P/1 - Seu Rafael, obrigado por estar aqui. A primeira pergunta é sempre difícil. Qual é o seu nome completo? Local de nascimento e data, por favor?
R - Osvaldo Rafael Pinto Filho, nasci em São Paulo, 28/04/1949, no Hospital das Clínicas.
P/1 - E o seu pai, sua mãe contaram como é que foi o dia que o senhor nasceu, teve alguma história da família assim ou não?
R - Muito pouco. Do meu nascimento, é interessante isso, eu não sou o primeiro filho, eu sou o segundo filho da minha mãe, a minha mãe tem uma diferença de idade do meu pai de uns 15 anos, por aí, talvez um pouco mais, a minha mãe ficou grávida de um menino que com 01 ano veio a falecer, ela ficou grávida novamente de mim, e 01 ano depois nasceu a minha irmã, aconteceu uma coisa daquelas interessantes, eu larguei o peito, porque a minha mãe veio ter a minha irmã e o meu pai não me deu mais leite, me deu o chá, quando minha mãe voltou do hospital com a minha irmã, eu já não queria mais saber de leite, de nada, porque meu pai já tinha me entuchado chá, esse início foi uma história muito legal, e eu nasci no Ipiranga na Rua Oliveira Melo, eu nasci no 1.060, e hoje eu moro no 745 da mesma rua, passei muitos anos, saí do bairro, mas voltei e é lá que é minha raiz.
P/1 - Era chá do que ele dava para o senhor?
R - Acho que deve ter sido chá mate. Se bem que é uma coisa interessante você falando da infância, e era muito comum naquela época que você dava para as crianças muito chá, erva de bicho, erva cidreira, chá de hortelã que tinha no quintal de casa. Está com gripe, dá um chazinho de hortelã, dá esse tipo de coisa, eu me lembro, mas de alguma erva que deve ter sido.
P/1 - E o seu pai qual é o nome inteiro dele?
R - Osvaldo Rafael Pinto.
P/1 - E ele veio da onde, a família dele, o que ele fazia?
R - O meu pai nasceu no Bixiga, aqui na Bela Vista, minha família é daqui da Bela Vista, participou inclusive da fundação da Vai Vai. Minha...
Continuar leituraP/1 - Seu Rafael, obrigado por estar aqui. A primeira pergunta é sempre difícil. Qual é o seu nome completo? Local de nascimento e data, por favor?
R - Osvaldo Rafael Pinto Filho, nasci em São Paulo, 28/04/1949, no Hospital das Clínicas.
P/1 - E o seu pai, sua mãe contaram como é que foi o dia que o senhor nasceu, teve alguma história da família assim ou não?
R - Muito pouco. Do meu nascimento, é interessante isso, eu não sou o primeiro filho, eu sou o segundo filho da minha mãe, a minha mãe tem uma diferença de idade do meu pai de uns 15 anos, por aí, talvez um pouco mais, a minha mãe ficou grávida de um menino que com 01 ano veio a falecer, ela ficou grávida novamente de mim, e 01 ano depois nasceu a minha irmã, aconteceu uma coisa daquelas interessantes, eu larguei o peito, porque a minha mãe veio ter a minha irmã e o meu pai não me deu mais leite, me deu o chá, quando minha mãe voltou do hospital com a minha irmã, eu já não queria mais saber de leite, de nada, porque meu pai já tinha me entuchado chá, esse início foi uma história muito legal, e eu nasci no Ipiranga na Rua Oliveira Melo, eu nasci no 1.060, e hoje eu moro no 745 da mesma rua, passei muitos anos, saí do bairro, mas voltei e é lá que é minha raiz.
P/1 - Era chá do que ele dava para o senhor?
R - Acho que deve ter sido chá mate. Se bem que é uma coisa interessante você falando da infância, e era muito comum naquela época que você dava para as crianças muito chá, erva de bicho, erva cidreira, chá de hortelã que tinha no quintal de casa. Está com gripe, dá um chazinho de hortelã, dá esse tipo de coisa, eu me lembro, mas de alguma erva que deve ter sido.
P/1 - E o seu pai qual é o nome inteiro dele?
R - Osvaldo Rafael Pinto.
P/1 - E ele veio da onde, a família dele, o que ele fazia?
R - O meu pai nasceu no Bixiga, aqui na Bela Vista, minha família é daqui da Bela Vista, participou inclusive da fundação da Vai Vai. Minha família tem a raiz no Bixiga, uma parte da minha família, lá pelos anos 30, vai para o Ipiranga, naquela época olhando aquela região ali, que também eu falo é resultado um pouco do que ocorre com a Frente Negra Brasileira. A Frente Negra Brasileira lá nos anos 30, orienta as famílias negras a comprar os seus terrenos. Aquela região é uma região onde os Fagundes tinham os terrenos e as famílias Klabin começaram a vender os terrenos lá. Então você tem uma quantidade enorme nesse lugar de famílias negras ainda lá, porque compraram os seus terrenos, autoconstrução, foi esse o processo. O meu avô, Ibraim Rafael Pinto, a minha avó teve dois casamentos Dona Rosa, minha avó paterna, no segundo casamento casou com seu Januário, então a minha avó, estou falando lá dos anos, o meu pai vai para Rua Oliveira Melo, 1.060, permanece lá, é emblemático isso, porque o meu meu pai e o meu avô Januário, eles lutaram na Legião Negra Brasileira. O meu pai participou da Frente Negra Brasileira, mas lutou, é algo que eu hoje começa a ser escrito, Osvaldo Faustino escreveu alguma coisa, Maurício Pestana, tem até uma tese sobre este período da participação dos negros na Revolução, na chamada Revolução Constitucionalista de 32 em São Paulo. Então é esse o processo, se você olhar aquela região onde eu moro, ali, acima, por exemplo, as lideranças negras dos anos 30, uma parcela significativa moraram naquela região, no Alto do Ipiranga tem a rua chamada Lino Guedes, travessa da Rua Vergueiro. Lino Guedes foi um cara da liderança da Frente Negra Brasileira. Na esquina da rua Santa Aurélia com a rua Vergueiro, naquela esquina morava o José Correia Leite que foi da Frente Negra Brasileira e o José Corrêa Leite naquele período teve um racha na Frente Negra Brasileira que o presidente, o Arlindo Veiga dos Santos, era um monarquista, e ele escreveu sobre isso, sobre a situação do negro no período da escravidão, vocês tem até pessoas, ele argumentava que o negro vivia em uma condição melhor naquele período do pós abolição, então ele escreveu sobre isto, ele defendia essa tese, ouve esse racha e o José Corrêa Leite estrutura então a Frente Negra Socialista, e aí desenvolve o Clarim da Alvorada, a imprensa negra desse período. O meu pai não militou na Frente Negra do Arlindo Veiga dos Santos, mas o meu pai militou na Frente Negra Socialista, e quando nos anos 70 eu passo a ter contato com o movimento negro, eu sou dos anos 70, meu pai um dia em casa me viu com uma daquelas pessoas da Frente Negra Brasileira, a pessoa foi me chamar em casa e meu pai me deu uma carraspana, foi desse jeito. “É com esse daí que você está andando?” Eu falei, “sim, pai”. Então meu pai me deu uma bronca, “é com esse daí que você está andando? Esse aí é um fascista”. Eu tomei um susto, porque isso ocorreu mais ou menos entre 75, 76, a gente tinha uma imagem naquele período com aquilo que a gente tinha de informação, lendo “A integração do negro na socidade de classes”, do Florestan Fernandes, se a gente tinha uma ideia naquele momento do papel da Frente Negra, tinha uma ideia aonde essa questão não estava para mim muito bem demarcada. Mas falando deste lugar, a minha família vai para o Ipiranga neste período. Também é interessante falar desse período porque o meu pai me disse que ele entrou na Legião Negra e foi para Itapetininga, quando chegou o meu avô Januário estava preso e o regional estava preso lá em Itapetininga, porque o meu avô Januário comandou um pelotão de negros até lá em marcha, só que o meu avô ao invés de levar o pelotão cantando marchas militares, meu avô levou o pelotão cantando samba. Então você imagina cantando samba, chegou lá meu avô estava preso, o capitão que comandava lá o local olhou o sobrenome do meu pai e falou “você é filho do Ibrahim”, então o meu pai então ficou no rancho, na parte de fazer alimentação, não foi para frente de batalha, meu pai sobreviveu aquele período porque ele não foi na frente de batalha, que é a chamada infantaria. Os que foram, todos morreram. Essa é uma história que está muito enfronhada com a minha família, obviamente depois meu avô Januário volta, meu pai também, retomam. Meu pai passou um período, tanto meu avô como meu pai foram da antiga força pública, mas eles se desvinculam, e meu pai depois segue a vida dele como pedreiro, foi a profissão do meu pai.
P/1 - Quando o senhor nasceu você se lembra dele trabalhando nessa profissão?
R - Sem sombra de dúvidas, fui trabalhar de servente com ele com dez anos, levei muita marmita para ele nas obras, tem algumas casas que ele fez reforma lá na rua, no bairro. Até recentemente que eu ajudei a construir, teve calçadas, um lugar que eu me lembro bem, que tem coisa que marca, na Avenida Nazaré no número 1.060, tinha uma concessionária da Volkswagen chamada Sopave, eu fui com o meu pai fazer a calçada da Sopave, e naquele período, quando eu era menino, as ruas começaram a ser asfaltadas e ali surge a Constran, que era uma dessas empresas tapa-buraco, agora recentemente você vê, na questão das grandes empreiteiras, que uma delas era o consórcio Constran-Sopave, tudo na mesma rua ali, naquele cantinho, Moreira Costa, dois quarteirões, eu acho que esses empresários depois resolveram entrar obviamente no período da ditadura, para o ramo das construtoras, das empreiteiras e virou uma gigante nessa área.
P/2 - Rafael, queria voltar um pouquinho, você contou do seu pai, eu queria, se você pudesse contar pra gente suas memórias mais antigas da infância. Como era a sua casa, como era a convivência na família? Você pode descrever tanto o lugar, quanto às suas memórias?
