí saímos, fomos visitar um vizinho, duas casas depois da minha. Era um casal que tinha quatro filhas, mulheres e, se não me engano, a terceira chamava-se Carmen Lucia. E ela tinha uns três anos. E eu fiquei brincando com ela. Aí a minha tia Marilene olhou pra nós dois e comentou (risos) com a minha mãe e acho que a mãe das meninas, né: “Olha, os dois estão namorando”. E, quando ela falou isso, eu, caipiramente, rejeitei aquilo com vergonha, entendeu? (risos) Mas por dentro estava gostando muito. Aí, quando eu voltei pra casa e me deitei - até fui dormir um pouco mais tarde esse dia, eram umas dez horas da noite – eu estava com uma excitação por ter brincado com a Carmen Lucia. E aí meu pau ficou duro e eu fiquei encasquetado com aquilo e me perguntei: “O que tem uma coisa a ver com a outra? Por que meu pau está duro?”. As palavras não eram essas, né? “Por que meu pau está duro de eu pensar na Carmen Lucia?” (risos) E fiquei, assim, intrigado com aquilo, impressionado, entendeu? Admirado. Mas na verdade era uma excitação que não tinha um foco genital, entende? Era uma excitação total, entendeu? Que se refletia no pau, entendeu? É isso que eu percebi, que ficou da minha percepção disso que eu vivi e nunca esqueci, né?
P/1 – Você chegou a ter irmãos, também?
R – Sim, eu sou o mais velho de seis irmãos de sangue e depois meus pais adotaram mais um, Gilberto. Depois de mim Maria do Socorro, Márcia Cristina, Margarete Aparecida, Sandra Regina e José Ricardo. Todos Rennó. Com o sobrenome Rennó.
P/1 – Você acha que teve algum deles que chegou a te influenciar pra ir pra esse canto, também, que você trabalha hoje?
R – Não. O mais velho, né? Eu o mais velho. Eu, Carlos Aparecido, eu falei, né? Então, o Aparecido tem um peso aí, né? Porque Aparecido é um nome de conotação religiosa, né, por causa de Nossa Senhora Aparecida.
E é influência da minha avó, que era uma beata. Ela era católica, assim, bem católica, né? Tanto que todos os filhos, todos os irmãos, têm um nome cristão por influência dela. No meu caso, Aparecido, que é a virgem brasileira, Aparecida, do Vale do Paraíba, região da qual eu sou e uma das poucas virgens negras. A virgem Nossa Senhora brasileira tinha que ser negra, né? (risos) Talvez tivesse que ser, mesmo, negra e é uma das poucas Nossas Senhoras negras que existem.
P/1 – E o que você conta da sua adolescência? Qual que foi, chegou a ser o seu primeiro namoro?
R – Eu tive uma grande paixão por uma menina chamada Sonia Darrigo, mas só foi sofrimento. Namorei um pouco, mas aí ela quis, um mês, assim, terminar e foi um ano de sofrimento, cara. Foi de doze pra treze anos. Um puta sofrimento. (risos). É. Fora que eu tive uma paixão platônica, evidentemente, quando eu tinha seis anos e vi uma dançarina dançar. Uma dançarina filha de uma parente de uma amiga da minha mãe chamada Maria. Uma parente, não. A Maria era amiga da minha mãe, uma pessoa da vizinhança, né, que teve dois filhos, que eu me lembro bem, o Nei e o Juju e essa Maria tinha uma sobrinha que morava em São Paulo e que foi uma vez lá, visita-la e dançou. Aí eu fiquei louco.
P/1 – Com seis anos?
R – Com seis anos. Ela devia ter uns 14, 15. (risos)
P/1 – E da sua escola, o que tu lembra que você vivia na escola? Teve algum professor que foi importante na sua trajetória? Uma professora.
R – Sabe que eu não me lembro muito dos nomes dos professores que eu tive, sabe? Mas eu me lembro... bom, primeiro eu tive uma professora que me deu aula... como meus pais observaram que eu era inteligente e já tinha começado a aprender a ler sozinho, aí eles me puseram pra ter aula particular. Eu tive aula particular antes de ir pra escola, com uma professora chamada Dona Zilá. E eu comecei a aprender a ler pela televisão. Eu lembro a primeira palavra que eu decifrei, que foi a palavra Omo, sabão em pó. Porque os comerciais eram muito rudimentares. E aí, no comercial do sabão em pó Omo aparecia a palavra Omo grande. Omo, eu vi que aquilo era Omo, o O, né? Enfim, daí pra mãe, pai, foi um passo.
P/1 – E você gostava de ler?
R – Muito. Gostava.
P/1 – Que livros você lembra, assim, na infância?
R – Eu gostava de enciclopédias, dicionários. Tanto que meu pai comprou enciclopédia. Tive O Mundo da Criança, o Tesouro da Juventude, além da enciclopédia Barsa e da Delta Larousse. Eu lembro muito bem dessas.
P/1 – Você ficava lendo enciclopédia?
R – Ficava. Gostava muito.
P/1 – Voltando, assim, quando foi que chegou, de fato, você começar a escrever, mesmo?
R – Isso já foi na adolescência. Eu, quando me mudei pra Campinas com a minha família, no início dos anos 70, começou o desbunde. Na verdade, o desbunde, pra usar um termo desse período, que designava a mudança de comportamento, de visão, sabe, pra um lado mais contracultural, de esquerda que, na verdade, começou quando eu fiz uma viagem careta para o exterior. Para a Europa. Eu fiquei 45 dias em uma daquelas turnês, Stella Barros Turismo e eu fui com um amigo, filho de um amigo de meu pai na época. E que foi o Otávio Frias de Oliveira Filho, filho do, na época, dono da Folha de São Paulo. Porque eles tinham uma granja em São José dos Campos, pra onde eles iam no fim de semana. E acho que meu pai fez algum negócio com ele e aí o velho Otávio convidava meu pai pra ir almoçar lá no fim de semana e eu fui junto e acabei ficando amigo do Otávio, do Otavinho e aí pintou essa viagem, meu pai topou, resolveu me dar essa viagem e eu fui com o Otavinho. Aí eu conheci, na viagem, aquelas duas mulheres que você conheceu comigo outro dia lá na Casa Jaya. As duas irmãs: Ana Helena e Ana Flora Martinez Corrêa, sobrinhas do Zé Celso Martinez Corrêa. As duas, sobretudo a Ana Helena, virou minha cabeça, assim, porque ela era uma figura incrível. Em 1971 uma menina de 14 anos, né, que fumava maconha, era marxista e já tinha transado. Realmente, era um negócio, assim, fantástico, né? Ela mudou tudo, me apresentou Caetano, Gil, Chico Buarque, que eu já conhecia, mas não era fã. Até então eu era fã de Roberto Carlos, né? Ali eu, nos meus 14 anos de idade.
P/1 – Você fumou com 14 anos também?
