Depoimento de Ralf Rickli
Entrevistado por Rosana Miziara
São Paulo, 19 de junho de 2020
Programa Conte Sua História
Entrevista: PSCH_HV853
Transcrito por Fernanda Regina
P/1 – Vamos começar, qual é seu nome, local e data de nascimento?
R – Bom, meu nome é Ralf Rickli, o nome o qual eu tenho dificuldade porque pareço ser estrangeiro, quando não sou. Eu nasci na cidade de Curitiba, apesar de que me criei no interior do Paraná, só nasci em Curitiba e depois voltei a viver em Curitiba a partir dos 15 anos, mas nasci em 15 de abril de 1957.
P/1 – Seus pais são de Curitiba?
R – Meus pais são do Paraná, vou dizer assim. Meu avô materno era de Paranaguá, se mudou para Ponta Grossa, casou com uma moça de Ponta Grossa, a família viveu em várias cidades do interior do Paraná. E a família do meu pai também descendente de um imigrante suíço que desembarcou em Santa Catarina, em São Francisco do Sul, morou alguns anos na região de Joinville e depois se mudou para Curitiba, e de Curitiba a família foi se espalhando para o interior. Meu pai é nascido no fundão, no mato do interior.
P/1 – Vamos começar a falar um pouco, quer dizer, porque esse nome Ralf, esse nome alemão com suíço?
R – Pois é, os suíços falam o dialeto do alemão, na realidade, do lado do meu bisavô. A minha bisavó Roseni Weber era da parte que fala francês na Suíça. Bom, de qualquer modo, esse era o nome, o sobrenome principal, o sobrenome paterno na nossa tradição patriarcal que é ser sobrenome Rickli. Por que escolheram Ralf? Não sei, de acordo com meu pai e minha mãe eles consideraram vários nomes, meu pai tinha lido alguma coisa daquele filósofo americano Ralph Waldo Emerson e parece que aí eles ficaram na dúvida entre colocar Ralf, Waldo ou Emerson, acabaram optando por Ralf, é um nome que sempre acaba me dando trabalho para soletrar, ainda bem que é curtinho, né? Mas tem que soletrar, nome, sobrenome, repetir como é que é, F mudo, é F mudo.
P/1 – E o Correia da Silva não entrou?
R – Acabou não entrando, né? Seria da Silva Correia, minha mãe é nascida da Silva Correia.
P/1 – Da Silva Correia.
R – E esse Correia, na verdade, devia ser Correia de Freitas, porque de uma família de Paranaguá, mas, assim, meu avô era de um ramo bastardo da família, digamos assim, neto de escrava. E, apesar de que o pai dele era Gabriel Correia de Freitas em Paranaguá, e provavelmente Gabriel Correia de Freitas tinha uma família principal, meu avô se revoltou com isso e tirou o de Freitas do nome. Mas bem a rigor eu deveria ser Ralf de Freitas Rickli.
P/1 – O Ralf, vamos começar a falar um pouco da família do seu pai, das suas origens familiares, seu bisavô, você estava falando, quem foi seu bisavô?
R – Meu bisavô é uma figura notável, que me instigou sempre pelo lado aventureiro dele, por outro lado, ele era missionário, né? Isso, hoje, me desagrada. Eu não sou uma pessoa muito pró religião atualmente, eu digo que chato ser bisneto de missionário. Ele foi missionário na África, inclusive, o que eu acredito que teria sido um grande estrago se tivesse ido em frente essa missão, isso são dados que a família, a maior parte das pessoas da família não sabia até pouco tempo, eu tive acesso a alguns escritos e livros herdados do meu bisavô que estavam guardados em um paiol de fazenda, no interior do Paraná, por ali tive algumas pistas de que a cidade da Suíça, ele tinha saído. E depois fiz contato com um professor da Universidade de Hamburgo que pesquisa exatamente a missão que meu avô trabalhou, pilgrim mission, missão do peregrino, era de um ramo pietista da igreja luterana, um ramo, assim, não tão formal, era um povo que achava que a igreja luterana duzentos anos depois de Lutero já tinha se esclerosado, virado uma outra igreja católica, eles queriam renovar. Tinha uma filosofia de que toda pessoa tinha que ser um missionário e ao mesmo tempo ter uma outra profissão. Meu avô foi preparado no seminário de St. Chrischona, perto de Basel, na Suiça e foi preparado para ser professor e missionário. Foi enviado a uma missão na África, um projeto do doutor Johann Krapf, primeiro homem branco a avistar o monte Kilimanjaro, era um explorador da África. E esse doutor Johann Krapf projetou uma missão conectando Egito desde a costa até a Etiópia achando que com isso levaria para o coração da África o evangelho e de lá irradiaria para o resto da África. Meu avô teve a responsabilidade pele estação missionária São Pedro, que ficava em Assuã, no Egito. Mas houve conflitos entre a Etiópia e os poderes ocidentais e o imperador da Etiópia se deu conta de que estava havendo intervenção demais no país e expulsou todos os estrangeiros, a missão lá deu com os burros na água. Aí a missão reconsiderou sua estratégia em lugar de conquistar novas ovelhas, nós temos que cuidar das ovelhas que já temos, os nossos imigrantes que estão vindo para o Brasil. Então ele veio como, na família se diz que veio como capelão de imigrantes, mas eu não sei se ele era realmente pastor ordenado, acho que ele era mais um missionário leigo. Mas, de qualquer modo, ele veio no navio de imigrantes e chegou em São Francisco do Sul em 1869 e a noiva dele também suíça, só que de fala francesa. Meu avô se chamava Johann Ulrich, de fala alemã e a minha bisavó se chamava Rosine, Rosine Weber, de fala francesa. E eles casaram em 8 de janeiro de 1870, no Brasil. Então em 8 de janeiro de 2000, nós fizemos uma grande reunião de família comemorando 130 anos da família no Brasil, 130 anos do casamento do meu bisavô no Brasil. Isso tudo eu fui bastante envolvido, mas por outro lado, eu confesso que eu tenho mais interesse nas raízes extra europeias da minha família, o lado materno, né? Meu avô era neto de escrava...
P/1 – Deixa eu perguntar um pouquinho, a gente já chega nesse lado. Aí seu avô já nasceu no sul?
R – Sim, eles desembarcaram em Santa Catarina e ele viveu na região de Joinville, sendo professor, hoje é Pirabeiraba, se chamava Pedreira, por acho que uns mais de dez anos. Meu avô, inclusive os filhos, nasceram ainda em Santa Catarina, depois se mudaram para Curitiba, moraram muitos anos em Curitiba e os filhos à medida que cresceram começaram a se aventurar para o interior, se tornar pessoal que se especializava em serrar madeira, né? Derrubar árvores, serrar, trabalho de serralheiro que eles faziam, eles foram comprando terras no interior do Paraná, se tornou uma família de fazendeiros paranaenses a partir do missionário suíço. Meu pai nasceu no coração, vamos dizer, do Paraná, no meio do mato, já em 1922, meu bisavô, tinha falecido um ano antes, também lá no interiorzão do Paraná vivendo com um dos filhos. Quando eles saíram de Curitiba, a família começou a se espalhar de Curitiba para o interior do Paraná, a gente não sabe. Tem um cartão postal recebido pelo meu bisavô em 1901, que atesta que ele já estava no interior, onde hoje é a cidade de Imbituva. Bom, eu acho que...
P/1 – E a família da sua mãe?
R – É, a família da minha mãe... A minha mãe nasceu em Ponta Grossa, Paraná, a família materna dela é de Ponta Grossa, mas a família do meu avô materno é de Paranaguá. Meu avô deveria se chamar Correia de Freitas, Annibal Correia de Freitas, ele tirou o Freitas do nome, e ficou sendo Annibal Correia, minha mãe era Aymee da Silva Correia, isso por revolta, sabe-se pouco disso, ele não gostava de falar, por revolta contra o pai dele Gabriel Correia de Freitas, que era família de fazendeiros de Paranaguá. Mas família do meu avô era a família B, família beta, não era a família principal do Gabriel Correia de Freitas e eu acho que em algum momento, meu avô se revoltou contra o pai e tirou o de Freitas do nome, né? Ele era filho de Albina, por sua vez filha de Floriana Rosa, do Espírito Santo. Interessante que eu moro no Estado do Espírito Santo hoje em dia e o sobrenome Rosa é muito comum aqui no Estado do Espírito Santo, mas não tem nenhuma relação, só questão de destino. Essa Floriana Rosa era filha de escrava com senhor, foi batizada pela família do senhor, mas viveu como escrava, na adolescência a senhora dela concedeu alforria a partir do momento, com a condição que ela cuidasse dela até morrer, depois ela seria livre. E a Floriana se tornou uma mulher importante, líder, assim, comunitária na região, ela saia pescar em alto mar, junto com os pescadores, puxar arrastão, era dona do seu sítio, eles faziam farinha de mandioca, tinha toda uma cultura da farinha, minha mãe falava: “Essa farinha é boa como do sítio” ou “Essa é uma farinha à prova de leite”, sabe? “Você pode pôr no leite e não aparece nenhum pontinho preto”. Minha mãe gostava de narrar que ela viu, meu avô levou ela no interior e viu como fazia todo o processo de ralar mandioca, espremer no tipiti, etc, tal. Ela valorizava muito essa cultura e eu admiro também, pena que eu não cheguei a conhecer de perto meu próprio avô, Anibbal, morreu quando eu tinha dois anos, ele dizia que queria me levar no sítio para caçar um jacaré, essas coisas, brincadeiras de criança. Ele deixou umas cartas para mim, por isso que eu sei das falas dele, porque com dois anos é claro que eu não iria lembrar.
