Projeto Mulheres Empreendedoras Chevron
Depoimento de Luciana Souza de Oliveira
Entrevistada por Stela Tredici
Itapemirim, 02 de maio de 2012
Realização Museu da Pessoa
Código: MEC_HV009
Transcrito por Ana Paula Corazza Kovacevich
Revisado por Joice Yumi Matsunaga
P/1 – Luciana, eu queria que você começasse falando seu nome completo, onde você nasceu e a data do nascimento.
R – Meu nome é Luciana Souza de Oliveira. Eu nasci em Itapemirim mesmo. E minha data de nascimento é dia 6 de fevereiro de 1979.
P/1 – Tá. E você passou a sua infância aqui em Itapemirim?
R – Passei... Foi aqui mesmo em Itapemirim.
P/1 – E os seus pais, o que eles fazem? O que eles faziam?
R – Meu pai é pescador e minha mãe ela trabalhava na roça.
P/1 – E como é que você lembra, assim, dos seus pais? Como é que você descreveria seus pais?
R – Pra mim, os meus pais? São um exemplo de vida... Pra mim, eles são tudo.
P/1 – E estão casados faz tempo?
R – Tá. Faz tempo.
P/1 – Quanto tempo faz?
R – Deve ter mais ou menos... Meus pais, eles casaram há mais ou menos quase cinquenta anos. Tem muito tempo. Desde que eu me conheço por gente, eles estão casados.
P/1 – E você sabe como eles se conheceram?
R – Meu pai, ele veio de Cachoeira e minha mãe é de Minas. Daí meu pai veio aqui trabalhar na usina Paineiras com o irmão dele. Veio ainda criança. Aí, no quintal da casa da minha mãe, tinha uma roda – hoje em dia a gente fala samba, mas não era samba naquela época. Era uma roda... Aquelas pessoas antigamente tocavam “moda congo” e eles se reuniam todo final de semana, toda sexta-feira, minha avó dizia. E aí meu pai um dia foi lá e conheceu a minha mãe. Daí, minha mãe trabalhava fora, aí o relacionamento deles foi um pouquinho tumultuado, mas acabou dando certo, eles ficaram juntos, estão casados, e nós somos oito irmãos hoje em dia.
P/1 – Que bonito. Então quer dizer que a sua mãe cantava ou dançava o congo?
R – Ela dançava. Ela dançava. Aí eles se conheceram assim. Mas aí eles estão casados hoje em dia.
P/1 – Você falou que você ao todo são oito irmãos.
R – Tenho oito irmãos.
P/1 – E o que que seus irmãos fazem?
R – Um irmão meu trabalha na Petrobras, trabalha em alto mar, ele trabalha com contêiner; e o outro ele trabalha na Planeta, de motorista; e o outro trabalha como chefe lá na usina Paineiras. E as minhas irmãs trabalham todas dentro de casa mesmo. Uma trabalha aqui comigo de doceira e a outra não trabalha fora, não. As outras três não trabalham fora.
P/1 – E como é que foi sua infância aqui? Você se lembra da casa onde vocês cresceram?
R – Lembro, lembro. Nem toda... Agora, a gente mora num bairro chamado Graúna, mas nem toda vida a gente morou em Graúna. A gente morou em um bairrozinho pequeno de Graúna, chamado Bela Vista, mas não era um bairro assim... Não tinha muita coisa. Na realidade, não era muito civilizado, não tinha água naquela época, onde a gente morava não tinha luz. Então a gente vivia abaixo de luz de vela, a gente acendia vela e água a gente pegava num poço. Agora, eu me lembro – mesmo assim minha infância não foi ruim, não, foi boa minha infância. Eu me lembro muito porque era um lugar distante e nós, pra chegarmos em Graúna, a gente andava mais ou menos uma hora e vinte minutos pra chegar em Graúna. Mas, quando a gente chegava em Graúna, era uma festa. Mas a gente não queria sair de lá desse lugar. Eu cresci lá, eu saí de lá quando estava com quatorze anos. Mas era um lugar bom, era espaçoso e era bastante gente que morava lá, todos da família, mas era um lugar bom de morar. Até hoje eu me lembro, muita recordação... Muita vontade de voltar pra esse lugar.
P/1 – Quer dizer, você falou que moravam várias pessoas da família?
R – Moravam.
P/1 – Quem?
R – Moravam duas famílias, mas era uma casa grande, mas moravam duas famílias... A casa era dividida, assim, minha avó, minha mãe e minha tia moravam nos fundos do quintal e pra frente, assim, tinha a casa dos vizinhos, não eram da família, mas eram as casas dos vizinhos, assim, bem próximos. E eu brincava muito com as crianças deles.
P/1 – Que tipo de brincadeira que vocês faziam?
R – Ah, pique-esconde, bandeirinha, roda, pula-pula, elástico, tudo isso.
P/1 – Como que é bandeirinha?
R – Bandeirinha? A gente tem um quintal grande, um lugar grande... A gente fazia uma lista no meio do quintal e colocava uma bandeirinha em cada canto, quem pegasse aquela bandeirinha e voltasse pra linha ganhava ponto para o lado do grupo. Era assim.
P/1 – Quer dizer, devia ser uma criançada que tinha ali?
R – Era, era, uma criançada. Costumávamos nos reunir na rua, tinha aquelas luas cheias que alumiavam o quintal e, como lá não tinha luz, a gente aproveitava. A lua clareava pra gente brincar à noite de roda. A gente gostava muito de brincar.
P/1 – E continuou acontecendo as noites de congo lá nessa casa onde você morava?
R – Não. Hoje em dia existe essa casa ainda, mas não continuou porque, como eu disse, lá era mais retirado de Graúna. Então meus pais acharam por bem comprar um terreno dentro de Graúna e nós viemos pra ali. E com a morte da minha avó e do meu avô, que eram as principais pessoas que reuniam na casa deles mesmo, então foi possível continuar a roda de congo. Mas existe ainda esse lugar.
P/1 – Você se lembra dessas rodas de congo?
R – Eu lembro. Lembro bastante. Acho engraçado. Lembro.
P/1 – Por que você acha engraçado?
R – Porque eu tinha vergonha de dançar congo. Naquela época, eu tinha muita vergonha. Eu era criança e tinha vergonha. E porque quando, assim, eu me conheci mesmo, por gente mesmo, a minha mãe já estava frequentando a igreja. Então foi meio assim, meio desaprovado dos meus avós. Porque meu avô era católico, minha avó também e a minha mãe estava levando a gente pra igreja. Então eu comecei já sentir vergonha de dançar o congo mesmo achando a nossa cultura bonita. Entendeu? Mesmo assim eu não teria coragem de dançar o congo.
P/1 – E é uma dança bonita, assim, você acha?
R – É. Eu acho, eu acho a dança bonita.
P/1 – Então, tem uns ritmos, o quê, mais africano…
R – É um ritmo africano, totalmente africano.
P/1 – E quem que tocava?
R – Era um senhor que vinha lá de Boa Vista tocar lá. Tinha um senhor chamado de Seu Tinho, da loja de arruda mesmo, esse moço é vivo. E a dona Elza. Todos amigos da minha mãe. O seu Alipinho. Muita gente se reunia pra tocar o congo.
P/1 – E me fala mais um pouco dessa casa, você falou que era uma casa grande, tinha quintal?
R – Tinha. Tem um pé de castanha, um pé de manga, são muito velhos lá. E a gente tinha medo, quando chegava a noite, lá era muito escuro porque a copa dessa árvore é muito enorme, e nós tínhamos muito medo, tinha medo nessa época, assim. Mas a gente gostava. Eu gostava quando dava manga. A gente sentava ali, tinha fartura das coisas. Era muito pé de laranja. Toda família reunida no Natal, festa assim... E a gente... Eu me lembro muito, tem até uma foto ali que eu trouxe... Mostra um pouquinho só do espaço que a gente tinha. Mas, assim, era muito bom o lugar. Até hoje, eu vou lá ainda pra poder olhar um pouquinho do que ficou lá atrás. Que ainda tem a casa, tem o pé de castanha e tem o pé de manga. Não é como era antes, mas está lá ainda.
P/1 – Não é como era antes, por que é que você acha?
R – Porque não tem mais meu avô, não tem mais minha avó. A minha tia também mora em Graúna. Nós crescemos. E lá só existe um casal, que mora lá hoje em dia, mas eles também não têm filhos, então não existe mais aquilo que existia antes. O córrego onde passava água era limpinho, a gente cuidava, era limpinho, hoje, aquilo, não existe mais isso lá, acabou, o mato tomou conta, mas antes era um lindo pomar.
P/1 – E a água era limpa...?
R – Era. Era sim. Nós cuidávamos com o maior capricho daquilo lá.
P/1 – Você falou que cresceu, então, rodeada de árvores com frutas...?