R – Não. Mais tarde. Não fumei com ela. Nessa viagem, não. Então ela era incrível, fascinante, louca, pra usar um termo da época e aí, realmente, eu não fui mais o mesmo. (risos) Nunca mais fui mais o mesmo, né? E essa viagem foi muito importante por isso e aí, pouco depois, minha família se mudou de São José dos Campos para Campinas e em Campinas eu conheci um pessoal doido, sabe, que já estava em outra. Gente que se pintava, saí na rua pintado, em pleno regime ditatorial de Emílio Garrastazu Médici. Aquela repressão. E tomava drogas. Aí eu comecei a fumar maconha e não me dediquei muito a drogas porque felizmente nunca tive muita estrutura pra drogas, não, né? Mesmo maconha, fumei um ano, fumava ali um pouco, fui fumar mais quando minha família, em seguida, dois anos depois, se mudou pra Mato Grosso. Na época, Campo Grande. Onde eu também tive umas experiências, poucas, mas muito boas experiências com drogas, né? Com LSD, que eu tomei três vezes. Uma vez foi marcante demais. Mescalina também, né? Mas essa mudança pra Campinas foi muito importante, né, porque era um pessoal, que eu conheci, que tinha uma cultura diferente, entendeu? Eram fãs do Caetano, Gil, aqueles que se tornaram meus ídolos. E que foram determinantes na minha escolha profissional, na minha formação cultural e em desdobramentos que a minha vida veio a ter depois. Hoje, por exemplo, a minha alimentação basicamente macrobiótica, a minha prática de yoga – eu sou yogin, pratico há mais de 20 anos, 5 vezes por semana, em qualquer situação – são, na verdade, reverberações da influência, extensões do que eu aprendi e do que eu apreendi daquilo que esses grandes ídolos me transmitiram, né? E isso começou em Campinas. E aí começou também a ambição de querer fazer poesia. Eu lembro que eu comecei a escrever algumas coisas que eu aspirava que se tornassem poemas ou contos. Eu me lembro que eu comprava revista Rolling Stones, passei a comprar a revista Rolling Stones, que tinha um significado muito mais radical do que tem a revista hoje. Era a bíblia da contracultura no Brasil e nos Estados Unidos também. Tanto que teve vida curta. Mas figuras importantes da contracultura brasileira como Luiz Carlos Maciel, por exemplo, escreviam na Rolling Stones. E eu comprava. E ali eu li um poema que me fez amar poesia. Eu não amei poesia na escola, não amei Drummond, nada na escola. O ensino de poesia era muito ruim, sabe? Além de deficitário, né? Não tinham professor amante de poesia, que me transmitisse amor por isso, que me despertasse isso, né? A poesia que eu gostava, de que eu sempre tinha gostado, era de canção. Mas eu vi ali na Rolling Stones um poema de Allen Ginsberg, entendeu? Uivo. Howl. E aquilo, pá, me despertou um sentimento poético, sabe? Aí eu comecei a querer escrever poemas, né?
P/1 – Na hora que você leu?
R – Não, não. Na hora despertou o gosto por poesia. Não tenho certeza se ali que eu comecei a querer escrever poesia, mas nesse ambiente todo que eu descrevi, entendeu, foi que veio esse despertar. Eu comecei a escrever umas coisas. Aí minha família se mudou para Campo Grande, quando eu tinha 17 anos. E aquilo foi péssimo pra mim porque eu já estava naquele ambiente, sabe, de gente louca, gente que tinha outra visão das coisas, entendeu? Não era gente embotada, pra usar outro termo do período, entendeu? Gente cabeluda, sabe? Eu também passei a usar cabelo comprido. Minha família se mudou para o Mato Grosso e eu custei a me acostumar, mas logo conheci uma moçada maluca também e fui parar na família Espíndola. E comecei a namorar a Alzira Espíndola. E ela falava de dois irmãos, um que morava no Rio, Geraldo Espíndola, que tinha uma banda de rock no Rio e outra irmã, que morava em Cuiabá e estudava Psicologia e eu já senti ali o gosto pela música, a musicalidade da família e aquilo me atraiu, aquele ambiente.
P/1 – O que te atraiu no ambiente?
R – A anticonvencionalidade. E o gosto por música, né? Gosto por arte. Porque o irmão mais velho, o Beto Espíndola, era um nome da pintura regional e nacional. Já tinha exposto em Veneza. Na Bienal de Veneza, entende? A mãe, a Dona Alba, dos irmãos Espíndola, era uma figura incrível, super sensível, né, que transmitiu artisticidade para os filhos. Bom, aí, um belo dia, vem a Tetê de Cuiabá, onde ela morava, pra Campo Grande, pra passar as férias. Figura de quem a Alzira já tinha me falado muito: “Minha irmã canta, toca”. Aí, meu caro, quando a Tetê pegou a craviola, começou a tocar e a cantar e a fazer uns vocalizes de umas melodias sem letra imediatamente eu decidi que eu ia ser letrista. Decidi o que eu ia fazer na minha vida. Nunca tive problema de escolha profissional, nada. (risos) Naquele momento eu decidi que eu ia ser letrista de música. Eu nem sei se eu tinha, já, as referências de Torquato Neto, Ronaldo Bastos, que vieram a se tornar modelos pra mim. Porque eles não eram compositores músicos, né? Torquato Neto foi, ao lado de Capinam, dois letristas, só escreviam letras no tropicalismo, do grupo baiano, embora piauiense, né? E o Ronaldo era um dos letristas do grupo mineiro, junto com Fernando Brant, Márcio Borges, né? Depois Murilo Antunes também. Então, essas figuras foram muito importantes pra mim: Waly Salomão, né? Porque eram só letristas. E tinham um grande gosto por poesia. Mas eu não sei se nesse momento em que a Tetê aparece, 1973, possivelmente eu já sabia da existência. Da existência, com certeza, mas já sabia, já tinha uma consciência de que havia essas pessoas que não tocavam, não eram compositores, músicos e que escreviam letras, né? E que eu poderia ser um deles. De todo modo, isso só se cristalizou, essa ambição só se cristalizou quando a Tetê cantou pra mim, entendeu e eu tive vontade de botar palavras naquelas frases melódicas que ela cantava, né? Agora, claro, aí eu tive, em seguida, já cresceu pra mim essa aspiração, inspirada também nesses caras. Os parceiros. Ronaldo Bastos, parceiro do Milton Nascimento. Depois, de Beto Guedes. Ele era o letrista. É isso que eu quero ser. Torquato Neto, né? Poeta, mas de canção, entende? Agora, um outro fator foi determinante: foi preciso também, além disso, desses letristas e da Tetê, foi necessário pra que eu abraçasse a carreira de letrista, que eu decidisse seguir nessa, que eu conhecesse e reconhecesse na obra de alguns compositores de canção, verdadeira poesia. Então, foi preciso sobretudo Caetano e Gil e, em um segundo momento, Chico Buarque, entendeu? A descoberta deles. E a percepção de que os que eles faziam era poesia de qualidade. Cantada. Isso também foi importante. Porque se não houvesse essa referência, eu também não sei se eu iria me tornar letrista. Porque o meu negócio de ser letrista, embora eu nunca tenha feito questão de ser chamado de poeta, assim, a letra de música só fazia sentido pra mim se ela fosse uma modalidade de poesia.
P/1 – Nossa! E aí você lembra... isso você tinha uns 17 anos, né?
R – É. 17, 18. Aí, todas essas coisas que eu estou contando, 17, 18, 19, né?
P/1 – E aí, como se cristalizou, mesmo, como a primeira letra?
R – Cara, eu não sei qual foi a primeira letra, mas foi pra uma música da Tetê ou pra ela musicar. Eu lembro de uma chamada... ela sabe melhor do que eu isso porque ela tem lá os caderninhos. Incrível! (risos) É Barco Prateado:
♫ A lua está ao meio
E em seu barco eu estou
Do outro lado as estrelas cintilam
Mas qual o que!
É na lua que hoje eu viajo
(risos)
Ah, vida boa
Nesse barco prateado
Ah, vida voa
Nesse barco prateado
Sinto que meu coração
Vai morrer de rir
(risos)
Sinto me dissolver
Nessa lua amiga
Ah, vida boa
Nesse barco prateado
Ah, vida voa
Nesse barco prateado ♫
Essa foi uma das primeiras letras. (risos) Talvez tenha sido a primeira.
