P/1 - Queria que você dissesse o seu nome completo, local e data de nascimento.
R - Meu nome é Fabiana Cozza dos Santos. Eu nasci em São Paulo, no dia 16 de janeiro de 1976.
P/1 - Qual o nome do seu pai e da sua mãe?
R - Meu pai é Oswaldo dos Santos, e minha mãe é Maria Inês Cozza dos Santos.
P/1 - E de seus avós?
R - Os meus dois avôs se chamavam Pedro. A avó materna, Amélia, e a minha outra avó, que ainda está viva, Sebastiana.
P/1 - Você sabe a origem do seu nome e do seu sobrenome?
R - Eu sei que o Cozza – se pronuncia "cotza", na Itália – é do Norte da Itália. Eu não sei exatamente onde fica, mas é do Norte. Outro dia eu vi na internet que existe mais uma Fabiana Cozza, mas ela tem outro sobrenome, mora em Milão. Mas eu não acho que é de Milão, é do Norte da Itália. E o Santos é mais uma dos milhares de brasileiras que se chamam Santos.
P/1 - Qual é a atividade profissional dos seus pais?
R - O meu pai se formou em Economia e Ciências Contábeis pela PUC [Pontifícia Universidade Católica] de São Paulo, e a minha mãe, em Pedagogia. Mas o meu pai tem uma história muito engraçada, porque ele sempre cantou, sempre se dividiu entre a música e o trabalho, e a formação e o estudo de economista. E a minha mãe não, a minha mãe sempre deu aula, sempre deu aula em periferia, durante a vida toda. Ela dava aula no Embu. Eu lembro que eu era pequenininha e minha mãe saía muito cedo de casa, às cinco da manhã. De vez em quando a gente até ia com ela, tomava merenda às sete da manhã num morro do Embu, onde ela era professora e depois virou assistente de direção. E o meu pai não, o meu pai sempre trabalhou em escritório, mas as madrugadas do meu pai sempre foram no meio musical ou sempre foram no meio de muita festa. Eu me lembro de umas rodas de samba que a gente fazia na minha casa. A gente não, meu pai. Lembro também dos bares em que ia com ele. Minha mãe não era uma figura...
Continuar leituraP/1 - Queria que você dissesse o seu nome completo, local e data de nascimento.
R - Meu nome é Fabiana Cozza dos Santos. Eu nasci em São Paulo, no dia 16 de janeiro de 1976.
P/1 - Qual o nome do seu pai e da sua mãe?
R - Meu pai é Oswaldo dos Santos, e minha mãe é Maria Inês Cozza dos Santos.
P/1 - E de seus avós?
R - Os meus dois avôs se chamavam Pedro. A avó materna, Amélia, e a minha outra avó, que ainda está viva, Sebastiana.
P/1 - Você sabe a origem do seu nome e do seu sobrenome?
R - Eu sei que o Cozza – se pronuncia "cotza", na Itália – é do Norte da Itália. Eu não sei exatamente onde fica, mas é do Norte. Outro dia eu vi na internet que existe mais uma Fabiana Cozza, mas ela tem outro sobrenome, mora em Milão. Mas eu não acho que é de Milão, é do Norte da Itália. E o Santos é mais uma dos milhares de brasileiras que se chamam Santos.
P/1 - Qual é a atividade profissional dos seus pais?
R - O meu pai se formou em Economia e Ciências Contábeis pela PUC [Pontifícia Universidade Católica] de São Paulo, e a minha mãe, em Pedagogia. Mas o meu pai tem uma história muito engraçada, porque ele sempre cantou, sempre se dividiu entre a música e o trabalho, e a formação e o estudo de economista. E a minha mãe não, a minha mãe sempre deu aula, sempre deu aula em periferia, durante a vida toda. Ela dava aula no Embu. Eu lembro que eu era pequenininha e minha mãe saía muito cedo de casa, às cinco da manhã. De vez em quando a gente até ia com ela, tomava merenda às sete da manhã num morro do Embu, onde ela era professora e depois virou assistente de direção. E o meu pai não, o meu pai sempre trabalhou em escritório, mas as madrugadas do meu pai sempre foram no meio musical ou sempre foram no meio de muita festa. Eu me lembro de umas rodas de samba que a gente fazia na minha casa. A gente não, meu pai. Lembro também dos bares em que ia com ele. Minha mãe não era uma figura muito de sair de casa. Gosta, mas é diferente do meu pai. Meu pai ama sair de casa. Ele adora festas, conversar com os amigos e tomar a cervejinha dele. E das duas filhas – porque eu tenho uma irmã –, eu era a única que acompanhava. Meu pai foi muito envolvido com escolas de samba. Acho que durante dez anos da vida dele, ele puxava samba-enredo na Camisa Verde e Branco, aqui em São Paulo. Eu lembro que eu ia à quadra com ele, pequenininha. E, até hoje, não é uma tristeza, mas me arrependo de não ter desfilado na escola. Mas isso vai acabar no próximo Carnaval. Acho que eu vou desfilar! Minha mãe conta que na época do Carnaval, por exemplo, meu pai sumia, desaparecia. “Daqui uma semana eu estou chegando.” Ficou sempre muito envolvido com isso, depois trabalhou com os Originais do Samba por muitos anos. Ele tinha um grupo também que era uma coisa muito engraçada. Tem um disco velho dele em casa. Chamavam-se Moçada do Samba. Na foto, aqueles caras todos na quadra da Camisa, cabelo black-power, a calça deste tamanho, uma coisa horrível. Mas o som era bacana.
P/1 - Ele cantava ou tocava algum instrumento?