R – Cresci. Cresci sim. Tudo que se plantava... Tudo que planta na nossa terra, dá. Mas, lá, a gente tinha a possibilidade porque a terra era grande e meu pai plantava milho, plantava aipim, plantava batata. Então tudo isso a gente colhia lá, entendeu? Então, tudo o que a gente plantava, a gente colhia, e a gente se aproveitava um pouco disso, aproveitava... Hoje em dia que eu cresci que eu vejo que eu poderia ter brincado um pouco mais. Entendeu?
P/1 – Nessa época?
R – Naquela época.
P/1 – Ah, é? Você acha que você poderia ter brincado mais? É isso?
R – Com certeza. Poderia ter brincado um pouco mais.
P/1 – Por quê? Você ajudava seus pais na roça? Como que era?
R – Não. Eu nunca trabalhei, assim, na roça com meus pais, não. Apesar de que eu já trabalhei na roça, mas foi depois de grande. Mas a minha mãe... Assim, não foi pela minha mãe que eu não brinquei, minha mãe deixava a gente brincar mesmo à vontade. Mas, assim, eu tinha vergonha de muita coisa, eu era muito tímida e sou ainda tímida, e eu tinha vergonha de brincar, eu tinha vergonha de sair pra fora à noite, eu tinha medo de sair porque não tinha luz. Mas, assim, quando a vergonha passava, eu saía, brincava, pulava, tudo quando passava, eu contava só os de casa. Mas, como era o lugar bom de ir, ia muita gente de Graúna pra lá. Então, assim, eu tinha vergonha de juntar naquela roda de pessoas. Eu ficava sempre segurando a barra da saia da minha mãe ou da minha irmã mais velha, sempre ficava por trás deles, segurando eles. A minha irmã, de vez em quando, ela me dava um puxão assim: “Solta a minha saia”. E eu segurava na barra da saia dela porque tinha vergonha. E quando saía, as pessoas, eles falavam assim: “Agora você está mostrando quem você é, não é? Porque agora todo mundo saiu, só está nós, e agora você está mostrando. Então você está brincando agora”. Então, assim, se eu não tivesse... Mas, se não tivesse não existe, já passou.
P/1 – Você era a menorzinha de todas?
R – Menorzinha, menorzinha, não. Mas eu era uma das menorzinhas.
P/1 – E você se dava bem com seus irmãos?
R – Brigava, briga de irmãos mesmo, mas depois passava, depois passava e tudo bem.
P/1 – E como é que foi assim, quando você era pequenininha você foi pra escola? Você chegou a ir pra escola?
R – Cheguei.
P/1 – Tá.
R – A escola era perto de casa. A escola... Tinha uma escola bem próxima de casa, assim, e estudava muita gente lá nessa escola. Eu gostava da escola, eu gostava de ir pra escola. Gostava de brincar com as crianças na hora do recreio. Gostava da escola. Mas depois fui crescendo, a escola foi acabando e tudo acabou nesse lugar. Só resistiu mesmo as lembranças, existe a escola abandonada, mas eu gostava…
P/1 – Quer dizer, nesse lugar onde você passou a infância é que você foi à escola?
R – Isso.
P/1 – Antes de vir pra Graúna?
R – Antes de vir pra Graúna. Eu estudei a primeira série, segunda, terceira, quarta série, eu fiz tudo lá. Lá no Bela Vista.
P/1 – No Bela Vista. E como é que você ia pra escola?
R – Eu ia a pé, porque é perto, era perto de casa. É mais ou menos uns cinco minutos da minha casa até a escola. Eu ia a pé. Não tem perigo. Não tinha perigo nenhum. As professoras todas conhecidas. As professoras eram de Graúna mesmo. Então não tinha perigo. Era mais de dez crianças.
P/1 – Na escola?
R – Isso.
P/1 – E você ia com seus irmãos?
R – Ia com meus irmãos. Era boa a escola.
P/1 – E você se lembra de, assim, alguma professora que tenha sido marcante pra você?
R – Me lembro. Me lembro da professora... O nome dela era até meio... Servilha, o nome dessa professora. E eu me lembro muito bem dela, porque ela costumava nos visitar nos finais de semana, e eu me lembro dela. Minha mãe tinha uma criação de galinhas e ela gostava muito de galinha caipira. De vez em quando, minha mãe deixava uma separada lá pra ela. Aí ela me tratava superbem e as colegas falavam: “Só trata a Luciana bem porque a mãe dela vai dar galinha caipira pra você, porque, se não fosse isso, você também era ruim pra ela”. Então me lembro dessa professora. Entendeu?
P/1 – E além da galinha, que mais, quais bichos de criação vocês criavam lá?
R – Ah, porco, pato, ganso, tudo isso meus pais criavam.
P/1 – E, na escola, o que você gostava de fazer?
R – O que que eu gostava de fazer na escola? Ah, bagunça. Bagunça. Eu era bastante bagunceira na escola. Bagunça. Gostava de brincar de todas as coisas, mas... Enfim, era bagunceira na escola. Os professores falavam pra minha mãe que eu era a menor mais levada da escola.
P/1 – E você era tímida?
R – Ahãm. Mas na escola fazia arte, que só estudavam meus parentes nessa escola. Então eu me aproveitava. Quando chegava uma criança nova na escola, aí eu ficava quietinha, mas quando estava só os meus, eu bagunçava. Porque na escola só estava estudando a minha família. Entendeu? Mas, assim, com tudo isso…
P/1 – E tinha alguma matéria especial que você se lembre que você gostava mais?
R – História. História... Sempre gostei muito. E... Matemática nem pensar. Geografia também. Eram as duas matérias que eu mais sentava pra prestar atenção. E foi nessas matérias que eu nunca fiquei reprovada, mas as outras... Em Matemática já fiquei de observação de um dia só, pra poder não repetir, fiz a prova, mas passei também, não fiquei reprovada. Mas essas duas matérias eu nunca fiquei, nem pra fazer prova.
P/1 – E tinha alguma coisa que você imagina quando crescesse? Sonhava em ser alguma coisa quando crescesse, quando você estava nessa época da escola?
R – Enfermeira. Enfermeira. Meu grande sonho desde criança. Queria ser enfermeira, ainda quero ainda, ser enfermeira. Um dia, acredito, vou conseguir.
P/1 – Te motiva? Você gosta de cuidar dos outros?
R – Gosto. Gosto de cuidar dos outros, sim. Hoje eu tenho um exemplo vivo que é minha mãe, que é doente. Mas, antes disso, já cuidei, já, de pessoas doentes. Então é desde criança, é um sonho bem antigo, ser enfermeira.
P/1 – Tinha alguém na sua casa quando você era criança que cuidava, assim, dos outros?
R – O meu avô, acho que o que me motivou mesmo foi o vovô. Eu gostava muito do vovô, e o vovô tinha uma ferida na perna que não sarava. E, às vezes, eu via a grande necessidade dele de ter um médico e, por a gente ser bem humilde, a gente não tinha condições de levar um médico até a casa. Então, assim, eu via a necessidade do meu avô e eu queria cuidar, ajudar. E ele, às vezes, ele conhecia muitas ervas e ele falava comigo assim: “Luciana, vai no mato, vai ali e pega aquela erva pra mim. Pega aquele remédio pra mim”. Às vezes eu ia. Então, eu via ele preparando aquele remédio. Acho que a motivação vem do vovô, vem do vovô.
P/1 – Que interessante. Então, quer dizer, seu avô tinha esse conhecimento das plantas.
R – Tinha. O vovô tinha. Entendeu? Ele usava muito. Era mais fácil o vovô sarar com as ervas do que ele comprar o remédio pra ele. Geralmente, eu não via o vovô comprar remédio, não via. Meu vovô, quando ele foi tomar remédio foi quando ele estava internado mesmo, que ele foi tomar remédio. Mesmo assim, a gente já estava morando em Graúna. Entendeu? Mas... E ele tinha uma saúde que era de dar inveja.
P/1 – Com quantos anos... Ele faleceu? Já faleceu?
R – O vovô acho que faleceu com noventa e cinco anos. Então, assim, são coisas que eu lembro e tenho muitas saudades.
P/1 – E, bom, você então cresceu nessa casa com esse monte de crianças, pés de frutas, assim, e pra... Na hora de comer, como é que fazia, assim, com essa criançada toda, pra pôr todo mundo pra comer?
R – Por ter muito, a gente não ligava muito pra essas coisas não. Porque tinha muito. O que a gente mais gostava de chupar eram as mangas. Mas laranja, milho, essas coisas assim, tinha muito, então quando... Geralmente, quem tem roça diz que quando madura, madura tudo de uma vez. Então maduro com fartura. Então tem pra todos. Então, assim, não tinha briga por isso. Mesmo porque minha mãe cuidava dos dela, minha tia dos dela e o vovô ajudava a nos olhar. Então, enquanto elas estavam trabalhando, minha mãe e minha tia, tinha o vovô do lado. Então a gente... E a gente já sabia disso... E a gente também nunca brigou pelas frutas, porque tinha bastante.
P/1 – Vocês iam todos pegar as frutas ou chupavam as mangas no pé? Como que era?