P/1 – Como seu pai e sua mãe se conheceram?
R – Hum. Eles se conheceram na igreja, a igreja, no caso, no Brasil, a família se tornou presbiteriana, porque a Igreja Presbiteriana do Brasil vem de missionários norte-americanos, que também são desse ramo pietista, não é a igreja calvinista que veio da Europa, não tem no Brasil a igreja calvinista diretamente da Europa, a não ser pelos imigrantes holandeses. Mas, então, no Brasil, meu avô acabou... A família acabou se afastando da igreja luterana clássica, vamos dizer, que não tinha tanto aquele espírito pietista e acabou se vinculando à Igreja Presbiteriana dos missionários americanos, que é mais o estilo da linha do meu bisavô. Meu pai estudava Medicina em Curitiba, cantava no coral da Igreja Presbiteriana Central de Curitiba. Minha mãe a família tinha se mudado para Curitiba também, os irmãos mais velhos tinham casados, ficado pelo interior do Paraná e minha avó, avô e três dos filhos vieram morar em Curitiba, frequentavam a mesma igreja, cantavam no mesmo coral, aí já viu? (risos). Apesar de que eles levaram muitos anos ainda para casar porque meu pai era assim: “Não vou namorar antes de terminar o quarto ano da faculdade”. Então eles eram amigos, mas ele não assumia namoro. E só depois de formado que, alguns meses depois, casaram. E os dois já tinham todo uma história de vida pelo interior do Paraná, eles tinham 33 anos, os dois tinham a mesma idade, tinham 33 anos quando casaram. Então meus pais não foram, assim, tão joviais, não.
P/1 – Aí eles casaram e ficaram morando em Curitiba?
R – Não, porque imediatamente depois de se formar, meu pai foi para o interior de novo. Primeiro passou uns meses em Prudentópolis cuidando de assuntos de família, mas se instalou em Guarapuava, já tinha contatos em Guarapuava, onde ele tinha servido exército. Então... Eu nasci em Curitiba, porque a minha mãe ficou me esperando em Curitiba, onde tinham mais condições médicas, a gravidez dela era um pouco complicada. E meu pai estava em Guarapuava trabalhando quando eu nasci. Quando chegou em Curitiba, viajar era terrível naquela época, levava, às vezes, dez horas, doze horas encalhado na estrada, etc, tal, para chegar de Guarapuava a Curitiba. Ele veio me conhecer quando eu tinha onze dias, aí ele descobriu um dado importante na minha vida, parece que é besteira, que por conta da saúde da minha mãe, eu tinha sido mantido no berçário, afastado dela por onze dias, disso deriva uma coisa que se chama síndrome de abandono, o que eu luto até hoje. Ninguém passa onze primeiros dias seguidos afastados da mãe impunemente, isso devia dar cadeia para os médicos que fizeram isso. Bom, em todo caso, com um mês de idade eu estava em Guarapuava, com a família dos meus pais, longe dos outros parentes, mas morando no interior do Paraná, morei em Guarapuava até os quinze anos.
P/1 – Você é o primeiro filho, você teve irmãos?
R – Eu, na verdade, fui filho único, essa problemática de saúde da minha mãe não permitiu ela ter mais filhos, até quando eu tinha oito anos foi adotada uma menina de um ano e pouco, que terminou sendo a minha irmã, né? Mas ela entrou um tanto tardiamente na minha vida e eu sempre me ressenti da falta de irmãos, essa solidão do berçário continuou em uma infância sem outras crianças para brincar, para socializar, etc, tal.
P/1 – Você foi criado nessa cidade até os 15 anos, como era essa cidade?
R – Olha, Guarapuava fica em uma paisagem belíssima, em um planalto a 1100 metros de altitude, campos nativos como ponteado de bosques de Araucária, a região é muito bonita, mas muito fria. Tem verdadeiro vento cortante e gelado, né? Terrível. E também é uma cidade de um povo bastante bruto, violento, é uma cidade gauchesca, digamos assim. Eu não tive muita facilidade com colegas de escola, etc, tal. Eu tinha um jeito diferente e em si, alegre, mas que logo ficava retraído porque eu sofri muito bullying durante a infância e adolescência, muito mesmo.
P/1 – Por que você sofria bullying?
R – Ah, porque eu não sei, eu parecia diferente por várias razões, uma delas de sexualidade, eu só ia saber muitos anos mais tarde, que eu não era padrão, mas eu não sabia, eu queria brincar do meu jeito, eu brincava, fazia brincadeirinhas mansas, coisa e tal, que não eram consideradas brincadeiras de menino, não aguentava brincadeiras brutas, porrada, safanão, etc, tal. Assim, o espírito de rebanho, tem isso, quando aparece um serzinho diferente, os animais atacam, né? Nas granjas de frango, você pega um franguinho de um lado do galpão e coloca no outro lado, ele é morto a bicada. Então bullying com certeza é um traço animal a ser superado na humanidade.
P/1 – Quando você diz um padrão diferente? Porque que é esse padrão diferente, o que você atribui a isso? Como você se atribui diferente?
R – Não, eu sou de natureza homossexual, desde sempre. Eu tive uma companheira, dois filhos com ela, mas sou basicamente homossexual e depois, os meus filhos sabem disso desde sempre, desde quase sempre, desde a adolescência. A gente se dá super bem com isso, mas é um modo de ser que... Como é que vou dizer? Os índios falam que são duas almas, os Iorubás ou outro povo africano, não sei, falam assim que existem almas leves e almas pesadas, né? Tem homens de almas leves e homens de alma pesada, mulheres de alma leve e mulheres de alma pesada. As mulheres de alma pesada preferem outras mulheres, de modo geral, segundo eles. Os homens de alma leves, de modo geral, preferem outros homens como companheiros. Apesar de que na verdade no fundo todo mundo é um pouco bissexual, eu pude vivenciar isso também, mas a partir de um certo ponto é assumir mesmo como bandeira esse direito à vida digna sendo quem se é, como se é, não tendo que se modificar para ser aceito.
P/1 – Voltando um pouco, quer dizer, você lembra de alguma situação específica que você teve na escola?
R – Olha, são tantas, né? Vinham me fazer uma pergunta que eu não entendia a pergunta, faziam de modo capcioso, já para eu me perder, eu respondia qualquer coisa, aí eles faziam uma interpretação maliciosa da minha resposta e já gritavam para toda sala, toda sala gargalhava.
P/1 – Mas qual é a pergunta? Você lembra da pergunta?
R – Não, estou criando uma situação arquetípica e eu não iria jamais relatar uma situação concreta dessas, isso significa o dedo em uma ferida que a gente prefere e não deve fazer isso. Por isso...
P/1 – Na sua casa...
R – Como?
P/1 – Na sua casa você tinha alguma cobrança do seu pai ou da sua mãe em relação a isso?
R – Na verdade, eles falavam que tinham que me defender, que tinham essas coisas assim, mas o assunto em si era tabu, não se falava do assunto. Meu pai morreu quando eu tinha 25 anos por aí, 27, 25 anos, sem a gente nunca ter conversado abertamente sobre isso. Ele tinha compreensão até como médico, mas tinha todo aquele lado religioso também. Mas fazia-se de conta, muitas famílias fazem de conta que não tem nada acontecendo. A minha mãe ao decorrer dos anos, a gente acabou abrindo um pouco mais o jogo, mas ainda sempre falando de modo muito velado, muito indireto. Os jovens de hoje não têm a menor ideia do que é viver em uma sociedade em que isso passou a ser aceitável, ainda existe resistência, mas não se compara de modo nenhum, aquele tempo era se assumir um pária, uma pessoa de segunda, terceira, quinta classe inevitavelmente se se assumisse, você seria ridicularizado por praticamente todos. As conversas dos tios em reuniões de família, coisa e tal, não direcionadas a mim, se eram indiretas, eu não, mas de qualquer modo, faziam piadinhas. Isso todo mundo que tem essa vivência conhece de cor e salteado, não sei quantos se dispõem a relatas. Mas eu acho que eu não vejo necessidade de aprofundar esse aspecto.
P/1 – Como é que era a sua casa? Como era a característica do seu pai, a relação com você, da sua mãe?
R – Olha, você poderia dar um pause, porque... [pause] É a vida que me legaram, e com a vida que me legaram eu não tenho facilidade nenhuma, não. Tem histórias bacanas de família, etc e tal.
P/1 – Como que foi para você na escola? Que matérias que você gostava? Tinha algum professor que chamava atenção? Ou alguma matéria que você já se identificava?