R - Ele cantava. Meu pai é cantor. Tanto é que tem uma tristezinha nele pelo fato de não ter conseguido tocar a profissão de cantor, exclusivamente. Que foi uma coisa que eu fiz, foi uma opção que eu fiz de três anos pra cá. E ele, por situações outras, por problemas financeiros, dificuldades, morava só com a mãe, e porque meu avô morreu muito cedo. Quando meu avô morreu, acho que meu pai tinha cinco anos de idade. Minha avó lavou roupa a vida inteira pra poder bancar os estudos do meu pai, pra pôr meu pai na faculdade. Por conta disso, tinha uma responsabilidade com a mãe também, de ajudar a mãe em casa. E música não dava grana, nunca deu. Enfim, por enquanto ainda não. Então ele não assumiu a profissão de cantor. Ele se afastou da escola de samba na década de 80 e subir no palco é de vez em quando. Ele não está mais nessa vida de cantor.
P/1 - Falando desse momento da sua infância, onde você morava?
R - Eu nasci na Pompeia. Mas eu só nasci na Pompeia, num prédio que existe até hoje. Dizem que até o Silvio Santos ensaiava nesse prédio e era uma barulheira. Na [Rua] Cotoxó com a [Avenida] Alfonso Bovero tem um prédio na esquina, eu morava nesse prédio, quando eu nasci. Eu nasci numa maternidade que era engraçado o nome: Maternidade Modelo, que existe, ainda. Eu nasci na Maternidade Modelo e morava nesse predinho. Mas eu morei muito pouco, uns meses, porque minha mãe trabalhava muito cedo e não tinha com quem deixar a criança, então eu fui criada pela minha avó materna durante muito tempo, na Vila Madalena, na [Rua] Aspicuelta, entre a [Rua] Fidalga e a [Rua] Fradique Coutinho, que é onde eu moro até hoje. Faz 27 anos, que é a minha idade. A casa da minha avó é uma delícia, parece casa do interior. A minha infância foi muito dividida. As férias a gente passava no interior, em Olímpia, na casa da minha tia. Eles têm uma fazenda lá. Eles plantavam laranja. Eu achava ótimo porque passavam uns meses, chegava a hora do café. "Nossa, agora é café!". Aí depois, mais uns meses, "Olha, agora é cana”. Eles mudavam sempre a plantação. Eu morei a vida inteira, e moro, na casa da minha avó. A casa da minha avó tem, acho, mais de 60 anos. Meu pai só a reformou depois de uns cinco, seis anos que a gente estava morando lá. Mas preservou a mesma estrutura da casa, a mesma arquitetura, o espaço é o mesmo. E tem quintal na minha casa, tem árvore, jabuticaba. A jabuticabeira tem a idade da minha mãe, 52 anos e floresce sempre na época de julho, agosto. Tem umas jabuticabinhas que nascem fora de época. Tinha mangueira, por exemplo, mas a minha mãe teve que podá-la. Tem pé de acerola, limoeiro, um monte de ervas que a minha avó plantava, e é onde a gente faz umas serestas de vez em quando. De certa maneira, eu preservo uma coisa que meu pai fazia, na época. Meu pai levava grupos lá em casa pra tocar, pra ensaiar com as pessoas, e eu estava sempre no meio. Esse espírito sempre foi uma coisa que permeou a família da gente. Fora que as minhas primas, por parte de pai, são excelentes cantoras. Todas elas, principalmente a Marcise e a Marilda. Eu falo que é a negrada da história. Elas cantam pra caramba e a gente fazia umas coisas em Igarapava. Elas são de lá, e os pais são mineiros, minha avó é mineira também, a mãe do meu pai. Mas a casa onde eu moro é muito grande. Eu acho que para os padrões de hoje é até muito grande. Tem três quartos, uma garagem, um jardim aqui, aí tem a janela da frente – é o quarto da minha avó –, uma janela lateral – que é o meu quarto –, e quando você entra na casa tem a sala. Tem uma cozinha grande. Na cozinha tem uma porta que dá para o quintal. Você tem o banheiro e o quarto da minha mãe. Aí você sai. Eu costumo chamar de o lado de baixo da casa e o lado de cima. Falam assim: "Espera um pouquinho que a Fabiana está lá em baixo." Aí, quando vão à minha casa, falam: "Mas eu pensei que fosse um sobrado." Não é um sobrado, tem três degraus, então ou você fica na parte de baixo ou você fica na parte de cima. A gente desce e começa aquela florestona. Quando eu era pequenininha, na minha casa tinha um corredor que foi onde eu peguei trauma de borboleta, segundo lenda da minha avó. Tinha um corredor no fundo da casa, não era como hoje, tinha a cozinha lá embaixo que meu pai construiu e o banheiro. Era um ranchão e você tinha planta de um lado e planta do outro, só tinha um corredor em que você passava. E a minha avó passeava comigo ali no meio. Eu tenho pavor de borboleta, não importa o tamanho. Uma vez pousou uma borboleta, e eu era um bebezinho. A história é que eu bati na borboleta e a borboleta não saiu. Eu acho que é lenda da minha avó, mas acho bonitinha a lenda. Ela não saiu, aí "blerrrrrghh". Borboleta nunca mais. Eu não posso ver borboleta, tomara que não entre uma borboleta no estúdio (risos).
P/1 - E como era a Rua Aspicuelta nessa época, quando você era criança?
