P/1 — Senhor Angelo, primeiramente a gente queria agradecer a sua presença aqui e sua participação no nosso projeto. Para começar, gostaríamos que o senhor falasse o seu nome completo.
R — Angelo Sérgio Del Vecchio
P/1 — E o local e data de nascimento.
R — Vinte e nove de abril de 38.
P/1 — E o nome dos seus pais?
R — Francisco Del Vecchio e Lídia Del Vecchio.
P/1 — O senhor tem irmãos?
R — Tenho uma irmã.
P/1 — Mais nova ou mais velha?
R — Mais nova.
P/1 — Eu queria que o senhor contasse o que lembra da rua da sua infância, onde o senhor morava.
R — Onde eu morava...
P/1 — Que bairro era?
R — Eu morava numa travessa da Rua Augusta, na época que ainda tinha bonde. Passei minha infância praticamente lá. Eu acho que o bairro era Cerqueira César. Eu fiquei até uns dez anos, mais ou menos. Moramos uns dez anos lá.
P/1 — O senhor se lembra de brincadeiras de rua com os amigos?
R — Ah, sem dúvida! Eu me lembro até que passava umas cabritas que vendiam leite na porta. (risos). Passava um velhinho puxando meia dúzia de cabritas com sininho e tirava leite de cabra na hora. Para mim era um horror, porque eu detestava leite e era obrigado a tomar.
P/1 — E como o senhor descreveria a vida na sua casa, o seu pai, a sua mãe? Como eles eram?
R — A minha mãe era uma mulher exigente, com muita mania de limpeza. O meu pai sempre foi campeão brasileiro de bilhar, então ele se dedicava bastante. Ele era um amador, porque ele trabalhava na fábrica de instrumentos musicais e a noite a dedicação dele era treinar bilhar. Mas o bilhar clássico! Não a sinuca. O bilhar inglês, com três bolas. Ele era muito bom! Então, ele não era muito presente não. Acho que o meu pai era meio ausente. Não costumava viajar muito com a gente nas férias também. A minha mãe é que comandava tudo.
P/1 — O senhor tem um sobrenome bem italiano. O seu pai já era nascido no Brasil ou veio da Itália?
R — Não, meu pai já era brasileiro. Os meus avós é que eram sicilianos, por parte de pai e de mãe também. Eram italianos. Minha mãe era Batalini, só que eles eram mais do norte e os paternos eram do sul da Itália.
P/1 — Em que época os seus avós chegaram ao Brasil?
R — Eles chegaram no começo do século. O meu avô era luthier lá na Itália, ele fazia bandolins.
P/1 — O seu avô paterno?
R — Avô paterno. E eles resolveram iniciar, primeiro fazendo consertos de instrumentos musicais. Aí, eles abriram uma firma na Rua do Ouvidor. Eles chamavam lá de Largo do Piques. Hoje não existe mais nada lá. Hoje é Praça da Bandeira. No Anhangabaú, lá embaixo. E lá tinha um problema muito sério, que quando chovia inundava! E como na indústria de instrumentos musicais e de cordas era baseado tudo em madeira, o inimigo número um era a água! (risos) E era um problema. Quando via que estava escurecendo, tinha que colocar uma tala. Sabe como encaixa aquelas tábuas na frente para segurar a quantidade de água? Aí, eles cansaram e em 1920 eles transferiram a firma para a Santa Ifigênia. Para a Rua Aurora. E é interessante porque era um terreno relativamente grande, por ser no centro. Tinha a loja na frente, no meio tinha a casa da minha avó e atrás era a fábrica que eles chamavam de oficina. Era uma fábrica bastante artesanal. Depois foi crescendo e eles compraram mais uma propriedade vizinha e conseguiram ampliar a fábrica e ficou um pouco maior.
P/1 — O senhor tem lembranças dessa loja na infância?
R — Eu tenho porque eu fiz Economia, mas eu me lembro que eu fiz Economia à noite porque eu já trabalhava com o meu pai e o meu tio. Meu pai tinha uma irmã e um irmão. A irmã dele nunca teve participação, mas o irmão, eles eram denominados A Firma. Depois que o meu avô saiu, se aposentou, o nome ficou irmãos Del Vecchio, que era o meu pai e o meu tio, Francisco Salvador. Os dois se dedicaram muito. Eu, mesmo garotão, acabando o secundário, eu fiz faculdade à noite porque eu trabalhava. Eu acabei ficando sócio da firma cedo e eu era um garotão que já tinha grana! Eu tinha um Porsche e, naquela época era meio difícil (risos)! A turma andava a pé e eu andava de Porsche. Tive um Porsche 58, que era uma maquinona!
P/1 — Voltando um pouco pra sua infância, além daquele senhor que passava com a cabra vendendo leite, o senhor lembra de outros comerciantes da região? De alguma loja?
R — A Rua Augusta já era um reduto já meio comercial, mas tinha muita residência. Ali, o quê que tinha? Tinha nos dois, três quarteirões ali onde eu convivia muito, entre a Alameda Franca e a Oscar Freire, tinha loja de calçados, eu me lembro, Chivoleto. Tinha um Empório onde a gente fazia as compras, Empório Sueiro; tinha a Confeitaria Metro, que era uma confeitaria conhecida; tinha uma Casa de Chá, que era a Iara. Essa perdurou até 80, eu acho. Era um ponto muito chique lá da Rua Augusta. E tinha umas lojas de tecidos, umas duas farmácias num trecho. Tinha um bazar de brinquedos lá que era o paraíso da garotada, era o Bazar do Di! Uma casa bem tradicional. Tinha um fotógrafo muito conhecido também, que era o Hejo, H, e, j, o. Ele fazia todas as fotografias de Primeira Comunhão. Aquele negócio bem bonitinho com a velinha (risos). Era um fotógrafo tradicional na Augusta.
P/1 — Era nesse comércio que a sua família ia fazer as compras de casa?
R — Era. Ali estava centralizado, porque não havia supermercados. Era centralizado ali o empório, onde fazia umas compras básicas, e tinha também uma quitanda grande da japonesa ali em cima. As compras ficavam todas por ali.
P/1 — O senhor lembra se tinha algum objeto, alguma coisa que a sua família sonhava em comprar naquela época?
R — A gente tinha um padrão razoável, de média, alta, mas a vivíamos numa casa de aluguel, então o objetivo era comprar uma residência própria. Aí, nós fomos para a Joaquim Antunes. O meu pai comprou um apartamento e foi meio provisório, porque a ideia dele era comprar uma casa. Então nós ficamos lá algum tempo e, nesse ínterim, ele comprou uma casa na Gabriel dos Santos, em Higienópolis. Era uma casa antiga. Nós fizemos uma reforma radical lá que levou acho que um ano e meio para fazer. E aí fomos para Higienópolis.