R – Eu me destacava na escola em quase todas as matérias. Engraçado que eu tirava notas mais baixas em Português porque o Português é ensinado de um modo muito precário gramatical artificial. E a minha matéria de trabalho a vida toda é a língua, falada ou escrita, mas eu trabalho especialmente com a língua e era onde eu tinha notas baixas, eu tinha notas mais altas em Matemática, tenho um bom raciocínio lógico, mas não tenho paciência para o processo da matemática. História sempre me fascinou. De modo geral, eu ficava entre os melhores alunos da classe, isso colaborava para o bullying também, os outros não perdoam ver você se saindo bem e eles sendo, vamos dizer, menosprezados perante a você, você vai fazer o quê? Vai tirar nota baixa só para agradar os colegas? Enfim. Tem muita lembrança de escola, mas como eu disse, essa aí não é a minha vida que eu fiz ainda, é a preparação para entrar em campo. Depois dos vinte e poucos anos, quando eu voltei da Inglaterra, aí que eu acho que eu entrei em campo de verdade.
P/1 – E na adolescência...
R – Perdão?
P/1 – E na adolescência, como é que foi essa passagem na escola? Se você já tinha interesse, assim, quando eu crescer vou ser tal coisa?
R – É, eu acho que isso é uma boa forma de falar, fazer uma ponte de onde eu estou na infância até esse momento que eu digo que eu começo a minha vida mesmo, vou fazer um vol d'oiseau, um voo de pássaro caracterizando o principal. Eu completei o antigo Ginásio, quer dizer, o atual Ensino Fundamental em Guarapuava, com 14 anos e minha família percebia que o ambiente da cidade era, primeiro, oferecia pouco para o desenvolvimento intelectual que eu parecia prometer. Era uma cidade culturalmente acanhada, segundo, eu precisava de um meio novo, um espaço novo para esse período todo de estudo, como eu falei, com bullying, coisa e tal, me deixou um pouco traumatizado com a cidade mesmo, com o ambiente da cidade. Eu tinha alguns amigos de brincadeiras, coisa e tal, assim, mas nunca me senti enturmado. E eu queria desenvolver coisas... Meu pai era uma pessoa que ouvia música clássica, pouca gente ouvia música clássica em Guarapuava, eu cresci ouvindo música clássica, botavam Beethoven para eu dormir, diz que com nº 6 de Beethoven eu acalmava e dormia. Então existia na própria família uma ideia que eu tinha um potencial que só poderia ser adequadamente desenvolvido na capital. Ainda com 14 anos, meu último ano em Guarapuava, eu comecei a ir a cada duas semanas a Curitiba ter aulas de piano, com uma pianista, cravista de lá Ingrid Seraphin para me preparar para entrar na escola de Música e Belas Artes no Paraná, a escola padrão de formação musical do Paraná. Isso da música foi uma coisa muito marcante, né? Porque, de certa forma, dava um substrato para a minha vida, eu vivia de música, respirava música, até eu entender que eu não tenho talento para ser o músico, eu sei como a música deveria ser feita, mas meu corpo não me obedece para fazer aquilo, até eu aceitar isso, que não era o meu campo de trabalho foi muito difícil. Eu fui para Curitiba e mergulhei muito mais nesse meio dos alunos, os alunos mais velhos da EMBAP, Escola de Música e Belas Artes do Paraná, pessoal de curso superior, eu fiz amizade com eles, pessoal de Santa Catarina, principalmente, que é mais dado que o paranaense para fazer amizade, catarinense faz amizade muito fácil. A escola padrão, né? O Ensino Médio, antigo científico, eu levei por obrigação, eu tinha boas notas sempre em Matemática, Física, coisa e tal, professor ficou indignado quando eu falei que eu pretendia estudar na área de humanas, ficou indignado e falou: “Não, você tem que fazer Matemática ou Física”. Mas eu nunca tive vontade, apenas me saia bem por ter uma facilidade com raciocínio lógico. Sempre o artístico me fascinou, tudo que fosse arte me fascinou e a História também. Eu pensava muito em estudar Psicologia, o grande erro da minha vida foi três vezes eu disse: “Eu vou fazer o vestibular da Psicologia”, em diferentes épocas da minha vida e acabei optando por outro curso. Quando eu completei o segundo grau em Curitiba... Olha, também ao chegar em Curitiba eu achei assim: “Bom, agora estou entre os meus. Agora estou entre gente capaz de me entender”. Depois você descobre que não é tão simples assim também, que você também vai ter... Que o ser humano é sempre complicado, que você também vai ter bullying, apesar de você estar em uma escola em que muita gente ali ouve música clássica, por exemplo, isso não te dá garantia que você não vai sofrer bullying, né? Mas eu já estou falando disso com humor aqui. Eu falava: “Bom, eu vou fazer Psicologia ou Filosofia ou Jornalismo”, essa coisa de lidar com a palavra. E na hora H do vestibular, por falta de acompanhamento, eu precisava de um acompanhamento psicológico, um apoio, mas eu não tinha. Por falta de acompanhamento, eu fiz vestibular para Regência e Composição na faculdade de música, eu não tinha base para passar nesse vestibular, acabei entrando na segunda opção que era licenciatura em Música, cursei dois anos de licenciatura em Música e comecei a dar aulas de piano. Com 18 anos, eu tinha colegas de São Bento do Sul, uma cidade de Santa Catarina, muito próxima de Curitiba, uma hora e pouco de viagem. Peguei um emprego na Escola Municipal de Música de São Bento do Sul, eu ficava dois dias por semana lá dando aula de piano, teoria musical. E comecei a fazer cursos de pedagogia musical, festivais e coisa e tal. Eu achava que de algum modo ia conseguir atuar na sociedade na formação das pessoas, fazendo o que eu fizesse era isso, eu queria dar às crianças, aos jovens um acolhimento melhor do que eu tive, um acolhimento alegre, um acolhimento compreensivo. E isso, eu estou falando isso lembrando da cara dos meus aluninhos de 12 anos, 11, 10, 14 anos de São Bento do Sul, eu gostava de fazer isso. Mas, por outro lado, era um campo limitado, tanto economicamente, é um campo difícil de se viver. E eu tinha concepções de sociedade, desde pequeno eu pensava como o mundo devia ser e não como ele era. Eu fazia cidades imaginárias com bloquinhos, com pecinhas, coisa e tal, botava o nome de cidade, criava o sistema de governo da cidade, escrevia a Constituição da cidade (risos). É engraçado isso. Mas a minha grande preocupação sempre foi como viver no mundo de um modo menos atroz do que nós vivemos. E a música para mim...
P/1 – O que você colocava na Constituição da cidade?
R – Como?
P/1 - O que você colocava na Constituição da cidade?
R – Bom, primeiro eu colocava algumas coisas bem padrão que eu não conhecia muito ainda, né? Nem saberia te dizer agora, mas à medida que foi avançando na adolescência eu comecei a achar que a vida devia ser assim, que a vida devia ser assado. De certa forma, eu fui uma brotação tardia da geração de 68. Em 68, eu tinha onze anos só. Mas eu fiquei fascinado com tudo aquilo, com o movimento da canção de protesto, com o movimento hippie, para mim os hippies não eram os vagabundos que andavam na rua, era uma pessoa que propunham uma forma mais humana de viver, eu acreditava, eu pensava. E esse lado rural da família, do meu pai, da fazenda coisa e tal, me dava uma consciência de que enraizamento na terra é importante, era necessário, que a comida vem de lá. Então, eu pensava, fui um desses que cultivou o ideal de viver em comunidades rurais, mas que não seria só agrícola, seria um espaço cultural também, um espaço de educação, de cultura, de produção de arte e produção de comida, teria tudo que precisava em uma vida junto da terra, junto da natureza, mas não retirada da cultura, trazer junto cultura e natura. Isso foi um ideal de adolescência mesmo e foi ficando mais elaborado à medida que eu fui progredindo para idade adulta. Então eu interrompi meu curso de licenciatura em Música quando eu conheci um pessoal que foi muito enriquecedor para mim, mas também foi em parte uma pista falsa, uma pista verdadeira e em parte uma pista falsa. Conheci o pessoal da Antroposofia, que é uma filosofia de vida, digamos assim, desenvolvida por um austríaco no começo do século XX, Rudolf Steiner. Eles criaram o sistema de educação Waldorf, o sistema de agricultura biodinâmica, só isso: o fato deles trabalharem com educação, cultura e agricultura, eu falei: “Olha, esse pessoal tem a mesma pista que eu”. E conheci um grupo em São Paulo, fiquei fascinado com eles e falei para o meu pai: “Olha, eu quero ir para Europa estudar com esse pessoal”. Meu pai naquele momento, tinha condições de me bancar lá e eu fui para Inglaterra em 79, né? Eu tinha terminado o segundo ano de faculdade, interrompi, nunca mais retornei para aquela faculdade e fui estudar na Emerson College, na Inglaterra, que era um lugar absolutamente fascinante, ficava dentro de uma fazenda, com um bosque com árvores magníficas e tinha o estudo tanto de educação, quanto de artes, quanto de agricultura, totalmente diferenciado. Pegava aquela tradição da Filosofia da natureza alemã, o pessoal do Idealismo, do Romantismo alemão, as obras científicas de Goethe, os estudos de Goethe sobre as plantas. E tinha lá um bando de malucos como eu, que em vinte e tantos países, éramos 10 brasileiros, mais ou menos, nos tratamos enquanto família enquanto estivemos lá, fizemos grandes amizades com os italianos, com coisa e tal, tinha gente da África, da Índia, pessoas de 25 países, duzentas e tantas pessoas, de 25 países estudando nesse ambiente. Eu lembro daquilo como um sonho, já de início eu comecei a perceber que poderia ser problemático é que se tratava de uma... Eles dizem que é uma ciência espiritual, uma ciência espiritual, mas é uma fé, na verdade, né? É mais uma fé, uma fé bastante sofisticada, intelectualmente sofisticada, mas que exige acreditar no que o fundador falou, quer dizer, dizem que não, que não exigem, você é livre para se posicionar, mas se você começa a se posicionar, mas se você começa a se posicionar e dizer que discorda do Rudolf Steiner, que acha que ele errou, você começa a não ter lugar nesse espaço, nessa sociedade. Apesar disso, eu trabalhei treze anos, depois, de volta ao Brasil, totalmente dentro do movimento Antroposofico, e depois trabalhei mais de fora eventualmente...