R - Eu me lembro do portão da minha casa, que era baixo. Depois ficou mais alto e ficou de ferro. Era baixo, de madeira, branco. Eu lembro que tinha uma vizinha, Patrícia, que morava em frente. Patrícia me colocava sentada na mureta do portão pra ver a rua, pra ver o movimento da rua. Eu sempre gostei de ver o movimento. E passa ônibus hoje em dia, mas na época acho que não passava ônibus na minha rua. Eu me lembro da rua de baixo, da Fradique Coutinho, porque eu nadava e voltava de ônibus com a minha avó, aquele CMTC [Companhia Municipal de Transportes Coletivos] azul e branco. A gente vinha de ônibus e, naquela época, a Fradique Coutinho tinha duas mãos. Eu descia na esquina da minha casa e subia naquela ladeirinha. Mas, segundo a minha avó, que é a mãe da minha mãe, que é falecida, e que é a dona da casa, tinha bonde na minha rua. Não na minha época, na época dela. E aquelas casas eram sítios. Então quando o meu avô comprou, era um sítio. Segundo a minha avó, tinha trilho na rua, e foram cobrindo com asfalto. Mas passava bonde ali. Eu não sei se é possível, porque era inclinada. Eu acho que a minha avó viajou, que o bonde passava na rua de baixo. Mas ela falava que passava, então, pra compor a história mais bonita, eu acho mais romântico ter bonde na rua, então eu falo que tinha bonde.
P/1 - O que tinha de lazer no bairro? Tinha alguma coisa do bairro que te encantava?
R - De lazer, tinha umas praças. Eu não passeava muito pelo bairro, que eu me lembre. A minha avó, na verdade, me levava no carrinho. Disso eu lembro, eu não era tão bebezinha. Eu acho que eu tinha uns três anos. Eu me recordo de passear pelo bairro, de carrinho. Mas tinha umas praças que tem até hoje. Por exemplo, tinha a Praça do Max, que é do lado do Fórum, lá em cima. Mas que eu também só passei a frequentar depois, mais adolescente, porque tinha uma história de que lá era muito descampado. Então aquele terror que as mães punham no ouvido da gente, "Não, você está ficando mocinha, então você não pode ir à Praça do Max porque tem um monte de gente esquisita". Mas é uma praça que ainda existe, é bonita. Mais próximo da minha casa, descendo a Aspicuelta, tinha uma praça onde as mães passeavam com as crianças de domingo, que fica ali no final da rua. À direita na [Rua] Simão Álvares tem uma pracinha que é preservada até hoje. Mas de lazer, no bairro, eu não me lembro de nada que eu fizesse dentro de alguma proposta de lazer pra criança. Ah, não! Lembro-me de uma coisa: as feiras da Vila. Tem uma ruazinha, que é a Felipe de Alcaçova, que é uma travessinha da Fradique. E na Felipe de Alcaçova, sempre quando tem feira na Vila, tinha os grupos circenses que se apresentavam. A Feira da Vila é uma vez por ano, mas foi uma coisa que eu lembrei. Você ia lá pra assistir teatrinho de rua, pra ver os palhaços, pra deixar os palhaços pintarem sua cara de palhaço. Disso eu me lembro também. Tinha um brinquedo muito esquisito, que até hoje tem, mas que eu acho que perdeu um pouco o romantismo, que era um negócio gigante, que você se joga lá dentro e fica pulando eternamente, não tem nada pra fazer, você fica pulando, pulando. Mas no mais, eu não me lembro de outras coisas.
P/1 - Como que era o comércio do bairro quando você era criança?
R - Eu lembro que tinha bastante padaria, muitas padarias. Tinha uma padaria chamada Morango. Eu acho que o dono do Morango fez alguma mandinga ali, porque nunca mais o ponto virou, todo mundo compra o ponto, reforma e não dá nada, que é na esquina da minha casa com a Fradique. Tinha o Morango, bar do Morango, Padaria do Morango, que ficava ali na esquina. Na Fradique Coutinho tinha uma padaria que eu sempre ia comprar doces. Eu sempre fui meio gulosinha, gostava de comer pra caramba, gosto. Eu chegava à padaria e pedia bisnaga com coco. Minha avó pedia pra comprar pão, eu comprava menos pão e comprava uma bisnaga com coco pra ir comendo no caminho, que era na Fradique. Você não tinha bares como se tem hoje na Vila Madalena. Os bares que você tinha eram bares onde os artistas se encontravam. Você tinha um que era super antigo, que ainda tem, o Empanadas. Você tinha o bar Tolo, que era um ponto de encontro e eu via um monte de gente esquisita, barbuda. Tinha uns bichos-grilos que apareciam lá, vendiam umas coisas. Mas bar, como tem hoje, com uma cara mais modernosa, mais sofisticada, não era assim. Era vila vila, sem pretensão de nada. Era mais silencioso, bem mais silencioso. Era um bairro residencial, mais que um bairro comercial. Tanto é que depois mudou um pouco o seu perfil. Com os comerciantes que foram pro bairro, os bares que abriram, os restaurantes e tudo mais, até os muitos barulhentos, que põem música alta até muito tarde, muitos moradores foram embora da Vila. E a Vila deixou de ser a Vila e passou a ser outra Vila Madalena, que é boa de viver também, mas é diferente.
P/1 - Com relação à sua infância, como que era a escola? Onde você estudava?