R - O Rafael, acho que lá pelos 07, 08 anos de idade, ele vira Xuxa. Essa é uma história muito legal, muito gostosa. Na minha casa, lá no quintal de casa, minha avó Rosa, tudo parte do meu pai, cuidava de crianças, as empregadas domésticas, as mulheres precisavam trabalhar, deixavam em casa e minha avó que cuidava dessas crianças. E quem eram essas crianças? Meu tio, os amigos dele, meu tio Ditinho, iam para a gafieira, Paulistano da Glória, Som de Cristal, me envolvia nisso, meu avô também brincou já no rádio, também era envolvido com essa coisa de festas, minha família era uma família muito festeira, o quintal era uma loucura. Quando chegava o aniversário da minha avó, 13/06. Então combinava o aniversário dela com a festa de Santo Antônio. Então como é que funcionava naquele período? Era o quintal, comprava aquelas latas de 20 litros, se cozinhava na lenha o pinhão, também batata doce e se fazia uma fogueira, não era no fogão a lenha não, tudo no chão, se fazia uma fogueira na rua, naquela época se fazia as fogueiras, o chão batido. Então essas moças vinham para a festa no quintal, rolava um batuque no salão de casa, na sala tinha a vitrola que tocava a eu me lembro Little Richard, Peres Prado ou Jamelão, Elza Soares, por exemplo eu me lembro, ouvia tudo isso naquelas bolacha, o primeiro disco da Elza Soares - Se Acaso Você Chegasse, e ali eu aprendi também a dançar dentro de casa, então as mulheres chegavam todas bem arrumadas, todas, eu me lembro de tailleur, roupas rodadas, isso quando chegou, a hora que o samba começava a comer tiravam a meia, tudo de pé no chão, aquela coisa toda. A festa de aniversário da minha avó era isso, e a turma do Bixiga ia toda para lá. Uma coisa muito forte da minha infância foi essa parte de cultura musical, de ouvir todos esses discos, Anizio Silva, Bienvenido Granda, você aprender dançar bolero, essa coisa de dois em um, minha família foi muito nesse sentido de festa, em casa muita festa, e interessante isso, pela característica do bairro, era uma festa que tinha de tudo, como o bairro ali tem uma característica muito interessante que é de negros, italianos, espanhóis, portugueses e um pedacinho de orientais. O meu tio trabalhava como ajudante de caminhão, e a minha tarefa era cuidar do sapato dele, do terno dele. Então eu tinha que levar na segunda-feira na tinturaria Garça, que existe até hoje na rua Frei Durão, levava e depois ia buscar, a minha tarefa era engraxar o sapato dele, era sapato carrapeta, duas cores que ele vinha para a gafieira, ele saía, ele trabalhava no ponto de caminhões de aluguel na Vila Mariana, na esquina da Carlos Petit com a Domingos de Morais, ali naquele ponto ali. Então ele saía no sábado, recebia por semana, e vinha aqui na rua Aurora para alisar o cabelo, porque o charme daquela época vocês vão ver lá nos anos 50, 60 os homens negros alisavam o cabelo, alisavam com a pasta e tal. Então ele chegava em casa, a roupa dele estava pronta e ele me dava uma moeda que era a entrada da matinê. Então no domingo, o cinema de bairro, ali tinha o Cine Maracanã, o Cine Pax, eu ia sempre com aquela moeda, era o ingresso, eu ia ao cinema, eles assobiavam no portão e ele começou a me chamar de Xuxa. Tem um negócio muito legal, a maioria do Xuxa era tudo os pretinho que era Xuxa, porque era tudo engraxate, chegava de domingo na feira, todo mundo pegava a sua caixinha de engraxate e ia engraxar sapato na esquina para ganhar uma grana, o seu dinheirinho normal isso: Xuxa. Passado depois, vou falar essa história para ilustrar como é que eu fiquei sabendo o que que era a Xuxa, porque é uma coisa que depois no decorrer da minha vida vai aparecer mais a frente. Nos anos 70, eu ingresso na USP como funcionário, em 75 eu ingresso na Faculdade em Ciências Sociais e 74, 75 eu fui trabalhar na reitoria da USP na Comissão de Regime de Trabalho, e quem coordenava a comissão era um que foi um ex-reitor da USP, foi o professor Orlando Marcos de Paiva. Ele chegou para mim, “Rafael, o senhor sabe o que que significa Xuxa”? Falei assim, “não”. “Xuxa, tem a ver com a história dos meninos que na 2ª guerra mundial, as tropas americanas desembarcavam na Itália, e os meninos iam no porto para engraxar a bota dos sapatos dos soldados americanos. Então o Xuxa é corruptela de shoe shine. Entende? Então você vai observar por exemplo, que a Xuxa nunca fez história em quadrinho porque era do HQ, a história é o seguinte, o menino, aquele menino pobre, depois ele era engraxate e depois ele vira super-herói, mas das histórias em quadrinhos lá nos anos 50. Então como eu engraxava o sapato do meu tio na minha infância, ele me colocou esse apelido de Xuxa. E do ponto de vista de falar da vida, eu queria falar porque eu tenho que ir e voltar. Não tem como não ir e voltar nessa parte. Se você for lá no Ipiranga, o pessoal hoje brinca. “Aquele negrão lá, daquele tamanho vocês vão ver, eu vou chamar ele de Xuxa”. Porque acho que Xuxa só se torna loiro depois que o Pelé começa a namorar a Meneghel, que aí vira a onda que Xuxa é loiro, mas na minha época era tudo pretinho, e obviamente como tem branco pobre também, para diferenciar o Xuxa falava, olha quem que é? Não é o Xuxa branco, olha como a coisa tomou um outro rumo. Já no final dos anos 70, nós do Movimento Negro começamos fazer peças de teatro, uma ideia um pouco inspirada no Teatro do Oprimido, nós vamos para lá, vamos para cá, e começamos voltar essa ideia de teatro, com a ideia de se reestruturar uma dramaturgia negra. Quando você começa a ver o que está acontecendo hoje, mas vendo a história lá dos anos 50 do Abdias, o Abdias mexe com isso, e depois nos anos 70 com a Associação Cultural do Negro, que está o Oswaldo de Camargo, esse novo quadro de negros, nós tínhamos uma preocupação de estruturar uma dramaturgia negra, queríamos fazer isso, então, vamos ter essa experiência, a gente acaba tendo no Movimento Negro essa experiência de montar grupos de peça de teatro, pensando um pouco de teatro de rua, mais ou menos esse espírito. Mas como é que a gente fazia isso? A gente apresentava na escola de samba, nas casas de candomblé, a gente fazia esse movimento também nas associações, que era o que a gente fazia. No final dos anos 80, o Barrinhos Freire, que é um camarada que era documentarista, que fez um documentário sobre o Festak, chegou para mim e falou, “Rafa, é o seguinte cara, nós estamos agora fazendo essa luta de abertura. Porque você não vem fazer um pouco de cinema, fazer televisão?” Falei, “vai dar certo, vamos tentar”. O Barrinhos me chama para fazer, ele ia um personagem no filme do Denoir de Oliveira, que é o Encalhe - Noite dos Esperados, falou, “vem participar”. Eu fui participar, fiz uma ponta no Encalhe com o Barrinhos. Ele que me cutucou, estimulou, “é importante, depois a gente vai precisar ocupar mais o espaço no meio de comunicação para gente fazer isso”. Não só a mim, como foi o Amilton Cardoso, ele também fez isto, então eu fiz essa participação. Voltando a trabalhar na USP, eu recebi um telefonema do Luiz Serra. “O Rafa tem um personagem para você fazer do Babenco, vai na Barra Funda em tal lugar e faz um teste”. Eu fui lá, fiz um teste e o Babenco me selecionou, foi o início do filme do Pixote e eu fui lá, fiz uma figuração com fala e contraceno com o Jardel Filho. É essa experiência. Mas com a fundação do Movimento Nego Unificado que era 79, nós fundamos o MNU em 78, eu estava trabalhando na USP, eu falei, “eu estou enjoado de ficar nessa coisa aqui, eu quero fazer outra coisa”, e como tarefa do MMU, fui com o programa de ação do MNU e fiz naquele período umas palestras na Febem. No comício, já vou já saltar para 84, um dos diretores técnico da Febem na época falou, “Rafa, a gente precisa de um cara como você, por que você não vem trabalhar com a gente aqui na Febem”? Eu falei, “está bom, tudo bem, vamos tentar, eu posso isso”. Então eu fui trabalhar a noite na Febem. Comecei, eu me lembro que foi uma coisa muito interessante falar sobre isso, que é importante registrar isso, eu fui em uma festa de Erê em uma casa de umbanda da minha comadre, o erê da minha comadre falou, “ó tio, o senhor não vai ficar muito tempo nesse lugar não”, isso foi no dia 27/11 para ser exato de 1984. Eu, “mas como? Estou na USP já”. Falou, “não, você vai sair daí”. Então, quando foi no dia 12/10/1984, eu estava na Febem, estava na USP ainda não tinha me desligado e fui para Febem com programa de ação do Ermelino de Barros do Brás para cuidar da questão da menoridade, que nós tínhamos no programa de ação, mas nós tínhamos um buraco. Alguém precisava preencher esse buraco e trabalhar nessa área, foi isso que eu fui fazer, eu participei da filmagem do Pixote em 78, 79, mais a frente eu vou trabalhar, nunca tinha posto pé, saí de lá. Então há um fenômeno que ocorre na minha vida bastante interessante, eu faço um personagem no cinema, depois como militante eu vou e trabalho 03 anos na Febem no quadrilátero e foi como militante, foi bastante interessante ter essa experiência. Então minha vida acontece em dois momentos. Eu falo assim, do momento do Xuxa, que é um apelido que eu carrego até hoje e que tem a ver com meninos de rua, aquela coisa toda, tem a ver com a questão da menoridade, e depois na minha vida adulta mais adiante, em outro momento da minha vida eu faço um personagem, e depois o personagem vira pessoa real, porque aí de fato eu vou trabalhar, militamos e nessa área da infância e adolescência eu acabo operando isso por mais uns 15, 20 anos, porque eu saio também desse processo e vou posteriormente trabalhar no Banespa cumprindo outros papéis, mas vou trabalhar como bancário, vou trabalhar na parte de formação de adolescentes, então fazemos um programa grande de treinamento, treinamos lá em torno de 1.200 mil adolescentes, todos em situação de, dito famílias carentes, a época para vocês terem uma ideia, formamos 1.200 adolescentes e essa molecada hoje toda está com famílias estruturadas, tocando o barco, depois de 30 anos fizemos um encontro dessa molecada um pouco antes agora da pandemia, sucesso, perdemos, tem perdas, mas sucesso, todo mundo estruturado.
P/2 - Você contou toda a sua trajetória da infância até a fase adulta, e todo esse período até a redemocratização era a ditadura militar. Você sempre esteve engajado por conta da família no movimento negro? Como é essa entrada, essa consciência de que você é um ativista ou não tinha uma consciência propriamente dito?