P/1 – Deixa eu voltar só um pouquinho? Quando você voltou aqui no Brasil, quem já tinha? Quem era esse grupo que trabalhava Antroposofia?
R – Existia um grupo bastante sólido em São Paulo, e alguns grupos menos em Juiz de Fora, Florianópolis, em vários lugares. E em Botucatu, no interior de São Paulo, tinha a fazenda Demétria, foi a primeira fazenda biodinâmica criada no Brasil, e ali começou a se reunir gente, foi criado uma escola ali também, foi criado um instituto para tratar pesquisa em agricultura, Instituto Biodinâmica, eu fui um dos fundadores, né? Porque apesar de todo esse meu lado cultural, quando eu cheguei na Inglaterra, eu escolhi entre os cursos para fazer lá, eu escolhi o de Agricultura e Desenvolvimento Rural, porque eu dizia é a base da vida, se a gente não tiver com essa base firme, não tem nada que se possa fazer que se sustente. Uma agricultura saudável, sustentável é que vai dar sustentação ao resto da cultura, ao resto da sociedade. Então, quando eu voltei, eu descobri, assim: “Onde eu vou trabalhar? Em qual dessas iniciativas biodinâmicas, fazendas que já tem chácaras, sítios que já estão trabalhando com esse sistema eu vou trabalhar?”. Aí eu comecei a visitar vários lugares, em Minas, interior de São Paulo, eu descobri que cada um estava fazendo seu trabalho e um parece que tinha a resposta do outro e ninguém estava sabendo, as pessoas não estavam em comunicação o suficiente. Aí eu, aquele tempo, antes da internet, fazendo tudo por correio, escrito, datilografado, à mão, comecei a mandar cartas para todo pessoal que lidava com essa área, propondo que a gente fizesse um encontro, o primeiro encontro brasileiro de agricultura biodinâmica. A iniciativa foi acolhida calorosamente, inclusive, o movimento era em boa parte sustentado por industriais que acreditavam nesse ideal, Pedro Schmidt, um dos proprietários da Giroflex, Hubertus Loewes proprietário da Chocolates Evelyn, eles eram todos, usavam grande parte do rendimento das suas empresas para bancar esse time em movimento. Eu, naquele tempo, imaginava que era uma situação confiável, hoje sei que não, que a empresa privada quando a coisa aperta, ela volta aos seus próprios objetivos e ela abandona as causas sociais que carregava. Essa primeira geração de Antroposicos idealista já morreu toda e seus herdeiros não estão seguindo o mesmo caminho. Bom, eu já estou fora do movimento há muitos anos.
P/1 – E quais eram as escolas que seguiam, aquelas escolas que foram criadas naquele momento, que seguiam a Antroposofia, que eram escolas a partir do princípio Antroposófico?
R – Bom, o sistema de educação proposto pelo Rudolf Steiner, que era chamado Waldorf, na verdade, ele criou uma escola experimental para os filhos dos operários de uma indústria, né? Na Alemanha, a indústria era fábrica de cigarros Waldorf-Astória, por isso acabou ficando o nome Waldorf. Mas era uma escola financiada por um empresário para os filhos dos seus operários. Só que aí a burguesia sabe o que tem valor e quer para si, com os anos, e principalmente fora da Alemanha, passou a ser escola de elite, os filhos do príncipe Charles estudaram em escola Waldorf na Inglaterra. E aprender a escola Waldorf Rudolf Steiner de São Paulo mesmo, diretores, grandes empresas também, Volkswagen, coisa e tal, tinham os filhos lá porque era, antes de mais nada, uma escola onde também se estudava em alemão. E tem um método muito criativo, muito bacana em certos pontos e em certos pontos eu discordo. Certos pontos com certeza teriam que ser complementado com Paulo Freire, mas é um sistema valoroso de educação sim, só que para quem? Para que finalidades? Então existe uma cisão nesse movimento daqueles que veem que toda a produção de cultura, toda a nossa atividade tem que ser para todos por igual e tem que atingir a base da sociedade, se não tiver irrigada a base da sociedade não se de o luxo de irrigar o topo. Mas não, a maior parte pode falar isso da boca para fora, mas a práxis burguesa é essa: “A água de irrigação é aqui para o nosso jardim, o que pingar lá em baixo”, aquela teoria do trickle-down “O que pingar lá embaixo resolve o problema lá de baixo”. Quando tem dez vezes mais gente, cem vezes mais gente lá embaixo e as gotinhas que vão pingar lá de cima, não vão resolver. Então eu trabalhei em Botucatu, quer dizer, quando eu comecei a criar essa primeira reunião, planejar essa primeira reunião, eu estava ainda em Guarapuava escrevendo cartas e esses empresários em São Paulo se dispuseram a me pagar um salário para começar a organizar o evento. Aí meu pai faleceu nos mesmos dias desse encontro de biodinâmica, que eu organizei em São Paulo, meu pai faleceu em São Paulo também, porque ele tinha sido levado para lá, porque falta de recursos, eu estava morando em São Paulo, falta de recursos do interior. Aí houve uma cisão, eu tive que ir cuidar dos assuntos da família e comecei a não poder cuidar direito dos assuntos que eu tinha acabado de assumir perante o movimento biodinâmico. Por um ano eu fiz como pude esse trabalho por correio e com viagens de dez horas de ônibus entre Guarapuava e São Paulo, todo mês. Minha gatinha quer sair, isso aqui faz parte, abrir a janela para a minha gatinha é uma parte da minha vida atualmente. Então acabei repassando essa função de coordenador da biodinâmica no Brasil para outra pessoa mais originária do movimento mesmo, de São Paulo, que foi, se instalou em Botucatu, próximo a Estância-Demétria, começou um escritório lá. E dali em um ou dois anos, eu também me mudei para Botucatu, fui me juntar ao grupo, o curioso é que eles costumam narrar essa história como se ela tivesse sido começada por essas pessoas já do grupo de São Paulo, e que, na verdade, quem lançou o fundamento da primeira organização biodinâmica no Brasil fui eu, foi a minha iniciativa, mas eu sou um outsider no movimento. Apesar do meu nome alemão, eu não sou alemão o suficiente, eu falo muito mal o alemão, traduzo do alemão escrito textos difíceis de traduzir, leio textos difíceis, mas não sou fluente em alemão. Eles não tem tido muito pejo de começar a contar a história consigo mesmo, omitindo o detalhe desse Ralf Rickli estranho lá do Paraná, que passou por nós aqui. Bom, uma coisa vai puxando outra, mas acho que vou parar um pouco e te deixar fazer uma pergunta, porque eu não sei daqui para que lado eu vou.
P/1 – Quando você veio trabalhar aqui, como é que foi a sua chegada em São Paulo... Espera aí.