R – As mangas a gente podia chupar no pé. Mas milho, batata, laranja, essas coisas assim, eram os nossos pais que colhiam. Mesmo porque eram eles que sabiam quando estava bom. Então eram eles que colhiam. E as laranjas também, quando estavam maduras, eles sempre nos avisam que a laranja estava madura, sempre deixavam no pé, que a gente gostava de pegar no pé e cascar na mesma hora. Então a gente não brigava por isso. Não brigava.
P/1 – E quem que cozinhava na sua casa?
R – A minha irmã mais velha, a minha irmã. Ela tomava conta, lavava a roupa, limpava a casa e cozinhava pra gente.
P/1 – Por quê, a sua mãe estava onde?
R – Trabalhando.
P/1 – Onde que a sua mãe trabalhava?
R – Na roça. Minha mãe trabalhava na lavoura, assim, capinando, plantando, era isso que minha mãe fazia.
P/1 – O alimento que ia pra vocês?
R – Isso aí. E meu pai pescava. Meu pai pescava, então geralmente ele pescava à noite, porque ele pescava pitu. Então ele pescava à noite e o dia ele estava em casa com a gente. Isso quando ele não ia vender os camarões que ele tinha pescado. Quando ele ia vender, a gente ficava com minha irmã mesmo.
P/1 – Quer dizer, essa cidade Bela Vista é à beira mar, então?
R – Não, não.
P/1 – Perto do mar?
R – Não é perto do mar. No rio. Meu pai ia pescar no rio. É retirado. É um lugarzinho assim que pertence à Graúna. Mas não é perto do mar.
P/1 – Ah, é porque pitu é de água doce.
R – Isso aí. Existe o camarão da água salgada e o camarão da água doce.
P/1 – E o seu pai vendia?
R – O meu pai pescava e vendia.
P/1 – E o que sua mãe plantava? Ela plantava tudo pra sua família comer ou ela vendia também?
R – Ela vendia também. Ela vendia também. Ela trabalhava pra algumas pessoas que tinham roça, capinando, e aquelas pessoas pagavam um dinheiro a ela por isso, pagavam o dia dela pra ela trabalhar.
P/1 – Então devia ser muito forte a sua mãe…
R – Era. Era bastante forte.
P/1 – Uma mulher forte, não?
R – Era bastante forte.
P/1 – E assim, vocês acompanhavam de vez em quando na roça ou não, ficavam mais com a sua irmã?
R – A minha irmã ia. Eu tinha medo do mato. Eu gostava de entrar no mato, mas eu tinha medo porque eu era muito lerda. E no mato você tem que saber andar, você tem que saber pisar, porque senão você fica todo arranhado e me dava coceira, aí eu reclamava muito quando tinha que... Então meu pai, geralmente, não gostava que eu fosse. E eu ficava em casa com minhas irmãs.
P/1 – E aí seu pai ficava durante o dia com vocês, porque ele voltava da pescaria...?
R – Isso. Meu pai saía pra pescar às quatro horas e ele passava a noite toda, aí quando ele vinha pra casa, que ele vinha pra casa no outro dia, ele chegava mais ou menos umas oito horas, ele tinha que dormir. Então, o pedacinho que a gente ficava com ele, era pouco. Do mesmo jeito, a minha irmã tinha que estar lá, porque ele ia deitar pra dormir e nós não podíamos perturbar ele. A gente tinha que deixar ele dormir pra ele estar descansado pra voltar pra pescar. Era assim.
P/1 – E você chegou a acompanhar seu pai em alguma pescaria?
R – Cheguei. Cheguei sim. Já fui muitas vezes com meu irmão, minhas irmãs. Levava o almoço dele. Já fui ver como é que era. Ele já carregou a gente no bote, andando no mar... No mar não, no rio. Andou com a gente no bote. Era bom. Só que eu não tinha coragem de pescar. Mas é bom andar no bote.
P/1 – Como que é feita a pescaria do pitu?
R – Com puçá. Ele comprava carne, pelanca, é assim que a gente fala. E ele comprava linha, amarrava no puçá e armava os puçás. É assim. E outras pessoas pegam manzuá e armam manzuá. Aí quando chega no outro dia de manhã, ele arma à noite. Chega no outro dia de manhã, ele olha, se tiver cheia é porque foi uma boa pescaria.
P/1 – O puçá... Descreve um pouquinho ele pra mim?
R – Puçá?
P/1 – É. Como é que é? É como se fosse uma panela, alguma coisa assim, que vai dentro da água e dentro vai essa carne? É isso?
R – Não. Sabe a tampa? Não tem a tampa da panela? Porém, que a puçá, ela tem umas beiradas, uns “beiralzinhos”, e ela é feita à moda palha de aço, palha de aço assim, porém, elas são forradinhas no fundo, assim. À moda tranças, porém, que tem separaçõezinhas, elas são assim, e tem as beiradinhas, e ela tem um fundo. Não dá pra explicar direitinho.
P/1 – E põe dentro da água. É isso?
R – Isso. Isso aí. Ela faz um formato feito um coador. Aí fica assim armada.
P/1 – E o pitu vai lá pra comer e fica lá dentro…
R – Isso. Porque não consegue passar pro outro lado. Aí fica preso. Aí eles têm que olhar toda manhã. Eles armam... Se eles armarem de manhã, tem que olhar à tarde; se eles armarem à tarde, eles têm que olhar de manhã. É assim.
P/1 – E vocês comiam muito pitu também?
R – Tinha muita fartura de peixe. Porque ele pescava, então tinha muita fartura. Até hoje em dia, eu não gosto de peixe porque comi muito. Então hoje em dia eu não gosto.
P/1 – Enjoou.
R – É isso aí.
P/1 – E a sua irmã então cozinhava…
R – Cozinhava.
P/1 – Você ajudava ela na cozinha, alguém mais ajudava?
R – Não, porque eu era muito menorzinha, então não ajudava. Eu só pegava fruta mesmo, mas ajudar não ajudava. Eram mais ou menos quatro pessoas, então as maiores faziam. E como eu era bem menor, então não podia ir perto do fogão. A mãe não deixava. E também eu não queria ir, eu queria brincar.
P/1 – Mas você lembra se era uma comida boa que a sua irmã fazia?
R – Era. Era uma comida boa. Ela já estava grande. Ela sabia fazer a comida. Aí depois, quando ela casou, ficou uma irmã minha pra cuidar da gente. Aí minha mãe teve que parar de trabalhar porque nós não gostávamos de ficar com ela e nem da comida dela. Aí minha mãe teve que sair do serviço pra ficar com a gente. Aí, foi aí que minha mãe parou de trabalhar. Porque já não tinha mais ninguém pra ficar tomando conta de nós.
P/1 – E a sua mãe aproveitava as frutas pra fazer doce, assim?
R – Aproveitava. A goiabada eu aprendi a fazer com minha mãe. A goiabada, o doce de mamão, doce de coco, cocada eu aprendi a fazer com ela. É muita coisa que eu faço aqui que eu aprendi a fazer com minha mãe.
P/1 – Quer dizer, você a via fazer e ia aprendendo?
R – Eu vi... Com o passar do tempo, eu fui crescendo. Então, assim, eu já tinha interesse. Pegava e já ajudava a cascar um coco. Ajudava já a cascar um mamão. Então eu fui aprendendo, fui aprendendo a ralar as coisas, a fazer o doce.
P/1 – E a sua mãe é mineira. Você falou.
R – Isso aí.
P/1 – Ela cozinha o quê... No fogão a lenha?
R – Tinha o fogão a lenha, mas ela não cozinhava no fogão a lenha, não. Ela cozinhava no fogão a gás. O que ela cozinhava no fogão a lenha era feijão. Feijão ela cozinhava no fogão a lenha. Fora isso, não.
P/1 – Os doces eram mais no fogão a gás...?
R – Isso mesmo. A goiabada, ela gostava mais de fazer no fogão a lenha porque demora. Aí então ela fazia no fogão a lenha. Doce de goiaba também ela fazia no fogão a lenha, cocada. Mas era muito difícil porque nós tínhamos um fogão a lenha bom, ele não entrava fumaça nas panelas, já tinha sido preparado pra aquilo. Então ela usava somente quando ia fazer uma porção de doces que estavam encomendados pra vender. Aí ela usava esse fogão dela. Quando era só pra gente de casa, era fazia no fogão a gás, que era pouca coisa, não ia gastar muito gás.
P/1 – E você se lembra, assim, da sua família fazer festas, assim, sem ser o congo, as festas que a sua família tinha costume de fazer na sua infância?
R – O Natal. Eu me lembro do Natal... O Natal na companhia... O último Natal que eu tive, o melhor, foi o Natal na companhia do meu avô. Quando eles se reuniram e fizeram uma grande festa, assim. Mesmo porque foi a primeira vez que eu tomei refrigerante. É uma vergonha falar isso, foi a primeira vez que eu tomei refrigerante foi nesse Natal. Acho que eu já estava com dez anos quando tomei refrigerante pela primeira vez. Aí, pra mim, foi o grande Natal, me lembro até hoje dele. Foi a primeira vez que teve um churrasco na minha família. Então foi esse Natal. Foi o último Natal que a gente passou em Bela Vista. Entendeu? Foi isso.