P/1 – E na hora que você criava, você já criava pensando na música?
R – Esse eu escrevi e ela musicou. Mas logo eu passei a escrever sobre melodia dela, que ela fazia.
P/1 – E era sempre pra ela?
R – É. Não, mas teve coisa com a Alzira também. Depois coisa com o Celito. E aí, passado algum tempo, já com o Geraldo também. Olhos de Jacaré, que entrou no segundo disco solo da Tetê, que foi um marco, Pássaros na Garganta, já de 82, já nós aqui em São Paulo, participando do que se chamou a vanguarda paulistana, né? Aí ela já tinha me apresentado o Arrigo Barnabé, que foi outro marco muito importante, né? Porque nós viemos de Mato Grosso, eu me casei com a Alzira, ela tinha ficado grávida, eu voltei pra Campinas e ela veio comigo, né, de Mato Grosso pra São Paulo, pra Campinas, vivemos um ano lá e a Tetê passava, às vezes, um tempo lá em casa e quando nós estávamos lá, um dia a Tetê levou o Arrigo e o Paulo Barnabé, irmão do Arrigo, lá em casa, pra nos conhecer. E aí eu lembro que o Arrigo já meio crítico, assim, criticando algumas coisas minhas, assim, foi interessante porque não havia essa discussão entre os Espíndolas. A discussão da criação estética, entendeu? E aí, quando eu vim pra São Paulo, já, fui influenciado pelo Arrigo, foi uma convivência muito importante. Ele mais velho, né? Porque aí é que eu me encontrei como artista. Eu descobri melhor quem eu era como artista com o Arrigo. Porque era alguém que pensava mais, que usava o racional para ver, analisar e criar.
P/1 – E você, só voltando um pouco antes, nesse período que você decidiu ser letrista, que você tinha uns 18 anos, onde você estava?
R – Estava em Campo Grande, Mato Grosso.
P/1 – Em Campo Grande, como era sua vida, assim?
R – Olha, foi uma coisa muito importante a mudança pra Mato Grosso, por causa da força, da presença da natureza. Isso teve um efeito em mim, assim, muito grande. Muito. Eu vinha de uma cidade do interior mais industrial, São José dos Campos, né? Que eu vi triplicar de população até os meus 15, 16 anos. Era estância climática. Teve um crescimento super rápido, provocado pela industrialização. Me mudei em seguida pra Campinas, uma cidade maior, era a maior cidade do interior de São Paulo, bastante industrial e aí fui para Campo Grande, Mato Grosso, incrível. Aí eu virei hippie, mesmo. Mesmo. (risos) Em termos contraculturais, vai. Não que eu tenha aprendido e passado a fazer artesanato, mas ideologicamente virei hippie. (risos) Um adepto da contracultura no sentido de valorizar a natureza, né e desvalorizar aquilo que a sociedade de consumo propugnava, né, de criticar os valores da sociedade de consumo. Ao mesmo tempo que meus ídolos também me ensinavam que o grande problema do Brasil era a desigualdade social, resultado de uma...
P/1 – Eu queria entender como você caiu nesse sendeiro de música, assim? Que você falou que foi conhecendo um monte, um atrás do outro, mas como é que foi? Foi a namorando? Como você estava nesse mundo?
R – Namorando a Alzira, que você diz?
P/1 – É.
R – Porque eu conheci a Alzira... é interessante, loucuras de jovem, né? Eu me apaixonei pela Alzira - foi minha acho que terceira paixão – a 20 metros de distância, a primeira vez que eu vi (risos) por causa do cabelo dela (risos). Era um cabelo black. Ela usava um cabelo black, grandão, entendeu? E, veja, eu fui procurar meu primo porque meu tio Edgar também foi com meu pai Rubens pra Mato Grosso. Eles formaram uma sociedade lá, né? Então, foram as duas famílias. Então, meu primo, um ano mais novo, o Marcos, também estava na mesma onda minha: fumar maconha, procurar os loucos da cidade. Os malucos, entendeu? Aí eu me lembro que eu fui em uma festa, assim, de jovens e eu vi de longe uma figura baixinha, meio que pulando, assim, sabe? E com um cabelo black, que era o cabelo da Angela Davis. Com 17 anos eu tinha comprado, em Campinas, um álbum. Aliás, eu comprava álbuns dos meus ídolos pra saber como é que ia ser minha vida nos meses seguintes. Cada álbum ia levar a minha vida pra outra... ia trazer novidades, entendeu, profundas. Transformações de comportamento, de visão de mundo. Assim, entende? E um desses álbuns do meu ídolo John Lennon foi Some Time New York City, que era um álbum duplo, vinil, maravilhoso, político, engajado. Não é à toa que fiz Demarcação Já, manifestação. Tudo isso é reverberação de, incialmente, Some Time New York City, que era um álbum super político, cada canção tinha um tema político daquela época. Woman is the Nigger Over the World, A Mulher é o Negro do Mundo, uma canção feminista de John Lennon. Depois a Cássia Eller gravou aqui e uma das canções chamava Angela. E as letras no álbum apareciam nas transcrições e eram encabeçadas por uma foto, como se fosse... e as letras pareciam artigos de jornal. O título da canção era o título da matéria. E essas coisas eram encimadas por uma foto, que ilustrava a matéria. No caso, a letra. E em cima do nome Angela, da canção Angela, para Angela Davis, vinha a foto da Angela Davis. Aquela foto histórica dela fazendo assim, falando, sabe, discursando e eu me apaixonei por aquele cabelo, pela causa negra dos Panteras, antirracistas. Meu ídolo, John Lennon, era a favor daquilo e eu tinha que ser também, entende? E eu fiquei apaixonado por esse cabelo. Aí, quando eu vi a Alzira, eu me apaixonei imediatamente por ela por causa do cabelo, que era o cabelo da Angela Davis. Então, daí eu a conheci e ela era legal. Os irmãos músicos. Aí, logo... entendeu? E daí pra frente músico, artista. Se tornaram meus amigos, meus companheiros, meus colegas. A minha turma, as minhas turmas.
P/1 – E aí, quando você entrou nessa turma, assim, você lembra de alguma história que, realmente, você fala: “Essa aí foi marcante nesses anos”?
R – Uma, especificamente, agora não me ocorre. Mas teve várias, né? Se eu for lembrar...depois, se me ocorrer...
P/1 – Aí você se apaixonou por ela, começou a namorar, começou a escrever as letras e ficou morando lá em Mato Grosso, né?
R – É. Por um ano eu... porque minha família voltou pra Campinas passados dois anos. Aí, por um ano, eu fiquei passando meio mês... passava uma quinzena em Campinas e uma quinzena em Mato Grosso, assim e namorava e tal. Até que fiquei por lá e a Alzira ficou grávida e tal.
P/1 – A Alzira ficou grávida de você?
R – É.
P/1 – E aí? Não rolou ou rolou?
R – Rolou e nós nos casamos pras famílias, né? Nos casamos lá em Campo Grande, meus pais foram pra lá e tal, para o casamento e daí, passado um tempo curto, nós viemos pra Campinas. E um ano também moramos em Campinas e viemos pra São Paulo. Moramos incialmente na Barão... uma travessa ali do Minhocão. Esqueci o nome agora. E em seguida viemos pra Mourato Coelho, 840. (risos) Aí já éramos o grupo: eu, Alzira, Tetê, Geraldo, Celito, todos. Já tinham vindo também.
P/1 – Isso em que ano?
R – Isso já em 79.