R - Eu estudei numa escola chamada Escola Municipal Olavo Pezzotti. Estudei lá até a oitava série. Na descida da Fradique Coutinho. Na época, a quadra era muito maltratada. Eu lembro muito porque eu cheguei a ser do grêmio, cheguei a ser presidente do grêmio e eu brigava com a Diretora. Era muito maluco isso, porque a quadra da escola tinha uma arquibancada de cimento. Era tudo meio rampeirão. No cimento você ralava o joelho, caía, jogava vôlei, era um negócio. As outras crianças vinham ali do Mangue. O Mangue é uma favela que tem ali em cima. Vinham do Mangue, vinham da parte de cima, da parte que tem a ver com a [Rua] Girassol, com a Fidalga. Eles entravam pela escola não pelo portão principal, eles entravam pelos buracos que tinham na estrutura que cercava a escola. Tanto é que uma vez eu cabulei aula, a única vez que eu cabulei aula na vida me pegaram, porque eu fui pra piscina de uma amiga e viram. Aí ligaram, e eu era meio CDF, então foi um desespero. Mas eu escapei justamente porque a escola tinha uns vãos, eram uns pilares e tinha uns que não existiam. Mas era bem boa a escola. Eu gostava muito. Eu me lembro de duas professoras que eu tive que eu gostava muito: a dona Miriam, que foi quem me alfabetizou, e a professora Cândida, que foi uma professora que me deu um presente que eu nunca mais vou esquecer, um dos presentes mais bonitos que eu ganhei na minha vida: ela me deu uma coleção de lendas brasileiras. Você tem o desenho na frente e atrás você tem uma história. E eu lembro muito de algumas que eu ficava impressionada de ver, que eram a lenda da Iara, sereia – tem uma ilustração super bonita da sereia seduzindo o pescador e o pescador já se afogando – a do o Lobisomem e a do Negrinho do Pastoreio. Mas eu gostava muito da escola, até porque a minha escola tinha uma coisa de mestiço. Não era uma escola de branco. Não era uma escola de gente de dinheiro. Era todo mundo misturado. Era uma escola que tinha negro, eu mesma, que sou mestiça, tinha branco, tinha japonês. Então era todo mundo na mesma sala, eu me dava super bem com todo mundo. Na verdade eu era meio mandona. Tinha os meninos que tinham raiva de mim e eu batia neles. Mas antes de ir estudar lá na Olavo Pezzotti, eu estudava na [Escola Municipal de Ensino Infaltil] Zilda de Franceschi, que tinha um pouco do espírito da minha casa. Um parquinho. Fica ali na Rua Purpurina. Era o máximo, porque o lance era a gente ficar esperando a hora de ir para o campão, porque o campão – eu não sei se ainda é assim – era um lugar que tinha muitas árvores, muitos brinquedos. Tinha trepa-trepa, aqueles que você vai escalando. Eu era uma criança meio medrosa, eu tinha medo de cair então eu não escalava muito. Fora que eu era gordinha. Eu acho que era por isso que eu tinha medo. Eu ficava assim: "Ai, eu acho que eu vou cair daqui". Meus amigos eram muito magrinhos, então eles eram velozes, subiam rápido. Eu tinha bronquite. Minha grande chateação da infância foi a bronquite, porque todo mundo queria brincar de polícia e ladrão, que era o máximo, e eu sempre queria ser o ladrão, só que o ladrão tem que correr muito, e eu tinha bronquite. Como eu cansava muito rápido, eu era presa rapidamente. Mas foi muito legal, minha infância foi muito tranquila. Fora que as minhas férias eu passava na fazenda do meu tio. Eu tinha contato com bichos, plantas. Eu gostava muito de ficar dentro do curral, porque eu ficava impressionada com as vacas, com a paciência da vaca. A vaca é o bicho que eu mais gosto. Impressionante. Eu acho que tem uma sabedoria ali nesse bicho, que é tão generosa, ela dá de mamar para aquele bezerro que é um trambolho. O bezerro é muito grande e mama, ela anda muito, é um negócio. Eu gosto muito de vaca. Então minha infância era bem bacana. Eu lembro que uma vez eu tive um ataque de preconceito, na escola, que nunca mais eu esqueci na minha vida, porque eu tomei uma bronca da minha professora, a dona Cândida. Tinha um menino negro na minha sala e ele era bem pobre, o Cláudio – ele já morreu, um policial o matou, porque ele se envolveu com drogas. E depois eu virei muito amiga dele, ele gostava de mim. Ele morava ali num cortiço que tinha na rua da escola. Eu lembro que a gente fazia uma biblioteca dentro da sala de aula, e tinha uma amiga minha que era crente, toda certinha. Eu numa coisa de defender os livros da Cláudia, quando ela não estava na sala, e eu falei assim: "Não, mas o Cláudio não pode pegar esse livro emprestado". Mas no fundo eu acho que eu não queria porque "Ah, sei lá como é que ele vai cuidar do livro na casa dele, onde ele mora". Nossa, eu tomei uma bronca. E fiquei ressentida, porque eu sabia que eu estava errada. Lembrei sem querer disso. Mas era boa essa mistura, era bem boa.
P/1 - E você teve educação religiosa?
R - Tive. Meus pais me carregavam pra missa todo domingo. Não tinha "Ah, você quer ir?". Não. "Você vai à missa". Eu lembro que no começo era um saco, tinha horas que, na minha cabeça, eu ficava pensando em quinhentas outras coisas. Rezando e pensando em tudo, menos no que estava acontecendo ali na missa. Eu começava a observar, eu acho que as pessoas também ficavam com aquele bode que eu tinha. Porque tinha gente que ficava assim no meio da missa. Eu falava: "Você está prestando atenção?". Por que ela está com sono? Mas eu tive educação religiosa, meus pais são católicos e eu sempre fui à igreja. Aí começou a ficar mais legal quando eu passei a ter uma função dentro da missa. Eu gostava. Porque o meu negócio era ter um papel em algum lugar. Não de importância, mas de função. E o padre era um velhinho, ele esquecia, estava um pouquinho esclerosado, esquecia-se de umas coisas. Ele não lembrava a página do livro. Então todo mundo ficava horas esperando. Era uma capelinha que tinha na [Rua] Mourato Coelho, que destruíram, hoje é um estacionamento – tudo vira estacionamento nessa cidade, é impressionante. Era uma capelinha e a gente ia, e ficava lotada. Isso quando eu era bem criança. Quando eu tinha 14, 15 anos mais ou menos, eu frequentava a Igreja da Vila Madalena, que foi onde eu comecei a cantar, porque tinha um padre lá chamado João Bosco. Maluquetz, figuraça. Eu gosto dele. Ele era um padre de esquerda. Eu me identificava com o que ele falava, porque os sermões dele não eram conservadores, não eram muito formais. Eu gostava dele. E um dia eu pedi pra cantar no coral, porque minha prima por parte de pai sempre cantou em igreja, a Marcisa. A minha prima tinha um vozeirão, cantava na Igreja Nossa Senhora da Pompeia, e eu assistia à minha prima nas missas e chorava, porque a minha prima tocava violão e cantava sem microfone. A igreja lotava e era maravilhoso. Eu falava: "Eu quero ser cantora de igreja." Eu fui e comecei a cantar no coral. Um dia o padre me ouviu e disse: "Não, eu vou dar uma missa pra você." Aí eu estreei no palco, foi o máximo. "Como assim?" E eu tocava um pouquinho de violão, estudava, fazia umas aulas e assumi a tal da igreja, quer dizer, a tal da Missa dos Jovens.