P/1 – E depois, então, você saiu de Bela Vista, vocês vieram aqui pra Graúna. Como é que foi essa mudança, como foi sair de lá e vir pra cá, pra cá não, pra Graúna?
R – Ficamos eufóricos quando meu pai falou que tinha comprado um terreno e que em breve a gente ia sair de lá. Aí quando meu pai deu a notícia, a minha tia e meu avô moravam lá ainda, nós também. Mas aí logo, seis meses depois, a minha tia foi morar em Graúna, que a casa dela tinha ficado pronta, e meu avô também. Aí, ficamos só eu, meu pai e minha mãe, e meus irmãos lá. Algumas irmãs minhas já estavam casadas, já. Então ficaram mais ou menos umas três pessoas e era ruim porque não era mais aquele quintal cheio de crianças. Era ruim. Mas, assim, mesmo sendo ruim a gente gostava de lá. Aí, quando o pai deu a notícia, nós ficamos satisfeitos porque vínhamos morar perto da tia de novo e perto do avô. Aí, quando ele foi pra cavada da casa, que ele cavou, juntou o pessoal ali que... No interior a gente não chama um engenheiro, a gente mesmo paga uma pessoa, duas pessoas ou as pessoas se reúnem e vão pra lá cavar a casa. E foi assim. E meu pai chamou e as pessoas foram se reunir pra cavar a casa. Tem até uma foto da cavada. Aí quando nós chegamos pra ver... A gente ficou eufórico, daqui, a gente achava: “Nossa. Surgiu uma grande coisa... Pessoas novas que a gente vai conhecer”. Eu era das mais novas ainda. Mas, assim, tá bom... Até construir aquela casa. Até deixar do jeito que era, que nós morávamos, foi difícil porque, nessa época, meu pai era mais novo, minha mãe também estava ajudando, mas, hoje em dia, a casa está pronta lá, tem vinte anos que a gente mora lá, mas assim... Foi bom.
P/1 – Quer dizer, você falou que em Bela Vista não tinha luz elétrica?
R – Não. Graúna tem. Graúna tinha luz. Foi a primeira coisa que o pai mandou ligar foi a luz, foi a água. Então, quando nós chegamos pra Graúna, na nossa casa já tinha luz e água. Era um descobrimento porque eu e minha irmã olhávamos pra luz e ficávamos achando assim um milagre de Deus aquela luz, aquela água. Gente, uma vez nós trocamos o cano do pai, a gente estava tentando descobrir onde era a cacimba, aí o pai sentou pra explicar pra gente e a mãe botou a gente pro quarto pra bater. Porque nós trocamos o cano da água e era pago isso pro moço consertar.
P/1 – Vocês fizeram como isso?
R – Nós pegamos a enxada e fomos cavar porque a gente queria descobrir onde estava o poço, porque a gente não via o poço e a gente queria descobrir onde era o poço. Aí, o meu pai sentou pra explicar, porque o meu pai é muito paciente e a minha mãe sentou a gente pra bater na gente.
P/1 – Vocês quebraram o cano.
R – Quebramos o cano e o SAAE teve que ir lá consertar. Aí o moço deu um montão de gargalhada quando chegou que o pai contou. Minha mãe ficou nervosa com a gente.
P/1 – Quer dizer, vocês não entendiam de onde que vinha aquela água…
R – Não. Eu não entendia. A gente queria... A gente pensava que vinha de um poço e a gente cavou o cano e descobriu o cano do SAAE.
P/1 – Ai, muito bom... E daí, bom, a casa foi ficando pronta, você foi crescendo.
R – É.
P/1 – E aí você foi conhecendo gente nova?
R – Isso aí. E daí... Com quatorze anos eu já estava lá em Graúna com minha irmã. Aí começou os irmãos casando. As irmãs, algumas já tinham se casado. Aí ficou eu, meu pai, minha mãe e uma irmã só. Só que essa irmã, a gente, eu e ela, a gente brigava muito. Aí, minha mãe já não trabalhava mais, então a situação dentro de casa foi ficando difícil porque a gente já não tinha mais aquela fartura que a gente tinha antes. Porque em Graúna o espaço que a gente tem é pequeno. Lá em Bela Vista era maior. Aí eu fui trabalhar... Aí eu fui... Realmente, conheci mais pessoas, mas aí eu fui vendo o que era a vida. Fui trabalhar. Saí fora da minha mãe. O primeiro emprego meu, quando a minha mãe ia me ver, eu chorava muito porque eu queria voltar pra casa e eu custei a entender que eu tinha crescido, custei a entender que eu já não era mais menina, que eu não era mais criança, que eu tinha que me adaptar à vida de gente grande. Mas, pra mim, foi muito difícil, porque eu queria continuar sendo criança, mas eu não podia, porque eu já tinha crescido. E minha mãe demorou muito, teve muito trabalho comigo pra explicar essas coisas, pra me explicar que eu tinha que ter uma certa malícia, que eu tinha que ter uma certa maldade, que até aí eu não tinha... Em Graúna até as crianças tinham maldade, só que eu não tinha porque eu fui criada no meio da família, então eles não tinham aquela maldade, a gente brincava brincadeira de criança. Lá em Graúna, não era assim. Até eu me habituar a isso foi um processinho difícil.
P/1 – Você teve alguma história que tenha te marcado, assim, nessa época?
R – Tive. Tive... A história minha mesmo. Eu fui mãe ainda na adolescência, então isso marcou muito, tanto a minha vida quanto a de todos, os meus pais. Então é uma coisa assim que me marcou. Hoje em dia, passou já, meu filho está grande hoje em dia. Mas, assim, foi uma coisa que eu não estava preparada pra ser mãe naquela hora, eu não estava. Hoje em dia, graças a Deus, meu filho está grande, está um homem.
P/1 – E você disse, então, que você saiu de casa pra trabalhar.
R – Isso.
P/1 – Qual foi o seu primeiro trabalho?
R – Foi tomando conta de uma criança. Entendeu? É... Eu tomava conta, eu gostava muito dessa criança... Eu mantenho uma amizade hoje em dia linda. Hoje em dia, ele está estudando pra ser dentista. E eu mantenho contato com ele ainda. Até a tia dele trabalha aqui, é uma secretária aí. Mas eu mantenho contato com ele até hoje, ainda. Com a mãe dele, com o pai dele, tenho um bom relacionamento com eles.
P/1 – Você foi morar na casa dessa família?
R – Isso aí. Ela cuidou muito de mim, essa pessoa. Hoje em dia, eu vejo que ela mais cuidou de mim do que eu cuidei do filho dela. Porque ela não me teve como empregada, ela viu que eu era uma menina e ela me ajudou. Ela ajudava a minha mãe. Muita coisa que eu não sabia ela me sentava, me explicava. Tinha dia que eu queria ir embora, ela me levava, aí me deixava lá com a minha mãe, aí no outro dia ela ia lá me buscar. Tinha dia que eu chorava pra ficar com a minha mãe. Minha mãe não tinha condições mais de me dar as coisas, que eu já estava grandinha, ela não tinha mais serviço. E, às vezes, ela deixava e muitas vezes... Eu custei a entender que eu precisava trabalhar. E, assim, eu fiquei um ano e dois meses na casa dessa pessoa, mas foi um ano e dois meses bem aproveitados. Ela me ensinou muita coisa. Ela me ensinou o que era a vida, me ensinou os limites das coisas, muita coisa. Ela ajudou muito a minha mãe.
P/1 – Que legal. E depois desse trabalho, Luciana, você foi... Como é que foi? O que você foi fazer?
R – Aí eu voltei a estudar. Depois desse trabalho, eu voltei a estudar à noite, aqui na Vila. Aí eu fiz a quinta série, sexta, sétima... Aí, depois parei no primeiro ano e não voltei mais à escola. E morava com minha mãe.
P/1 – Bom, falando um pouquinho ainda sobre esse período da sua juventude, como é que foi o seu namoro? Você teve um primeiro namorado? Foi esse o namorado, então?
R – É. O meu primeiro namoro foi... Uma prima minha se casou e minha família é um pouco assim... Eles são um pouco tradicionais, não aceitam que primo namore com prima, gostam de manter o respeito, irmão é irmão, primo é primo, pai é pai. E pra gente se um primo namora com prima é tudo absurdo. Aí, o que que acontece? Eu cresci, e fui pra esse casamento de uma prima minha. Aí eu e meu irmão, a gente tinha brigado nesse casamento, a mãe não tinha visto, porque a mãe estava distante... Eu era mocinha... Aí ele me deixou pra trás. Aí nessa deixada, que ele me deixou pra trás, eu conheci uma pessoa, que não era meu primo, mas era parente de sangue dessa prima minha que estava se casando. E eu gostei dessa pessoa e comecei a namorar escondido essa pessoa. Quando os meus pais descobriram, foi um escândalo dentro da família porque eles não [estavam?] que ninguém namorasse escondido. Teve muito aborrecimento. A mãe brigou muito comigo, chegou até a me dar uns tapinhas... Ela não batia pra valer. Mas, assim, eu muito teimosa, eu achava que não, eu achava que ele era uma pessoa... Ele é uma pessoa boa. Mas, foi o primeiro namorado e foi com ele que eu tive meu primeiro filho.