P/1 – E por que vocês decidiram vir pra São Paulo?
R – Ah, pra seguir a carreira artística, né? Tinha que vir.
P/1 – E qual foi a diferença de chegar aqui, assim? O que você sentiu?
R – Campinas já era uma coisa estranha pra nós, que tínhamos vindo de Mato Grosso. Tínhamos deixado aquela força da natureza, né, para um lugar urbano, cheio de poluição, né? Mas ao mesmo tempo sabíamos que aqui, por outro lado, era mais respirável porque o ambiente artístico se desenvolvia aqui, né? E era preciso vir pra cá.
P/1 – E o que você achou daqui quando você chegou? Você gostou do movimento?
R - Não, eu não gostava porque eu não gostava do trânsito, da poluição, né? Mas fui me acostumando. Porque havia compensações, né?
P/1 – Você fez alguma letra sobre isso, a sua vinda, essa mudança?
R – Não. Mas minhas canções eram, predominantemente, ecológicas, né? Canções em que eu cantava a natureza, né?
P/1 – Tipo qual? Qual foi uma que você curtiu muito, assim?
R – As canções que eu fiz para o disco... não fiz para o disco, mas que acabaram entrando no disco. Pássaros na Garganta, da Tetê, né? Que foram Amor e Guavira, que fala de uma paisagem de Mato Grosso; Cuiabá; Olhos de Jacaré, que fala do pantanal; e Pássaros na Garganta. Aí já fala de São Paulo. Mas fala de São Paulo em relação à natureza. Pássaros na Garganta corresponde a isso que você quer saber.
P/1 – E qual foi a primeira vez que você ganhou dinheiro fazendo letra?
R – Aí eu começo a ganhar algum dinheiro, no começo dos anos 80, com as músicas com a Tetê, aí com o Arrigo também, a gente faz outros sons, que concorrem a um festival da Globo em 82, se não me engano. 83. 82. MPB Shell, se eu não me engano. E depois vim a ganhar dinheiro, mesmo, com Escrito nas Estrelas, que foi uma canção muito popular, venceu um outro festival da Globo em 85 e se tornou uma das músicas mais populares daquele ano. Que foi um grande estouro. Com a Tetê. Mas composta com o Arnaldo Black, que era o marido dela. E que era, antes de mais nada, um amigo meu que eu apresentei pra ela. Eu fui o Cupido.
P/1 – E você estava buscando o que, na vida, interiormente, assim?
R – Estava buscando me realizar como artista, como letrista. Ao mesmo tempo tinha a necessidade da obtenção de meios de sobrevivência, né, já que o trabalho artístico, no meu caso, os meus ganhos como artista advém, sobretudo, de direitos autorais. Então, isso não me rendia o suficiente pra viver, né? Aí eu dei aula de inglês, escrevia como jornalista em revistas, trabalhei na Folha de São Paulo uns três anos e meio, quatro anos, na década de 80.
P/1 – E como é que foi isso?
R – Foi, por um lado, terrível (risos) pra mim porque consumia muito a atividade na redação, entende, diária. E eu, pra compor, sempre precisei de tempo. E esforço, né? Nunca fui de fazer coisas rápidas. Não sou, não tenho esse talento. Na verdade, eu acho que eu não tenho, realmente, talento. O que se denomina talento por excelência. Os meus parceiros, sim. Eu sou mais esforçado. O meu trabalho é fruto, mais, de esforço, do que de talento. Isso, a princípio, é uma desvantagem, né? Isso significa, de certa forma, uma inferioridade, mas apenas de certa forma, porque o que eu aprendi é que as pessoas talentosas tendem mais a se acomodar no seu talento. O esforçado, como ele não tem aquele talento, ele vai se empenhar sempre pra fazer algo que tem um lance novo, que ele vai trabalhar por aquilo e nisso ele acaba podendo fazer coisas até superiores a muitas coisas que o talentoso faz. Eu digo essas coisas com base em uma vivência minha e também na identificação com alguns artistas do meu convívio que são como eu, caso, por exemplo, do Arrigo primeiro, mas não só e com base também no que um poeta muito importante na minha formação disse a respeito disso. Essa diferenciação entre artista talentoso e artista esforçado vem do João Cabral de Melo Neto, que foi um poeta muito importante na minha formação. Pernambucano, né? Ele, racional, não acreditava somente na intuição. Não é um artista desse tipo, né? Tudo é construído, elaborado. Não é à toa que ele vai se identificar nem com o arquiteto, mas com o engenheiro. Ele tem um poema, O Engenheiro e ele faz associação entre o poeta e o engenheiro, né? (risos) Enfim, ele que disse isso, né, que há os talentosos e os esforçados e que ele era um esforçado. (risos) Então, eu nunca fiz coisas rapidamente, minhas coisas são sempre trabalhadas, buscadas, procuradas, caçadas e, por causa disso, o ato criador, a composição exige tempo de mim, entende? Eu vejo, admiro parceiros meus que fazem, de repente, coisas rápidas. Chico César, Arnaldo Antunes, Lula Queiroga e coisas ótimas, entendeu?
Mas não é meu caso. E, pra quem trabalha assim, cria dessa forma, ter que dedicar sete horas por dia em uma redação de jornal, pensa, estressante muitas vezes, entendeu, como é o ambiente de jornal diário grande, né, então foi um período difícil pra mim. Difícil, mesmo. Em que muitas vezes eu me vi e me senti infeliz, né?
P/1 – E aí você trabalhava lá e conseguia escrever saindo de lá ou mais ou menos?
R – Pouca coisa escrevi enquanto estive lá.
P/1 – Mas você tinha prazer escrevendo os textos?
R – Eu não escrevia muito, mais editava.
P/1 – E aí você ainda estava com a Tetê?
R – Não. Eu tinha sido casado com a Alzira. Não com a Tetê. Não, eu já estava em outro casamento. Que iria produzir um outro filho. Porque eu tive com a Alzira a Iara, né? Que é cantora, compositora e que tem o nome artístico de Iara Rennó. E tem um outro filho que é cineasta, de outro casamento, Drummond Rennó.
P/1 – E aí, como é que foi que nasceu? Como é que foi se tornar pai? Como você sentiu que foi a diferença quando veio um filho?
P/1 – Eu sempre tive comigo que eu ia ser pai, entende? Quando a Alzira ficou grávida nem passou pela minha cabeça a ideia de aborto, entendeu? De abortar. Eu sempre tive claro que iria fazer parte da minha realização pessoal a paternidade. Então, mesmo tendo sido cedo... eu me tornei pai aos 21 anos, a Alzira tinha 20, 19, né? Então, me tornar pai foi um fato importantíssimo que veio ao encontro de algo a que eu já aspirava naturalmente, que fazia parte do meu projeto de realização como pessoa humana, entende? Diferentemente de outras pessoas que não encaram assim. Homens e mulheres que não veem em ter filho uma coisa importante. Pra mim, não. Pra mim é importante. Se eu falo em ancestralidade, né, isso implica reprodução, entende? Eu quero ter descendentes. É uma coisa de conservação, uma coisa forte pra mim, isso. Tem um significado muito grande. Eu respeito muito as pessoas que não têm esse sentimento, mas no meu caso é muito clara a relevância disso.
P/1 – E como se seguiu a sua vida? Você ficou quatro anos na Folha e estava escrevendo pouco, né? Daí, o que aconteceu?
R – Aí pintou uma possibilidade de sair lá e sobreviver por um tempo e eu fiz isso.
P/1 – Mas aí você continuou em São Paulo?
R – Continuei.
P/1 – E como é que se desenrolou sua vida?