R – Durante um tempo, eu atuei dentro da favela Monte Azul fazendo aulas de cultura geral, complementares com os meninos que trabalhavam na marcenaria, estagiários da marcenaria, eu fazia duas vezes atividades de cultura geral com eles. E fui humano, chegou um momento que eu não consigo... Meu modo de trabalhar ainda se choca com essa metodologia de origem europeia e comecei... [corte] Você quer que eu parta do ponto de porquê mesmo com a Monte Azul eu via dificuldades, né? Eu vou pegar um pouco antes, que eu pulei, né? Eu falei que fiquei chocado quando eu voltei para o Brasil a primeira vez, fiquei chocado com a desigualdade, dez anos depois eu quis voltar para Europa para olhar para o Brasil de fora mais uma vez, porque eu precisava... Eu sabia que os rumos que eu estava fazendo lá em Botucatu não eram os meus, mas queria encontrar qual era o meu verdadeiro rumo e queria perspectiva, distância para olhar. Enquanto eu estava na Alemanha, eu disse: “Olha, a agricultura é fundamental, é base da sociedade, sim, etc e tal”. Só que o Brasil passou pelo processo de urbanização mais vertiginoso de toda a história humana, em poucas décadas, no final do século XX. O Brasil passou de ser 80% rural para ser 80% urbano em poucas décadas, isso de um modo totalmente sem estrutura, sem infraestrutura para isso. Eu falei [que] o ponto crucial do Brasil, na viabilização do Brasil não é mais ter uma agricultura saudável, ter uma vida cultural no campo, porque a maior parte do povo do campo debandou e está nas favelas, está na periferia das metrópoles. A periferia das metrópoles é o grande, principal campo de trabalho, de batalha do Brasil agora, a educação dos jovens, uma verdadeira educação para os jovens, uma educação eficiente para os jovens nas periferias metropolitanas essa é a chave para o Brasil. Eu pensei isso em 1990, 91, um bocado antes de entrarem no poder pessoas que pensavam a mesma coisa. Então me aproximei da Monte Azul porque eles eram... Eu não posso chegar em uma favela qualquer, bater e dizer: “Oi, gente vim aqui, quero colaborar”. Ridículo, né? Branco fazendo isso na favela é motivo de piada e não é por menos. Então a Monte Azul foi um lugar onde já tinha uma relação construída e eu comecei a construir minha relação com o povo periférico, o povo clássico, o trabalhador da base do Brasil. Eu fui classe média a vida inteira, né? Em certos momentos classe média quase alta, por conta da família do meu pai, era a maior parte do tempo classe média média, hoje sou classe média baixa por dedicação a causa dos que tão embaixo que eu não consegui... Olha, depois que eu me enturmei com os jovens das favelas que vinham na minha casa, vinham usar a minha biblioteca, meu computador, vinham bater papo, vinham fazer pergunta, tirar dúvidas sobre as aulas que tinham tido de manhã, eles vinham conversar comigo de tarde, isso em torno de uma mesa redonda com pão e café em cima, sempre. Até hoje eu tenho uma mesa redonda na minha cozinha com intenção de ser um ponto de reunião, só que a minha vida atual não permite na mesma medida. Mas em São Paulo, eu fazia meu trabalho autônomo como professor de inglês e como tradutor e conseguia manter algum tempo livre para receber esses jovens lá na minha casa. E, na minha casa, nas conversas com eles, conversas de igual para igual, mostrando: “Bom, eu sei mais que você, mas eu não sou uma pessoa diferente de você, eu também já não soube, eu conquistei meu saber assim, você também pode conquistar o seu”. “Eu vou sempre falar errado?”. “Não, não é errado, é o dialeto, é a forma de falar do seu grupo social, que é certo você falar assim no seu grupo social, mas outros grupos vão usar isso como barreira para você subir, se você não souber falar a linguagem deles também. Então aprenda o português padrão, correto, não porque ele é o único correto, mas aprendam até por vingança ‘vocês não vão me derrubar com isso’”. E essa sinceridade com eles conquistava, conquistava adesão, eles me viam como um aliado real, porque eu não estava enganando eles, “Estude, se esforce que as portas vão ser abertas para vocês”. “Não, eles vão tentar tudo para não abrir as portas para vocês, mas fiquem espertos, se habilitem o mais que puder aqui embaixo e apareça já habilitado”. Eu tenho aluno dessa época que foi responsável pela delegação do Ministério da Cultura para o Estado de São Paulo durante um ano. Tenho aluno dessa época que fez doutorado em ______ [01:00:00] na Inglaterra, e é professor em uma universidade federal no Brasil agora. Única coisa que deu certo na minha vida, essa deu. É uma minoria, é um grupinho pequeno, mas é um punhado de fermento que larguei no mundo desses anos do meu trabalho, que a minha casa virou uma associação, Associação Trópis para o Desenvolvimento Cultural e Social, a gente preferia chamar a Trópis Iniciativas Socioculturais. A gente caminhou paralelo a Monte Azul.
P/1 – Deixa eu só voltar um pouquinho?
R – Cada um do seu modo, mas com os amigos, com os colaboradores.
P/1 – Deixa eu só voltar um pouquinho para a gente chegar na sua Associação? Você começou a dar aula no centro empresarial para poder se manter nesse trabalho que você falou, no Monte Azul.
R – Sim, aham.
P/1 – E aí, porque você saiu do Monte Azul, essa discordância que teve naquele momento entre você e a Monte Azul?
R – Bom, porque ainda na Monte Azul, mesmo sendo uma coisa mais tropicalizada já, ainda é Europeu demais para mim, as metodologias, as abordagens ainda ficam muito fixas no modelo original europeu e antroposofico, ainda se faz questão de uma fidelidade a certas metodologias e certas ideias que eu acho dispensáveis, que eu acho que não são o centro de um caminho adequado para essa população. Eu respeito muito o trabalho deles, sim, ainda respeito muito. Enquanto morei em São Paulo nós colaboramos, eu ia em atividades deles, eles vinham em atividades nossas, mas o meu caminho é mais tropicalizado mesmo, mais brotado da realidade natural e social própria do Brasil. E levando muito em conta a cultura indígena, a cultura negra também, a maior parte do movimento antroposofico vê isso como exotismo, como primitivismo. E eu não, eu e a Ute Craemer mesmo, ela entendeu quando eu falei: “Olha, tem certos elementos aqui na Antroposofia, que são tomados da Filosofia idealista alemã, isso aqui não tem necessidade nenhuma no Brasil, o modo de pensar indígena nos serve, o modo de pensar indígena vai estudar a concepção de mundo Tupi-Guarani como Pierre e Hélène Clastres registraram, né? Você pode partir disso aqui e não do idealismo alemão”. A Ute olhou com olhos enormes àquela hora, a Ute até hoje continua sendo uma professora alemã e sendo antropósofa, mas ela dá um espaço enorme a cultura indígena dentro do trabalho dela desde então. Isso é também mais uma coisa que eu não sei se poderia ter acontecido por outros meios, mas eu estava lá, fui eu quem operei essa magia nesse momento. Essa parte da minha vida que faz mais sentido (risos).
P/1 – E essa sua concepção de achar que o ensino para as crianças pode ser mais racional?
R – Mais racional, sim, com certeza. Mas uma racionalidade moderna do século XX, não precisa estudar Edgar Morin, pensamento da complexidade, o racional não é sempre exato como eu falei, ele sabe levar em conta a inexatidão, ele não leva em conta só a razão das pessoas, leva em conta que as pessoas têm emoção, tem crenças, trata racionalmente das crenças. E a educação brasileira pode melhorar nesse sentido da formação lógica, porque, por exemplo, a gente fala de analfabetismo funcional. Analfabetismo funcional é quando se ensina ler as palavras, o som das palavras, mas não ensina ler as ideias que estão atrás dos sons, a leitura do mundo, como falava Paulo Freire, você tem que conectar aquele texto com o quê? Com a realidade, mostrar “Isso que você está lendo, onde você vê no mundo em volta de você? Onde é que você vê no teu bairro, na tua favela, no teu trabalho, no ônibus. O que é isso aqui, por que isso acontece assim?”. Leitura do conteúdo da linguagem, não dá leitura propriamente da linguagem. A hora que se trabalhar isso acabou o analfabetismo funcional. E não é propriamente interpretação de texto, é um pouco mais, é interpretação de texto, sim, mas não é arbitrária, assim, com regrinhas. É conseguir enxergar, pegar um texto, ler ele inteiro, fazer uma imagem daquilo e mergulhar nessa imagem, começar a ver como é que é por dentro a imagem viva que você recriou. O texto, vamos dizer, ele é uma coisa como leite em pó, desidrata, você pega aquela coisa seca, reidrata, descobre a vida que está naquelas palavras. E de repente você tem uma coisa fluida, um líquido rico ali, isso lá atrás, você está vendo um monte de coisas reais por trás daquele texto, porque senão você fixou nas palavras e em dar nomes, “isso aqui é...”. Os nomes gramaticais são o que mais atrapalham alguém na hora da compreensão, compreensão de texto mesmo, não é interpretação, é compreensão, isso é o que mais fiz com a minha moçada nas reuniões em torno da mesa do café, depois passou para a garagem. Tinha um momento que a minha garagem tinha dois grupos de teatro ensaiando, uma banda, um grupo de _____ [01:07:06]. Eu deixava eles fazerem do jeito deles e me chamar quando surgiam dúvidas, quando achavam que eu poderia esclarecer alguma coisa.
P/1 – E foi assim que nasceu a Associação?
R – Perdão?
P/1 – A Associação que você criou nasceu aí?