P/1 – Você tinha quantos anos?
R – Eu tinha quinze anos pra dezesseis.
P/1 – E aí você foi morar com seus pais? Você não foi morar com ele?
R – Isso. Não. Não, aí quando eu fiquei com ele... Eu fiquei com ele acho que foi um ano e pouco, desse um ano e três meses, um ano e dois meses, eu engravidei. E eu estava com medo de contar pro meu pai, porque a mãe foi a primeira a saber. Eu fazia ginástica e tinha uma coisa na minha barriga que eu não sabia o que era. Então, a mãe foi a primeira a saber, porque eu chegava pra mãe e falava assim: “Mãe, eu fui pra ginástica hoje e eu fui fazer abdominal e um negócio embolou na minha barriga”. E a mãe já estava bastante desconfiada que eu estivesse grávida. E a mãe falava assim: “Luciana, você não está grávida, não?”. “Não, não estou grávida.” Porque então, até aí, a mãe nunca tinha sentado comigo pra falar como que eu tinha que tomar remédio, os procedimentos, tudo certinho, pra não... Porque pra mãe... A mãe tinha vergonha de explicar isso pra gente. Então, ela descobriu primeiro. E o pai não. Aí ela me trouxe, eu fiz exame, o exame deu negativo. Aí a minha mãe ficou maravilhada quando o exame deu negativo. Mas aí o negócio continuou embolando na minha barriga. Eu corria, eu sentia mal. Uma vez cheguei a desmaiar. E aí o médico mandou ela me trazer pra poder fazer a ultrassonografia, aí eu fiz a ultrassonografia, aí viram, depois, a criança. Quando eu soube que eu estava grávida, pra mim, o mundo desabou na minha cabeça. Aí comecei a chorar muito, cheguei a ficar doente. Aí a mãe me mandou pra Vitória pra casa de um parente dela e nada, nada, nada me distraía. Eu não saía mais de dentro de casa, porque em Vitória não era como Graúna. Graúna eu podia andar pra lá e pra cá, em Vitória eu não podia. Eu tinha manias de brincar, eu tinha manias ainda de grande, mas eu tinha manias ainda de brincar. Então em Vitória não podia ainda mais porque o parente da minha mãe morava num apartamento e eu tinha que ficar. O máximo que eu conseguiria ir era até o play do apartamento. Eu sentia falta, gostava de ficar à vontade. Daí adoeci mais ainda. Mas aí eles me trouxeram e me entregaram à minha mãe. Eu já estava com a barriga bem grandinha já, que eu estava com seis meses e meio de gravidez. Aí eu fiquei com a mãe e, o pai da criança, num período de gravidez também tomei raiva dele. Entendeu? Mesmo assim, eu tomei raiva e gostava ao mesmo tempo. Porque tinha sido amor de adolescência. Aí a mãe tentava, dentro do possível, me explicar como que eu teria aquela criança e eu não queria ouvir, não queria ouvir, não queria ouvir. E foi passando. Então foi um momento turbulento da minha vida, um período que me marcou muito. Essa gravidez. Quando a criança nasceu, eu fui ganhar a criança, o médico já tinha conversado com minha mãe que eu teria que fazer uma cesárea porque a minha pressão, mesmo porque eu não fazia nada pra ajudar pra minha pressão controlar. E a minha saúde também estava muito debilitada. Então eu ganhei o meu filho, o primeiro filho, cesariana e a minha mãe me trouxe pra casa dela, e eu teimava, às vezes, eu levantava, uma vez eu caí, tive febre alta. Tive que ficar mais um mês no hospital. Aí, daí, esse mês que eu fiquei no hospital, eu vi que a ficha começou a cair: “Agora eu sou mãe. Agora eu não posso mais brincar. Agora eu tenho que tomar conta do meu filho”. A ficha caía e, ao mesmo tempo, não caía, porque eu queria sair, eu queria brincar, eu queria... Quando chegou a época de namorar, que eu queria namorar, mas eu já era mãe, como é que eu fazia agora? As pessoas já não me olhavam do mesmo jeito que me olhavam antes. A minha família era uma família respeitada e eles já não tinham mais aquele respeito por mim, porque querendo ou não querendo, eu era mãe solteira. Então eu tinha que ficar. Meu pai fazia de tudo pra me proteger. Meu pai gostava muito que eu saísse com ele depois que eu passei a ser mãe, porque as pessoas me respeitavam quando estava perto dele. E eu, às vezes, não queria, eu queria sair com as minhas amigas, eu queria sair com meus amigos. Mas eu chorava todas as vezes que as pessoas olhavam pra mim, que um homem olhava pra mim e me olhava diferente. Na roça é assim, se você é mãe solteira, eles te olham diferente. E eu sentia isso na pele e, às vezes, eu deixava de sair. Mas assim, com tudo que meu filho foi crescendo, aí eu e o pai da criança voltamos, a gente estava pra se casar, mas aí as duas famílias não se davam certo. Aí meu pai me levou, me tirou de dentro de Graúna e me levou pra Presidente Kennedy, porque não aceitava de jeito nenhum que as famílias se unissem. Mesmo porque meu pai não aceitava já o justo fato de eu ter engravidado e ele não ter assumido. Então assim, foi um período bem difícil e marcante na minha vida, porque se eu tivesse sido mãe um pouquinho mais tarde, talvez não. Mas, hoje em dia, eu não posso reclamar muito e não reclamo hoje em dia porque meu filho está com quatorze anos, então não reclamo muito disso, porque eu vejo, assim, eu vejo nos olhos do meu filho o tanto que ele tem orgulho de ser meu filho.
P/1 – Que bom. Bom, depois, então, você foi pra Presidente Kennedy, você ficou um tempo lá e depois você voltou pra cá?
R – Voltei. Voltei pra cá. Voltei pra Graúna. Meu pai foi pra Presidente Kennedy tomar conta de igreja. Ele... Meu pai, nessa época, já era crente e ele ficou nessa igreja como pastor e as pessoas gostavam muito da gente nesse lugar, trataram a gente muito bem. E... Mas aí, a gente também já queria voltar porque a mãe já estava doente. A minha mãe teve depressão. E, a minha mãe, ela se escondia das pessoas, então a gente tinha que voltar. E a gente voltou pra Graúna. A mãe já estava doente, eu já tinha pegado mais responsabilidade, já sabia que eu não podia mais ser criança, já tinha crescido. Aí minha mãe foi se tratar no Rio e eu fiquei tomando conta da casa; eu, meu pai e meu filho, tomando conta da casa. Minha mãe ficou seis meses pra lá se tratando, ela e minha irmã. E nós ficamos em Graúna. Quando ela retornou, ela retornou bem melhor do que estava. Daí eu já tinha mais responsabilidade comigo mesma, com meu filho. Porque tudo que eles queriam era que eu pegasse responsabilidade com meu filho e comigo mesma, que eu aprendesse a me virar. E eu não sabia fazer isso. Então, quando ela voltou, eu já sabia, já.
P/1 – E como chama seu filho?
R – Vinícius.
P/1 – Ai, que lindo! E daí ficou então seu pai com o Vinícius, como é que era a relação, assim?
R – Meu pai tratava o Vinícius como se fosse filho dele. E minha mãe também. Eles tinham mais ciúme do Vinícius do que de mim. E agora? O que pra mim era difícil, porque eu queria a atenção deles, queria os meus pais. Até hoje eu falo bem assim pro meu filho, assim, hoje em dia: “Eles são os meus pais”. Então assim, hoje em dia eu me controlo bastante, não sou mais criança. Mas antes eu competia com o meu filho porque, os meus pais, eles davam atenção e o carinho pro meu filho e eu queria carinho do meu pai. Meu pai era bastante carinhoso comigo e eu queria o carinho dele só pra mim. E eu falava pro meu filho: “Ele é meu pai, não seu”. Às vezes eu batia no meu filho, meu filho chorava e, quando meu filho chorava, meu pai brigava bastante comigo, só que até eu entender isso, eles me ajudaram muito, me ajudaram muito a ver que não era assim. Hoje em dia, eu tenho muita admiração por eles. Me ajudaram muito, me ajudaram a ser quem eu sou hoje em dia.
P/1 – E quer dizer que seu pai virou pastor, então? Que interessante.
R – É. Ele foi pra essa igreja em Kennedy tomar conta de igreja, ficou como pastor nessa igreja. A igreja tinha trinta e cinco membros. E ele ficou, era um publicozinho razoável, porque a sede mesmo da igreja era trezentas e poucas pessoas, e meu pai tomava conta dessa igreja.
P/1 – E você frequenta a igreja?