R - Bafo da luta internacional, nós estamos falando da infância e eu volto para adolescência. O meu pai falava, “vai estudar moleque, você tem que estudar”. E o meu pai fez até o 2º ano primário, e minha mãe fez até o 3º ano primário, trabalhava como doméstica e também tomava conta de criança, fazia vários papéis. E quando chegou com esses 10, 12 anos eu cresci muito, fiquei muito alto, muito grande, queria ir para as festas, eu me lembro que eu fui no 1º baile que foi um baile da campanha do José Bonifácio de Andrada, um baile aqui no Pacaembu, meti uma roupinha e vim no ginásio do Pacaembu nesse baile, que era um baile da campanha eleitoral do governador José Bonifácio que era indicado do Carvalho Pinto para substituí-lo, e nesse baile tocava a Orquestra Los do Guarachos e um cover do Gregório Barrios. O baile. E para quem dança o seguinte, quem não sabe dançar, que eu só sabia os dois e um, dança no meio, os bailarinos que sabem, dançam na ponta. Então eu já vim com essa orientação. Eu tinha 14 anos por aí, acho que essa idade, fui lá na matinê me lembro, obviamente da moça e do perfume da moça com quem eu fui dançar, a vida é dura. Olha cara, foi isso, foi esse momento. Eu com 11 anos, tinha que fazer o exame de admissão ao ginásio na escola estadual Alexandre de Gusmão que na época ficava na rua Bom Pastor, hoje tem um outro nome, Francisco, mas o início da Alexandre Gusmão foi lá. Só que para preencher o formulário de admissão na escola pública, o meu pai precisava ter firma, eu falei, mas meu pai não tem firma, meu pai é pedreiro, deixei passar, não fiz o exame, fiquei angustiado, chateado, e pesou mais porque eu fiz um cursinho preparatório para admissão, para fazer esse curso, e eu fiz em um colégio que era esse grupo escolar São José onde eu tirei o meu diploma, mas o exame de admissão era com os irmãos na salistas, é uma coisa que eu volto ali nos 06, 07, 08 anos de idade. Meu pai é umbandista, eu ia na umbanda com meu pai, que era normal isso, você vê o cenário no quintal de casa, a gente ia lá no centro de umbanda e depois em casa como criança a gente fazia a sessão, lá a gente conhecia todas as pessoas, eles recebiam preto velho. Eu fazia a sessão, eu era o Ogan, me lembro que eu fiz um banquinho de madeira e o banquinho de madeira saia o som na madeira. Então eu tocava no som de madeira e cantava os pontos de umbanda, minha irmã, meus primos, tudo lá no quintal recebia as entidades, aquela folia e fazíamos galhofa, zombávamos, isso dentro de casa, e para ir para a escola a minha mãe conversou com uma senhora lá para que eu fosse estudar no Instituto Cristóvão Colombo. Eu fui, me lembro que eu entrei com 06 anos porque eu sou de abril, tinha que fazer a primeira comunhão, eu chegava lá no padre ia confessar. “O que você pecou, olha para Deus?”. “Eu fui lá no terreiro de umbanda”, o padre falava “ está bom, vai lá rezar três Pai Nosso, Ave Maria”, então eu confessava, porque no colégio tinha o boletim e era obrigatório você assistir à missa. No primeiro ano eu não tinha dinheiro, minha mãe não tinha dinheiro para eu comprar o terninho para fazer a 1ª comunhão, não fiz a primeira comunhão. No 2º ano também, minha mãe não tinha dinheiro para fazer a 1ª comunhão. Então quando no 3º ano, eu fui dispensado porque não tinha feito a 1ª comunhão no Cristóvão Colombo, mas do ponto de vista de estudo foi legal porque era integral, fiquei 02 anos estudando, eu me alfabetizei nesse período. No 3º ano, eu fui para o grupo escolar São José e fiz a primeira comunhão, onde vocês vão ver é AFAI que a gente chamava de seminário, ali naquela igreja que está lá até hoje na Avenida Nazaré, eu fiz a minha 1ª comunhão lá. Foi isso o que ocorreu, termino e eu não consigo dar sequência, parei e fui para festa, 12 anos já comecei andar com os mais velhos, sábado durante o dia trabalhava, eu fui trabalhar, eu já comecei com 13, 14 anos trabalhar em uma metalúrgica, naquelas pequenas metalúrgicas, naquele período que eram as fornecedoras de peças para montadoras, comecei trabalhar como metalúrgico. Um dia o Sapé falou, “Xuxa, 14 anos, porque você não vai estudar, dá um jeito, você tem que estudar, ou você entra na escola, você vai estudar, ou você não vai mais para as festas com a gente”. Chamou um camarada, o Nelsinho, "Vem cá, leva o Xuxa lá para estudar”. Ele falou isso na segunda-feira, na quarta-feira já estava procurando uma escola para novamente estudar. Foi esse período. Eu ouvia muita rádio, muita rádio. Me lembro que eu ouvia de manhã o reverendo, aquela Brasil para Cristo, me lembro disso, você saía de manhã para trabalhar, ouvia o Brasil para Cristo e dava a notícia na Rádio Tupi, dos discursos do Martin Luther King. Eu não sabia o que era racismo, mas vi que aquilo me entusiasmava. O discurso do Martin Luther King, “olha a briga, luta pelos direitos civis!” É importante falar esse trecho, a dona Neuza que é uma mulher de um homem que era dono do posto de gasolina, minha mãe lavava roupa para ela, ela falou assim: - Por que o seu filho não estuda? Quando foi nesse período, eu voltei a estudar e a dona Neuza pagou a escola para mim por 02 anos, o ginásio, porque quando minha mãe lavava roupa, essa história da infância é legal falar, porque pensando dos termos atuais, minha mãe lavava roupa que era para aquelas famílias de classe média. Então naquela época se passava roupa com aqueles ferros pesados, que a roupa tinha que ser engomada, que tinha tudo isso e eu ia entregar a roupa. Me lembro que a minha mãe lavou a roupa para uma professora que foi minha no Cristóvão Colombo, eu levava com o maior capricho, não podia amassar a roupa que é engomada e entregar. Estou falando esse lado de sobrevivência e como as coisas vão acontecendo com você. Depois eu saio do 4º centenário e faço transferência para o Alexandre de Gusmão, isso no 2º para o 3º ano do ginásio, um professor de química fala que nós vamos fazer uma passeata por causa do aumento da passagem do bonde, e eu vou para essa passeata que é sobre a ditadura, entre 15, 16 anos entra esse processo, vir no Teatro Arena assistir Navalha na Carne com o Paulo Daniel Filho, Ruthinéia de Moraes e o outro ator era Paulo, o assisti no Arena conta Zumbi, eu andava sozinho para assistir, mas já com essa ideia de fazer alguma coisa, fiz o ginásio, depois encontrei com os outros amigos, mas aonde me entusiasmou, que eu comecei a ter sensibilidade, foi quando mais a frente eu vou fazer cursinho. Eu encontro com o Milton Barbosa, com o Miltão que acontece nessa fase de adolescência, 14, 15 anos, como havia esse trânsito Bixiga-Ipiranga, nós se encontrávamos nas festas, as festas eram nas casas de família, então o Milton por exemplo, é meu amigo de adolescência, Milton, Madruga, essa turma são amigos de adolescência, então essa coisa sempre ficou muito latente de que tínhamos que fazer alguma coisa. Nesse período a gente já começou a pensar, surgiu aquele movimento de alfabetização, a gente começou a pensar em fazer nas escolas de samba eu e o Miltão, de fazer uma escolinha, vamos fazer na Vai Vai, mas foi um período que eu já estava sentindo as coisas do movimento negro e contato, eu me lembro, eu comecei a conhecer a militância do movimento negro. Então essa turma dos anos 30, dos anos 50, nós começamos a entrar em contato com eles. Nossos encontros eram domingo de manhã na feirinha da República, que eu encontrei com Aristides Barbosa, com Solano Trindade, com Ciro Nascimento, com o Jangada, com Odacy de Matos, nós começamos já um grupinho, a ter essa formação, e nós nos aglutinávamos também no cursinho, foi esse o processo que nós começamos a desenvolver, e depois entramos na USP, vem a coisa do movimento estudantil, mas essa articulação com o movimento negro, com a questão racial, nós já começamos a ter ali.
P/2 - Tinha dificuldades, tinha algum tipo de cerceamento, às ideias de vocês?
R - Sem sombra de dúvidas, o mito da democracia racial, não existia racismo no Brasil, e daquela experiência dos anos 30 que a Frente Negra Brasileira se transformou em partido, não tinha, mesmo no meio estudantil, a esquerda não falava sobre isso, vocês não imaginam a dificuldade que foi nós introduzirmos a questão racial no debate do movimento estudantil, foi muito difícil, porque a esquerda tradicional era contrária, a afirmação era que a questão de raça e gênero dividia a luta de classe, esse era o argumento da esquerda, do período, foi muito difícil, se colocar, digamos assim, luz nesse tema, nós temos lá com Florestan, com Roger Bastide, com essa turma, porque o que movimento é interessante neste período. Ao ter contato, por exemplo, com o José Correia Leite, que eu fui parar na casa do José Correia Leite, desde criança eu andava do lado da casa do José Corrêa Leite, mas eu fui conversar, eu tinha 25, 26 anos de idade, que eu fui saber que aquele senhor era líder da Frente Negra Brasileira, não sabia quem ele era, a minha tia morava do lado da casa dele, eu sempre passava por lá, um dia eu estive na Maiara e ela falou, “Rafa, vamos na casa do Zé Correia Leite”, falei “vamos”, porque nós já estavamos na USP, no movimento negro, montamos uma associação lá no Ipiranga. Fomos lá, olhei e falei, “aqui que ele mora?” Eu passei a vida inteira lá, e fui conhecer ele adulto. Esse processo de enfrentamento do racismo no período da ditadura que acaba acontecendo. Como é que isso se dá? Temos que olhar isso. Porque nós andamos.
P/1 - Você consegue narrar alguma conversa, algum debate, alguma discussão que marcou a sua vida nesse período, uma cena, uma semana, alguma coisa que foi muito decisiva para você?