P/1 - Você lembra qual era a música?
R - Eu me lembro de algumas. Eu só escolhia as tristes, porque as tristes mexiam mais comigo e acho que mexiam mais com as pessoas. E, dependendo do período, você tem naqueles livrinhos de igreja as músicas que são selecionadas pelo pessoal da Arquidiocese. Eu achava tudo um horror, e eu: "Não, vou escolher o meu repertório." E o padre deixava. Então eu entrava na sacristia e tinha aquelas pastas escritas Páscoa, Quaresma, Natal; eu pegava estas pastas, ia aos hinários e tinha umas cifras, e eu tirava as músicas. Eu cantava umas coisas. Tinha uma que eu gostava era assim: (cantando) "Eu vou fazer esta ceia agora, já chegou minha hora. Senhor, tomai o meu corpo e meu sangue que dou e vivei no amor. Eu vou preparar a ceia na casa do Pai". Isso era canto de comunhão, eu fico até emocionada, porque eu lembro, era bem bonito, e eu gostava de ver aquela procissão, para aquelas pessoas irem buscar um pedaço de pão, é bonito isso. E tinha outras coisas. A gente foi fazer a missa de casamento dos pais do padre. Vai aquele ônibus de gente cantando, e eu era solista do negócio. Então eu cantava e o coro cantava junto às vezes. A única vez que eu cantei como solista em coro, porque eu era corista quando comecei profissionalmente a trabalhar com música. E tinha umas assim: (cantando) "Pelos prados e campinas verdejantes, eu vou. É o senhor que me leva a descansar. Tu és senhor, o meu pastor, por isso nada em minha vida faltará". Tinha uma que falava da Nossa Senhora Aparecida que eu achava legal porque falava da Santa negra, dentro da Igreja. Eu achava super político, eu cantava a música, eu fazia questão de cantar, era bonito: (cantando) "Mãe do céu morena, Senhora da América Latina." Aumentava mais o negócio, porque não era do Brasil, era da América Latina. Eu ficava imaginando aquela santa negra protegendo a América Latina. É bonito. Falava assim (cantando): "América Latina de olhar e caridade tão divina, derrama sobre nós as tuas graças." Era bonito, eu gostava. É, ás vezes, eu canto isso no show. Uma vez eu fui cantar e as pessoas: "Ah! Que lindo! Você pode repetir essa música?" E eu falava: "Mas essa música é do padre Zezinho." "Oh, como? Essa música é da Igreja?" Porque eu não cantava como, e o mais legal é que chegou um momento em que as pessoas iam à igreja pra ouvir a música, o que pra mim estava ótimo, porque tinha muita baboseira que o padre falava – embora fosse o João Bosco, meu amigo –, coisas da igreja que ele tem que falar. Bacana, se o povo ia lá, eu ficava emocionada, já tinha valido o trabalho. E o João Bosco reivindica esse título, ele diz que é dele, ele é o grande responsável.
P/1 - Está certo. Mas houve uma influência muito grande da família pelo que você falou também, não é?