P/1 — E a escola? Em que escola o senhor estudou?
R — Eu fiz o primário no Externato Meira que era um colégio bastante tradicional em São Paulo. Eu estive com pessoas até conhecidas lá, que ficaram na posição de político... Tinha um que ficou um economista famoso, agora não me lembro. Mas era um colégio muito interessante! Era da dona Judite. Saindo lá do primário eu fui para o Dante Alighieri, que era um colégio dirigido por italianos. E saindo eu fiz o ginásio e de lá eu fui para o Mackenzie. Em vez de fazer científico, ou o clássico, que era como a gente chamava, eu fiz um curso técnico de Eletrotécnica no Mackenzie. Aí, saindo de lá... Aliás, no último ano teve um negócio muito marcante na minha vida, que eu fui numa exposição no porto de Santos e, simplesmente, eu peguei tifo. Não sabiam o que era e o tifo paralisa o intestino e tudo. Eu sei que o pessoal lá ficou bastante assustado, porque até detectar que realmente a coisa era tifo, demorou acho que uns dez dias. Eu acho que corri risco de vida. Não cheguei a ser internado, mas o tifo tinha que ser mesmo isolado! Eu sei que foi um período difícil. Só eu podia usar o banheiro de cima, minha família toda usando o lavado de baixo! (risos) E eu fiquei um mês e meio e, aí, prestei exame. Foi no último ano de Eletrotécnica e eu tive um amigo, o Ivan, que me deu um apoio muito grande. Trazia a matéria toda para mim. Eu consegui fazer exame e ainda passar! Depois que eu fiz exame, tinha ficado 45 dias de cama, tive uma recaída. Fiquei mais um mês e meio de cama. Sabe qual era o meu divertimento, quando não existia televisão? Eu ouvia novela da Rádio São Paulo. Começava às dez horas da manhã (risos) e ia até as dez horas da noite. Eu não podia ler também! Não sei por que era uma exigência, não podia ter concentração de leitura, nada! O negócio foi feio. Falava em tifo, a chance de morrer era muito grande! (risos). Então, foi um período que marcou. Realmente eu saí numa boa, sem seqüelas. Só que a única restrição que ficou é que eu não podia doar sangue, porque parece que quando a pessoa tem tifo, você carrega no sangue alguma coisa.
P/1 — Até hoje?
R — É. Também agora, pela idade, acho que eles nem querem mais que doe sangue. Mas, realmente, foi um período difícil.
P/1 — Esse período do técnico, do ginásio, do primário, como o senhor acha que os seus estudos influenciaram na escolha da sua atividade depois? Ou não influenciaram nada?
R — Para dizer a verdade não teve grande influência, porque de qualquer forma eu gostava! Eu trabalhava com o pessoal mais na loja vendendo e eu tinha jeito para a coisa. E, logo de cara, como meu tio não tinha filhos, ele fez uma questão enorme que eu já ficasse sócio. Aí já dividiram o bolo lá em três e eu não podia pensar em outra coisa (risos). Tanto que eu lembro que quando eu comecei a faculdade, eu fiz Economia na São Luiz, nem existe mais o prédio antigo agora! O São Luiz ficou atrás, construíram um prédio enorme. Era um prédio lindo, ligado a Igreja. Só tem aquela igreja na esquina da Paulista com a Bela Cintra e o colégio era aquele mesmo conjunto que derrubaram tudo. E eu me lembro que eu ia e estacionava o meu fusca na porta da faculdade. Imagine você, na Avenida Paulista!
P/1 — É impossível hoje! (risos)
R — É. Impossível! (risos). No último ano eu já tinha que colocar no Conjunto Nacional, porque já não tinha mais jeito. (risos)
P/1 — O senhor contou que começou a trabalhar muito cedo, não é?
R — Comecei.
P/1 — Mas, apesar disso, como que nos tempos de lazer, se é que existiam, o senhor se divertia? Quem eram os seus amigos nessa época da juventude?
R — Eu casei muito tarde, com 35! Então eu tive uma atividade social legal, intensa. Eu conheci muito o Clodovil e eu fiquei até sócio dele, num Prêt-à-porter que a gente fez, mas infelizmente não deu certo. E eu convivia lá com os manequins dele, foi um negócio que marcou muito a minha vida, (risos). Marilú... Uma turma linda! Eram umas manequins maravilhosas!
P/1 — Quais os locais que o senhor freqüentava então nessa época? Cinema, restaurantes, bares?
R — A gente fazia muitas reuniões. Agora, de boates e (cilcavs?), que era uma coisa incrível, acho que até hoje ainda existe. E íam os famosos lá! TomTom Makuts, Sebastian Bach. Como eu também estava metido com música, conhecia muitos profissionais. Eu tinha muitos convites para shows, tinha uma atividade legal! Porque eu lidava com música, eu conhecia aqueles músicos famosos da época. A maioria tinha violão nosso. Todos os instrumentistas de cordas tinham violão Del Vecchio porque a gente fazia um instrumento de melhor qualidade que os outros. Falava em Del Vecchio, o bom violão era Del Vecchio. Isso era indiscutível!
P/1 — O senhor tinha muito contato com essa classe artística então?
R — Tinha.
P/1 — E persiste até hoje?