R – Aí eu passei a viver mais de direitos e também como jornalista, mas escrevendo, fazendo freelas. Mesmo na Folha eu escrevia. Tenho muitos artigos lá publicados posteriormente ao período que eu trabalhei na redação, que eu fui funcionário na Folha. E outras revistas: Bravo, enfim.
P/1 – Sabe o que eu queria que você me contasse? Em algum momento, algumas letras dessa época que você fez, como nasceu? O que estava acontecendo que você fez aquela letra? Qual que é uma que você gosta bastante dos anos 80?
R – Bom, Escrito nas Estrelas, embora artisticamente falando seja inferior a outras minhas, ela tem um peso muito grande e ela é fruto de uma identificação minha com a linguagem mais popular, né? Ela é quase brega, a canção e eu fiz a letra sobre a música do Arnaldo Black. Quando o Arnaldo me deu a música, eu senti que ali eu poderia escrever uma letra que, junto da música, se tornaria uma canção popular. Embora minha formação seja artística, literariamente sofisticada, também tem o elemento popular, Roberto Carlos, iê-iê-iê, entende? Então, eu senti na melodia do Arnaldo, a possibilidade de criar algo que correspondesse a esse lado meu. E eu fiz já no feminino a letra pra Tetê cantar porque pensando na voz dela, mas com um sentimento, na verdade, que era meu. Que era um sentimento de amor que eu vivia. Tanto que ela foi cantada até pelo Peninha. Sabe o Peninha?
P/1 – Não.
R – Não? O cantor e compositor Peninha, que fez Sonhos: “Tudo era apenas uma brincadeira e foi crescendo...” e fez também... como é que é aquela que o Caetano gravou também? “... no silêncio do quarto eu fico imaginando nós dois”, sabe? É um grande compositor popular, mesmo. Coisas populares. O Peninha veio a cantar Escrito nas Estrelas no masculino. Então, isso foi assim muito inspirado por uma vivência amorosa com a mãe do meu filho, Ian.
P/1 – Você disse que lá atrás você pirava nos caras tipo Gil e Caetano. Como foi pra você conhece-los depois, as pessoas? Em que momento você foi conhecer os dois? Chegou a conhecer?
R – Sim. Eu sou amigo deles. Tenho uma amizade com eles. Não sou tão próximo, mas com o Gil eu fiz um livro. Gilberto Gil, Todas as Letras. Que, no que diz respeito ao meu trabalho no livro, ele combina o compositor com o jornalista. E o pesquisador. Porque o livro reúne as letras dele, das canções todas e comentários sobre as gêneses das canções. Isso nós gravamos, né? Então, nós gravamos umas 60 horas, né, de conversa. Aí ele me contou como fez, porque fez e os comentários aparecem no livro. E ele contou respondendo a questões que eu colocava como compositor, né? E como jornalista, como pesquisador, né? Mas eu vim a conhecer o Gil, eu entrevistei o Gil quando morava em Campinas ainda. Não. Eu, já naquele período em que eu fiquei entre Campinas e Campo Grande, tinha uma coluna em um jornal de Campinas, aí eu entrevistei o Gil lá em Campinas, quando ele foi fazer um show na Fonte São Paulo Clube de lá. Eu me lembro disso. Aí vim a conhecer o Caetano pessoalmente alguns anos depois, aqui em Campinas, em 79. Eu conheci o Caetano lá, após um show que ele deu, fui no hotel falar com ele e foi na mesma noite em que eu conheci o Zé Miguel Wisnik e o Zé Miguel Wisnik o conheceu também.
P/1 – E o que mudou na percepção sua como artista, ter esses encontros? Por exemplo, esse de quantas horas? 80 horas?
R – 60 horas. Não me mudou, assim, como artista. Foi muito bom, muito agradável ouvir as histórias do Gil contando por que fez, as motivações de ordem pessoal, técnica, comportamental, política, social, amorosa, que o levaram a criar as canções. Por isso foi ótimo. E depois também vê-lo, compor com o Gil, o Gil gravar uma parceria nossa chamada Átimo de Pó no álbum Quanta; o Caetano gravar uma versão minha para o português de um clássico de Cole Potter, já que parte do meu trabalho como letrista é voltada para recriação em português de canções americanas clássicas do período anos 30, 40, 50, do século passado. Eu produzi dois discos com essas versões, nas quais eu aplico critérios de tradução de poesia propriamente dita, literária, sobretudo a obra de tradução dos poetas concretistas, que é um critério rigoroso de tradução, que eles aplicaram na obra deles de tradução de grandes poetas universais e que eu busquei empregar no campo da canção, influenciado por essa obra de tradução deles. E aí fiz dois discos e, no primeiro deles, com versões e canções de Cole Potter e George Gershwin, o Caetano gravou uma versão que eu fiz de Its de Lovely chamada Que de-lindo. Isso também é muito bom.
P/1 – Qual que você acha que foi a letra que te levou pra situação mais louca? Mais diferente. Porque tem, por exemplo, os livros que te levam para um lugar maluco, mesmo. Você não tem algumas coisas assim? Alguma letra que você faz que fisicamente gera alguma história que você fala: “Nossa!”
R – Eu tenho algumas letras longas, até por influência de Cole Potter, esse compositor americano e também de Bob Dylan que, a partir de um momento, passa a desempenhar um papel importante na minha formação e aí, por exemplo, eu tenho uma canção que é importante, muito importante na minha trajetória, que é Todas Elas Juntas em um Só Ser, com o Lenine. É uma canção de amor, enumerativa, de 120 versos, que ele musicou e que, tal como está no meu livro Canções, lançado pela Editora Perspectiva, tem um prosseguimento, tem Todas Elas Juntas em um Só Ser número dois, que ainda não foi musicada, mas que eu espero que seja em breve pelo Chico César, talvez com o Zeca Baleiro. A número três, já musicada pelo Felipe Cordeiro e com uma gravação que, em si, inclui no álbum digital que está embutido no meu livro. Poxa, eu devia ter trazido esse livro. E a número quatro, todas na mesma extensão, 120 versos. E ainda uma última, né, que ainda vai ser musicada, menor que faz as vezes de uma coda, uma cauda, assim, sabe? E isso totaliza 520 versos. São 120 vezes quatro, 480, mais 40, 520 versos. Então, essa letra é um exemplo de uma criação minha que me levou pra (risos) pontos que eu não imaginava, entendeu? E que, no seu conjunto, essas letras são fruto de uma grande pesquisa, de um grande trabalho também, que foi me levando pra regiões as mais díspares da arte da canção popular mundial. Porque ela é bastante... entra de tudo. As alusões, as referências vão do alto ao baixo padrão, digamos assim, né, do bom ou mau gosto. Tudo entra. Sem preconceito nenhum ali.
P/1 – E como foi? Você teve algum método de pesquisa pra fazê-la?