R - Teve principalmente do meu pai porque, acho que de tudo que eu ouvi, o meu pai foi o cara que mais estimulou o meu ouvido, o maior responsável pela minha formação musical. Na minha casa sempre se ouviu muita música boa. Eu vou explicar o que é: eu ouvia muito Jamelão; muita orquestra de Jazz; orquestra do Duke Ellington; orquestra do Nat King Cole; ouvia muito uma cantora de jazz pela qual eu sou apaixonada, que, se eu não me engano, gravou uns três ou quatro discos no máximo, a Dakota Staton, poucas pessoas a conhecem, ela é da Pensilvânia; muita Ella Fitzgerald; muita Nana Caymmi; muita Leny Andrade; Alcione; Beth Carvalho; Cartola; Paulinho da Viola; Nelson Cavaquinho; Guilherme de Brito – é muita gente! –; Almir Guineto. É muito engraçado porque hoje eu penso que meu pai era aquele cara pobre, nasceu pobre, negro, aquela história, e não tinha acesso. A minha vó, coitada, ouvia coisas boas porque nasceu em Minas Gerais. Acho que as pessoas que nascem em Minas são privilegiadas por natureza, por nascerem numa terra em que a música é tão boa daquele jeito. Eu não sei até hoje qual era a referência dele. Eu acho que ele passou a incorporar suas coisas à medida que ele foi crescendo e ouvindo com os amigos, porque a minha avó levava o meu pai na casa dos patrões. Eles moraram em casa de patrão, de favor. A minha avó trabalhava em casa de gente fina. Então eu acho que o meu pai ouvia essas coisas. E fora que havia um bichinho da música bacana dentro dele, música boa. Mas meu pai ouviu muito jazz. Era até engraçado. Meu pai morou um tempo no Rio de Janeiro quando eu era criança, morou por quatro anos porque ele trabalhou com os Trapalhões e ele chegava de domingo em casa, e era sagrado aquele almoço que tinha que comer todas as saladas, as cebolas, os alhos, que a gente não comia durante a semana com a minha mãe a gente tinha que comer de final de semana. Ele chegava e punha um disco na vitrola. De tanto ouvir aquele disco eu acabava decorando as coisas, porque eu ouvia sempre as mesmas coisas: Jamelão, um mês de Jamelão; Dakota Staton, seis meses de Dakota Staton. Então eu decorava e imitava as cantoras. O meu pai dançava também comigo. Chris Montez, por exemplo, eu ouvi tanto Chris Montez (cantando): "Just friends, lovers no more." Essa vozinha que ele tem era bonita pra caramba. E meu pai dançava muito, ele ganhava concurso de dança quando era jovem. Ela dançava e me pegava pra dançar pra mostrar como é que dançava. Ele me girava e dançava ao som destas coisas. Ouvia muito Beatles, meu pai era um amante dos Beatles. Então minha formação musical tem muito disso. De música brasileira, você vai à minha casa e tem muita coisa, por exemplo, de Marcio Proença até Clementina de Jesus. Tudo, tudo. E eu fui crescendo e ouvindo essas coisas, ouvindo as minhas primas cantarem. Minhas primas cantam a duas vozes. Foi a minha primeira noção de harmonia. Minhas primas cantam umas coisas assim (cantando): "Que beijinho doce que você tem". E com o canto que vem das cantoras de rádio que é o máximo. Tem as escolas da Isaurinha Garcia, da Elizeth Cardoso, da Linda Batista. E eu sempre no ouvidão, ficava prestando atenção. Eu acho que o meu pai sempre gostou mais das cantoras do que dos cantores, então sempre teve muitos discos de cantora.
P/1 - E você estudou musica?
R - Sim, estudei. Estudo e eu acho que durante a vida inteira vou ter que estudar música. Que bom! Eu estudei música porque meu pai não queria que eu cantasse. Ainda tem essa, apesar de toda essa convivência, ele – talvez por ter visto como as coisas são no meio musical, e também tem aquela coisa de superproteção de pai – não era muito a fim de que eu cantasse. Eu fui estudar música muito tarde, não tanto, mas mais tarde do que eu gostaria. Com dezoito anos eu entrei na faculdade, na PUC. Com dezenove, o meu pai veio avisar que na ULM, a Universidade Livre de Música, ia ter teste pra cantor pra estudar, e eu fui fazer. Eu passei em primeiro lugar junto com outro menino, o Marcos D'Ávila. Falaram: "Não, só os que passarem em primeiro lugar." Eu tinha uma veia dramática, sempre tive essa coisa dramática por conta da referência que eu tive. Cantei nesse teste com a maior gana, como se estivesse no Teatro Municipal. Aí a gente passou e pudemos escolher um professor de canto, porque os dois tiraram nota dez. Eu comecei a estudar música com 19 anos e eu fui largando a PUC.
P/1 - Que curso você fazia na PUC?
R - Eu fazia Jornalismo. Eu me formei, eu só não paguei o resto da PUC, mas eu terminei. Anos de bolsa de estudo pra poder estudar. Na PUC eu entrei com 18 anos. Eu estudei no Colégio Equipe antes, que foi fundamental na minha formação. No período em que estudei em escola, a fase mais feliz da minha vida foi ter estudado no Equipe. Eu fiz o primeiro colegial no Colégio Etapa, que é um colégio que desde o primeiro ano você está com a cabeça no vestibular, então você se prepara especialmente para passar no vestibular, não tem esse papo de fazer cursinho. Meu pai pagava uma fortuna, e eu era infeliz. Eu tinha quatro professores de Matemática, três de Física, três de Química. Arte? Nunca mais na minha vida. Eu sofria, chorava. Eu fiquei deprimida no final do ano, e meu pai falou: "Não, a menina não está bem, eu vou trocá-la de escola." Aí umas amigas da minha mãe, pedagogas, falaram: "Põe a Fabiana no Equipe." Aí que descambou. No Equipe toda formação é voltada para a valorização do ser humano, pras artes, pra você se abrir como artista, descobrir as suas potencialidades e deixar isso à flor da pele. Enfim, o Equipe foi pra mim fundamental. E no Equipe eu terminei o terceiro colegial e prestei Jornalismo, que era o que eu queria. Na verdade, quando eu entrei no terceiro colegial eu