R — Não, hoje ficou um pouco diferente. Mas toda essa turma, o Gilberto... Todos eles tiveram instrumento nosso. É que hoje em dia existe uma onda de luthiers, então as pessoas diversificaram um pouco. E a importação também propiciou a vinda de instrumentos. Martin, umas coisas bem... Mas até hoje eu vendo, porque ainda fabrico. Mas fabrico em pequena quantidade. Porque em 82, 83, eu construí uma fábrica bem grande, 3.500 metros quadrados na Marginal Tietê. Aí, eu tive uma maior participação de mercado, uma fábrica muito mais organizada, mas a coisa não durou muito não, porque com a abertura da importação pelo Collor, começou entrar os chineses. Os chineses hoje liquidaram com a indústria de instrumentos musicais do Brasil. Acho que liquidou no mundo inteiro! Principalmente aqui, para nós, não sobrou ninguém! Porque hoje os fabricantes todos importam. Eu também importo um pouco, vem com a minha etiqueta. Mas eu fui até 2003, aí não consegui aguentar a concorrência do instrumento chinês. Eu me lembro que quando o Collor abriu a importação em 92, o meu instrumento mais barato custava, acho que era cruzeiro, cruzeiro novo, não lembro mais a moeda, mas vamos dizer que, se fosse em reais, seria um meu equivalente a 70 reais. Com o dólar um por um com a moeda, o chinês chegava aqui por 18. Então, ficou uma concorrência muito desleal! Era dar murro em ponta de faca, (risos), não tinha como! Eu cheguei a ter 200 e poucos empregados lá e o que mantinha as despesas de custeio eram os instrumentos baratos! Fabricava os melhores também, que davam lucro e tal, mas a parte básica que cobria os custos operacionais eram os violões baratos, que a gente despachava para todo o Brasil. Eu trabalhava com revendedores. Eu sempre mantive a loja lá na Rua Aurora, mas a gente vendia para lojas especializadas em São Paulo e outros estados. Mas aí, com a concorrência, o violão barato chinês, ficou fazendo a concorrência muito desleal. Porque as pessoas iniciantes, o filho chegava para o pai e dizia, “pai, eu quero aprender a tocar violão”, aquele papo, “mas, você quer mesmo?”, “ah, quero!”, “Então, papai vai comprar um baratinho. Depois, se você pegar gosto pela coisa, eu compro um melhor!”, (risos). E nessas eu deixei de vender o baratinho, (risos), vendi um chinês e fiquei a ver navios! Mandando embora cinco empregados por mês, até a hora de ficar com 55! Aí os meus custos não suportaram mais. Hoje eu continuo com a minha loja, eu tenho mais ou menos umas sete pessoas e, dessas sete, três eram antigos funcionários bons da fábrica, luthiers bons. E eles continuam fazendo para mim. Então, eu reduzi drasticamente. E se a pessoa quiser um violão Del Vecchio, tem que vir na minha loja, porque eu não vendo mais pra revendedor. E estamos aí, ainda vivos!
P/1 — Voltando um pouco, nesse contato com a classe artística o senhor lembra de ter ajudado ou colaborado com o início de carreira de algum grande artista hoje?
R — Não. De ter colaborado não, mas, eu tive contato. O Toquinho foi aluno do Paulinho Nogueira na época em que eu também fui. Eu toco um pouco. Nunca fiquei muito bom, mas toco um pouco. Eu fui aluno do Paulinho Nogueira, então eu convivi com esse pessoal todo. Vinícius... O Paulinho Nogueira era muito amigo meu e ele era um violinista incrível, muito bom. E outros! João Gilberto teve instrumentos nossos, o Caetano mesmo. Porque eles eram mais de guitarra e o meu forte era o instrumento acústico, mas eu me lembro que nós fizemos guitarras e nós fomos pioneiros em guitarras no Brasil! Até existe ainda algumas guitarras da década de 50. Hoje são disputadas aí!
P/1 — O senhor contou das manequins do Clodovil. Tinha muito namoro com essa turma que o senhor saía junto? Nessa época tinha muito namoro com essa turma do meio artístico também?
R — Do meio artístico não tanto, mas esse pessoal lá do Clodovil eu convivi muitos anos com eles. Tinha um elemento também que era da Real e ele era um festeiro incrível! Ele promovia reuniões porque não existiam os clubes que existem hoje e eles promoviam muito. E como eu era, da turma, talvez o mais abastado, então eu era o tesoureiro das festas, (risos), que manobrava o dinheiro para pagar as contas. Eu tive um período muito legal! Tanto que eu casei tarde! (risos).
P/2 — O senhor chegou a comentar que fez aulas de violão com o Paulinho Nogueira. Eu queria saber o antes. Como era na casa de vocês, na infância, a relação com os instrumentos? O instrumento em casa, diferente de ser um instrumento ofício. Se alguém na sua família tocava, seu pai...
R — Meu pai tocava violão e tocava violino e a minha irmã tocava piano. Em casa, a música sempre teve influência. Ninguém ficou bom, nada profissional, mas a gente curtia bastante.
P/1 — Chegaram a se apresentar?
R — Não, nada. Eu era muito querido do Paulinho e eu gostava muito dele também, mas eu nunca cheguei a me apresentar. Tanto que até hoje eu toco um pouco, mas toco para mim. Curto. Solo, sabe? Porque eu não era de cantar e acompanhar. Eu gostava de solar as músicas e o Paulinho era um arranjador incrível! Ele tocava qualquer estilo e me dava uns arranjos muito bem feitos.
P/1 — Vamos voltar um pouco ao início da vida profissional. Com que idade o senhor começou a trabalhar na loja?
R — Na loja acho que eu comecei com 16 anos.
P/1 — E com foi essa transição de acumular funções e virar sócio? Ser filho do dono e de repente ser sócio do seu pai?
R — Para mim foi um negócio legal, porque eu era, acredito, bastante responsável e ajudei muito. A gente criava os modelos. Esses modelos de guitarras da década de 50 fui eu que fiz! A gente via os filmes americanos e procurava inspiração nas Gibsons e nas Fenders que até hoje são marcos de todas essas guitarras.
P/1 — O senhor falou que tinha um Porsche novo. O senhor lembra o que o senhor fez com o seu primeiro salário?
R — Acho que o primeiro salário eu fui juntando, juntando. Eu juntei porque eu tinha um Fusca e comprei um Porsche. Era a minha meta! (risos).
P/1 — Então, desde o começo o senhor juntou por causa do Porsche?
R — É! Eu ganhei um fusquinha que, na época, não era todo mundo que andava motorizado. Eu me lembro que quando eu ia pra faculdade, era um dos poucos que chegava de carro. A maioria chegava de ônibus mesmo, (risos). Não que eu fosse nenhum milionário, mas era abonadinho! (risos).
P/1 — Você lembra de alguma dificuldade desse início de carreira como comerciante?
R — Não, porque quando eu assumi a fábrica já existia há muitos anos e, pelo contrário, a gente tinha muito menos concorrência do que hoje. E a loja era uma loja conhecida, vinha gente de todo Brasil. Depois teve um período que eu comecei a vender muitos amplificadores, na fase da Bossa Nova, do Rock. Eu vendia muito equipamento para conjuntos e eram poucas lojas que existiam aqui e que vendiam isso. Era a Casa Manon, tinha a Leimar, Tomazi, Vitale e eu. Eram umas quatro casas que dominavam o mercado. Então vinha gente de todo o Brasil para comprar equipamentos. Eles vinham, enchiam a Kombi, porque eu vendia tudo: amplificador, bateria... Dentro da parte de fabricação na loja, nós fizemos essa parte de revenda de equipamentos que teve muito sucesso na época.
P/1 — O senhor contou um pouco que montou a fábrica na Marginal Tietê, não é?
R — Montei e aí eu montei sozinho, porque meu pai e meu tio já não quiseram participar. Aí, o meu tio faleceu. O meu pai menos ainda, porque ele não estava a fim de aumentar muito.
P/1 — A partir de que época o senhor ficou sozinho nessa administração da loja?