R - Sim, tranquilamente. Nós estamos fazendo cursinho universitário, porque quando eu tinha 10 anos e ia levar a marmita para o meu pai, tinha o engenheiro Srº Luiz, me lembro que ele andava de óculos, um chapelão, falava assim, “Osvaldo, faz esse menino estudar”, meu pai pedreiro, eu falei, eu vou ser engenheiro civil, se eu pretendo estudar, com tudo o que eu falei para vocês. Não entrei lá, não entrei cá, mas claro, o que vou decidir, vou ser engenheiro. Neste período ainda do cursinho universitário, Bixiga, nós também montamos um grupo de negros ali. Paralelamente essa história de encontrar com a intelectualidade negra lá na praça, sobre a ditadura, porque os caras, “negro não faz nada”, eles não botavam muita fé na gente, que a gente podia fazer alguma coisa. Então a gente transitava com tranquilidade. Obviamente lendo todos esses autores, comprando livro na livraria Aurora, naquele período em que você não podia andar com a capa do livro exposta, você tinha que cobrir a capa do livro, os livros nesse período da ditadura nós encapávamos, ninguém sabia o que você estava lendo. Via que você estava lendo um livro, mas o livro encapado. Foi esse momento. Um momento muito forte, marcante que eu lembro, foi uma reunião na casa do sociólogo Eduardo de Oliveira e Oliveira. Quem estava passando por aqui? Maicon Mitchell. Michael Mitchell era um estudante que estava fazendo doutorado pela Universidade de Harvard. Ele veio daquele programa de cotas nas universidades. Então ele estava estudando o movimento negro no Brasil de 1.900 a 1.970. Então nós fomos ajudar o Michael Mitchell, fizemos essa reunião na casa do Eduardo, e ali virou um lugar de muito debate. Com o Michael Mitchell nós fomos entender o fazer trabalho de campo, entrevistas, encontrar pessoas. Então a ideia de pensar, de sair, de se organizar passa por esse período, porque nós começamos a pensar em associações, montar grupo de teatro, essa geração mais antiga que eu falo, pensava na dramaturgia negra. Então as primeiras ações que nós fizemos foi na parte da cultura, vamos montar um grupo de teatro, vamos fazer isso, este é o processo de organização, como nós vamos se organizar? N grupos e entidades. No movimento estudantil, já na USP, vai começar a surgir a ideia dos jornais. Então, naquele período, nós rodamos o jornalzinho Árvore das Palavras nas gráficas lá na USP em relação com o movimento estudantil, começamos a rodar e escrever, fazer textos. Os negros se concentravam mais no Mapping, tinha os locais de muita concentração de negros, porque isso que é interessante. A minha infância, a adolescência eu só vivi basicamente no meio de negros, socialmente no meio de negros, o nosso pedaço, ali onde eu moro e onde eu nasci, era um pedaço muito legal que tinha brancos, negros, mas predominava a cultura negra. Você vai ver um que eu chamo, que é meu irmão, que nós nos tratamos como irmão, que é meu irmão de criação, que a minha avó tomou conta dele, ele é polaco, a mãe dele veio trabalhar como empregada doméstica do Paraná para cá, minha avó tomava conta dele. Então ele é um cara hoje que dança samba rock, tudo que você for imaginar, você vê aquele loiro lá só no samba rock. Que espaço que um branco que dança samba rock tem no meio dos brancos? Nenhum! Agora que começou essa história de saber dançar samba rock, aí está aquele loiro lá, no meio de todo mundo preto, porque também chega um momento que vai tendo essa divisão, você vai ficando adulto para adolescente, as pessoas já não te chamam mais para festa, a vida não foi fácil assim. Você vai namorar, relacionamento, está bom, está legal, para jogar bola, mas não entra em casa, isso que aconteceu, só que não tem racismo, como é que você vai se situar? Não tem racismo, cara, sobre a ditadura foi isso. Nós também tivemos contato naquele período com uma história, uma ideia conservadora do movimento negro, porque nós vamos para um processo que eu falo de experiência dos movimentos de libertação, do movimento de direitos civis, do movimento hippie, do movimento de mulheres, isso vai bater conosco nos anos 70, que a gente começa a se organizar esse inter-relacionamento, a esse diálogo. Mas foi difícil. Não pensem vocês que foi mamão com açúcar pautar o racismo na esquerda. Não foi. Obviamente, nós tivemos que ir para a clandestinidade, entrar em uma organização. De repente, em meados dos anos 70, toda liderança negra se organizou na clandestinidade, tem gente que vai presa, que vai acontecer tudo com o preso comum, vamos lá no pavilhão 08 aqui na Cruzeiro do Sul, dentro da Cruzeiro do Sul, nós encontramos vários caras que foram motoristas, eram negros, estavam na luta contra a repressão é que não apareceram, estavam lá. Nós montamos núcleos dentro da detenção. Tivemos a experiência didática, a gente vai lá e organiza. Quando a gente sai para a rua em 1978, nós tínhamos diálogo, obviamente com os setores de esquerda que veio, e temos que dar nome, endereço, quem começa a dialogar conosco para fazer esse debate é o pessoal da quarta internacional, trotskista, começa a dialogar conosco para valer, é coisa séria, de pensar nessa experiência da gente amadurecer, mas nós já estamos em um movimento estudantil fazendo ações, mas articulando, e não foi fácil sair disso, conseguimos sair, fazer esse processo de construção não foi um processo tranquilo, nós falamos o seguinte. Nós temos um caminho a seguir. Quem são nossos aliados históricos que nós podemos construir? É com a esquerda! Mas fazendo críticas, foram surgindo todo esse conjunto de experiências, que foi nos levando a isso. Então fala assim, como é que surge? Ela surge de um fato, um sentimento lá do estudante de 16 anos ouvindo o discurso do Martin Luther King, isso é real, vai fazer na passeata, isso é real, vai na escola, você é mosca no leite. Então você não tem capacidade de expressar, de colocar isso daí. Você vai na escola, isso não acontece. Você vai no meio do negro também você tem um problema de ausência dos negros nas escolas, na escola formal, você tem a escola de samba, você tem o candomblé, mas você tem ausência dos negros, aí falta interlocução, e o que começa a aparecer é meia dúzia de gato pingados, um aqui o outro lá, o que nos leva a uma relação de 50 anos como nós temos hoje, essa turminha que nós encontramos nessa fase da adolescência depois se espalha pelo Brasil, mas nós estamos deste lugar. Qual o movimento negro? O movimento negro passa também a ter uma referência, uma coisa que é legal na resistência negra, ela passa por esse espaço da cultura que são as escolas de samba, os candomblés, mas também com esse fator coletivo ele surge, isso vai tomando corpo, então muita gente que naquele momento nunca tinha passado por umbanda, depois que o cara vira professor de universidade, depois vai para o candomblé, porque não tem o que fazer, depois você influencia, você vai ver a influência nesse processo, mesmo na igreja católica, quando você vê hoje uma pastoral afro, os agentes pastorais negros, ou seja, a igreja católica também passa a fazer a sua reflexão. Acho que esse processo todo eu acredito que não foi só para mim, mas isso influencia todo mundo. Agora, um momento em que eu tenho tanta afirmação de falar sobre isso, passa pelo movimento estudantil, o fio da meada, o gosto da luta de fazer, de enfrentar, a minha história de vida me mostra isso, por exemplo, eu precisava, sempre tive que trabalhar e estudar, eu me lembro quando tinha 18 anos, um amigo meu de vez em quando falava, “Rafa, vamos sair daqui, vamos para Europa, tem um esquema, a gente pode pegar um navio, vamos por lá, a gente vai trabalhando, vamos passar um período lá, depois volta”. Eu nunca pude fazer, eu trabalhava em uma loja de acessórios, isso com 17 anos, aquela idade de exército que você não encontra emprego. Eu fui trabalhar em uma loja de acessórios, que era do filho da patroa da minha mãe. Na Rua Nito de Moura, tinha aqueles guardas de trânsito que atravessavam os estudantes que naquele período falou para mim, “você quer estudar? Entra na Guarda Civil, faça carreira única”, em 68, eu estou estudando e entro na escola civil, faço a escolinha na academia de polícia, no colégio, volto de uniforme, aí a casa caiu, os meus amigos que eram do colégio, se afastaram de mim, mas eu já estava envolvido com essa coisa. O professor de matemática, estudante de CPOR, a gente bate de frente. Porque o cara defendia uma coisa, eu defendia outra coisa como aluno, e aula de matemática, não pensa que é outra aula, estou falando do clima do período.
P/1 - Porque, como é que é?
R - Uma coisa que é importante chama-se postura. Quando você é jovem, e no meu caso você tem as suas ideias, não estão todas bem organizadas, é óbvio, mas você faz o enfrentamento, eu já tinha feito a passeata lá contra o bonde, eu já tinha bafejado, estava ouvindo, eu estou vivendo um ambiente, um clima, e tem um olhar crítico contra a ditadura naquele período, eu falo que é mais sentimento do que razão, ausência de informação, é mais sentimento do que a razão, mas você faz um enfrentamento para depois você chutar tudo para o ar. Por exemplo, eu estou no movimento negro, era uma questão de trabalho, mas mesmo na guarda civil, que depois se transformou em polícia militar, eu organizei núcleos de negros dentro da polícia.
P/1 -Essas histórias são pouco contadas, não é Rafael?
R - Sem sombra de dúvida, que são pouco contadas, na verdade não existem. No meu caso, como eu já estava militando no movimento negro, eu fui, eu entrei com 19 anos, passo a entrar no movimento negro e não tinha, não havia, era um trabalho, então eu não tinha nenhum problema na Vai Vai, não tinha nenhum problema no candomblé, não tinha problema onde eu andava, eu andava no meio negro, eu não tinha nenhum problema, e as pessoas sabem o que você é, sabe o que você faz, e o que você milita. Um dado momento que é falado no mundo estudantil, porque quando eu entro na USP, eu fui uniformizado, fui fazer minha matrícula em ciências sociais. Eu não tinha passado a experiência no colégio? Eu fui uniformizado cara, se você pegar minha carteirinha de estudante eu estou uniformizado, mas militante do movimento negro.
P/1 - De policial civil?
R - De guarda civil.
P/1 - Na sua casa, seus irmãos, pai, mãe, como que eles assistiam isso, o que eles sabiam?
R - Nada. Você acha que eu vou falar na minha casa que eu era militante da liga operária! Eu fazia reunião lá. Eu fiz reunião de célula lá na minha casa, grupo de formação na minha casa, juntava aquela negrada, trazia informação, mas eles não entravam, tem a ver, uma coisa que é informação, escolaridade. Eu sou a primeira pessoa da minha família a colocar o traseiro em uma faculdade, mas no entanto quando baixou a repressão, nós tivemos orientação de queimar todos os documentos para não ser preso pela ditadura. Eu fui no quintal e queimei todos os papéis, aí que meu pai fez uma conversa dura comigo.” Rapaz, eu sei o que você está fazendo, eu percebi você queimando aqueles papéis”. Ele tinha vivido isso, um homem, ele sabia o que era isso, mas nunca influenciou, nunca discutiu por isso, mas tinha aquele olho do pai que olha o filho, eu achando que eu era espertinho. Meu pai falou na hora que me ouviu queimando os documentos. Eu estava na liga, foi no mesmo período que nós queimamos, foi o mesmo período da morte do Herzog. Período que nós estamos fazendo Árvore das Palavras. Nós estávamos a todo vapor. Então a minha família, até por eu ser talvez o filho mais velho e ter estudado, tinha um sentimento de orgulho, no sentido de estar trabalhando, estar estudando, estar se esforçando, é lógico que tinha um sentimento de orgulho.
P/2 - E você também?
R - De uma certa maneira sim, orgulho no sentido de responder para os meus pais, orgulho por exemplo de forçar a luta, falar nós temos que mudar, mas isso é tudo antes de 78, porque nós tínhamos a responsabilidade de dizer que nós existimos. Que o Brasil era racista, sob a ditadura, nós fizemos isso sob a ditadura. Houve a repressão do movimento estudantil da PUC, houve aquele ato. Não! Vamos para a rua, porque nós não vamos ser presos, nós não vamos, nós vamos fazer a luta para não sermos dizimados como presos comuns. A repressão funciona da desorganização do negro nas escolas de samba, essa repressão no candomblé, nós vamos fazer isso, então o sentimento naquele período foi este de termos esta responsabilidade, é importante dizer que nós participarmos dos dias nacionais de luta, nós estamos lá presente nos dias nacionais de luta. Toda mobilização, se organizando nas tendências estudantis, disputando DCE, indo para a rua. Tentamos organizar o 1º de maio, fomos para o ABC tentar organizar o 1º de Maio, nós fizemos a luta que estava colocada para aquele período, nós fizemos um ato público e bem organizado por sinal, porque nós tínhamos que fazer um ato político, quando na escadaria não deu para escamotear porque a imprensa cobriu, para organização de esquerda que nós colocamos também, vamos falar, a vida como ela é, para não ficar a coisa, ou seja, todo esse esforço político de luta e de companheiros daquele momento vieram para nós, com o entendimento daquele momento que isso era necessário. A partir disso passamos a se organizar. Aí o que que ocorre também algo interessante, talvez daqui por diante a esquerda entenda, nós fazemos essa luta tudo, mas de forma marginal, inclusive na luta contra a ditadura. Tem o ato pela anistia, o encontro pela anistia da PUC. Nós dizíamos que o negro e o preso comum. Nós dizíamos que o ladrão de galinha, aquele cara que furtou uma galinha, aquele que furtou aquilo para se alimentar, que era um preso político. Nós defendemos isso no encontro. Quem estava lá “não, aqui preso político aqui é só preso por ideias”. Com o nosso documento fizemos esse enfrentamento, preso político aqui, são presos por ideias, estou falando em 79, estava eu, Adãozinho, Miltão está documentado. Então, aquelas pressões não entram na pauta, isso não pode entrar na pauta, porque nós já tínhamos tido o Nininho de Obaluaê preso, nós tínhamos entrado lá em 75 nas prisões, nós tínhamos feito todo esse movimento. Teve a experiência da Revolta Asiática nos Estados Unidos que também trouxe essa experiência para a gente, mas foi isso que ocorreu, com aquilo que nós produzimos nesse período do ponto de vista de produção de conhecimento, quando você toca, olha o racismo é estrutural, ou seja, quando nós começamos a pautar isso há um impacto também na esquerda no sentido de entender esse processo. Nesse sentido, se falarmos geracionalmente nós nos constituímos com uma geração vitoriosa. Porque essa pauta está colocada, não é que ela está colocada no Brasil, essa pauta está colocada no mundo. E se nós analisarmos o que ocorreu em 78, ela tem o mesmo significado do que ocorre com as condições brasileiras, mesmo significado que ocorre com George Floyd. O George Floyd obrigou a luta contra a violência policial, e a discriminação racial mobiliza a sociedade americana e mundial sobre isso. Naquele período sobre a ditadura com menos estrutura, nós, com o caso Robson, conseguimos também fazer esse esforço. Mas quem é que fala isso? Temos que olhar. Quem fala isso nesse período é o jornal Versos, que era Verso Latino América, nós entramos lá e falamos para o Marcos Faerman, nós somos afrodescendentes, esse jornal tem que mudar o título, tem que ser Versos Afro Latino América. O Faerman entende isso e fala, “temos que fazer essa mudança”. E nós tivemos então um grupo que parte passa a escrever, passa a ocupar esse espaço na imprensa alternativa, foi este lugar de voz que nós tivemos em um período.