achei que fosse ser bióloga, fui pras biológicas, mas nunca tive muita intimidade com a Biologia, sabe? Gostava, mas acho que mais por inspiração de um professor. Eu sou muito “vai-com-as-outras”. Eu olho uma coisa e fico emocionada: "Isso é maravilhoso!" E eu vou lá. Eu queria ser bióloga por causa de uma professora que eu tinha, que se chamava Bele, Isabel, no Equipe. Mas não deu certo ser bióloga, eu tinha essa coisa de me comunicar, de gostar de escrever, e mais que isso, de saber da vida das pessoas, não de especular, mas de saber da vida, assim como vocês estão fazendo comigo. Eu queria poder escrever isso e eu gostava de investigar, de coisas mais trash da parte política. Eu prestei Jornalismo e entrei direto na PUC. No primeiro ano de faculdade eu consegui um trabalho numa editora pequena. Eu escrevia numas revistas setorizadas, eu lembro que eu ajudava um amigo meu, o Alberto, na assessoria de imprensa da empresa Akzo Nobel. A gente escrevia os releases. O Alberto foi o cara que me ensinou muito, mais que a dona da empresa. O Alberto era o cara de área, o César também, eu ajudava o César numa revista de madeira. No primeiro ano eu trabalhei como jornalista por um tempo. Meu ultimo trabalho foi no Terra, no Terra Esportes. Eu trabalhava com a moçada, com o Dani, meu amigão, com o Paulo Matuki, que é um cara que eu gosto muito. Enfim, é a coisa mais maluca porque como jornalista eu escrevia um monte de coisa, de tudo. Nessa empresa eu fazia isso. Trabalhei com uma moçada que prestava serviço pra Folha de São Paulo, que escreviam sobre guias turísticos, levantava material. Mas eu me dividia com essa coisa da música, a música sempre me perturbava. E o primeiro ano de faculdade eu fiz bonitinho, tive notas boas. Eu tive um professor na faculdade que me inspirou muito, que era o cara que eu me espelhava em termos profissionais, o Serginho. Ele era pra mim um grande profissional, queria ser jornalista como ele. E até batalhava algumas coisas. Eu lembro que no segundo ano da faculdade eu fui me meter – porque o Serginho sempre foi muito político – no Núcleo de Estudos de Violência da USP [Universidade de São Paulo]. Eu não sabia como escrever aquilo, mas achava que ele era o cara mais indicado pra me orientar. O Serginho me falava: "Você é pirada. De todos os meus alunos, você é a única que vai atrás dessas coisas." E eu trabalhei no Núcleo de Estudos de Violência da USP, e também numa outra editora. Corria e batalhava, porque eu que pagava a minha faculdade. A essa altura meu pai não tinha mais condição financeira de me ajudar e nem a minha mãe. Eu sempre me envolvi com umas coisas que realmente me satisfaziam, que eu achava importantes, não necessariamente para os outros, mas para mim. Eu não tinha a pretensão de: "O meu trabalho move montanhas." Não move nada, mas é honesto e eu estou aqui fazendo. Eu trabalhei na Starmedia, antes de ir pro Terra, como freelancer. Foi muito engraçado porque eu fiz um amigão lá, o Marcelo Hargreaves. Na verdade a gente só ficou amigo depois que a gente começou a falar de samba, quer dizer, a música o tempo inteiro estava permeando as minhas histórias. E quando as pessoas descobriram que eu era cantora, o grande lance era eu cantar na redação. Eu entrava cantando nas redações. Imagina aqueles lugares chiques que ficam ali na Berrini, eu trabalhava naqueles lugares. Eu era a maior “bagaceira”, simples. Eu usava uma pulseira de pedras que a minha mãe comprou na Rua 25 de Março, e tinha uma mulherada que – eu acho – comprava roupa na José Paulino, mas dizia que comprava no Armani. Uma vez uma menina me parou e olhou pra pulseira: "Oh! Nossa, que pulseira linda!". E pegou na minha mão. A menina trabalhava na Starmedia, na parte executiva. "Nossa, onde você comprou?" "Olha, na verdade eu não sei, a minha mãe deve ter comprado em uma boutique de uma amiga dela que mora lá em Angra. Bonita, não é?" Imagina! Maior “bagaceira”. Era muito legal, porque eu entrava na redação sempre cheia de pulseiras e colares. Eu era chamada de repórter afro-húngara da redação, por causa do meu e-mail, que era fabianacs. Meu chefe, o Marcelo, me chamava de Fabianacs. Ele falava que eu era a repórter afro-húngara da redação. E eu cantava na redação, virava e mexia. Às vezes, aquela tensão da redação, fechar, pôr a matéria no ar, cai a página, um saco, e eu fazia assim (cantando): "Eu não vou me estressar... Quem acreditou no amor, no sorriso na flor então chorou, chorou". Aí o povo se acostumava comigo.
P/1 - E em que momento você optou pela carreira da cantora?
R - Eu estava com esse sapo engasgado, porque eu tenho um grande amigo que é meu irmão, o escritor Marcelino Freire, pernambucano. O Marcelino é um anjo que apareceu na minha vida muito cedo, com 19 anos eu o conheci. O Marcelino é um grande artista e sempre apostou no meu trabalho, desde que me ouviu cantar sempre achou que eu tinha que fazer isso na minha vida. E sempre junto. Toda vez que vai ter um show no boteco de não sei onde, carrega instrumento, aquelas coisas, e o Marcelino está lá, junto. O Marcelino trabalhava na AlmapBBDO, então eu sempre tive os panfletos mais bonitos, os convites mais bonitos, mesmo não tendo a menor infraestrutura. O Marcelino sempre foi o meu pai, minha mãe, minha perna, meu coração. Eu optei um dia, em 2000, depois de milhares de conversas. No caso, em 2000, eu já tinha trabalhado com o Eduardo Gudin, tinha gravado disco, tinha trabalhado com a Jane Duboc, quer dizer, tinha umas figuras que eu já tinha conhecido na música e que tinham sido importantes pra mim. Mas eu não conseguia largar por conta de ter que dar dinheiro na minha casa, pagar contas, aquelas coisas. Ai o Marcelino virou e falou pra mim, num daqueles dias de