R — O meu pai faleceu em 85. Aí, eu fiquei sozinho na fábrica nova e foi até 2002 mais ou menos. Então eu resolvi paralisar as atividades de indústria mesmo, mas continuo no ramo, a gente mantém a marca e ainda faço instrumentos de boa qualidade. Eu consegui manter uns três luthiers bons e ainda faço uns violões interessantes.
P/1 — Como é a loja hoje? Têm filiais, tem uma loja só?
R — Tem uma loja só. A gente chegou a ter duas lojas lá na Rua Aurora, uma em frente à outra, porque quando intensifiquei a venda de equipamentos e eletrônicos, a gente criou uma filial que era mais a parte elétrica. Uma na frente da outra. Hoje, onde era a loja antiga, tem uma galeria que vende equipamentos de telefonia e computação. Eu ainda tenho. Mantive a propriedade e subloquei para uma firma lá que aluga as lojas.
P/1 — Como o senhor descreve quem são os clientes da sua loja hoje? Jovens, profissionais?
R — Ainda tem muita gente que vem, porque a gente dá uma certa manutenção nos instrumentos. Então, as pessoas vêm. E eu lido também hoje com alguns instrumentos antigos, de minha fabricação. Quando aparece e eu tenho oportunidade eu compro. Eu compro instrumentos antigos e até tenho preciosidades lá! Eu tenho dois violões da década de 20 para vender. São verdadeiras raridades! Eu lido com violino antigo também, porque eu tenho um conhecimento razoável. A gente negocia muito instrumento antigo.
P/1 — Então, tem muitos colecionadores também?
R — É, tem. Eu cheguei a ter 40 violinos antigos de coleção particular. Hoje em dia não tenho mais nada, vendi tudo.
P/1 — O senhor acha que teve uma mudança no perfil dos clientes do começo da sua loja até hoje ou continua o mesmo?
R — Tem um pessoal mais idoso que procura a gente, conhece. Mas acontece que vai chegando uma certa altura do campeonato (risos) que a maioria está tocando harpa lá em cima! (risos). É que a gente tem uma marca que se mantém, mas eu sei que antigamente quando se falava violão, você falava “Del Vecchio!”. Hoje eu não sei se é assim tão pronta a resposta.
P/1 — Quais, o senhor acha, que são as exigências dos seus clientes?
R — Bom, a gente procura atender bem e o meu lema lá é “não gostou? Money back!”, entendeu? O sujeito, às vezes, leva e a gente sente logo. Ele leva e depois volta, “aqui está trastejando, fazendo não sei o quê”, você tenta arrumar... Não deu? Ele voltou outra vez? Money back! O americano, realmente o sujeito vai lá, chegou, não gostou? É o dinheiro de volta. Não tem essa de mandar procurar o direito no PROCON! (risos).
P/1 — O senhor acha que, quando começou a administrar a loja, teve que mudar o seu estilo de vendedor, ou o senhor manteve o seu estilo?
R — Eu tenho dois filhos. Um deles chegou a trabalhar comigo, mas,não deu muito certo. Hoje, um deles mora em Santos e o outro dá aula de violão. Ele toca bem violão, toca bem contrabaixo. Ele curte! Ele diz que a profissão dele é herdeiro, então, tudo bem! Mas, se mexe. Agora para trabalhar comigo, não deu muito certo. Eu sou meio exigente demais, eu acho. Acho que pegava muito no pé, não sei. O negócio é que santo de casa, às vezes, não faz milagre. É preferível trabalhar... Mas eu, por exemplo, dei certo! Com o meu pai e o meu tio, nunca tive atrito nenhum. Eu arregaçava as mangas e produzia, criava! E os meus dois filhos são bola mais murcha, eu acho.
P/1 — Ele só vai trocar a fita e a gente já continua, tá?
R — Claro!
TROCA DE FITA
P/1 — Senhor Angelo, agora a gente quer saber como que o senhor seleciona os seus funcionários? Tem um processo de treinamento? O que eles precisam saber para trabalhar lá na Del Vecchio?
R — Olha, eu verdadeiramente, fiquei reduzido dentro da minha loja, eu tenho... São, dois, três, quatro, cinco... Só tenho cinco funcionários. Minha secretária está comigo há 36 anos. Ela começou lá na Rua Aurora, depois ela foi para a fábrica e hoje ela está lá comigo. Está aposentada, mas está lá comigo. Eu tenho uma faxineira que trabalha lá full time e está comigo há uns (risos) 15 ou mais. Tenho três vendedores e um deles toca muito bem. Todos os instrumentos! Porque eu acho fundamental isso. A maioria das lojas não tem gente gabaritada para atender. Nas lojas de instrumentos musicais, a maioria, ninguém entende nada. Entendem muito pouco e não tocam. Eu tenho um muito bom e os outros dois são mais jovens, aprendizes, mas também tocam. Um toca cavaquinho, outro toca violão. Eles mandam bem. Minha loja é uma loja pequena e eu reduzi também a minha loja. Eu a reduzi no meio, porque como a propriedade era minha eu aluguei a metade para um X-Picanha. Fiquei com um vizinho de alimentação! (risos). Mas o meu espaço, eu tenho uma sobreloja para quando eu tenho estoque. O meu estoque não é muito grande também. A gente trabalha muito sobre encomenda. Não vendo mais para revendedor. E têm uns instrumentos antigos bons lá! Bons violinos, bons violões. E eu ando a cata aí, nas feirinhas, mas está difícil encontrar instrumento antigo de corda, tipo violinos. Eu me lembro que me ofereciam tanto! E hoje em dia não se acha, é difícil! E não é assim, tipo, instrumento de grande categoria. Cópias! Mas cópias européias, que não sejam chinesas. Porque o instrumento chinês tem aí de todo jeito, violinos, violoncelo, violas de arco. Mas eu tenho alguma coisa de instrumentos europeus de 60, 70, 50 anos. E eu encontrava com muita facilidade nas feirinhas. Eu curto o Bexiga, a Calixto, e está difícil. Para você ter ideia, eu fiz agora, no mês retrasado, uma viagem para o Uruguai. Eu fui para o Uruguai e Argentina. Eles tinham uma tradição de ter esses instrumentos, não de primeiríssima linha, mas instrumentos europeus. Vasculhei lá (risos) e não encontrei um! Vasculhei todos os antiquários em Montevidéu e sumiu! Eu ouvi dizer que levaram muito para o Japão. Fizeram “um limpa” aqui. Pessoas que andaram comprando e levaram tudo para o Japão.
P/1 — E os seus Luthiers? Eles trabalham onde? Lá na loja da Rua Aurora também?
R — O quê?
P/1 — Os Luthiers do senhor.