R – Frequento. Frequento a igreja Assembleia. Frequento.
P/1 – E, bom, daí então você ficou morando esse período com seu pai e seu filho, sua mãe voltou. Aí você foi trabalhar fora, como que foi, como você ficou trabalhando?
R – É. Daí tem um serviço na roça, que é o serviço brutal, que é o corte de cana, capim. Mas só que, se a pessoa juntar o dinheiro, dá um dinheirinho bom no final do mês. Mas só que minha mãe não queria que eu entrasse nisso, mas eu queria porque foram umas meninas trabalhar, tudo da mesma idade... E eu fui trabalhar na roça. Comecei, aprendi a trabalhar na roça, fui trabalhar na roça. E eu comecei a sustentar meu filho, comprar as minhas coisas, com o dinheiro do corte de cana, com o dinheiro da capina, foi assim que eu ajudei a criar o meu filho.
P/1 – E como que era esse trabalho, Luciana? Conta um pouquinho. Como que era o seu dia a dia nesse trabalho?
R – No começo foi difícil porque, até pra cortar cana, você tem que saber. No começo foi difícil porque eu não sabia cortar cana. Eu segurava uma cana pra cortar, não pode, a pessoa que trabalha na roça tem que segurar cinco ou mais cana se você quiser ganhar um precinho bom. Senão, as pessoas que estão te olhando, eles não pagam você, aí você de tarde você está mais do que cansada, a pessoa está mais do que cansada, e sem ganhar nada. Então, o quê? Eu tive que contar então com boa vontade de pessoas que estavam lá pra me ensinar. Então as pessoas falavam assim: “Poxa, nem parece ser filha de Dona Maria”. O nome da minha mãe é Maria das Neves. “Nem parece ser filha da Dona Maria, porque a Dona Maria sabe cortar cana”, e eu não sabia cortar cana. Mas aí tem um vizinho nosso, ele é muito pessoa boa e ele veio, me ensinou: “Luciana, é assim que tem que ser, é assim que você tem que pegar, é assim que você tem que segurar no facão”. Meu calo foi o primeiro desespero na roça. Eu lembro que eu joguei o facão no chão, deu calo na minha mão, e eu... Deu aquela bolha d’água, assim, eu chorei. O segundo calo eu não conseguia nem segurar no facão, minha mão encheu de calo, eu fiquei uma semana sem voltar pra roça. Quando eu voltei pra roça, já não deu mais calo na minha mão. Mas assim, eu aprendi. Eu aprendi a cortar cana. Depois, eu quis aprender pra falar pras outras pessoas que falaram que eu não ia aprender que eu tinha aprendido. E eu aprendi a contar cana, aprendi a capinar, aprendi a plantar cana. Então, tudo isso eu fiz. Plantei, cortei, capinei.
P/1 – Quer dizer, eles não davam luva? Nesse lugar onde você trabalhava não tinha luva pra cortar cana?
R – Quando eu comecei a trabalhar lá, não. Hoje em dia tem. Hoje em dia tem luva, tem caneleira, tem óculos. Isso tudo atrapalha muito. Quando se corta cana, o melhor que você tem a fazer é dispensar a luva do facão. Porque, se você não sabe cortar cana, ou você deixa a luva do facão ou você vai ficar com o braço inchado. E eu queria cortar cana de luva, com a bota, que já se torna pesada no corte de cana. O máximo que você tem a fazer é cortar cana com uma luva só e usar uma caneleira, só que, que no caso, a caneleira tem que ir pra sua perna esquerda. E eu usava as duas caneleiras. Então não dava. E isso tudo me atrapalhava. Hoje em dia eu sei cortar cana, sei que tudo isso que eles falam que é seguro, é seguro sim, só que atrapalha. Só que quem corta cana é a metro, então, se você vai cortar cana a metro e você perde uma hora de serviço, perdeu vinte, dez reais. Então, hoje em dia, eu já sei cortar. Então, foi bom…
P/1 – E que horas que você ia para o trabalho?
R – Cinco e meia. Cinco e meia. Pra chegar na roça cedo. Às sete horas já tinha que estar lá. Quando não estava, perdia, já perdia dinheiro. Entendeu? Pra capinar é dia, então você não perde. Então, se você chegar na roça às sete e meia ou oito e meia, tanto faz. Porque você está trabalhando a dia, então você ganha. Mas, geralmente, essas pessoas querem botar você pra trabalhar a metro. Porque a metro, se você perder, é você que perdeu, não eles. Entendeu? Hoje em dia eu não corto mais cana, mas cortei, já plantei muita cana. Não tenho vergonha disso, me orgulho, porque foi daí que eu tirei meu sustento, foi daí que eu tirei o sustento do meu filho e não me arrependo disso de jeito nenhum. Foi um serviço honesto. Quando aprendi a fazer, gostava de fazer, gostava de ir pra roça. Cada coisa que eu comprava... Eu aprendi a dar valor pra cada coisa que eu comprava. Cada coisa que eu comprava eu tinha orgulho, como hoje em dia eu tenho orgulho de cada coisa que eu compro, de cada móvel que tem na minha casa, eu olho que isso aqui veio do meu serviço, veio do meu trabalho. Então, pra mim, se eu não trabalhar, se eu não ganhar o meu dinheiro, se aquele dinheiro vir fácil pra mim, eu não dou valor às coisas. Eu gosto do que eu faço, só faço as coisas quando eu gosto de fazer, e, se eu não gostar de fazer, eu não faço.
P/1 – E depois, então, desse trabalho o que você foi fazer?
R – Depois desse trabalho? Pois é. Depois desse trabalho, esse trabalho demorou um pouco, eu fiquei muito tempo cortando cana e capinando. Aí, depois disso, eu me casei, eu tive mais filhos, depois... Foi o ano passado que o projeto veio. Foi o ano passado que eu parei de cortar cana. O projeto veio e foi através do projeto que eu parei de cortar cana. Entendeu? Porque aí também meu marido não queria mais que eu cortasse cana. O ano passado eu trabalhei ainda de teimosa, porque não queria ficar parada dentro de casa, e ele reclamava o tempo todo, porque nós dois trabalhávamos. Então, quando ele chegava, ele não encontrava a casa limpa, ele não encontrava a roupa dele do jeito que ele gosta, então ele reclamava. Aí, pra ele, ele prefere que eu fique em casa e ele vá trabalhar, mas pra isso, graças a Deus, o projeto veio... Aí, hoje em dia, eu não preciso cortar cana. Porque aí eu tiro meu dinheirinho aqui.
P/1 – E como é que você conheceu seu marido?
R – Ele é do mesmo lugar meu. Ele é de Graúna. Ele... Eu estava em frente à minha igreja e ele passou de bicicleta. Aí reuniram mais ou menos umas vinte pessoas porque a gente ia fazer um almoço e ele estava passando pra ir pra cá. Aí uma amiga nossa falou: “Luciana, você viu fulano?”. E falou o nome dele, o nome dele é Aquiles. “Você viu Aquiles?” Eu: “Vi”. E eu não ligava muito, porque na Graúna eles falam assim... Ele tem tradição cigana e, na minha família, eles falam assim que cigano carrega uma maldição. O vovô falava isso. Então, assim, não gostavam muito. A mãe não deixava, quando via um cigano: “Tira, sai daqui porque lá vem o cigano”. Então assim, a gente não dava muito crédito. Mas aí a gente se conheceu assim. À noite ele foi pra igreja e a gente conversou, essa amiga meio que me ajudou também. Ela ajudava, ela inventava um amigo X, ela inventava uma festinha, ela inventava de me chamar na casa dela, e sempre lá ele estava. A primeira vez que ele conversou comigo, como eu era mãe solteira, eu já tinha o cuidado, eu tomei meio que raiva de homem. Eu já tinha cuidado de não querer ficar com ninguém, de não namorar mais com ninguém, porque alguns homens se aproximavam pra se aproveitar. Então eu já não queria mais. Isso eu determinei pra mim mesma. Então, o Aquiles, ele foi assim, foi... Depois do pai do meu filho, foi o segundo homem, não tive mais homem. Então foi com ele, fiquei com ele, me casei com ele. A primeira vez que ele foi conversar com meu pai, meu pai levantou da sala, porque meu pai não queria conversar, ele fala isso até hoje. Meu pai levantou quando ele chegou pra conversar com meu pai que ele queria se casar comigo. Meu pai levantou da sala e deixou ele falando sozinho. Aí, minha mãe veio. Minha mãe, nessa época, minha mãe já tinha adoecido. Ela tinha muita dificuldade pra andar, e ela veio, me pediu ajuda, chegou até a sala, sentou, deu suco pra ele, tratou ele bem, e disse pra ele que faria gosto se ele se casasse comigo, mas disse pra ele: “Ela não limpa peixe, ela não gosta de peixe, então, se você casar com ela, case sabendo. E ela tem manias. E ela tem filhos, você sabe?”. E ele falou: “Sei que ela tem filhos”. Então assim, eu, de vez em quando, falo pra ele assim: “Ele foi corajoso em se casar comigo”.