R – Sim, sim. Foi uma oficialização para a gente poder apresentar projetos e conseguir verbas, né? Eu preferia nem oficializar. A gente sempre se encrencou com as formas rígidas que a sociedade quer impor às iniciativas sociais, iniciativas culturais. Ela dá formas que limitam, né? Então a gente tem que fazer uma ata dizendo que cumpriu tal e tal obrigação, quando na realidade a gente está fazendo as coisas de outro modo, bem vivo. Chegou um ponto que a gente abandonou a estrutura de associação que a gente não aguentava mais fazer ata e levar registrar no centro de São Paulo, uma ata que não dizia absolutamente nada, só para dizer que a gente tinha uma associação. Chegou um ponto que esgotou esse processo, infelizmente. Mas a essência do trabalho da Trópis, Associação Trópis, Trópis é uma palavra grega que quer dizer quilha do barco, mas é ligado a trópicos que é direção, rumo, direção, a palavra trópico, né? Então é uma forma tropical, comecei falando uma forma tropical de conhecimento e prática, caminhos tropicais de conhecimento e prático. Aí era a minha diferença com o movimento antroposofico, inclusive a Monte azul, eles saem de uma natureza temperada, do clima frio, trazem uma cultura gerada pelo modo de viver dentro daquilo. Se nós partirmos da natureza daqui, a gente vai chegar a outras soluções, uma coisa que é mínima, pinheiro de natal são árvores pontudas, essas árvores crescem assim, para cima, fazendo pontas, porque elas estão próximas do polo, que é para o sol dar a volta nelas e poder pegar, elas serem o máximo captadoras de energia solar sendo pontudas assim. Não tem árvores pontudas assim aqui na nossa natureza, que aqui o sol não passa em volta, aqui o sol passa em cima. Então a árvore se abre toda para cima porque ela é um captador de energia solar. Quando eu comemoro o natal em pleno verão tropical com pinheirinhos significa que nós somos uma cultura dominada pelo norte, somos uma cultura subjugada pelo povo do norte, pelo povo das regiões temperadas do norte, toda celebração de natal com neve e pinheiro significa: “Vocês não mandam nessa terra, quem manda aqui somos nós desta terra dos pinheiros da neve”. Isso é profundamente político, por isso também era difícil conseguir apoio para os nossos projetos, porque quando eles viam que iam produzir pessoas não submissas. Ah, não, queria que a gente ensinasse eles a trabalhar para os patrões europeus ainda, que podem ser chamados Silva, Correia, tudo mais, Cardoso, mas é uma elite que tem o coração... Tinha antigamente em Lisboa, hoje tem em Miami, mas tem as raízes, de qualquer modo, no hemisfério norte nas regiões temperadas. Isso nos julga um povo tropical, de origem indígena, origem negra, origem africana, um povo de origem branca tropicalizada, acaboclado, todos são submetidos à ideologia de dominação ariana, digamos assim, radicalmente, que se simboliza perfeitamente nas pontas das árvores pontiagudas, né? A maior parte da educação popular, a educação para o povo que se quer dar é para condicionar a serem melhores escravos, não é emancipadora, por isso que Paulo Freire é tão detestado, porque Paulo Freire viu isso décadas antes de mim, né? Era bem mais velho. E eu vi pelos meus próprios caminhos, eu me encontrei com Paulo Freire pelo caminho, não foi dele que eu aprendi, foi do trato com a realidade, né?
P/1 – E você, naquele momento, quando você estava fundando o seu próprio núcleo, sua própria associação, que projetos, que financiamentos que você conseguiu e desenvolveu?
R – Olha, o mais importante que a gente fez foi assim meio no grito mesmo. Mas a gente conseguiu apoio da Associação Tobias, a mesma que era propriedade da fábrica Giroflex, que eu já falei, Pedro Schmidt, que estava por trás, que é proprietário da Giroflex, ele e o irmão dele, né? Eles apoiaram o começo da Demétria, em Botucatu, apoiaram o começo do Instituto Biodinâmico, apoiaram a Monte Azul e também nos deram alguma medida de apoio, olhando com uma certa reticência, mas nos deram alguma medida de apoio. A gente fez... Naquele tempo da capacitação solidária, comunidade solidária da Ruth Cardoso, a gente apresentou projetos de oficinas de rádio comunitária, conseguimos financiamento por algum tempo. E em parceria com a Monte Azul a gente teve parceria para fazer um trabalho de liberdade assistida por algum tempo, mais para adolescentes em conflito com a lei. Mas não era o foco principal nosso, não funcionou muito bem porque o nosso foco era para jovens que vinham voluntariamente, se identificavam voluntariamente, era a proposta. E teve um momento que fui convidado a participar de um congresso na Alemanha de pessoal que trabalhava com ideias alternativas em educação e não tinha nada de antroposofico mais, era um pessoal totalmente leigo, ligado ao Partido Social Democrata, os verdes, chamado equalizando verde e vermelhos na Alemanha, que é o Partido Verde e o Partido Social Democrata. Esse pessoal que eu fiz amizade na Alemanha participando do congresso, minha intervenção no congresso caiu muito bem. E a gente conseguiu um financiamento com eles para construir, para começar uma primeira construção no litoral de São Paulo, em Praia Grande, em um terreno que nos tinha sido prometido comodatos perpétuos daquele terreno, uma outra associação de Santos. Um terreno que, na verdade, era um pepino para eles, acho que eles queriam se livrar do terreno e prometeram para gente. A gente chegou a construir um primeiro, reformar o antigo barracão deles, transformar em um lugarzinho charmoso para atividades. Mas nesse meio tempo, esse pessoal também começou a ver que a gente era libertário demais, também em costumes, né? A gente não ficava impondo costumes hipócritas aos jovens, deixava, até a questão de sexualidade que eu falei lá no início, né? Acolhimento pleno a sexualidade de cada um, ao modo de ser de cada um e isso chocou um pouco os nossos parceiros de Santos. No fim, antes de oficializarem o tal comodato, eles puxaram o nosso tapete, a melhor linha que a gente tinha conseguido, vindo da Alemanha, com um fundo de uma loteria para projetos ambientes, o nosso projeto tinha uma dimensão ambiental, acabou, nós não pudemos dar continuidade nisso porque ficamos sem chão, isso foi o momento que a gente, sabe? Ficou sem forças humanas porque tem processo irônico. Nos anos 90, com o avanço do neoliberalismo, com um programa do Fernando Henrique, etc, tal, era um desemprego geral, os jovens não tinham chance de emprego, tinha um monte de gente... Coisas bacanas culturais, se ocupar, porque não tinha a possibilidade de estar trabalhando e à medida que virou para primeira década, veio o Governo Lula e as coisas começaram a fluir de outro modo, a maior parte desses jovens começou a conseguir emprego. E mesmo os pioneiros da nossa Associação, que já estavam com mais idade, de repente, estavam trabalhando na Secretaria Municipal de Cultura em São Paulo, trabalhando em outras instâncias, que não podiam dizer não, eram oportunidades de subir na sociedade, como _____ [01:17:23], um desses nossos alunos, foi Juca Ferreira colocou ele como coordenador da missão da delegação do MinC para o Estado de São Paulo. Mas com isso houve um esvaziamento no núcleo gerador, né? Houve um vácuo. A gente não conseguiu criar uma geração intermediária, dar continuidade ao nosso trabalho. De repente, quando cortaram a verba lá do trabalho que a gente estava fazendo em Praia Grande, a gente viu que nem adiantava a gente lutar para conseguir outra verba, porque o pessoal tinha debandado, tinha começado a voltar tudo para São Paulo. E estava todo mundo trabalhando, fazendo trabalhos legais, reconhecidos. Eu tenho um grande orgulho que os meus meninos ainda antes, eles iam participar de debates convidados por outras iniciativas sociais, ação educativa, outras coisas e eles chegavam lá e eles ficavam chocados que tinham professores da USP, vamos dizer, um interrompendo o outro, a fala do outro. A gente tinha método de trabalho, método dialógico, a gente ouvia uma pessoa até o fim antes de responder, se certificava de ter entendido o que ela disse, antes de responder, tudo isso métodos que me inspirei na escolástica medieval, uma pessoa queria refutar a ideia do outro, primeiro precisava reproduzir a ideia do outro para ver se tinha entendido certo, para depois refutar. Eu trabalhava com meus meninos da favela com esse nível de sofisticação intelectual e pessoal da Trópis ficou conhecido no meio do terceiro setor de São Paulo como grandes debatedores, participadores de reuniões, eles vinham contando os vexames que os professores da USP faziam cortando as palavras um dos outros, isso é um dos grandes orgulhos da minha vida.
P/1 – E tem algum método específico que você treinava essa escuta dos meninos?
R – Bom, eu fui desenvolvendo na prática, segundo a receita de Paulo Freire, da prática para reflexão, da reflexão de volta para prática. A partir de 98, eu comecei a escrever sobre isso, escrevi muitos artigos, depois eu fiquei fazendo curso de Pedagogia na USP durante esses anos, porque eu não tinha me graduado oficialmente, tinha fugido da faculdade e ido para Europa. Aí eu me graduei na USP, fiz uma especialização lato sensu também de Pedagogia. Durantes esses anos, eu escrevia trabalhos para a faculdade, aplicando o ponto de vista do que eu estava desenvolvendo, que eu dizia que a educação não convive, educação não convive, educação pelo o convívio, educação para o convívio humano, porque o convívio é a base da sociedade, se a gente não aprender a conviver antes de tudo, todo o resto não vai ter solidez. Primeiro se aprende a conviver, em segundo lugar se constrói em cima, isso eu chamei inicialmente de educação convivial, depois chamei também de pedagogia do convívio e a filosofia do convívio. Eu tenho 1600 páginas, pelo menos, publicadas na internet, não páginas de internet, páginas de texto, de livros, publicadas na internet, a maior parte em pedagogia e filosofia do convívio. Eu acabo de ver que eu estou com 15% de bateria aqui, nós vamos ter que...
P/1 – Você não tem o carregador aí?
R – Ah, eu tenho carregador sim, um momento, você dá uma pausa para eu colocar o carregador?
P/1 – Não, eu quero colocar você exatamente onde você parou. Você estava falando que você tem mais de 1000 páginas escritas sobre a pedagogia do convívio, e a gente estava fazendo a analogia, quer dizer, a partir da pedagogia do convívio é que a gente tem essa essência da escuta?
R – Sim. Vamos dizer, era um processo pedagógico desenvolvido intuitivamente que em determinado momento ganhou esse nome, eu elaborei a teoria a partir da prática que já estava fazendo. Você não retomou a gravação ainda?
P/1 – Retomei.
R – Então, de certa forma ficou uma postura que você pode... Vou tomar um gole de água aqui. Acho que eu não peguei bem sua última pergunta.