R — Ah, não, é terceirizado. Os três têm oficina com empregados próprios. Somando deve dar o quê? Umas dez pessoas, fazendo alguma coisa para mim.
P/1 — O senhor acha fundamental então que os seus vendedores tenham esse conhecimento de instrumentos musicais?
R — Ah, sem dúvida! Sem dúvida! Porque a pessoa entra para comprar um instrumento, aí você toca e são outros 500! Isso é indiscutível. Para ele poder, inclusive, sentir alguma coisa, o som. Embora, às vezes, a pessoa seja principiante, mas tem alguém que demonstra!
P/1 — O senhor já fez publicidade da sua loja? O senhor faz publicidade?
R — Eu fazia em revista, mas, atualmente, pouco. Mas eu sempre fiz em revistas especializadas.
P/1 — E aproveitando aquela sua paixão pelo rádio antigo, o senhor nunca quis fazer em programa de rádio?
R — Em programa de rádio a gente fez alguma coisa. Tinham uns programas tradicionais, seresteiros. Então alguma coisa foi feita. Hoje em dia eu estou fazendo bem menos.
P/1 — O senhor chegou a compor algum jingle da Casa Del Vecchio?
R — Hoje em dia, eu tenho um site bem feito. Que surte efeito! Eu acho que surte mais efeito do que uma propaganda. Eu acho que não existe uma propaganda melhor do que um site, hoje. Você monta um site bem feito, as pessoas acessam. Vire e mexe, tem gente consultando e aí vem. Teve um problema sério comigo, que foi o seguinte: como eu parei de atender os revendedores, então, as pessoas quando procuram nas lojas a minha marca, eu sei que eles ouvem, “não, ele não existe mais! Fechou, faliu, quebrou”. e não é nada disso! Eu simplesmente, (risos), reduzi o meu negócio e a minha produção ficou só na minha loja. Então eles não têm muito interesse em dizer “ah, o senhor quer um Del Vecchio? Vá à loja Del Vecchio”. Porque eu sou um concorrente deles. Então, isso aí é meio chato, meio problemático. Mas, com o site, ele é importante e demonstra que eu não morri, eu estou vivo! E tenho um site bem feitinho. Eu faço alguns instrumentos especiais, a pessoa encomenda. Eu, com 60 dias, faço a vontade do cliente.
P/1 — O senhor comentou que trabalha muito com encomendas, não tem um estoque muito grande. Essas encomendas são feitas como? Muito parte do site ou as pessoas... Como que é?
R — Ah, fundamentalmente pelo site. Porque eu tenho os modelos no site e, aí, as encomendas aparecem. Às vezes, o sujeito tem uma particularidade, ele quer um braço mais estreito. Tem a mão pequena, gostaria de um braço mais estreito. Então, a gente satisfaz essas exigências, porque temos uma produção pequena e podemos fazer uma coisa bem seletiva.
P/1 — E qual costuma ser o volume dessas encomendas? Um lote ou um instrumento individual? Como que é? Costumam pedir de cinco violões ou um violão?
R — Não. Eu não vendo mais... A minha firma não pode mais faturar para revenda. Eu só vendo para consumidor final. Então, as encomendas no geral... Outro dia eu vendi para um conhecido aí de pagode e eu fiz quatro banjos para ele. Eu não sei o que ele vai fazer com tanto banjo! (risos). Banjo, cavaquinho. Aliás, esses banjos que existem por aí, nesses conjuntos, nós criamos esse banjo há uns 40 anos, você acredita?
P/1 — É uma criação Del Vecchio, então?
R — Não é que foi uma invenção, porque o banjo existe há muitos anos, mas a gente criou um banjo mais simplesinho, com um sistema da pele embutido. Porque os banjos eram aqueles banjos americanos. Inclusive, o banjo mais conhecido, mais usado, era o banjo tenor, de quatro e cinco cordas. E a gente fez uma adaptação do banjo mais simplificada. Fazíamos o banjo tenor, violão e cavaquinho. E o cavaquinho foi adotado! O pagode adotou o meu banjo! Ficou um instrumento típico de pagode, mas ele existe há mais de 40 anos. E antes de eu diminuir a minha produção eu vendia muito banjo.
P/2 — Senhor Angelo, a gente está falando de produção de instrumento e como que funciona, quais são as etapas de se fazer um violão, por exemplo, ou instrumento musical de fato?
R — Olha, um instrumento de corda, um violão, sem considerar a parte de corte de madeira, você pegando os componentes prontos, para montar a gente leva uns 30 dias, no mínimo. Para você ter um instrumento pronto! Porque tem aquela espera de secagem. Ele é totalmente artesanal, então você vai compondo, entende? Você compõe primeiro a caixa acústica, então primeiro recebe as faixetas, as laterais. Depois ele recebe o tampo, depois o fundo. Aí, você tem a caixa pronta. Aí, você parte para os adornos, coloca os filetes, essas coisas. Depois ele recebe o braço com a escala. Depois, vem a escala e depois que ele ficou estruturado caixa, braço, escala, é que ele vai ser terminado, ou seja, o acabamento. Leva de 30 a 40 dias para você começar um instrumento e aprontá-lo. Se você for esperando os estágios de secagem, leva uns 40 dias.
P/1 — E nesse trabalho tem toda uma preocupação com tipo de madeira, verniz?
R — Ah, sem dúvida!
P/1 — Como é a relação com os fornecedores desses materiais? Quem são?
R — Ah, eu usava a base de poliuretano, porque antigamente se usava um verniz a base de álcool, que eles eram lustrados. Era chamado a base de boneca. Ele era brunido manualmente. Agora, hoje em dia, já se usa uma tecnologia diferente. É mais mesmo com revólver. O verniz é pulverizado, é diferente. E assim mesmo, tem os estágios de espera, de secagem, depois tem que lixar, dá outra mão, dá outra lixa. É que a base do poliuretano é mais na pistola mesmo, do que antigamente se usava verniz a álcool.
P/2 — E onde está a maior dificuldade de se montar, de se fazer um instrumento?
R — Aí, o problema de fazer um bom instrumento começa com a escolha e utilização de madeira de qualidade. E para fazer um violão de um certo nível, tradicionalmente, você tem que usar... O tampo, que é a parte frontal, tem que ser, o que a gente chamava de pinho sueco, que é o Spruce. É uma madeira importada da Europa, que aqui não existe. Se você quer fazer um violão de um certo nível, se você não puser aquele material no tampo, você não pode cobrar, exigir. Porque o profissional, a primeira coisa que ele vai olhar é se o tampo é de pinho sueco, como a gente chamava. E atrás, a parte da caixa, Jacarandá da Bahia, pau ferro, cedro, só materiais nobres. Mas, o fundamental, o tampo tem que ser de pinho sueco.