P/1 - Essa discriminação acontecia até na hora de ser preso, então os brancos iam para outras alas, é isso, na penitênciaria e os negros não?
R - Por que nós preto, sempre tivemos um pé, vivemos no fio da navalha. Vou te contar um caso. Tem um primo meu mais velho, é legal falar sobre isso: Dirceu. O meu primo Dirceu trabalhava ali no mercado, nas docas, era um cara forte, usava droga, maconha, traficava, tinha essa vida, e esse foi um cara que foi criado na Febem, era RPM no período dele. Quando eu estava nessa fase de 18 anos, o Dirceu foi preso, eles mandavam aqueles, o pessoal chama de papagaio, mandou um bilhete, chegou um bilhete em casa. O Dirceu está preso, está falando para você avisar o advogado dele que ele está preso. Isso no Presídio Tiradentes, e algo tem que ver, que as famílias negras, o único lugar que pós abolição começa a ter trabalho é no serviço público como servente, e um dos caras que trabalhava lá no presídio era o Cláudio, o Claudinho que era lá de cima. Ele falou, “você vai tal dia que tem as visita das família dos terroristas”, eu lembro disso, falando dos terroristas. “Tem visita lá, então eu consigo deixar você ir lá falar com o Dirceu”. Eu fui nesse dia, ele trabalhava lá, abriu e eu fui levar alguma coisa para o Dirceu, acho que o recado do advogado dele, eu falo, “eu falei com o advogado”, eu sei que eu me lembro que era um cubículo que eles estavam presos, tinha umas 30 pessoas acho, um mau cheiro, mas o que que eu vi esse dia foi a cena da visita dos presos políticos. Só tem rico aqui, esse cara faz USP, eu estou falando da minha mentalidade na época, o meu conhecimento da época. Como é que esse cara está fazendo engenharia e se meteu nisso? As famílias bem vestida, aquela cena. O filme Batismo de Sangue reproduz aquela cena do presídio, que é o Presídio Tiradentes, aquela cena perfeita, quando eu assisti o filme agora, eu tomei um impacto, eu falei, “eu vi isto, a cena é correta”. Do ponto de vista do cenário, não estou discutindo a política. Você verifica as chamadas condições de vida e o restante da população. Para fazer a escola pública de qualidade, o filho de pedreiro, eu tinha que ter meu pai pedreiro, tinha que ter firma reconhecida. Ele tinha 2º ano e 3º ano. Como? Olha as barreiras. A escola pública era para poucos. Isso no processo vai refletindo. Essas coisas vão acontecendo, mas esse é o famoso chegar à vida real. A vida real foi isso. São aliados, temos que enfrentá-los e fazer como até hoje. Um detalhe, nós falamos o quê? A classe operária no Brasil é negra, a classe trabalhadora no Brasil é negra. A esquerda reconhece isso? A direção hoje dos sindicatos, a direção dos partidos, isso é um fato que está aí nítido na nossa frente. Como que nós vamos resolver isso? Todos os anti racistas têm que fazer o que nós fizemos em 78, juntarmos as mãos e denunciar, até mais ou menos essa conjuntura de hoje, que eles conseguiram, inclusive como também no período da escravidão, não é novidade, também tem seus capitães de mato, vocês sabem disso.
P/1 - Como é que vocês eram vigiados nessa época da ditadura?
R - Nós não sabíamos, mas tinha infiltração. Então se você pegar os documentos, uma menina escreveu os documentos da época, ela foi no DOPS, eu estou fichado, Miltão, está todo mundo fichado lá, tem infiltração no movimento negro. Como naquela época era máquina o de escrever, não sei como os cara conseguiram, tinham fotografia das nossas reuniões de início do MNU, essas coisas, conseguiram ter acesso a documentos. Eles se infiltraram.
P/2 - Você foi preso alguma vez?
R - Não fui preso, eu fiquei aqui, porque eles não conseguiam me prender. Porque para me prender eles tinham que ter me prender como preso comum, eu não roubei, não matei, eles não nos deram o status, se você perceber até hoje o status de preso político. Você já viu algum negro como preso político ainda hoje? Não tinha essa história. Não que não tenha naquele momento negros que não lutaram nas organizações e que não são presos. Haja vista o caso do Marighella, que o filme está aí hoje, mas um militante do movimento negro e tal. Houve pressões em função da relação dessa militância negra com as organizações no sentido de se exilar. Então nós temos os exilados negros, Abdias, Tereza Santos, tiveram que sair do país. Mas prendê-los, ou presos, por combater o racismo, não. Sempre tem um subterfúgio.
P/1 - Até esse reconhecimento então não foi negado pela ditadura, de que a luta era política. Se prender você como um preso político é?
R - Até nos Estados Unidos, se você pegar a direção do Black Panther, ninguém foi preso por organizar o Black Panther, foi preso por drogas, foi preso por um assassinato. Do ponto de vista de enfrentamento do racismo estrutural, a organização política negra foi dessa maneira. A Frente Negra Brasileira foi fechada porque se transformou em um partido político.
P/1 - Quando o senhor era mais jovem, que você falou uns 14, 16 anos, como é que vocês faziam para ir lá do Ipiranga para o Bixiga, ou para o centro de São Paulo. Como é que vocês faziam para ir? Como é que era para se deslocar?
R - O deslocamento era através de ônibus. Que é aquela velha história, você vem para casa dos parentes. Então tinha a família aqui no Bixiga, você tem o aniversário, a coisa vai tomando rumo, por exemplo, eu me lembro que a minha prima Tininha, que é inclusive uma das ícones da Vai Vai, casou-se essa época ali na Rua Treze de Maio, hoje muitos casarões lá foram extintos, porque os casarões tinham a seguinte estrutura, na parte de cima moravam os italianos, nos porões, na parte de baixo, moravam as famílias negras, tinham quintais, tinha espaço, e eu me lembro que eu vim no casamento da minha prima, foi uma coisa muito legal, mas eu não sei que período foi, mas o a aquela coisa do carnaval estava muito animada, muito interessante, ainda pensando no desfile. Hoje na rua Rui Barbosa esquina com a Conselheiro Ramalho, tem um bar que está até hoje, é uma coisa que me marcou foi uma mulher, eu estou falando isso dos anos 60. A mulher entrou no bar, no balcão e falou assim, “me dá uma cerveja”, foi a primeira vez que eu vi uma mulher entrar em um bar, pedir uma cerveja no balcão e beber. Isso me marcou, assim de ver, esse lugar é um lugar diferente, hoje é comum você ver mulheres bebendo. Quando falo também da minha avó, penso nela, como ela foi adiante, naquela fase, nos 14 anos, ela era baixinha, tinha mistura de preto, índio, italiano, eu era mais alto, então ela mexeu aqui na minha fronte e falou, “oi, meu neto”, porque sou eu e uma outra prima que são os mais velhos, “trabalhe, estude e divirta-se”. Uma das coisas mais marcantes. Isso é a cara da minha família. Hoje, por exemplo, as outras gerações têm o que eu chamo de netos. Eu vejo a meninada sai 02, 03, que vão fazer inglês, que vão fazer isso, vão fazer aquilo, tem uma sobrinha, afilhada que está fazendo pós na França, já fez mestrado, as gerações vão seguindo, mas essa matriz não foge, por exemplo, falo do meu avô Januário tinha salão de baile, era amigo do Garita, eles começaram a fazer o Paulistano da Glória, era essa ambientação. Um caso, chego em casa de um jogo de futebol, estava aborrecido, está meu pai lá nessa fase, uma roda de gente umbandista lá no quintal, domingo, depois do jogo de futebol, meu primo falou, “mano, hoje tem toque lá na casa que a minha mãe vai, quero que você vá conhecer”, foi a primeira vez que eu fui a um candomblé, até então tinha ido para a umbanda. Fui na rua Mucuri, na Tenda do Caboclo Rompe Mato. Quem era o pai de santo lá? Caio de Souza Aranha, um homem de Xangô. O Caio de Souza Aranha é nada mais, nada menos o cara que fundou o Axé Ilê Obá, o Caio era coreógrafo da Globo, um cara que tinha muita andança pela África, esse é um outro momento muito interessante, como dizia o Solano, “eu vou à macumba”! Nós começamos também a sair de turma para ir para as festas, os candomblés na casa de fulano, na casa de ciclano, lá é Ketu, essa aqui é Angola, esse aqui é filho de fulano de tal, esse é filho de ciclano de tal. Eu me lembro que com 17, 18 anos, nós fomos para a casa do pai Alvinho de Omolu, ele queria construir, fazer a casa dele aqui. Então nós saímos em um grupo de jovens, era de final de semana, em Ae Carvalho, nós ficamos lá fazendo massa, levantando parede, levantando as primeiras, espaço do pai Alvinho lá, quarto, e foi aí que ele jogou para mim, a primeira vez que ele fez o jogo para mim. Abriu o jogo de Búzios dele, falou assim, “olha, você é filho de Obaluaê”, foi a primeira vez que eu joguei os búzios, “mas eu quero ver aqui o que dá pra fazer por você, mas está dizendo aqui que você é rodante, mas eu acho que você daria um bom Ogan”. A partir deste momento você vai se influenciar, já está enfronhado no candomblé, nas coisas do orixá, vai na casa de um, na casa do outro. Tem um amigo que era meu amigo também, de adolescência, que é o Osvaldinho, que depois virou Tata. O Osvaldinho começa a estruturar a casa de candomblé dele, pequenininho, eu me lembro que nessa fase já nos anos 70, um dia quem vai lá na casa dele, Amina Gresik e o Abdias do Nascimento. Isso já depois do movimento, o Abdias vai, e começa uma outra história falando do Candomblé. Uma história muito interessante que a Raquel Gerber depois faz um documentário sobre isso chamado Ori, a Raquel Gerber se baseia na tese da Beatriz Nascimento do Quilombismo, falando do quilombo como uma continuidade, ela faz quase que uma análise, uma narrativa, quase uma análise comparativa, mas ela vê essa continuidade vendo o Ylê Xoroque e a Vai Vai, e mostra isso, demonstra esse processo, porque ele era do vai, ela mostra essa relação. Então, você vê que digamos do Quilombo da Saracura, ligado lá àquilo que não poderíamos chamar de quilombos, que acaba ocorrendo onde surge uma escola de samba. Então você tem na mesma rua que tem o Ilê Xoroquê naquele momento, ou seja, tem a escola de samba Garotos do Ipiranga, que a minha família saía, tem a escola que depois se transforma em Acadêmicos do Ipiranga, acho que até hoje é uma escola de 3º grupo que está viva. Mas se você olhar aquele núcleo está ali, na rua de cima está a família do Lino Guedes, tem o nome dele Lino Guedes, que foi o cara da Frente Negra Brasileira, naquele canto ali, naquele território está o Black Power. O Black Power é um time de futebol de negros que apareceu muito atletas que depois foram jogar no Palmeiras, no Santos, foi para a vida profissional. Então, é um pouco quando se fala voltar nesse momento, é isso que eu posso falar para você.