angústia de ficar 12, dez horas na redação e não ter tempo pra cantar. Eu me lembro de um show que eu fui fazer, participar com o Wilson das Neves no SESC [Serviço Social do Comércio] Vila Mariana, passagem de som às cinco da tarde, e eu estava no Terra no dia anterior até 11 e meia, meia-noite, o meu plantão era às três da tarde. Eu implorei pro Matuk, e ele trocou o meu plantão, mas às sete da manhã eu estava na redação. Eu chegava com olheiras aqui para o show, mas feliz porque eu iria cantar, pelo menos. Eu falei: "Preciso parar com essa angústia." E liguei pro Marcelino um dia pra chorar as pitangas: "Ai, eu não aguento mais, eu não consigo, eu preciso cantar, eu não consigo cantar, eu estou ficando deprimida." E o Marcelino, depois de 500 vezes que eu liguei, falou assim pelo telefone: "Eu posso te dizer uma coisa. Eu não acredito em artista brasileiro, desses que não tenham “padrinho”, que não tenha dado duro na vida pra fazer o que quer. Sabe quando você vai ser uma cantora? Jamais se você continuar fazendo isso ou fazendo aquilo. Ou você é uma cantora e respira música 24 horas por dia, ou você nunca vai ser uma artista. Esqueça, vá fazer Jornalismo!" Prantos ao telefone. "Não posso fazer isso!". Aí eu falei: "Caramba! Nossa, é claro que ele tem razão." Ele disse: "Fabiana, eu larguei o Recife, o banco, a minha família, tomei um ônibus e vim pra São Paulo. Desci na rodoviária, olhei aquela multidão e pensei ‘O que eu estou fazendo aqui?’. Fui morar num quartinho que tinha vidro pra eu ver a rua, lá no metrô Carrão e estou aí." Depois dessa conversa, no final de abril, eu comecei a estimular essa decisão dentro de mim, deixá-la se solidificar. Numa tarde de junho, estava trabalhando no Terra, era seis e pouco, a gente estava fechando umas matérias e lá estavam o Matuk, meu chefe, e o Dani. Eu virei pro Matuk e falei: "Matuk, eu preciso conversar com você.” Não preparei nada. “Você pode tomar um café comigo?" "O que foi, você está com algum problema?" "Não, eu preciso falar com você agora." "Vamos lá." O Matuk sempre querido comigo. E fomos tomar o café. "O que foi?" Falei: "Estou indo embora." "Como assim? Quem foi que te fez proposta de trabalho?" "Não, ninguém – eu não expliquei direito –, eu estou largando o Jornalismo, eu estou indo viver de música, porque é vital, eu não consigo mais, entendeu? Eu estou ficando doente de fazer uma coisa que eu não quero mais fazer. Eu preciso cantar, essa é a história, é só isso que eu preciso." Ele olhou e me falou: "Eu não tenho o que falar pra você, porque se fosse proposta de trabalho, eu cobria, mas decisão de vida...". Foi isso, eu larguei e me lasquei, porque no mês seguinte não tinha nada. Meu mundo caiu, casa da minha avó, meus pais: "Como?" Meu pai achava que eu fosse ser uma jornalista bacana, com trabalho reconhecido. Cheguei em casa com o contrato pra ele ler, porque ele é economista, mas meio metido a advogado, então eu falei: "Pai, aqui está rescisão de contrato, leia." "Como? Como você rescindiu o contrato? Você está maluca?" "Pai, não adianta, eu assinei, está aqui, eu não vou voltar." E é a partir daí que eu também conquistei mais a minha independência dentro da minha casa, porque eu tive que bancar as minhas histórias mesmo. Não foi fácil, eu abdiquei de uma carreira, mas foi muito bom. Faz três anos que eu fiz isso, e durante esses três anos eu vivi e conheci pessoas e situações, participei de trabalhos que jamais eu teria oportunidade se resolvesse protelar. Eu não me arrependo de nada, eu quero mais é cantar na minha vida.
P/1 – E, pra gente encerrar, eu queria que você dissesse quais são as suas perspectivas, seus sonhos e o que você achou de dar o seu depoimento.
R - Eu quero ter um sítio, com muitos bichos, quero ter cinco filhos, essas são as minhas perspectivas pessoais, mas só depois que eu conseguir ter uma tranquilidade maior com o trabalho, colocar o meu trabalho na praça. Cantar, cantar pras pessoas na praça, viajar, ter um disco – eu estou fazendo um disco –, estar com os meus amigos queridos no palco. Eu não tenho muitas pretensões, mas eu quero ter um sítio com muitos bichos. Eu fico às vezes questionando se eu vou pôr machos e fêmeas no sítio. Tudo a favor deles ficarem cruzando, mas vai criar um monte de gente e eu não vou matar bicho nenhum, não vou matar vaca pra comer, eu não vou ter coragem de fazer isso. E quero ter um monte de filhos, mas daqui a um tempão. Eu quero cantar muito, eu quero estar com outros artistas, eu quero estar em outros países também, levando a música da gente. Eu tive uma experiência recentemente que foi bem boa num navio e eu conheci outros músicos, músicos latinos, e foi a primeira vez que eu me senti latina. É muito maluco isso, porque eu me sinto super brasileira. Aliás, eu falo que nem sou paulistana, eu sou brasileira, porque eu vou pra Pernambuco e eu falo que nem eles, eu me misturo, até o biotipo ajuda, porque ninguém acha que eu sou de São Paulo quando eu vou pra Minas, quando eu fui pra Bahia. Essa sensação de se sentir latina é maior do que o Brasil, é o continente, é o sul do continente. Eu achei ótimo dar esse depoimento. Eu falaria por mais quatro horas, porque gosto de falar. Eu estou super à vontade, eu não preciso ficar olhando pra câmera o tempo inteiro, acho que nem olhei nenhuma vez. Mas eu achei ótimo e acho que é muito valioso o trabalho que vocês fazem, porque eu acho que dar voz às pessoas é uma das coisas mais preciosas, porque a gente vive de histórias, dos relacionamentos, da poesia que o outro dá pra gente. Eu achei ótimo, podem me convidar que eu volto pra fazer mais. (risos)
P/1 - Muito obrigada.
R - Acho que é isso, muito obrigada.
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