P/1 — O senhor tem um fornecedor tradicional ou vai mudando?
R — Sim, a gente importava. Hoje em dia até chega com mais facilidade, porque pode vir, inclusive, em quantidades menores. Tem gente importando o material para fazer. O Jacarandá brasileiro. E está até difícil hoje de arranjar o Jacarandá. É um problema, porque a extração do Jacarandá ficou muito controlada, mas é por aí!
P/1 — O senhor estava falando dos seus funcionários e a gente percebeu que tem alguns de longa data já, não?
R — É, eu tenho. Esse rapaz, o meu bom, já está comigo há uns dez anos e tive funcionários que ficaram muitos anos comigo na venda, mas já estão aposentados.
P/1 — O senhor acha que mudou alguma coisa na relação empregado-patrão, ao longo dessa sua vivência no comércio?
R — Eu acho que a educação e o bom trato não têm muito época, não? Também, se você quer exigir, você tem que saber tratar, saber pedir, saber ordenar. Isso não muda muito.
P/1 — Como e senhor acha que a sociedade vê o comerciante hoje?
R — Eu não entendi.
P/1 — Como e senhor acha que a sociedade vê o comerciante, essa atividade comercial hoje em dia?
R — Não vejo nada pejorativo. Embora, hoje em dia, lá na região, tem um influência muito grande de chineses. E essa pirataria, essas coisas, trouxeram para o bairro lá uma certa gama de negociantes que não tem muito escrúpulos não. E são pessoas que criaram umas galerias com lojinhas muito pequenas. Então, o que acontece? São pessoas que, a gente até brinca, que são pára-quedistas. Em dois, três meses, se você voltar no mesmo endereço, para reclamar de alguma coisa, você não acha o mesmo negociante. Tem muito chinês agora por lá, naquelas galerias, vendendo artigos. Não no meu setor, porque no meu setor não. Mas lá na Santa Efigênia tem uma pirataria meio forte de telefonia...
P/1 — Eletrônicos...
R — É, eletrônicos.
P/1 — O senhor falou que o senhor herdou a loja do seu pai. Era uma loja grande ali e que o senhor acabou dividindo com o Big X-Picanha. Tem alguma parte da loja que o senhor mais gosta de ficar? Que o senhor está mais habituado a ficar?
R — Ah, eu tenho o meu escritorinho lá. Porque a loja, mesmo assim, dividida, ela ficou grandinha, porque o terreno tem 40 e tantos metros. Então, no fundo lá tem o meu reduto onde tem os instrumentos lá antigos comigo. Em geral, quando a pessoa procura uma coisa assim, mais especializada, eu acabo atendendo ainda. Só que eu só trabalho na parte da tarde. De manhã eu faço ginástica. Chega, já trabalhei bastante!
P/1 — Falando nisso, quais são os horários de maior freqüência de público na Casa Del Vecchio? Ou dos dias da semana?
R — Bom, o sábado, em geral, é um dia que tem um fluxo muito grande lá na região. A gente funciona só das nove às duas horas e, de uma forma geral, o sábado, normalmente, é um dia bom.
P/1 — E no caso do cliente que procura um instrumento de grande volume, no caso de um violoncelo? A loja entrega na casa do cliente ou como que é?
R — Ah, eu entrego, despacho. Eu recebo encomendas de fora e eu despacho, mando via aérea. Despacha muito por sedex. O importante é que tem que ser muito bem embalado e despacho sem nenhum problema.
P/1 — Qual o produto mais vendido ali na Del Vecchio?
R — Violão. Isso é indiscutível! O violão é o carro chefe, apesar de que nós vendemos bastante viola, que a gente tem uma tradição. A viola caipira! Viola de dez cordas. Mas o violão é o forte.
P/1 — Tirando o violão que é o mais vendido, tem algum instrumento que o senhor tem um carinho mais especial ali, que o senhor comercializa?
R — Eu curto os violinos antigos porque eu tenho um certo conhecimento. O meu pai conhecia bastante e eu absorvi esse conhecimento dele, estudei um pouco a respeito e tenho bons catálogos. É difícil reconhecer um violino quando ele realmente é bom, quando é autêntico, porque você tem esses violinos que aparecem e a maioria é tudo cópia. Você fala em violino famoso, o pessoal só conhece Stradivarius! Tem um dicionário de Luthieria, dessa grossura assim, com todos os construtores de violinos e arcos, porque existem arcos que custam mais caro do que um violino normal. Arcos de violino, de viola. Então, precisa conhecer. Não é muito fácil.
P/1 — A Casa Del Vecchio já trabalhou com outras marcas ou trabalha?
R — Trabalho. Atualmente eu vendo produtos importados. Eu importo alguma coisa também. Os meus mais baratos eu não estou fazendo mais, então eu importo da China e eles vêem com a minha marca. E são bons, viu? Porque, antigamente, quando começou... “ah, eles fazem não sei o quê...”. Hoje em dia eles fazem uns instrumentos maravilhosos e num custo imbatível. Não tem essa. Eles são subsidiados! Outro dia eu recebi uma guitarra, uma cópia Stratocaster Fender. Eu vi, a guitarra chegou, chamei minha secretária e disse: “puxa, uma guitarra bonita, bem feita! Muito bem pintada...”. Porque eu sei a dificuldade de você pintar uma guitarra e deixá-la impecável. Uma guitarra maravilhosa! Eu perguntei: “quanto custou?”. Ela falou: “160 reais”. Eu falei: “Quanto? 160 reais?”. Cento e sessenta reais num instrumento que eu não importei, eu comprei de um atacadista, veio do outro lado do mundo, precisou encher um container. Cento e sessenta reais! Eu até brinquei, “Olha, se desmontar esse instrumento, bota em cima de uma mesa, soma os componentes”, “não... instrumento chinês é barato porque a mão de obra é escrava”. Eles são subsidiados! Porque eu peguei essa guitarra, fiz uma análise de custo, de madeira, de alavanca, de tarraxas que puxam as cordas, captadores... Tinha 350 reais de custo de matéria prima, sem considerar a mão de obra.
P/1 — Então, está sendo vendida abaixo do custo de produção.
R — Não é que eles vendem abaixo do custo, não sei... Eles são subsidiados. Como lá na China nada tem dono, as fábricas são governamentais. Tem uma pessoa que deve ser colocada pelo Governo que administra, eles exportam e querem que entre divisa, dólar... Eu não sei! É um mistério. Embora também eles comprem agora a matéria prima de uma forma tão massificada, tão grande, que acaba caindo os custos. Se eu fosse fabricar aquela guitarra aqui igualzinha ela teria mais uns 350 reais, só de matéria prima. Eu comprei por 160! (risos). Não tem jeito! Eu ainda brinquei com a minha secretária: “olha, está vendo isso aqui? Isso aqui é uma pedra muito grande em cima que qualquer pretensão de eu querer reabrir a minha fábrica e fabricar em grande escala. O chinês matou a gente!” E no Brasil, todas as fábricas estão agora importando. Ninguém faz mais nada aqui.