P/1 - E você falou pra gente fora que você é paulistano, né?
R - Mas cada vez você vai se descobrindo. A dinâmica dessa cidade te deixa muito confuso. E para você descobrir quem você é, porque a cidade não permanece, você vê onde minha família morava foi destruído no Bixiga, a tal de urbanização, a tal das reformas destrói. Então você fica falando, não, quem eu sou? Qual é a minha identidade? É difícil você falar desse lugar. E aí você tem que conhecer outros lugares para entender a própria dinâmica de São Paulo, é interessante isso, você passa por aquela baforada, acho que é melhor morar no interior, “eu quero uma casa no campo” aquela coisa, aquele sucesso das músicas de MPB. Eu falei, eu acho que eu vou. Um dia acho que eu vou morar no interior. Agora, quando eu pude andar no interior, ir para o interior, eu falei, é muito bom a passeio, essa monotonia não me serve, eu não consigo, não tem jeito, não tem nada a ver. E interessante é que é muito legal isso. Eu me lembro de menino ali na rua, a gente brincava, a primeira rua asfaltada lá é a rua de baixo onde eu moro que passava o ônibus, os carros. Então de criança a gente ficava contando, olha tal marca, tal isso. Essa era a brincadeira que a gente tinha de criança, então fica essa história, e passava os aviões. Eu fui andar de avião quando eu fui trabalhar no aeroporto de Congonhas, isso já no início dos anos 80. Estavam construindo a SESP, como eu falei eu trabalhava na Guarda Civil, ali já era polícia militar, era 1971, 1972, que eu tinha entrado em 1968 na Guarda Civil. Houve a unificação em 1970, e ia chegar uma turbina da SESP, e tinha que fazer a vistoria da turbina da SESP e a turma da receita ia fazer a vistoria, eu trabalhava ali na área internacional, porque é legal falar sobre este período da ditadura, você passageiro vinha do exterior, e passava pela triagem da companhia aérea, passava a triagem pela saúde dos portos, passava pelo SNI que tinha uma agência lá, e depois você passava no final pela receita que verificava suas bagagens, era essa estrutura de triagem na ala internacional. Em São Paulo, tinha a polícia marítima aérea e a guarda civil. Então em 1968, a guarda civil incorporou a polícia marítima e aérea, então a guarda civil também passou a trabalhar nos aeroportos para fazer a fiscalização de passaportes. A polícia marítima e aquela guarda civil fazia isso, passava pelo SNI, passava pela saúde dos portos, depois chegava, eram 05, essa a triagem que era feita. A guarda civil depois polícia militar, que aquela estrutura tinha toda a cultura da polícia marítima aérea que não era militarizada, que era regulamentada pelo estatuto do funcionalismo público, era fardada, mas era estatuto, então era mais tranquila a relação, depois houve um processo de militarização e uma hierarquização extremamente pesada, que ocorria nesse período, esses agentes das empresas passavam lá. Um dia eu fui convidado pelo Alexandre, que era relações públicas da da SESP, falou “Rafa, vai chegar uma turbina lá, a turma da receita falou que nós vamos ter que fiscalizar lá, você não quer ir?”. Falei, “oportuno andar de avião”, aquele moleque, fomos em um Beechcraft com 08 passageiros, descemos na Ilha Solteira, estava em construção, chegou aquele avião com a turbina, me lembro que eu passei 03 dias de rei lá, e a estrutura do canteiro de obras era a parte de residência, era hierarquizada. Tinha os técnicos, os engenheiros, e tinha peãozada, tudo hierarquizada as casas, e tinha um hotel que tinha a suíte presidencial, quando tinha visita da autoridade tinha esse hotel, porque hoje a cidade de Ilha Solteira é nada mais nada menos do que aquela estrutura de construção da usina que permaneceu, que virou cidade, mas fui de avião, foi a primeira vez que inclusive. Tinha um charme na época, porque gostava de ouvir a rádio Eldorado, eu sempre ouvia a Rádio Eldorado com 10, 11, 12 anos, um programa que tinha na rádio que era um piano ao cair da tarde. Então muito tocador de jazz, muitos pianistas de jazz, eu sempre fui envolvido com isso. Naquele período, falava-se dos banquetes no palácio do governo, com tantos talheres e falava do cardápio. O cardápio, a entrada falava-se de melão com presunto, aí quando eu estava lá na Ilha Solteira, foi a primeira vez que eu vi o tal do melão com presunto, e é interessante isso de falar um pouco dessa parte, a gente almoçava só em casa, na casa das famílias, quando eu fui trabalhar no aeroporto que foi a primeira vez com 19, 20 anos, que eu entrei em um restaurante, fui lá no restaurante da área internacional do aeroporto. Então você tem que aprender vendo as pessoas fazer. Então eu sabia, “o dia que você for em um restaurante, você não sabe o que está lá, os talheres, presta atenção no que estão fazendo lá na frente. E aí o pessoal que tinha mais experiência e você vai. Eu estou falando essas coisas do ponto de vista de como a tua vida vai acontecendo, e vai ocorrendo as oportunidades, você está trabalhando, você precisa, eu entrei porque eu estudava e eu tinha horário de estudante, como eu era estudante eu fui trabalhar, fazer o horário lá na ala internacional, você vai e vai aprendendo esse monte de coisa, foi isso. Depois já no movimento negro, já estava na USP que foi a primeira vez que eu peguei um avião, um jato, foi em um seminário que teve que o Instituto da (Joanel Bain?), com o mestre Didi que fez um seminário em Salvador. Falou, “Rafa queremos que você venha participar aqui”. Isso já em 1982, 1983, então foi a primeira vez que eu peguei um asador e fui lá para Salvador durango, mas eu falei, “não vou perder oportunidade, tenho que chegar”, fui, militante, fomos lá, fizemos um belo seminário, foi muito legal. Nesse seminário, é interessante que já com acerto de contas, tem um bastidor ali que é importante falar, tem um seminário em si que foi importante, o debate político, os nagô e a morte, o que se produziu, do ponto de vista da reflexão que está sendo feita no período da cultura negra, da ancestralidade e tal. Mas apareceu um monte de gente lá, que tinha problemas, que foram presos políticos, professores. Na ditadura que um não tinha aguentado o tranco e tinha dedurado outro, isso aconteceu, no seminário que você reencontra, já no início dos anos 80, e após a luta pela anistia as pessoas já tinham retornado para o país, ainda tinha esse clima. Eu me lembro que nesse período aconteceu, Claudio Moura estava, a Joana, Carlos Hasenbalg que estavam por lá, é importante situar isso. Acontece uma coisa na tua vida aqui, você está em um outro ambiente e o clima está rolando, depois teve uma esse ajuste. Muitas pessoas em função da tortura na ditadura quebraram, isso é interessante a gente pensar, pontuar isso e em um outro momento ser acertado nesse lugar, rolou isso.
P/2 - Lembraram no sentido de romper uma com as outras ou internamente?
P/1 - Deduraram, né?
R - Porque o que acontece, preso político foi todo mundo a mesma coisa. Você é de esquerda, você é oposição, junta todo mundo. Mas quando você tem a morte do Marighella, por exemplo, foi uma pessoa que foi presa, torturada e deu ponto, então quebrou o esquema de segurança, por isso que o Marighella foi assassinado, porque foi feito uma tocaia em relação a ele, e isso ocorre porque a tortura foi brutal, não foi uma coisa leve, quando mostra, se você ver o filme Batismo de Sangue, você percebe, o Frei pira, pós passar por um processo de violência tão drástica, gira conflitos nesse período.
P/1 - Mas neste momento nos anos 80, você está falando uma coisa realmente muito interessante. Chegou o momento em que essas pessoas que quebraram, reencontraram as pessoas que foram. E como é que foi essa conversa?
R - Não foi conversa suave, foi conversa dura, não teve nada de amigável, eu estou falando do que eu vi, eu vi o burburinho nesse seminário que eu participei, porque as pessoas se encontraram por acaso, não que elas esperavam que fossem se encontrar, acontece o seminário, daqui a pouco cai lá, teve que ter um bastidor, e teve também lógico, vem a turma do “deixa disso”, a luta é mais ampla, temos que seguir daqui para frente.
P/2 - Em que ano você se forma na USP?
R - Eu não me formo na USP. Eu passo a me formar depois por necessidade de trabalho, concluo a minha graduação na Universidade Bandeirantes, eu volto a fazer Ciências Sociais, peguei meus créditos e faço tudo de novo por questões profissionais, mas eu não me formo na USP.
P/1 - Você falou lá no começo da entrevista que os companheiros falaram que se eu não estudasse, não deixava você ir no baile. E aí você foi estudar, significa que os bailes eram muito bons então para vocês. Onde vocês iam se divertir, tinha tanta coisa, mas fala pra gente que não viveu sse período?
R - Tinha os bailes black, hoje que vocês chamam de baile black era tudo baile black. Então, por exemplo, tinha baile no Palácio Mauá, a gente tinha que ir com essas pessoas que sabiam desses bailes, que eram os mais velhos. Eu tinha 14 anos. Tinha uma matinê que era na sede do Semente Clube na avenida Ipiranga, domingo. Então a gente andava em grupo, se você vai de turma, você está fora da turma. Que coube a mim? Dar um jeito de voltar a estudar. E uma coisa, o Chico faz isso naquele LP, no vinil Ópera do Malandro, a capa não é um terno, uma roupa bonita, um terno de linho, a negrada sempre foi assim, essa coisa de por roupa para as festas, se você for ver as festas aqui na Casa de Portugal do Musicália, você fala assim, (não, eu estou no Harlem). Os caras chegam com umas roupas caras, a mulherada bonita, como é que eu ia deixar de ir para lá! Esse glamour, essa coisa do momento, esse sangue na veia fervendo, não, primeiro que eu tinha que estudar, que juntar o útil ao agradável, não perca tempo, porque eu não sabia, é importante falar sobre isso, eu não sabia os passos que se dava depois do primário. Meu pai não tinha, não sabia. E o Sapê falou assim, “você vai fazer o ginásio, você vai fazer o colégio e depois você vai para a faculdade”. Abre uma luz, “ó, o caminho é esse!” Com 14 anos ele falou, “você vai fazer o ginásio, você vai fazer isso e isso”, abriu a luz. Porque o meu pai não tinha essa informação, minha mãe não tinha, essa informação me veio da rua. Então a informação por exemplo, eu não cai na criminalidade, essa formação eu tinha em casa. “Não mexa nas coisas dos outros, não faça nada”, é uma coisa assim bem que você tem em casa, agora essa parte eu aprendi. Tanto é que eu um dia, eu fiquei uns 30, 40 anos sem ver o Sapé. Aí falei para ele, “João, peguei minha mulher, esse aqui que me fez estudar”. “Eu não fiz nada, não”. “Fez sim, você que me abriu o caminho. Se eu fiz o que eu fiz, se eu cheguei a fazer uma faculdade, foi você quem me ensinou”. Eu fui agradecendo, eu já estava com uns 45 anos por aí 50.