R – Ah, o método de pesquisa! Pesquisando em uma série de compositores as canções de amor que tinham nomes de mulher e as que tinham nome de tipos de mulher: crioula, lourinha, mulata assanhada, sabe? Enfim, pesquisando tudo isso. Pesquisando isso assim, exaustivamente. É fruto de muito, muito trabalho. Até porque, quando eu mandei a letra para o Lenine, ela tinha 400 versos. E nós escolhemos ali, pá, pá, quais as partes. 400 versos, ou seja, 20 partes porque cada parte tem 20 versos. Cada parte é formada por duas estrofes de oito, normalmente decassílabos às vezes dodecassílabos e um pseudo refrão, né? Porque é meio cambiante. O que se repete mesmo é a expressão “só você”. Então, eram 20 partes de 20 versos, totalizando 400 versos. E aí nós escolhemos, negociamos o que entrar na letra que ele ia musicar. E depois disso, como esses 120 versos não eram os 120 primeiros versos da primeira realização da letra, vinham de partes diferentes, aí eu tive que, continuando, quando eu voltei a trabalhar nela, né, com vistas a outras Todas Elas Juntas, eu tive que recriar tudo, retrabalhar tudo. Porque se você tem uma construção e você tira porções dessa construção, ela cai toda. Aí você tem que reconstruir. Então, eu tive que reconstruir tudo. Só que comigo é assim: eu estou sempre trabalhando. Enquanto uma letra não é musicada, gravada, ela corre o risco de ser alterada, entendeu? (risos) Então, ao longo desses anos, poxa, ela recebeu várias modificações. Até as transcrições definidas, que saíram no meu livro, há seis meses.
P/1 – Voltando sua história de vida, aí entraram os anos 90, né? Você passou por esse período na Folha e quando você saiu da Folha foi pra...
R – Eu fiz um trabalho, primeiramente, de repertório, pra cantora Patrícia Marques, né? Fiz uma canção pra ela também, com o Skowa, que ela gravou, chamada Sem Preconceito, que fala de preconceito racial. Aí fiquei escrevendo pra Folha, mesmo, pra outros meios de comunicação, de imprensa, entendeu? Fiquei vivendo assim e, durante um período... eu não sinto esses anos 90, que eu tenha produzido, assim, coisas ao meu contento, que tenha sido um período que eu gosto muito. Não. Embora, nesse período, eu tenha feito parcerias importantes, como uma com o Tom Zé, uma com a Rita Lee. Uma que o Tom Zé gravou, uma que a Rita Lee gravou. E essa com o Gil, entendeu? E tenha também lançado um livro sobre Cole Potter. Um livro que traz, além de textos meus, e versões bilíngues de canções dele, trouxe também texto do Caetano, do Augusto de Campos, do maestro Cláudio Leal Ferreira e esse livro, por sua vez, vai dar origem ao disco que eu vou produzir no final dos anos 90, já 2000, vai ser lançado: Cole Potter e George Gershwin, Canções e Versões. Com um elenco fantástico: Caetano; Gil; um dueto do Chico Buarque com a Elza Soares cantando a versão de Let’s do it Let’s Fall in Love, Façamos, Vamos Amar; Rita Lee e Tom Zé; Ed Motta; Zélia Duncan; Cássia Eller, né? Um disco que teve até sete vezes canções dele foram pra novelas da Globo. E, já no final dos anos 90, eu começo a entrar em um período em que minha produção vai se intensificar. Eu, à medida que eu vou envelhecendo, vou aumentando a minha produção e produzindo, naturalmente, melhor. Como é algo que a gente faz há mais tempo, vai fazendo, a gente vai adquirindo domínio da linguagem daquilo, né? Mas o que aconteceu comigo não é o que normalmente acontece. Porque normalmente nós produzimos mais quando somos jovens. E comigo, não. E, pra isso, colaborou muito a minha mudança alimentar e a minha prática de yoga. Porque me deu mais um chão, entendeu, que serviu de base, de sustentáculo, pra os meus voos poéticos e artísticos.
P/1 – O que fez você começar na yoga e mudar a alimentação?
R – Primeiro veio deixar de fumar porque eu fumava pra caramba, Hollywood. Assim, fumava muito, né? E eu queria, uma hora, parar de fumar. Me lembro que eu pensava: “Quando eu completar 40 anos eu vou parar de fumar”, mas fui devagar nisso e só perto de completar 41 anos que eu entrei o ano um de janeiro, sem fumar. Em 1997. Um de janeiro. Aí, como eu tinha feito macrobiótica na juventude, por influência do Gil e tinha sido muito bom. Eu tinha descoberto o que uma mudança alimentar, uma comida, faz. O que um alimento faz. A transformação que ele causa. Física, psiquicamente, emocionalmente, né? Então, eu já tinha tido essa demonstração e aí, como eu sabia que eu não tinha feito assim tão direito, eu imaginava: “Pô, se eu vier a fazer direito, então a transformação vai ser maior”. Aí eu me lembro que, em um de janeiro de 98, eu já comecei o ano fazendo uma dieta muito conhecida na macrobiótica, que se chama... que é a dieta de arroz, de dez dias comendo só arroz. Depois eu lembro que o tempo passou, em 98 e eu fui comentando com o Gil que eu estava fazendo macrô orientado por um médico. Ele, em novembro de 98, me levou ao Satori, que é um instituto e restaurante do Tomio Kikuchi, o introdutor da macrobiótica no Brasil no começo dos anos 60 e aí eu mudei e passei a ser orientado pelo Kikuchi. Fui com o Gil lá a primeira vez. E isso me trouxe mudanças, assim, muito benéficas que, entre outras consequências, fizeram com que eu desse um sentido melhor ao meu trabalho, à minha obra, entende? E aumentasse minha produção. Ela ganha peso e volume.
P/1 – Nossa! Com a yoga e a alimentação macrobiótica. Interessante!
R – É.
P/1 – E o que mais que você... eu queria perguntar também do mundo black. Como foi que você entrou para o mundo black na sua vida?
R – Por conta até de coisas que eu contei aqui, fatos da minha vida mais remotos, eu sempre me atraí pela negritude, pela cultura negra, pela música negra, né? E era curioso porque na infância eu ouvia falar, eu já falei aqui, né, que eu era apaixonado por futebol e por canção, música popular. E eu lembro de ouvir adulto falar que o negro só era bom pra música e para o esporte. E, na minha cabeça de criança, eu pensava: “Mas então eles são bons nas coisas que eu mais gosto”. E não só isso. As coisas em que, naquele período, o Brasil era reconhecido como o melhor. No que o Brasil era melhor? Em futebol e em música. Ora, então tinha algo errado naquela desvalorização que as pessoas com preconceito, racistas, né, porque existe um racismo estrutural na nossa sociedade, né? Arraigado, incutido, né, naquilo que as pessoas diziam dos negros, entendeu? Então, é a coisa da música. Gilberto Gil tem um papel muito importante aí, né? A descoberta do blues, do jazz, né? A descoberta pela pesquisa do que o rock and roll que eu curtia, né, quando eu era jovem vinha também da música negra. Da música feita por negros, né? Então, tudo isso aumentou meu interesse pela cultura negra e pela arte negra. E uma hora pela religião negra porque a arte, a música com elementos negros têm a ver com a religião também. Com a religiosidade. Então, eu me interessava por aquilo. Até que eu trabalhava na revista Época, trabalhei na revista Época durante um ano, em 1998. Ao final daquele ano eu fui pra Salvador e pedi para o Gil que eu queria jogar, queria que uma mãe de santo jogasse os búzios pra mim, pra eu descobrir de quem eu era filho. Aí eu acabei indo parar no terreiro Opô Aganjú, por indicação do Gil. O Opô Aganjú foi construído pelo Pierre Verger para o Obaraim Pai Balbino, que jogou os búzios e disse que eu era filho de Oxóssi e Oxum. Essas guias aqui, olha. Oxóssi e Oxum. Sendo que a de Oxóssi é a guia que o Obaraim me deu há 21 anos. Dessa vez, entendeu? Essa aqui eu tive que mudar o ano passado porque se rompeu a que eu tinha, de Oxum, mas por 20 anos eu usei a de Oxum também, que o Obaraim me deu. Aí eu adorei. Adoro o candomblé, né? Frequentei durante alguns anos. Faz tempo que eu não frequento. Mas tenho grande gosto pela religião do candomblé também por ser politeísta, né? Eu me identifico mais com as religiões politeístas e vejo um valor especial nelas, né, porque eu me identifico. Na verdade, eu fico entre o politeísmo e o ateísmo porque também tenho uma admiração pelo ateísmo, né? Eu tenho um respeito pelo ateísmo. E valorizo menos e tenho, às vezes, críticas sérias, ao monoteísmo. Pelo fator de excludência que a gente observa em manifestações monoteístas mais extremistas. Porque, no extremo, o monoteísmo radical passa a ideia de que só existe um Deus, né? O meu Deus e, se você tem outro Deus, o seu Deus não é verdadeiro, né? Disso decorre muita intolerância, muitas guerras também, na história da humanidade, estão relacionadas com a cultura religiosa de povos radicalmente monoteístas. E eu vivi coisas muito fortes em terreiros.