P/1 — A Casa Del Vecchio trabalha muito com assistência técnica também? Para trocar cordas de instrumentos...
R — A gente faz! Porque as pessoas trazem os instrumentos, a gente ajeita. Eu tenho dois meninos lá que, realmente, eles se mexem nisso, sabe? Atendem e a pessoa, no fim, vem, traz o violão e se ele precisar de um instrumento, ele volta porque a gente atendeu bem.
P/1 — O senhor falou que das mercadorias que o senhor manda entregar, o senhor embala bem. Que tipo de embalagem vocês utilizam pra não danificar o instrumento?
R — Eu uso papel bolha e caixas de papelão forte. Porque o instrumento é frágil. Principalmente quando tem que ser despachado. Quando entrega aqui, tem umas capas acolchoadas, para transporte. Não tem nenhum problema.
P/1 — Qual a forma de pagamento preferencial dos clientes hoje em dia? É o cartão?
R — Ah, isso é indiscutível! Principalmente na Santa Efigênia. Se você não fizer pelo menos três sem acréscimo, não vende nada! Olha, ficou numa que eu não aceito mais cheque. Ou é cartão de débito ou é cartão de crédito. Isso é indiscutível. E quando é uma importância maior, que eu tenho instrumentos mais caros, a gente divide até em cinco, pelo cartão, sem juros! Então, o que acontece? Eu vou receber em cinco prestações, porque o cartão de 30 em 30 dias eles pagam as parcelas.
P/1 — Desde que época é assim?
R — Ah, há um tempo já. Uns cinco anos no mínimo. Mas, se você não fizer pelo menos em três no preço à vista, sem acréscimo... E também pode fazer com juros pelo cartão, mas aí, não adianta, não emplaca! Tem que ser três sem acréscimo, porque as mercadorias são relativamente baratas. A gente tem instrumentos a partir de 130 reais. Você divide em três, o sujeito compra. Se você não dividir é difícil. Vendo alguma coisa à vista também, vendo muito acessório: cordas, tarraxas, componentes. Vendo partes de madeira, tampo, aqueles enfeites da boca do violão. Eu tenho muita coisa lá. Tem uns luthiers que compram até lá comigo.
P/1 — E o senhor continua freqüentando as lojas todos os dias?
R — Eu vou. Na parte da tarde! Almoço lá perto e estou lá sempre. Isso é importante, a gente estar lá.
P/1 — E nas horas de lazer, o que o senhor gosta de fazer?
R — Eu sou um fuçador de feirinha. Sábado e domingo eu gosto de um Bexiga, tenho coleção de Santo, tenho coleção de caneta, tenho coleção de um monte de coisa, (risos).
P/1 — Então, MASP, Bexiga e Benedito Calixto são seus pontos de destino?
R — É. E tem o MUBE hoje que é uma feira mais elitizada, lá no MIS, no Museu da Imagem e do Som.
P/1 — Então, o senhor gosta muito de fazer compras?
R — De fazer compras não, mas a gente fuça. Eu procuro instrumentos antigos, às vezes, encontro instrumentos meus. Violões, a cata dos violinos antigos, mas está difícil.
P/1 — Mas isso para vender ou para uma coleção pessoal?
R — Não, instrumento eu procuro para vender, porque esses instrumentos europeus, quem quer sair do chinês, um violino barato, ele procura justamente esses que são instrumentos de, mais ou menos, 60, 70, 80 anos. São da década de 20 para frente. Eram importados da Europa, da Alemanha, Tchecoslováquia, França.
P/1 — Mas não tem nenhum item ali que o senhor fala: “esse eu não vendo para ninguém. Esse é meu!”
R — Ah, violinos não. Eu tenho dois violões antigos ótimos que eu não vendo e que me acompanham desde o tempo do Paulinho Nogueira. Mas a gente fuça para vender mesmo. Já tive muito violino de coleção, acabei vendendo tudo.
P/1 — Agora, indo pra uma parte mais pessoal, o senhor falou que se casou tarde. Quando que o senhor conheceu a sua esposa?
R — Ela era amiga da minha irmã. Meu casamento durou 25 anos e depois acabou. Aí eu parti para um segundo e durou mais uns seis, também acabou. E agora eu tenho uma, eu chamo de minha mulher, mas ela na casa dela e eu na minha! (risos). É o melhor negócio! É o que funciona otimamente. Estamos sempre juntos, saímos à noite, curtimos e é por aí, cada um na sua casa. (risos).
P/1 — Com quem que o senhor mora hoje?
R — Eu moro sozinho.
P/1 — Os filhos já...
R — Um mora em Santos e o outro está com mulher também. Não casou ainda, mas, eles primeiro experimentam hoje em dia, não? Mas, está certo! Não adianta nada. Ou então tem aqueles que namoram quatro, cinco, seis anos, casa, não dura um mês e separa! (risos).
P/1 — E o mais novo é que seguiu um pouco a sua carreira musical?
R — O outro também toca, mas o mais novo está centrado. Ele toca violão, dá aula. Ele é bom! Sabe transmitir! Isso é importante, porque, às vezes, não é só tocar bem. Precisa saber transmitir. E tem alunos de toda idade. Ensina para criança, ensina para adulto, toca popular. E é bom. Toca contra baixo acústico também. Toca baixo elétrico, baixo acústico, violão e guitarra.
P/1 — O senhor enxerga algum deles no futuro tocando a loja?
R — Talvez, não sei. Acho que a profissão deles é herdeiros! Não sei.
P/1 — Mas o senhor gostaria?
R — É, gostaria. Mas ainda vai dar para levar para frente mais um pouco. Eu estou firme ainda!
P/1 — Falando agora um pouco da relação com o bairro, o senhor já tem uma história bem longa ali no bairro, não? Então, o senhor acompanhou todas aquelas transformações que ocorreram na Santa Efigênia. Inclusive, hoje está tendo um movimento bem forte ali dos comerciantes contra essas leis que o Kassab está promovendo de zoneamento da Nova Luz, não? O senhor tem alguma atividade, participa de alguma forma?