P/1 – Então você estava contando que sua mãe chegou e aceitou o Aquiles…
R – É. Aí a gente se casou e hoje em dia a gente mora juntos, tem um bom tempinho já a gente morando juntos. Entendeu? Claro que todo casamento tem briga, mas graças a Deus isso é coisa do dia a dia, coisa da vida, passa. Mas, hoje em dia, eu não posso reclamar da minha vida, não posso reclamar de nada.
P/1 – E vocês tiveram outros filhos, vocês tiveram filhos?
R – Uma filha. É a Melissa.
P/1 – Então é o Vinícius e a Melissa?
R – Tem a Letícia.
P/1 – E a Letícia. Então você tem três filhos. E como é que foi o dia do seu casamento?
R – O dia do meu casamento... O dia do meu casamento foi triste, muito triste. Foi o dia em que minha mãe deu AVC e ela passou mal, então não teve festa. Porque foi assim, meu casamento estava marcado naquele dia e minha mãe teve o AVC de madrugada. Aí então não teve festa. Eles foram me chamar porque só morava eu, meu pai e os meus filhos na casa da minha mãe. E, de madrugada, eu tinha saído pra ir pra casa dessa menina que vivia arranjando esse meu casamento meu com o Aquiles, e eles foram me buscar porque minha mãe estava caída, aí eu cheguei e ela só conseguia balbuciar alguma coisa no chão, caída. Então, não teve festa. Então, era pra ser o dia mais feliz da minha vida porque eu sonhava em me casar. Eu não contava pros meus pais, mas eu sonhava em ter um casamento. Mas, assim, foi o dia mais triste da minha vida foi o dia do meu casamento. Eu ainda vou fazer a minha festa um dia. Mas deixa a minha mãe levantar de lá.
P/1 – E você está feliz com o Aquiles, é isso que importa, não é? É um bom marido.
R – É verdade, é verdade.
P/1 – Que legal. Bom, você estava contando então que você vinha lá do trabalho de cortar cana, não é? Que daí seu marido não queria que você cortasse cana e que daí apareceu o projeto da Inclusão Comunitária.
R – Justamente.
P/1 – Como é que você ficou sabendo desse projeto?
R – Primeiro, eles vinham lutando muito tempo, a minha comunidade, em tornar a minha comunidade uma comunidade quilombola. Ao longo dos anos, eles vinham tentando isso e não conseguiam. Aí então, agora, eles conseguiram tornar essa comunidade uma comunidade quilombola. Então, depois que conseguiu isso, começou a aparecer os cursos... E em uma dessas reuniões ficou pra gente escolher o que a gente queria na sociedade. Algumas falam... Algumas de nós falamos doces, outras falaram corte e costura, outra falou outras coisas lá. Mas o que veio mesmo foi os doces. Aí, numa dessas reuniões, a Cintia estava. Aí ela marcou uma reunião, foram duas pessoas, foi eu e a Paola, a menina que trabalha aqui também. E, como ela falou isso, nós entendíamos que ia ser assim... Veio o projeto por causa da comunidade quilombola. Isso ajudou, mas não foi por causa disso, e não tinha nada a ver. Aí nós começamos, estávamos meio desacreditadas porque, até aí, nada dava certo nessa comunidade, nada ia pra frente, nada crescia. Então nós estávamos desconfiadas. Entramos nesse projeto com um pé atrás. Precisou de muita paciência da Solange, do Tadeu e de Cintia, porque a gente enchia eles de pergunta. A gente queria que fosse pra frente, mas a gente tinha medo que não fosse. Mas, assim, aí foi através de Cintia. Cintia foi à primeira reunião. Depois Solange foi explicar, Tadeu foi também. E foi assim. Aí eles levaram a nossa instrutora, que é a Elaine, que ela que deu o curso de doce pra gente. Aí nós fizemos o curso de doce lá com a Elaine na Graúna e, hoje em dia, estamos aqui. Esse curso foi tumultuado porque Elaine chegou na cozinha, onde nós estávamos era menor... Era desse tamanhinho, daqui pra cá, pequenininha assim. Ela bateu o olho na cozinha e falou assim: “Não dá pra gente ficar e fazer esses doces aqui. Isso aqui não é ambiente pra isso”. Só que a gente queria fazer o curso na comunidade, a gente não queria sair de lá. Aí o que que acontece? Elaine pegou e continuou com a gente lá fazendo esse curso. No meio desse curso, foi chegando mais gente, mais gente pra fazer esse curso porque, o Senai, ele tem que ter dezoito pessoas fazendo o curso, senão não pode. E a gente ficou fazendo o curso. Aí encheu de mulheres nesse curso. O que que acontece? Dividiu a turma e, mesmo assim, ficou com um tanto bom de gente. Aí tinha um fogão, o fogão estava velho já e a mangueira também. Quando a gente ligou, começou chiando muito essa mangueira, esse fogão, ficou chiando muito. Aí, eu mais minha irmã, a gente foi pra beira da porta, pra saída, e as duas ficaram lá dentro. Aí, a Andréia e minha irmã falaram: “Luciana, vamos ali pra baixo?”. E nós fomos pra baixo. Quando nós fomos pra baixo, que nós resolvemos voltar, quando nós estávamos voltando, nós vimos que a mangueira do bujão saiu e começou chiando, deu aquela lapada de repente e o fogo subiu pra cima. Nós saímos correndo e na hora de sair correndo na porta ali, a porta era isso aqui. Saiu Paola correndo e a minha tia Irene, a tia Irene, Paola derrubou ela sentada, porque saiu as duas na porta e não dava pra sair. A tia Irene caiu no chão. Ela que não gosta de xingar, ela xingou: “Ai, Paola, sua capeta, você acabou me derrubando”. Aí caiu as duas sentadas assim e a Paola não conseguia do tanto que ria do acontecido. Nessa altura, nossa instrutora já estava lá fora há um tempão. Então, assim, foi um fato acontecido nesse grupo que dá graça até hoje quando a gente lembra do acontecido. Mas foi através de Cintia que veio o doce e está há um bom tempinho já. Foi difícil no começo porque a gente não tinha renda nenhuma. Teve vez da gente querer parar, mas, só que eu e minha irmã, a gente vivia sonhando com o dia que a gente ia ter uma coisa pra gente trabalhar que não fosse na roça. A gente vivia sonhando com isso. Quantas vezes nós duas sentávamos e a gente ficava pedindo pra Deus, assim. “Quando é que vai ter? Quando é que a gente vai ter uma oportunidade?” Então, quando surgiu isso, foi um sonho pra mim, foi um sonho pra ela, pra todos nós que estamos aqui. Então, quando vem a dificuldade, a gente se reúne, senta, conversa, porque dificuldade tem pra todo mundo, ninguém vive um mar de rosas, mas a gente tenta passar por elas.
P/1 – E vocês é que pensaram juntas? Esse grupo é que falou: “Bom, a gente quer fazer tais tipos de doce”?. Como que foi... Como surgiu essa ideia de fazer doce a partir de frutas?
R – É... O doce... Pois é, eles chegaram e conversaram com a gente e a gente decidiu juntas fazer o doce. A gente sentou com a Cintia, Tadeu, e a gente decidiu junto. Porque o doce vem um pouco da nossa cultura. Aí a gente decidiu juntos, os doces. E a comunidade tem apoiado bastante, tem comprado nossos doces.
P/1 – Você acabou trazendo um pouco a experiência já dos doces que eram feitos na sua casa quando você era criança?
R – Isso aí. Trouxe sim. O doce de coco, o doce de goiaba. Trouxe um pouco. Tudo do pouquinho que a gente soube, sabia fazer a gente trouxe um pouquinho pra cá.
P/1 – Quer dizer, você trouxe também um pouco, bastante da sua cultura, não é?
R – É isso aí. Isso aí. Agora, a gente vai sonhando o dia que vai, nossa cozinha vai pra lá pra gente fazer uma grande festa de congo.
P/1 – E por que é importante pra você? O que você gosta mais desse projeto? Porque é importante, pra você, fazer doce?
R – Como assim?
P/1 – O fato de você estar fazendo esses doces, o que te traz de bacana, de positivo pra você?
R – Primeiro que eu gosto mais quando reúne a gente, as mulheres, aqui na cozinha. Porque eu vejo a gente lá na frente. Eu vejo o que a gente pode alcançar. Eu acho que é uma coisa que vai dar certo. Eu quero crescer, eu não quero ficar só nisso. Eu quero através disso não só vender pro mercado de Graúna. Eu quero vender pra supermercado grande. Eu acredito que é uma coisa que vai dar certo. A gente conversa. A gente está se preparando pra isso. A gente acha que a gente pode expandir. E a gente veio lá de baixo. Todas nós tivemos grandes dificuldades. A gente é da roça. Mas todas nós já tínhamos uma pequena experiência já. Então, o que eu mais gosto nesse grupo é isso, é quando a gente senta pra conversar, as ideias se batem, as ideias se encontram. É isso.