P/1 – Conta aí.
R – Pois é, nessa vez mesmo que eu fui à esse terreiro indicado pelo Gil, eu lembro que no penúltimo dia que eu estava em Salvador, ele e a Flora, mulher dele, me convidaram pra ir à uma festa de iniciação de uma criança que parece que não tinha quatro anos de idade, em um terreiro que eles frequentavam, de portão. Aí, eu lembro que eu fui, cheguei lá e a cerimônia já tinha começado e eu assisti a um dos maiores espetáculos de dança na minha vida. Durante uma hora, as pessoas que recebiam os orixás... havia, principalmente, mulheres no centro da sala, no retângulo central, dançando ao som de um grupo de música sacra, incrível, grupo Fá e eu percebi que tinha uma mulher que assistia de forma retraída, sentada, a cerimônia e que depois eu vim a saber que era uma mãe de santo de outro terreiro e que tinha sido convidada a presidir a cerimônia. Aí, de repente, parou todo o som, parou a dança e uma das pessoas que dançavam, uma mulher, foi para um canto do retângulo, né, pegou a menina, a criança que estava sendo iniciada, no colo e a mulher que presidia foi pra junto dela. Aí, a mulher que estava incorporada começou a falar com uma voz que não só não era de mulher, pela gravidade do tom, pela voz grossa, né, que emitia, mas também não era de homem, de ser humano. Uma voz estranhíssima. Foi algo fortíssimo. Muito emocionante. Eu lembro que o Gil estava a uns três metros de mim, assim e, quando eu olhei pra ele, eu tinha segurado o choro e ele já estava chorando. Aí resolvi soltar também meu choro. E depois, né, comentando com ele, eu falei que aquela voz não parecia de ser humano. Ele falou: “Era de outro mundo, mesmo”.
P/1 – Nossa! E você teve alguma experiência em sonhos também? Algum sonho muito fortes?
R – Eu tive sonhos premonitórios, impressionantemente premonitórios. Três. Três sonhos. Com futebol, com o Corinthians. Impressionantemente premonitórios. Um em 1984, outro em 85 e outro em 98.
P/1 – Sonhou com o resultado?
R – Não só os resultados. As jogadas. E quem fez o gol. E de onde eu via. Em 1984 o Corinthians tinha chegado à semifinal do campeonato brasileiro, tendo desclassificado o Flamengo de Zico. O Corinthians de Sócrates. Aí, estava uma empolgação muito grande. O Corinthians foi jogar com o Fluminense. Dois jogos. O primeiro aqui. E havia uma empolgação tão grande que eu resolvi, eu que nunca fui muito de ir ao estádio, ir. Aí resolvi ir com um irmão que veio de São José, o Ricardo e um amigo, o Hermelino Neder. Compositor, cantor, que morava com o Arrigo. Aí, aconteceu o seguinte: vinha fazendo dias de sol, que era melhor para o time do Corinthians, que tinha alguns jogadores meio machucados e era um time mais leve do que o Fluminense, que era um time mais pesado. E, na noite de sábado pra domingo – o jogo ia ser no Morumbi – eu sonhei que tinha dado uma chuva e que o jogo estava terminando no Morumbi e estava 2 a 0 para o Fluminense, que era um resultado completamente inesperado. Sonhei isso. Quando chegaram, meu irmão e o Hermelino, eu contei o sonho pra eles e eles falaram: “O que é isso? Que bobagem! O Corinthians vai ganhar de 3 a 0, não sei o que”. Amanheceu chovendo, nós fomos pra lá, o Fluminense fez um gol no primeiro tempo e no segundo tempo, faltando cinco minutos pra terminar, debaixo de chuva, o Fluminense fez 2 a 0. Bom, aí o seguinte: eu adivinhei o resultado. Um resultado inesperado. Bem inesperado. Mas eu posso muito bem ter acordado no meio da noite e, percebido que estava chovendo e, inconscientemente... isso pode muito bem ter acontecido... ter incorporado aquilo e aquilo gerado um medo em mim que o Corinthians perdesse porque estava chovendo e aí eu tive um sonho em que o Corinthians perdia. E daí eu adivinhei o resultado no sonho. Pode ter sido fruto de uma adivinhação e de uma percepção de que estava chovendo, entendeu? Que era uma coisa temerária a chuva, o tempo. Sócrates não estava muito bem, não sei o que, pode ter acontecido isso. Bom, seis meses depois ia acontecer o último jogo do Campeonato Paulista, o Corinthians já sem Sócrates, que tinha ido para a Itália. Aí, Corinthians e Santos, último jogo no Morumbi. O Corinthians tinha que ganhar pra ser campeão. O empate dava o campeonato para o Santos. E eu estava casado com a Cristina e um casal de amigos corintianos nos convidou para ir ao estádio. “Vamos”. Aí eles ficaram de comprar os ingressos. Eu lembro que na noite, acho que de terça para quarta-feira, eu sonhei que eu estava na arquibancada, atrás de uma trave e que, pelos 15 minutos, começo do segundo tempo, uns 15 minutos, assim, na outra trave, o Santos fazia um cruzamento da esquerda e o Serginho Chulapa fazia um gol. 1 a 0 para o Santos. Sonhei isso e liguei para o Zé Miguel Wisnik, santista e pai de corintiano, o Guile e louco por futebol já e comentei com ele, contei o sonho. O meu amigo comprou os ingressos, nós fomos para o Morumbi, era atrás de uma arquibancada e tudo aconteceu como eu sonhei. Por volta, entre 15 e 20 minutos do segundo tempo, na outra trave, João Paulo, ponta esquerda do Santos, cruza e o Serginho Chulapa fez um gol. Santos ganhou de 1 a 0. Aí, 13 anos depois, o Corinthians estava indo bem e estava em uma disputa com o Grêmio. Eram três jogos. Se o Corinthians ganhasse, ele iria disputar com outro time, talvez o Santos. E, se ganhasse desse outro time, que talvez fosse o Santos, iria pra final. E, paralelamente, o Cruzeiro estava jogando, disputando com um time e, se vencesse em três jogos, iria disputar com outro time e, se vencesse esse outro time, ele iria pra final. Então, havia uma possibilidade entre 12 de Corinthians e Cruzeiro se enfrentarem no final. Dá pra entender, né? Aí, quando o Corinthians estava no meio da disputa com o Grêmio, faltava o terceiro jogo, eu sonhei que o Corinthians estava jogando em Minas Gerais, já era a disputa do campeonato, contra o Cruzeiro. E que o Corinthians fazia o segundo gol. Lá no Mineirão. E o gol era assim: um jogador chamado Dinei, que não era titular, fazia uma jogada pela esquerda e cruzava e o Marcelinho Carioca fazia o gol de cabeça. O Marcelinho é um tampinha, fazia muito gol de falta, nunca fazia gol de cabeça. E era o segundo gol do Corinthians e o Corinthians ia ser campeão. Bem, acontece que o Corinthians vence o Grêmio, o Cruzeiro vence um outro time, o Corinthians enfrenta o Santos, vence o Santos em três jogos, o Cruzeiro vence um outro time e vão pra final. Aí, o primeiro jogo em Minas eu lembro que, durante a semana, eu lembrei do sonho, eu tinha o sonho muito vívido na minha cabeça e comentei na redação da revista Época, com alguns jornalistas: “Sonhei isso aqui”. E contei para os meus filhos, Iara e Ian e, no dia, duas horas antes de começar o jogo, que os meus filhos foram em casa assistir comigo, eu lembrei que 13 anos tinha tido o sonho com o Santos, né e que eu tinha contado para o Zé antes do jogo acontecer e aí lembrei que o Guile era corintiano, o filho do Zé e liguei para o Guile e contei o que eu tinha sonhado, que ia acontecer. Aí começa o jogo, o Cruzeiro faz 1 a 0. Começa o segundo tempo, o Cruzeiro faz 2 a 0. Aí o Luxemburgo, técnico do Corinthians, põe o Dinei, que não era titular, no jogo. Aí, com sete minutos, alguém faz de pênalti, se não me engano. O Corinthians diminui. Com 15 minutos acontece o segundo gol. Tal como eu sonhei, igualzinho o meu sonho. O Dinei faz a jogada pela esquerda, cruza e o Marcelinho faz de cabeça. Eu fiquei louco. Louco. Eu não gritei gol. Eu falei: “O meu sonho, o meu sonho” e o meu filho e a minha filha ali, sabendo, entendeu? E o Guile sabendo. Todos os sonhos tiveram testemunhas. Uma maluquice. Mas nunca mais aconteceu.