R — Ah, sem dúvida! Nós somos contrários a isso porque eu acho que estão cometendo uma arbitrariedade, porque eles criaram uma lei onde eles dão o direito de um particular te desapropriar. Isso não existe! Agora, o que eles estão pretendendo, eu acho um absurdo. Andaram mudando o projeto. Parece que agora os proprietários vão ter alguma participação, mas é muito relativo. Você quer saber, eu acho que a parte social lá, aquilo está um horror! Eu saio de lá às seis horas, da Rua Aurora, Santa Efigênia, eu tenho meu carro no estacionamento na Rio Branco, mas em poucos minutos, aqueles lixos que eles colocam nos sacos de lixo, eles são dilacerados porque eles vão a cata das latinhas! A reciclagem é uma coisa incrível! Noventa e oito por cento das latinhas de alumínio é produto de reciclagem. Então, a cata dessas latinhas, eles estraçalham os lixos. Aquilo fica um horror! E à noite, eu tenho uma assinatura da Cultura Artística e, com o incêndio que aconteceu, os concertos estão sendo todos realizados na Sala São Paulo. Meu, você sai de lá, é um horror! Bom, se você entrar com o carro naquele meio, você vai ser linchado. São mais de 100, 150 pessoas, ali no meio da rua. Eles precisam fazer alguma coisa! Não sei o que, mas alguma coisa precisa ser feita.
P/1 — A Santa Efigênia sempre teve um perfil comercial, mas, de uns tempos para cá, se deteriorou bastante. O senhor acompanhou essa transformação que ocorreu ali?
R — Ah, sem dúvida! Apesar de que a Santa Efigênia continua sedo um pólo forte de eletro-eletrônicos. Você fala em Santa Efigênia, vem gente do país inteiro aqui para comprar elementos de telefonia, de computação. Agora, eles não podem acabar com isso! Eu, por exemplo, onde era a minha loja antiga, eu tenho 40 lojas lá que são sublocadas. E são lojas boas, galeria com portas. Porque tem umas que são muito pequenininhas. E ali não! Um ponto de comerciantes bem estabilizados, com firma registrada. Ele não pode chegar de uma hora para outra e acabar com tudo, parar com tudo, tirar todo mundo! Não existe isso! Eu não sei. Eu tenho impressão que o Kassab saindo do ar, a coisa deve regredir um pouco nessa parte de desapropriação. Agora, tem uns dois quarteirões mais próximos da Pinacoteca, lá embaixo, tinha uns lugares muito degradados, com imóveis muito abandonados. O que eles deviam fazer era assumir esses que estão abandonados, que estão com o IPTU paralisados, que devem para a Prefeitura e ir assumindo isso. Não querer pegar a quadra, entregar para uma construtora, a construtora desapropria. Que é isso! Isso não existe! Bom, nós entramos com ação, mas caçaram as liminares rapidinho. E lá, eu acho que além de ser um movimento político, deve ter tido muito dinheiro de campanha. O pessoal andou mordendo com essas construtoras (risos). Andaram soltando dinheiro aí para... Isso é óbvio, não? Agora, o que não é admissível é você entregar um negócio que é seu e entrego para ela explorar. Como? Ainda se fosse o Governo que fosse explorar, desapropriar para fazer obras públicas, mas não tirar de você e entregar para ela para poder explorar, construir e vender. Não tem o menor cabimento isso!
P/2 — Senhor Angelo, por que a opção de se manter na Rua Aurora? Por que continuar todos esses anos lá naquele ponto, naquele bairro?
R — Hoje em dia existem outros pólos de instrumentos musicais, a Teodoro Sampaio, tem mais de 20 e tantas lojas, eu acho, mas a Santa Efigênia sempre foi um ponto forte e a gente está lá desde 1920. Você criou um ponto comercial é difícil sair de lá.
P/1 — A Santa Efigência pode ser vista como um pólo de instrumentos musicais, da Del Vecchio, Contemporânea?
R — Não e têm algumas lojas grandes, a Playtec que vende instrumentos de todo jeito. Lá o forte não é instrumento musical, mas tem uma certa tradição lá, já há muitos anos.
P/1 — Senhor Angelo, quais foram as lições que o senhor tirou ao longo dessa carreira no comércio?
R — As lições?
P/1 — É.
R — Procurar atender bem e, na maioria dos casos, o cliente tem sempre a razão (risos), embora às vezes você sabe que você tem um chato de galocha, mas não adianta! Você tem que atender, procurar satisfazer. Tem pessoas que realmente são extremamente exigentes, mas se quiser manter o cliente... E o meu princípio é esse mesmo, é o dinheiro de volta, porque se um dia ele pensar em comprar, ele vai dizer, “mas eles foram simpáticos. Eu vou voltar lá!”, (risos). A melhor forma de cativar clientela é atender bem e procurar ter gente que entenda um pouco, um sujeito que toque, que demonstre. Na maioria das vezes, o pessoal não entende nada e uma minoria toca o instrumento.
P/2 — Senhor Angelo o que é preciso para ser um bom luthier?
R — Existem uns cursos de luthieria. Tem uma escola em Itú importante, mas a maioria das pessoas que estão nessa área são pessoas que tiveram atuação em fábricas, eu acho.
P/1 — O senhor diria que os métodos de luthieria da Del Vecchio são aqueles que os seus avós tinham lá na Itália e trouxeram para cá?
R — O instrumento musical é um instrumento artesanal. Por mais que você utilize as máquinas na preparação da madeira, para serrar a madeira, afinar, lixar, lixadeiras, mas a montagem, a estruturação, é tudo manual. Não é que você fabrica uma peça lá e você injeta o plástico numa ponta e sai pronta do outro lado (risos). Não tem jeito. Um instrumento musical é um mês de dedicação em cima e não tem jeito!
P/1 — Qual o senhor diria que é o diferencial dos instrumentos Del Vecchio em relação aos outros?
R — Nós tivemos como meta sempre qualidade e pouca quantidade, porque nós nunca fomos, em nenhuma época, os maiores. Nunca! Mas, talvez, os melhores! Ou o melhor! (risos). Um dos melhores e talvez o melhor em alguns tipos.
P/1 — E o que o senhor achou de ter participado dessa entrevista, contar a sua vivência no comércio, de participar desse projeto?
R — Eu vim com satisfação. Para mim eu acho legal vocês poderem registrar as opiniões de comerciantes que tem uma certa bagagem. E o trabalho de vocês vai ser concentrado na Santa Efigênia?
P/1 — Não, na cidade toda.
R — Ah, na cidade toda!
P/1 — É. Tem alguma coisa que o senhor gostaria de falar que a gente não perguntou?
R — Ah, acho que vocês perguntaram bastante. Eu falei para chuchu!
P/1 — Está ótimo então. Então, a gente queria agradecer a sua participação.
R — Ah, foi um prazer!
P/1 — Muito obrigado!
R — Foi um prazer estar com vocês aqui!
P/1 — O prazer é nosso!
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