P/1 - Agora esses bailes blacks, conta pra gente, o que tocava, como é que se organizavam as bolachas e o toca-disco como é que era isso?
R - Sempre tem um DJ, tocava Jonathan Jones, Louis Prima, já ouviu falar de Louis Prima? O que tocava, você vai nas periferias, blues, jazz, música de trompete, não tocava na rádio não sei como, mas estavam lá, tanto é que se você for olhar os bailes da Chic Show, da Zimbabwe, dessa turma aí, eles iam lá nos Estados Unidos pegavam uns discos e traziam para cá, mas neste período era isso, eu adolescente, tocava era jazz, rock, mambo, Perez Prado, samba, Elza Soares, Miltinho, e sempre foi isso, essa coisa de se vestir, de se arrumar, de andar, porque é uma coisa, você não podia ter um tostão no bolso, você tinha que estar bem arrumado e estar com a carteira de trabalho no bolso por causa da polícia. Então não andava de qualquer jeito, tem um lado de comportamento se você for ver, que isso se mantém nas escolas de samba, se mantém também nos candomblés. Um dia que tem uma festa é todo um rito, você vê ainda hoje, você vai em uma escola de samba, você vê aquele sapato duas cores, aquela camisa branca, aquele terno, aquela gravata, é todo esse ritual. Os bares negros, as festas negras também, você imagina agora. que Black is Beautiful, beleza negra, essa por parte é incrível! Bom, para você ter uma ideia, eu fui em uma festa de namorado na Casa de Portugal do Musicália que era do mesmo grupo do Chic Show, daqui a pouco o cara anuncia: “olha tem um irmão nosso aqui que vai dar uma canja aqui para nós, está certo? Vocês topam?” Quem é que aparece lá? O Billy Paul cantando “Mrs. Jones”, a casa pegou fogo, por exemplo, você fala isso, Marvin Gaye é das festas black, tem mais outros caras, All Green, Steve Wonder é molecão, mas também tocava Stevie Wonder, é interessante que tocava a Jackson Five, se você imaginar, tocava Dizzy Gillespie, tem mais outros outros cantores, outros artistas que tocavam.
P/1 - Essa questão de andar em grupo também era um senso de segurança pela cidade?
R - Não. A cidade era bem menos violenta, era coisa de se divertir mesmo, de andar em grupo mesmo, isso é da minha turminha, isso desde criança, na rua de casa, “eu sou do tal quarteirão”, “eu sou daquele quarteirão”, “nós vamos jogar com o quarteirão de lá”, aquele senso que você tem desde criança, e na adolescência foi juntando os mesmos gostos, mesmo lugares. Nós começamos a circular pela cidade. Não era só Bixiga que era um ponto de encontro. Como tudo, se vinha para o centro, então você saía dos bairros e vinha para o centro. Um grupo se encontrava na Praça do Patriarca, olha a turma do Patriarca. Outro grupo se encontrava no Anhangabaú, que nós chamávamos em função da calçada ser larga ali no Anhangabaú esquina com a Avenida São João, pensando a São Paulo antiga, nós chamamos aquilo de ponta da praia. Quem que chamava? A turma da Olido, então eram grupos diferentes. Você chegava lá na ponta da praia. “Onde é que é a festa hoje? Na Vila Munhoz, na casa de fulano”. “Onde é a festa hoje? A festa hoje é lá no Jardim Europa, na casa de sicrano”, misturava-se isso, por exemplo, uma coisa muito legal um cara que virou, eu já estava nessa fase, trabalhava no aeroporto, que fazia o receptivo dos artistas negros que vinham para cá, que morreu há pouco tempo, era o Paulo Inglês, o aristocrata. Então, Paulo Inglês chegava, eu trabalhava na ala internacional, ele falava, “brother, quem chegou hoje, quem vai chegar hoje”? Está chegando o James Brown. “Você vai lá assistir o show? Tem o ingresso”. Quando eu não conseguia ingresso, porque eu não estava de plantão, tinha as meninas, lá no Teatro Municipal tinham o tio, parente que era porteiro lá, a gente conversava com ele. “Você vai para as frisas”. Mas eu vi tudo cara. Eu vi o Ray Charles, o Stevie Wonder, a Ella Jerome. E uma coisa que era o seguinte, tem o Aristocrata e tinha os cargos, o salão dos caras era ali na Aclimação com a Vila Mariana. Esses artistas vinham eles queriam estar junto das famílias negras, dos clubes negros. Então o James Brown veio para cá. Onde o Paulo Inglês levou? Levou no Aristocrata, foi na sede do Ari, eu tenho um primo que depois casou com a minha prima, o tio dele era um dos diretores do Aristocrata, um cara mais de classe média, morava na Vila Mariana, esse meu primo tem foto no colo da Ella Jerome, como eu trabalhava no aeroporto, eu também tenho foto com o Dizzy Gillespie, eu tenho foto com a Ella. “O mano, está vindo Muhammad Ali aqui está bom, você vai lá assistir à luta?” Eu vou. Porque o que acontece? O dia que o Muhammad Ali chegou, ele chegou com uma turma, uma equipe com umas 20 pessoas, veio do Rio de Janeiro, Nova Iorque, Rio de Janeiro, e, do Rio de Janeiro, ele veio para São Paulo naqueles aviões electra da Varig, quadrimotor, e ele chegou mais cedo, o avião normalmente chegava 08, 08h30, e ele chegou às 07h30, e veio se hospedar no hotel São Rafael na época, que era o mais novo hotel São Rafael, o Paulo Inglês chegou para mim, “brother, e o homem”? Falei, “já foi, está no hotel São Rafael”. “Você vai assistir à luta”? Eu falei, vou assistir, ele tinha perdido o título por causa da questão da guerra do Vietnã, ele estava fazendo lutas de exibição. Cheguei lá, o Paulo Inglês, “vai para tal lugar”, cadeirinha de semi-ring. O Paulo era auxiliar do Angelo Dante, que era o treinador do Muhammad. “Ó mano, deu tudo certo lá, eu consegui chegar na entrevista”, porque eu falei que eles estavam no hotel. A coletiva do Muhammad era às 15:00 horas, então deu tempo de acertar, ele participou da coletiva sentado obviamente ao lado Muhammad, que ele era o receptivo, todos os caras que vinham para cá, a referência era ele para receber, então todos esses caras foi ele que fez, e eu aproveitei, e esse dia olha que interessante, eu falo, volto para o tal do Ipiranga. Quem faz a final dessa luta? Ele faz a semi final dessa luta, Peso Galo, pós a era, lançou o Cervilho de Oliveira, que fez a final lutando com o mexicano que ele ia disputar depois o título. Então Muhammad Ali faz aqui uma luta exibição com dois sparring, o 1º foi o que ele trouxe, o primeiro sparring 10º assalto, os outros 05 assaltos, ele fez com o campeão argentino, Ernesto Lovel, que era um campeão argentino e campeão sul-americano dos pesos pesados. Foi uma coisa tão impressionante. Ele faz essa luta, faz essa exibição, termina e o Paulo Inglês fala assim, “Rafa, vai lá no vestiário”, eu fui no vestiário, quando chegou no vestiário, Muhammad estava fazendo um relaxamento de 10 minutos. Levantou inteirinho, como se nada tivesse acontecido. Estava no cursinho universitário, pedi, naquelas apostilas, “me dá seu autógrafo”. Do jeito que nós estamos aqui, me deu autógrafo, guardei. Ouvi, porque depois iria sair daqui e ia fazer uma luta no Peru, em Lima, fazer uma exibição. O Ernesto Lovel da Argentina falou assim, “eu não subo mais com esse cara, eu fiz 05 assaltos com ele em exibição não acertei um soco”. Se você vê do ponto de vista da técnica, da arte, do boxe, uma aula aquele homem. Percebe essa ambientação, essa coisa muito facetada da tua vida que você está em um canto, do canto você está em outro, você está estudando, você está uniformizado, aí você encontra com a negrada, e esse ambiente, eu acredito que esse processo de vivência e essa experiência de vida é que deu as condições para mim, para minha geração, de fazer o combate ao racismo, de enfrentar, de ter ao mesmo tempo de você pisar no barro, de repente você que sai do lugar onde saiu, de ocupar alguns outros espaços, que te dá uma musculatura. Entender São Paulo foi relativamente tranquilo, mas na fase adulta, vendo essa dinâmica com a cidade, a pulsação da cidade, para o interior, não quero mais saber de casa do campo. E entender o Brasil, muito bom, ir para Bahia é uma loucura como o Paulistano, quando eu vou para Salvador, eu passo lá uns 15 dias, volto, eu tenho que passar por um processo de readaptação, porque vai lá para o Pelourinho, aquele jeito, eu acho a Bahia uma pequena África. Aqui, com outro modo de viver, um modo de engenharia, e para mim foi interessante quando eu fui para lá, porque eu sou nascido nesse território aqui Brasil, foi o fato de ir na conferência de Durban, nós fomos em uma delegação, com quase 600 delegados na conferência de 2001, no final de agosto, antes do 11 de setembro. Nós fomos para lá. E foi impactante, você botar o pé no continente africano, olhar lá o mar índico, pôr os pés na cultura, eu andei em Joanesburgo, ficamos lá em Durban, aquela conferência mundial que tinha gente de tudo quanto é lugar, de você ver a presença a negra espalhada pelo mundo, as diversas belezas. Passou 12 dias, está bom, vamos voltar para casa. No domingo, chego lá na Rua Oliveira Melo, 1.060, tem ensaio da bateria do Império do Cambuci, o som do surdo, bateu de um jeito na emoção, eu falei assim, “eu sou dessa terra, eu sou desse lugar aqui”, a África é muito linda, maravilhosa, mas eu sou desse lugar aqui, ó o que eu estou dizendo Umbanda, Candomblé, vida, essa mudança da cidade não te faz entender São Paulo, eu hoje olho São Paulo como uma cidade do mundo, onde você tem a possibilidade de viver tudo aqui. Se você quiser falar assim, olha eu conheço e tenho um conhecimento de tudo, do que é um pouco de cultura alemã, italiana, espanhola, arabe, oriental ,você tem essa possibilidade de sair de São Paulo, essa energia que você tem. Agora imagina você falar assim, “eu sou um africano na diáspora, esse é o meu lugar”, então tem a ver com isso, eu falo dessa pulsação, que a cultura negra, a gente fala da resistência e da sobrevivência do povo negro fora da África, tem a ver com a sua resistência cultural e consequentemente reencontros, reconstruções. Eu não tenho dúvida sobre isso, do ponto de vista de você perceber essa vivência real aqui.
P/1 - Tem algum lugar, alguns lugares de São Paulo que você sente mais falta, o que você achou que foi uma perda ter mudado ou ter acabado?