P/1 – Não, continua falando da pedagogia do convívio, que você acabou se aprofundando nisso.
R – Sim. É uma concepção filosófica, filosofia do convívio com realismo, é um conhecimento muito restrito, porque eu não tenho muita paciência para trabalhar pelos parâmetros da Academia. Me graduei na USP e tudo mais, mas eu acho que muito do trabalho que é feito lá para cumprir as normas de como se escreve uma tese, um doutorado. Se eu fosse fazer um mestrado e doutorado ia gastar tanta energia em colocar as coisas no formato, que é o que menos ia importar para eles era o conteúdo do que eu estava dizendo, importa o formato. Então foi muito enriquecedor mesmo o processo de passar pela USP, um pouco da disciplina da Academia, menos fantasioso, mais metódico, justamente, mas sem perder... É preciso metodologizar-se, mas sem perder a inspiração jamais. A coisa de você olhar para uma situação, tentar entender o que está acontecendo ali, vamos entender o que está acontecendo ali, ver o que não está bom ali e em que ponto se pode intervir para que fique melhor, mas assim, não nas aparências, indo em um pensamento até estruturas que levam aquilo não estar bom. Não é a casa estar com a fachada toda descascada, rachada e vou passar uma mão de cal em cima dela. Eu estou olhando ali para minha janela, tem um morro de favela de Vitória à minha vista aqui. Então, é isso, é você olhar para qualquer coisa e dizer: “O que essa coisa me diz?”. E quando você começa a perceber o que está implícito na história daquela coisa de como aquele barraco surgiu ali, e porque aquele conseguiu ser pintado e outro não. Qual é a diferença da pessoa que conseguiu pintar o seu barraco e a que não conseguiu? Qualquer fenômeno que você olha, que você se detenha nele com atenção, com humildade perante a um fenômeno, não querendo colar teorias em cima, mas deixando o fenômeno falar o que está implícito nele. Cada casa, cada árvore é uma história escrita, gravada, a gente precisa saber ler, decodificar. Então o meu pensamento é uma fenomenologia, “Ah, fenomenologia de Husserl. De não sei quem”. Não, não é, é fenomenologia em estado puro. Eu passei a observar os fenômenos e descobri que a gente pode ler os fenômenos, então é uma fenomenologia. Agora eu estou ficando velho e não sei em que medida a minha filosofia e a filosofia da educação vai chegar a ser reconhecida durante meu tempo de vida. Mas eu me incomodo muito que ela seja preservada, porque eu sei o valor dela e tem um clubinho de pessoas espalhadas pelo Brasil e até pelo mundo que sabe do valor dela. Mas eu não tenho paciência para puxar saco, me vender para os canais usuais de divulgação. Eu não ganho um tostão de direitos autorais em cima de tudo que está escrito e disponibilizado na net, né? No site tropis.org. Eu gostaria de publicar em forma de livro, sim, mas aí você manda para uma editora, o editor acha que ele tem que intervir no seu trabalho e pelo bico, ele não tem a menor ideia do porquê você escreveu naquele formato, mas ele acha que ele sabe porque ele é o editor. Aí você consegue publicar um por cento da sua obra no formato certinho e eles vão promover ou então você fazer uma auto edição, pagar o preço da sua edição. Isso eu não faço mais, isso é humilhante. Você imprime um livro de poesia, ninguém paga por poesia.
P/1 – Deixa só eu interromper um pouquinho? Seu som está fazendo um pouco de ruído, tem alguma coisa diferente aí? [pausa técnica]. A gente estava falando de todo esse trabalho que você acabou desenvolvendo, mas aí você continuava na Associação, como é que evoluiu esse trabalho da Associação, depois você passou para outra?
R – Bom, o ruído continua, né? Bom, eu vou falar assim mesmo. Houve um período de transição, depois que, vamos dizer, me puxaram o tapete em Santos, em Praia Grande, eu fiquei um ano ainda morando em Santos, vendo se conseguia engrenar, mobilizar um grupo para trabalhar lá, assim, pela minha vida, pela minha saúde, eu não queria voltar para São Paulo e não consegui, acabei voltando para São Paulo em 2007. E fiquei um tempo vivendo só de traduções, engraçado, né? O pessoal antroposofico, a gente já tinha um afastamento ideológico imenso, mas eu era reconhecido como um dos melhores tradutores dos textos deles, tinha um conhecimento bom do conteúdo deles para poder traduzir. Eu traduzi bastante coisa do Rudolf Steiner, traduzi seis livros inteiros dele, um especialmente difícil, tinha até alemão medieval no meio. Traduzi, fiz revisões e traduções alheias, eu vivi durante um tempo, não era uma vida folgada, mas deu para levar. Mas isso aí não dá para continuar assim, né? Eu sou um pedagogo graduado, tenho a minha própria filosofia na educação disponível, escrita, publicada. Mas não negociei com as estruturas de um modo a poder me sustentar, é a herança desse tempo de trabalho com o movimento antroposofico que ainda me sustenta. Mas eu estou traduzindo textos cujo conteúdo eu não acredito. Não tudo, algumas coisas, sim, acredito, mas outras eu digo: “Discordo frontalmente do que esse texto diz”. No entanto, só me pagam para dizer as palavras de outros, ninguém me paga para dizer minhas próprias palavras. E a situação foi ficando insustentável nesse sentido. Aí eu acabei, por uma outra razão, acabei me envolvendo com uma pessoa aqui do Espirito Santo, e um determinado momento eu vi que havia um concurso público aqui para um cargo chamado especialista em desenvolvimento humano e social do Governo do Estado. Eu falei: “Bom, especialista em desenvolvimento humano social, eu acho que é isso que eu sou, eu vou fazer esse concurso”. Aí passei nesse concurso, acabei assumindo um cargo como servidor público estadual do Espírito Santo. O conteúdo da palavra especialista em desenvolvimento humano e social até hoje quase não foi aproveitado, o serviço público é uma estrutura burocrática, tradicional, que não sabe aproveitar bem o potencial das pessoas que estão nela. Designa tarefas sem ver o que a pessoa realmente poderia fazer de melhor. De qualquer modo, eu trabalhei cinco anos na subsecretaria de Direitos Humanos, que depois se tornou Secretaria de Direitos Humanos do Espírito Santo. Fiz um trabalho bacana lá dentro. Ajudei na sistematização do programa estadual de Direitos Humanos do Espírito Santo, foi um trabalho de mais de ano, dois anos trabalhando nisso. Eu criei um método de sistematização para esse material e depois por certas razões acabei saindo da Secretaria dos Direitos Humanos e indo para a Secretaria de Cultura, onde eu sou o colaborador, vamos dizer assim, na biblioteca pública Estadual do Espírito Santo. Aí, especialmente, porque, me interessou porque existem projetos de biblioteca móvel, tem bibliotecas que fazem, cada um, um circuito de oito bairros diferentes pela grande Vitória, pela periferia da grande Vitória, atendendo a população periférica como biblioteca. Eu não tenho a autonomia de ação que eu tinha, mas dá para manter minha vida e voltando a trabalhar com a população de periferia, eu fiquei muito contente. Agora, esse trabalho está suspenso por conta da pandemia, minha saúde eu tenho que ver se vai permitir voltar para essa mesma posição que eu estava fazendo, espero que sim. Mas em dois anos, talvez eu me aposente, e aí com a aposentadoria eu posso me dedicar de novo aos meus trabalhos do coração, se meu coração me deixar chegar até lá.
P/1 – Deixa eu só fazer uma pausazinha [pausa técnica]. Aí você estava falando que você consegue se aposentar, eu queria voltar um pouco antes pode ser?
R – Sim, claro, eu dei um panorama.
P/1 – É, vamos voltar um pouco.
R – Eu dei um panorama, mas podemos voltar e detalhar as coisas agora.
P/1 – Quando você estava aqui em São Paulo ainda, antes de voltar para o Espírito Santo, que outros trabalhos você desenvolveu aqui na periferia de São Paulo?
R – Olha, eu continuei morando em uma casa, de certa forma, ela já não foi alugada por mim dessa vez, foi alugada pela minha nora, meu filho tem uma filha com uma menina que cantava na banda dele, a Paula da Paz, eles não estão juntos mais, mas é tudo família. Esses remanescentes dos tempos auges da Trópis em São Paulo, a gente se sente família. Então quando voltei para o litoral, era uma casa com espaço suficiente, fui ver eu e meu companheiro capixaba também, a gente já se conhecia nessa época, fomos viver juntos nessa mesma casa, onde ainda tinha uma galera gigante, onde a gente reinstalou a biblioteca da Trópis, que a gente foi ganhando doações aqui, dali. A gente tinha um selecionado de quatro mil volumes naquela época, e a gente fez algumas atividades nessa garagem, que eu conduzi alguns encontros, algumas reuniões, alguns debates. Mas já foi uma coisa que não tinha tanto embalo mais, os jovens tinham eles mesmo as suas iniciativas, a Paula dava aula de dança, outras coisas, com independência, não eram mais em nome da Trópis. Então quando eu acabei passando nesse concurso e decidindo vir para o Espírito Santo, chegou o momento que eu disse: “Ninguém vai cuidar dessa biblioteca mais”, então eu resgatei uns 500 volumes daqueles e trouxe comigo para o Espirito Santo, o resto foi doado, um pouco foi feito um bazar, levantamos alguns fundos vendendo livros na nossa biblioteca. E os que não foram vendidos, foram repassados para outra ONG, Associação Julita, tinha um amigo que tinha uma biblioteca grande, acolheu os outros livros da nossa biblioteca. Então, atualmente, existe uma comunidade de antigos tropeiros, brincando assim, de Trópis, em São Paulo, que eles se sentem família, mas não existe mais uma atividade em nome de Trópis, existe uma porção de gente que reconhece a inspiração do Trópis em seus trabalhos e estão fazendo aqui e ali. E existe o repositório das nossas ideias no nosso site, eu criei um grupo de amigos que se espalharam pelo Brasil para garantir que esse site tenha continuidade depois que eu morrer, porque eu que pago a hospedagem, a licença de domínio, todos os anos ainda.