P/1 – Eu queria só, não podia deixar de faltar, que você contasse um pouco da Demarcação Já, do que foi o processo do nascimento, o feito dela.
R - Bom, eu falei aqui que as minhas primeiras canções foram canções ecológicas. Foram canções marcadas pelo que se produziu em mim a partir da vivência da força da presença da natureza, né, nos anos 70. E isso fez com que eu fizesse canções chamadas ecológicas na época. Com os Espíndolas. Sobretudo com Tetê. E naturalmente que, havendo uma consciência ecológica ali, em mim e nas pessoas que compartilhavam dessa sensibilidade, havia uma valorização dos povos indígenas, da cultura indígena. Para a civilização, para o mundo, né? Bem, a partir de meados dos anos 80, eu me afasto um pouco desse campo de interesse, entendeu, desse tema, né, que, no entanto, eu vou retomar no final dos anos 90, lá pra 97, 98, assim, quando o IPCC, Internacional Panel on Climate Change, Painel Internacional de Mudanças Climáticas, começa a divulgar seus alertas sobre o que estava acontecendo com o mundo, as consequências das ações humanas, o Homem destruindo sua própria casa, seu próprio mundo. Então, uma temática que já era cara a mim e que esteve por trás de muitas das minhas primeiras composições, anos 70, começo dos anos 80 e aquilo, aquele sentimento, aquela sensibilidade voltaram fortes porque já estavam em mim. Eu lembro que daí eu fiz Tubi, Tupy, que foi minha primeira parceria com o Lenine, né? Tubi Tupy, de valorização da causa indígena, de valorização da civilização indígena, né? Bom, aí advieram várias canções políticas engajadas, sócio ambientalistas e, por fim, veio o desejo de compor uma canção especificamente para a causa indígena porque ela dizia a respeito, né, à civilização ocidental, mundial. Ao destino, né, dessa nossa civilização e da vida na Terra. Então, o peso que a cultura indígena, né, a presença dos povos indígenas na Terra tem se tornou algo que, aos meus olhos, tinha que levar a uma canção importante, relevante. E eu também já a construí mentalmente assim, pra ser uma canção longa, com muitos versos, né? Uma forma preestabelecida que eu segui durante o trabalho que levou uns quatro meses. Exclusivos. Quatro meses exclusivamente dedicados à criação da letra. Pesquisa e a criação dos versos. Quase sempre decassílabos ou dodecassílabos. Um quarteto de versos. Aí vinha um quinto verso a se terminar em A, pra rimar com o refrão, que era Demarcação Já, Demarcação Já. E esse quinto verso poderia ter de 18 sílabas a uma sílaba. Como, de fato, apresenta, se dá na letra, entendeu? Então, foram mais de 100 versos que eu fiz e tive a felicidade de contar com um grande elenco que se sensibilizou com a ideia da letra, com os versos e com a causa. Que incluiu, além do Chico César, para quem eu passei a letra e com quem eu já tinha composto Reis do Agronegócio, 96 versos dodecassílabos rigorosos que ele tinha musicado dentro da temática sócio ambientalista, né? E passei pra ele musicar, ele musicou magistralmente, como ele faz, porque ele é mestre, ele é muito bom, muito bom compositor. Aí, musicou de forma sensacional e tivemos aquele elenco, né? Maria Bethânia, Gilberto Gil, Arnaldo, Elza Soares, Zeca Pagodinho, Ney Matogrosso, Nando Reis, Zélia Duncan, Margareth Menezes, Tetê Espíndola, Zé Celso, Criolo, Russo Passapusso, enfim, Felipe Cordeiro, Dona Onete...
P/1 – O que você acha da sua história de vida inteira, que você não contou, se tem alguma coisa que você acha que é importante deixar registrado?
R – Olha, eu enterrei meu pai há seis meses. Foi a primeira morte na minha família. Dentro de uma ordem natural das coisas, né? Meu pai faleceu em 11 de outubro. Novembro, dezembro, janeiro, fevereiro, março, abril, vão se completar seis meses. Esse é um fato muito importante pra mim, o falecimento de meu pai, que aconteceu do meu lado, eu estava presente no exato momento e, naquela noite, eu estava do lado dele e percebi o momento exato em que ele foi embora. Foi algo marcante, não só pela percepção, né, do que aconteceu na hora, mas também pelo significado, né, a perda do pai, a passagem do pai e eu senti que, quando ele parou de respirar e morreu, já não era mais o meu pai. E essa foi a percepção que eu tive. Que eu olhei e já não era mais meu pai. Era apenas o corpo que tinha sido dele durante 88 anos. Mas ele mesmo já não estava ali, não era mais.
P/1 – Como foi pra você contar sua história?
R – Hoje, aqui? Foi muito bom. Agora eu vi que, assim, não dá pra contar. Só dá pra contar, acho, que um décimo do que eu poderia contar. (risos) É claro, né? É assim, mesmo. Uma vida. Eu tenho 63 anos vividos. Mas dá pra contar algumas coisinhas. (risos) É isso.
P/1 – Queria saber como seus pais reagiram, quando você entrou nesse momento da contracultura? Como é que sua família foi aceitando?
R – Ah, isso foi complicado. (risos) Não por parte da minha mãe, mas por parte do meu pai, né? Na época, consumo de drogas, maconha, mesmo maconha, que é uma coisa, hoje, banal, né, vulgar no bom sentido, comum, né, mas naquela época não era. Então, foi conflituoso, né? A minha relação com meu pai teve um período difícil, mas depois tudo voltou a ficar nos eixos.
P/1 – Com o amadurecimento?
R – É. Com 20 e poucos anos, com meu casamento, já, com a Alzira, já. Não, depois teve um período difícil, mas voltou a ficar bom também.
P/1 – Obrigado!Recolher