P/1 – E vocês também estão fazendo... Fala um pouquinho dos seus doces, que tipos de doces, assim? Você falou que você faz de coco que você fazia na infância. Você faz licor? Vocês fazem licor, não é isso?
R – É. O doce que eu mais fazia, da infância, hoje não tem ele aqui na cozinha. Porque o doce que eu fazia muito na infância com a minha mãe era doce de mamão com coco. E não tem na nossa comunidade, andou cortando muito pé de mamão, então os mamões estão pequenos, então não tem ele aqui. A gente tem o coco na geladeira, mas o doce mesmo a gente não tem. E, também, o doce que tinha o doce de mamão a gente vendeu numa feira que a gente fez aí. E o licor também foi novidade. O licor, por crescer já na igreja, minha mãe já não deixava nem a gente ficar perto de quem bebia. Então o licor foi novidade, porque, quando eu vi pela primeira vez, eu me identifiquei. Eu queria aprender a fazer. Entendeu? Me orgulho de cada vidro que está aqui. Mas me orgulho também do licor, do casadinho, eu gosto de fazer, eu gosto de ver se formando, eu gosto de ver tudo embalado aqui.
P/1 – Você gosta de ver o doce pegando o ponto?
R – Isso aí. Eu gosto. Eu gosto de ver. Eu gosto de ver quando começa tudo. Eu gosto de ver. Eu acho interessante isso. Como que começa cada massa, cada ponto, cada casadinho que enrola, eu gosto de ver isso. Eu gosto da mão de obra, eu gosto do batente, eu gosto do que eu faço.
P/1 – E como é que seu marido, a sua família, seus filhos veem essa sua atividade de doceira?
R – Meus filhos gostam. Meu marido se aborrece quando tem que sair. Quando precisa ficar fora de casa, ele se aborrece, mas acaba vendo pelo lado bom, então... Aí ele tira aquela cara emburrada e sorri, sempre. Então assim, os meus filhos... Minha filha já veio aqui comigo, meu filho também... Olhando. Eles gostam, mesmo porque tudo que eu faço aqui eu faço pra eles em casa. Então eles gostam, eles riem toda vez que eu falo que aprendi a fazer uma comida nova, um doce novo, porque eles já ficam pensando quando é que eu vou fazer pra eles. Então eles gostam.
P/1 – E você está ensinando isso para os seus filhos?
R – A minha filha sabe fazer geleia. Licor, não. Mas a minha filha sabe fazer geleia. Agora eu estou tentando ensinar a ela o casadinho, a pegar o ponto do casadinho. Ela não sabe dar ponto à massa e ela precisa aprender, ela não sabe ainda, mas ela é esforçada, ela vai conseguir.
P/1 – E, Luciana, como é que vocês estão comercializando esses produtos que vocês produzem?
R – Pois é. A comunidade tem ajudado nisso, porque lá tem dois supermercados que eles colocam nossos doces lá pra vender. E eles já compram da gente e colocam pra vender no supermercado. A primeira pessoa que comprou foi a comunidade. A primeira encomenda surgiu da comunidade. É a comunidade que sensibilizou e está ajudando a gente nisso aí. Que eles compram nosso produto e revendem lá. Entendeu?
P/1 – E você está sendo remunerada? Você ganha um dinheiro?
R – Isso aí. Eu ganho um dinheiro. De cada produto vendido a gente ganha. Entendeu? E vem pra cá... Um exemplo assim, nós viemos pra cá, os casadinhos ficaram... Nós fizemos os casadinhos e não levamos. E foram pessoas comprar e a gente não tinha ele pra poder passar. Então hoje, já aproveitando, a gente tem que levar os casadinhos porque já está tudo vendido. E a geleia também vai ser vendida, se Deus quiser, em Vitória, numa feira que vai ter. Então, assim, tudo que a gente faz, a gente vende.
P/1 – E o que você sente que esse projeto mudou, assim? Como que mudou? Mudou alguma coisa na sua vida? O que mudou na sua vida esse projeto?
R – Mudou tudo. Mudou o jeito de pensar. Mudou o jeito de ver as coisas. Como eu falei: a gente não acreditava muito. Graúna, tudo que ia sempre dava pra trás, sempre. Sabe político? Sempre não passava de promessa. Aí, de repente, vem esse projeto e as coisas começam a dar certo. Ninguém queria esse projeto, ninguém queria participar, porque achavam que era mentira, achavam que não ia dar certo. Aí, de repente, quando eles veem a gente no almoço, no primeiro almoço, primeira geleia, primeira encomenda. A primeira geleia saiu tudo errado, mas pra gente saiu tudo certo, até a gente pegar o ponto da geleia, nossa! Então, assim, pra mim e pro grupo todo é uma vitória. Pra mim, esse grupo foi um presente.
P/1 – Além dessa história do bujão de gás, tem alguma outra, algum momento que tenha sido marcante pra você durante esse período que você está aqui no grupo?
R – Essa cozinha... Aqui dentro da cozinha aqui... Aí tem aquele espaço pra lá. Tem um banheiro ali e a gente não sabia... Quando a gente veio pra cá, era tudo novo, a cozinha nunca tinha sido usada, foi o primeiro grupo que usou essa cozinha foi o nosso, então, o banheiro... A gente tinha que passar pelo corredor lá, vai chegar pelo banheiro, tem que ver se o portão não está aberto, não. E a gente não conhecia nada, a gente ia ao banheiro dos homens, e a gente sentiu muito. E nesse banheiro tem uma banheira que parece mais um caixão, quando chegava à noite ninguém queria usar, ninguém queria ir ao banheiro. Então, assim, tem uma vizinha aqui do lado, que ela chegava no muro e ria muito porque ia três no banheiro e, quando chegava na porta do banheiro, voltávamos todas correndo pra trás. Paola uma vez falou que viu um vulto dentro da banheira. Tem vez que a gente ouve a janela batendo. Tudo isso é imaginação da nossa cabeça, mas, mesmo assim, isso tudo se torna divertimento pra gente depois, a gente ri. Um dia a Cintia estava na cozinha, aí a gente falou assim, a Paola falou assim: “Eu acho que o dono dessa casa é uma alma penada”. Aí Cintia: “Ele está vivo e é meu amigo”. Então, assim, isso tudo depois... São pequenas coisas, mas é coisa que a gente lembra e depois a gente começa a rir sozinha de lembrar.
P/1 – E Luciana, assim, além dos doces o que mais você faz? Você tem outra atividade hoje ou você está trabalhando mais com os doces mesmo?
R – Não. Além dos doces, eu tranço cabelo pra fora. É isso que eu faço. Quando eu não estou fazendo os doces, eu vou pro salão trançar cabelo. É isso o que eu trabalho.
P/1 – Que beleza. Então, assim, pra gente começar a encerrar, pra você, hoje, quais são as coisas mais importantes?
R – Como assim? Defina melhor.
P/1 – O que é mais importante hoje, assim, pra você? Se você pensar na sua vida, em tudo o que você conquistou, o que é mais importante?
R – A experiência que eu peguei. A experiência. O valor que eu aprendi a dar aos meus pais. O valor que eu aprendi dar as coisas. Respeitar os limites dos outros. É isso.
P/1 – E, assim, os seus sonhos, além de comercializar os produtos, você tem? Quais são seus sonhos?
R – Os meus sonhos? Eu tenho três sonhos, mas um deles é o mais importante de tudo. Meu sonho maior é ver minha mãe levantar da cama. Esse é o sonho maior. E depois que eu vim fazer o doce, é ver os meus doces sendo vendidos pra uma grande rede de supermercado. Mas o meu sonho maior também é ser enfermeira. Eu vou ser enfermeira, só não sei quando. Mas eu vou ser enfermeira.
P/1 – Eu volto aqui e te entrevisto quando você for enfermeira.
R – Que bom.
P/1 – Olha, foi um prazer. Eu queria saber se tem alguma coisa que você gostaria de colocar, que eu não te perguntei…
R – Não.
P/1 – Como é que foi contar sua história aqui pra gente?
R – Quando eu cheguei, eu fiquei com vergonha quando eu vi ele, quando eu vi o outro que está lá fora. A minha irmã sentou lá e falou: “Se eu soubesse que estavam todos eles aqui, eu não vinha”. Porque a gente pensou que fosse só uma pessoa. Aí eu até ia falar com você assim: “Não pode ser uma conversa sem gravar e depois gravar, não?”. Daí eu pensei: “Vamos ver o que é que vai dar”. E eu acho que não ficou cem por cento mesmo porque eu não estou acostumada. Mas eu tentei passar um pouquinho de mim. Um pouquinho do que eu fui, do que eu sou. Um pouquinho do que aconteceu na minha vida. É isso.
P/1 – E foi um grande prazer conversar com você, ouvir sua história. Muito obrigada pela sua participação.
R – Obrigada vocês.
P/1 – Muito legal e bonita sua história, Luciana. Parabéns por toda sua batalha, toda sua força. Você é uma mulher de muito valor.
R – Obrigada vocês.
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