R - Sinto perda de nada. Nós reconstruímos tudo, pode derrubar, nós somos Bixiga, nós somos Saracura, a resistência se reinterpreta, não tem nostalgia não, eu tenho nostalgia do ponto de vista da ambientação, mas para quem trabalhou na USP, contava que lá na universidade, nós cabíamos em uma Kombi, e hoje eu faço na minha casa de candomblé um encontro de estudantes, em um quilombo, eu reúno, em um encontrinho estadual de estudante, um da UEE, outro da UNE, eu reencontro 200 pessoas, se nós cabíamos em uma Kombi, eu faço isso há 03 anos, que nostalgia! Hoje a UNE tem a Secretaria de Combate ao Racismo, no mesmo tempo que você tem o Orlando, que foi presidente da UNE, você tem a Tamires, você tem nostalgia, vencemos cara! Hoje o processo é outro, o diálogo é outro, nós avançamos nesse processo e culturalmente nós estamos reproduzindo, nós ocupamos outros espaços, então nesse sentido derrubou o prédio, mas não derrubou a memória, a ancestralidade, o que nós estamos construindo coletivamente, muito pelo contrário, eu vejo hoje inclusive a nova geração, construindo mais. Por exemplo, uma trajetória que eu falo com muito orgulho: Benedita da Silva, a Bené, é filha de uma empregada doméstica, ela foi empregada doméstica, no morro Chapéu da Mangueira. Ela é vereadora, quando ela se elege vereadora em 1982, ela faz uma atuação a nível nacional, eu vou falar da Bené, pra pegar um exemplo, a Lélia González trabalhou com a Bené, a Sueli Carneiro trabalhou com a Bené em Brasília também, ela vira deputada federal, a mulher vai ela e o KO e a constituinte, aí imprime a digital. Na constituinte, até então, se nós falarmos na constituição de 1988, foi o momento, 100 anos depois da abolição, que coletivamente o movimento negro põe a digital na formulação da constituição no Brasil. É de pensar, de escrever, de formular, debater e propor. Foi isso que aconteceu em 1988. A trajetória dessa mulher, vira senadora, vice-governadora do Rio de Janeiro, faz um mandato tampão de governadora e senta no Palácio das Bandeirantes, eu estou falando da trajetória dela, faz um mandato que a Veja depois diz que foi um “mandato racista”, como ali foi a capital da república e o espaço que pós-república, os negros tiveram o espaço no funcionalismo público, para colocar o secretário para fazer uma gestão adequada, ela tras uns 12 secretários negros que tinham experiência de gestão pública e faz um belo mandato, me lembro que eu fui em uma homenagem que foi feita no museu lá para o Cartola, estava dona Zica, estava Bené, o Antônio Pitanga para governador, o Antônio Pitanga, essa homenagem que nós vamos fazer para o Cartola, o Guilherme Brito estava nesse ato e a dona Zica fala assim, “o que o Cartola queria era ser livre”. Porque ele era funcionário público na vida dele. “O Cartola não queria ser rico, ele queria ser livre”. Isso eu falo de uma homenagem da Bené, falando do significado dela. Vira ministra do Lula por um período, aí derrubam ela, mas ela não se perdeu, volta à Câmara Federal como deputada e propõe o projeto de lei, implanta a lei que regulamenta o trabalho doméstico, que foi a última reminiscência da escravidão, aonde o trabalho doméstico não era, ou seja, que toda sinházinha tinha a sua mucama, regulamenta, então você tem hoje, talvez um pouco mais de 08 milhões de trabalhadores
domésticos que nas centrais sindicais ninguém deu atenção para isso. Então essa mulher cumpre esse papel, eu estou utilizando a trajetória da Bené, para falar que esta geração consegue fazer isto, e falar que as próximas gerações com essa quantidade de pesquisadores negros, produzindo conhecimento, porque a emancipação, que eu falo de emancipação do povo negro, consequentemente tem que haver uma produção de conhecimento, e trazer conhecimento para que se entenda essa realidade, nesse aspecto nós estamos conseguindo fazer isto, de trazer esse debate. Olha a ocupação de novos espaços na comunicação, de você ver o que ocorre agora, desde o comentarista esportivo, ou comentarista político, utilizar o espaço na grande mídia para fazer esse debate, ou seja, do ponto de vista da disputa ideológica que está em curso, nós estamos do ponto de vista de construção de uma sociedade justa, está em curso. O bolsonarismo é um petisco pra gente tirar, remover, mas nós somos muito mais fortes. A ideia de aprofundamento da democracia, de construir, nós somos muito mais fortes, estamos muito mais fortalecidos, culturalmente também. Hoje você tem uma noção, em uma sociedade como a nossa multirracial, da diversidade, da beleza, o enfrentamento ao eurocentrismo nós estamos conseguindo fazer. Não tenho tempo para nostalgia, dizer que lá atrás era melhor, que nada! Aqui agora, irmão, vamos fazer avançar isso. Tem tanta coisa para surgir, poxa! Por exemplo, você fala de cinema, nós estamos fazendo aqui uma gravação, olha o que está acontecendo. Quem é Lázaro Ramos? De onde ele sai, ele e o Wagner? Saem do Bando Olodum, eles fizeram Bando Olodum. O que é o Olodum? Se você olhar o Olodum, nós estamos falando muito da parte de cultura, olha os blocos afro na Bahia, Olodum, Ilê Aiyê, nós tomamos dessa água, aqui em São Paulo em 1982, 1983, fizemos uma um seminário aqui, prática x produção de cultura negra, 10 anos depois esses camaradas vieram para cá e nós trocamos essa experiência, tanto é que você vê que aqui em São Paulo tem os blocos afros, que é produto disso. Você vê, falo, eu insisto no Wagner Moura, insisto em falar do Lázaro Ramos. O Lázaro está fazendo agora com o “Medida Provisória”. Se nós olharmos nos anos 50, nós tivemos o teatro Experimental do Negro com Abdias, a experiência que nós fizemos ali, no final dos anos 70, com aquela produção, foi tentando uma continuidade do ponto de vista da construção de uma dramaturgia negra. Vai ser um fenômeno interessante, o movimento do cinema negro começa com o cinema feijoada que aí aparece o Jeferson D, aparece outros diretores, e agora também diretoras, que mostra do ponto de vista da gente ocupar um espaço no sentido de dizer o que essa sociedade é. Tem um fato histórico que é importante dizer, lá nos anos 1978, quando nós temos o caso do Robson e denunciamos o racismo e a violência policial tem esse peso? Tem um peso significativo, mas tem um peso significativo também, que até aquele período, o Quilombo dos Palmares vivia no rodapé da história. Então nós, enquanto movimento social emergimos, trouxemos à tona isso, construímos o dia nacional da consciência negra que há alguns momentos é feriado, essa luta de ser feriado nacional, vamos fazendo a crítica ao processo de abolição, nós conseguimos demarcar essa parte do ponto de vista histórico, atualizar e dizer o que nós vamos fazer daqui para frente. É isso. Então o cinema, quando eu falo, eu acho que o Lázaro Ramos sem negar o movimento cinema negro, feijoada que é importante lembrar do Zózimo Bubu, essa produção Medida Provisória é um divisor de águas no cinema brasileiro, porque o cinema brasileiro tem que sair do lugar digamos entre aspas dos “afro temas”. Como foi no momento do samba, para olhar de uma outra maneira o que ele é. Então, “Medida Provisória” procura fazer uma reflexão que envolve tudo, e nós enquanto sociedade brasileira, eles estão muito mais amadurecidos, muito mais fortalecidos para fazer essa mudança. Eu vejo esse filme, a forma como ele foi produzido, a forma como ele está impactando, que ele também é um divisor de águas daqui para frente, nós estamos vendo coisas muito positivas, muito avançadas que estão ocorrendo. E para falar um pouco sobre isso, como hoje, o trabalho que está sendo feito aqui. Memória da Pessoa. Imaginemos um cuidado, o cuidadoso disso, quando nós tivermos momentos onde todas as pessoas possam falar, possam falar da sua história de vida. O que nós temos demarcado e escrito no país são a história das elites, isso nesses 500 anos. Nós estamos mudando isso. É isso que me energiza, quer saber. Vamos pra frente, eu tenho coisa boa, estamos fazendo coisa boa. Não, que saudosismo nada, é olhar revirar e reconstruir, construir um conhecimento, aprofundar o conhecimento dessa realidade, para construir essa que não é sonho, que não é utopia, mas essa disposição de transformar essa realidade em uma sociedade mais justa, igualitária e plural. Olha olha o que está acontecendo hoje que é importante dizer, o movimento negro está muito forte, mas olha o movimento LGBT, na conferência de Durban, uma conferência mundial de direitos humanos, a questão da orientação sexual foi proibida oficialmente na conferência. Houve esforço do Brasil, do ponto de vista de trazer isso à tema, mas em uma conferência eu saí impactado de Durban, que eu disse, nós lutamos contra o racismo, mas xenofobia! Hoje você vê como nós avançamos, conseguimos fazer, Paulistano da Glória, o Paulistano fazia a maior parada gay do mundo aqui em São Paulo. Aí você vai para Parada Gay, como eu fui um dia lá na Praça da República. No final, o que eu vejo lá? Aquela meninada, aquela juventude negra, periférica, gay, que estava lá. Que era um tabu, negro gay era tabu, não se falava isso. Aí você vê essa meninada livre, procurando ocupar esse espaço com toda essa onda conservadora fascista, extremista que nós temos aqui. Nós estamos vendo coletivamente o que nós estamos construindo e estamos avançando, não tem como. É mãozinha na mão. beijinho na boca na Paulista, no metrô, no trem, no ônibus, em casa, acabou. Nós fizemos isso e foi interessante. O MNU, naquele período que nós estávamos no Versus, MNU, movimento de mulheres, nós mulheres, o movimento LGBT, que na época era o Jornal Lampião, que chamava-se movimento homossexual, nós fizemos uma passeata contra a violência policial e nós vemos hoje a grandeza, o avanço do ponto de vista de pensar a emancipação humana como nós estamos avançando. Tem obviamente a crítica conservadora dizendo que não, mas nós sabemos que sim.
P/1 - Eu acho que a importância de você contar essa história é justamente para divulgar, essa luta como você falou, uma história que não foi contada ainda?
R - Claro sim, tem gente produzindo, na verdade é o que eu digo para você, eu espero que todo esse acervo que vocês têm aqui que possa hoje, você tem uma vertente na cinematografia que é muito comum fazer produções do ponto de vista de ampliar, baseado em fatos reais, ou seja falaremos de foco com as ferramentas que temos e expandiremos nossa voz, falando assim, “olha, a vida como ela é e como ela será”, essa é a grande questão. Estamos nessa.
P/1 - E teria muita coisa para perguntar para o senhor, mas infelizmente a última pergunta é sempre, como é que foi contar um pouco da sua história pra gente agora?
R - Sempre alegre, sempre com entusiasmo, sempre com uma energização das baterias, sempre com uma confiança muito grande de que nós estamos mudando e estamos fazendo. Não tem aquele ditado? Que a carruagem passa enquanto os cães ladram! Essa é a nossa carruagem, nós estamos construindo esse novo mundo mais justo para todos, e diverso. Um fator, eu não tenho possibilidade de conhecer, mas se eu procurar, eu consigo hoje conhecer todos os continentes, toda a diversidade cultural existente no mundo. Então o diálogo da humanidade é outro. O que impacta na Ucrânia não está nos atingindo no dia a dia aqui. O inverso também é verdadeiro. É isso. Então foi muito legal, muito bom. Muito entusiasmante a gente fazer esse dedo de prosa hoje.
P/1 - Obrigado, seu Rafael, a honra foi nossa. Prazer. Obrigado, viu!
R - Que isso, estamos juntos!
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