P/1 – Qual é o site?
R – É tropis.org, só isso é suficiente para localizar, mas se quiser colocar www antes pode, mas não é essencial. E tem muitas páginas da história, né? Tem quatro páginas que chamam foto-história da Trópis lá, estava aí até 2008 só. Depois disso, a única que foi atualizada é a tropis.org/biblioteca onde eu público as minhas coisas, tem muito material novo lá, muita coisa bacana.
P/1 – Aí quando você volta para o Espírito Santo, quando você vai para aí, com toda sua experiência com o desenvolvimento humano na Secretaria de Direitos Humanos, agora na Secretaria de Cultura, você estava falando do seu trabalho na perspectiva do campo cultural.
R – Sim, porque, na verdade, quando eu saí dos Direitos Humanos, eu tinha a possibilidade de ir para Assistência Social também, eu falei: “Mas estou com saudade de fazer o trabalho social através da cultura, vamos ver se consigo alguma coisa na Secretaria de Cultura”. E, de fato, esse trabalho ele não dá uma liberdade tão grande, mas trabalhando nas periferias eu sinto que eu estou com meu público no qual eu sou especializado, eu conheço a linguagem, eu acesso o pessoal pela sua própria linguagem. Mas as formalidades do serviço público limitam bastante, não é a mesma coisa de estar fazendo um trabalho em uma associação, onde você decide, você reúne o teu grupo e faz uma assembleia e decide, toma todas decisões ali naquela assembleia e assina embaixo, não depende de autorização de secretário, etc, tal. Então o meu trabalho é muito mais (criado?) em horas vagas ou trabalhando nos meus materiais escritos e publicando uma coisa outra, mas sobra pouca energia para isso também, a idade também vai retirando energia da gente.
P/1 – Olhando para trás na sua trajetória de vida, o que você mudaria? Ou você se arrepende de alguma coisa? Ou mudaria alguma coisa? Tem a faculdade de Psicologia que você falou lá atrás.
R – Eu me arrependo de não ter feito a faculdade de Psicologia, eu acho que como psicólogo eu teria no mínimo ganho melhor para sustentar as minhas extravagâncias. Do que mais eu me arrependo? Não sei, a gente toma decisões que depois não levam pelos caminhos esperados, mas isso é parte da vida humana, não dá para dizer que eu me arrependo das decisões que eu tomei no decorrer do processo da Trópis. Eu sempre digo assim, eu sempre fui verdadeiro demais com os nossos objetivos, sincero demais. Por isso, era difícil conseguir financiamento, porque quem tem dinheiro tem, geralmente, porque segue uma ideologia de concentração de dinheiro. E eu trabalho em uma ideologia de distribuição de conhecimento e de renda e tudo mais. Então quando o pessoal percebia que eu não estava ali para ensinar o jovem periférico a ser um escravo melhor e sim para ganhar autonomia sobre a sua própria vida. Não, é muito raro alguém querer investir nisso, mas vão alegar outras razões, vão alegar razões formais, não vão dizer na cara essa coisa tão feia, né? Mas eu não me arrependo de ter sido verdadeiro, ter sido sincero quanto aos nossos objetivos. Eu não sei se eu fosse hipócrita e dissesse: “Não, estamos aqui para esses meninos se tornarem melhores servidores para a sua empresa”, se eu conseguiria ter feito o que eu fiz, não, eles diriam que iam monitorar. Eles iriam ver que o conhecimento humanístico, que os meus alunos estavam ganhando, a capacidade de ler o mundo que eles estavam ganhando não era de interesse deles. Não teria funcionado também. E do jeito que foi até chegou a funcionar, então disso eu não me arrependo, não.
P/1 – E hoje, quais são seus maiores sonhos? Seu sonho?
R – São meu o quê?
P/1 – Sonhos, os sonhos.
R – Sonhos? O meu sonho mesmo é resistir essa temporada tão difícil e chegar na aposentadoria, conseguir uma aposentadoria que me permita fazer as minhas atividades com liberdade de novo. Voltar a me dedicar mais aos meus escritos, quem sabe passar a receber um grupinho de estudantes na minha casa? (risos). Isso é o sonho que eu posso ter do ponto que eu estou agora. Se esse sonho se concretizar, ele mesmo vai revelar os seus próximos passos depois. Sou modesto na minha ambição e as condições mostram a coisa e depois o processo vai se revelar.
P/1 – O que você achou, como é que você vê deixar o registro da sua história, quer dizer, de pedaços, de fragmentos dessa história no Museu da Pessoa?
R – O que eu achei? Desculpa seu som está chegando muito...
P/1 – Está ruim, né? O que você achou de deixar, o que é para você, como é que foi deixar um registro de fragmentos da sua história no Museu da Pessoa?
R – Ah, foi ótimo. E eu explico aqui porque eu pedi para saltar da minha infância para a minha idade adulta rapidamente, porque a minha infância foi uma infância não economicamente sofrida, mas foi sofrida psicologicamente, uma incompreensão, e me deter naquele período de fraqueza, de dor, de angústia, de expectativa por alguma coisa diferente que parecia que nunca chegar é penoso até hoje falar daquilo. Mas eu acho que com todas as limitações econômicas que eu vivo, a minha vida foi uma vida de superação, economicamente eu decaí, mas como pessoa, psicologicamente eu superei as barreiras que me colocaram, que a vida inicial me colocou ajudando outros a superarem as suas. A questão do bullying da sexualidade, quando chegava um jovem e, de repente, percebia que ele tinha condições de se abrir comigo que estava sofrendo por isso, eu sabia falar a linguagem dele, eu sabia dizer: “Olha, eu passei exatamente pelo o que você está passando e eu superei, em partes venho ainda superando de tal e tal modo, que tal você experimentar isso?”. Então, desde que eu engrenei nesse trabalho que foi a Trópis, e os demais que se fizeram, eu acho que eu construí a minha realização, a minha superação com isso, sim. Eu venci, com uma herança de infância que tinha tudo para ter me deixado aleijado a vida toda e não me deixou. Então, a hora que eu recebi o convite de gravar um depoimento para o Museu da Pessoa, com certeza era isso que eu queria mostrar e não a minha dor da infância, mas a superação da dor. Buda falou assim: “Eu vos mostrei o sofrimento, mas também vos mostrei a superação do sofrimento”. Bom, eu não sou Buda, não é isso tudo, mas me lembrou essa frase agora. Eu acho que é isso, sei que é possível com tudo correndo na contra mão, se você bota fé em uma coisa para o bem, você insiste nela, você paga um preço, mas você realiza aquilo que você sonhou. Você vê um jovem que poderia ter sofrido tanto quanto eu sofri e mais ainda por causa da condição econômica ter superado, ter dado a volta por cima, ter chegado em boas posições, boas realizações, ser reconhecido, esse meu aluno, que trabalhou no MinC, Gil Marçal, uma pessoa bem conhecida de São Paulo hoje em dia, culturais, no movimento de cultura periférica, ele a partir da Secretaria Municipal de Cultura, ele conseguiu dar um grande apoio ao movimento de cultura periférica de São Paulo. Realizamos, sim, existe uma diferença na cidade de São Paulo hoje, que nós ajudamos a fazer, não sei em que medida desses processos a gente colaborou, mas a gente teve uma contribuição significativa, sim.
P/1 – Você gostaria de deixar alguma coisa registrada que a gente não tenha falado? Quer dizer, não falou várias, mas que você acha importante antes da gente concluir a entrevista?
R – Olha, da minha parte eu acho que eu concluí com essas últimas palavras, eu não sinto necessidade de dizer mais alguma coisa. Tem uma outra frase, uma frase bíblica até, Paulo fala assim, ou é João: “É preciso que ele cresça e eu diminua”. No caso, ele falava de Cristo, eu não falo de Cristo, a não ser na construção de símbolo de uma causa, é preciso que eu como pessoa diminua e que essa tarefa, essa missão de tornar a vida mais risível, mais decente para as pessoas, principalmente, para aquelas que tem menos perspectiva, aquelas que tinham grande potencial, mas tinham menos perspectiva, ter feito um pouco disso é a coisa mais importante. Mais importante do que de onde eu vim, do meu nome, quem era meu avô, tudo isso são coisas interessantes, mas a obra da vida da gente é mais importante que a vida da gente. É isso aí.
P/1 – Queria agradecer em nome do Museu da Pessoa, é uma honra para nós você ter compartilhado conosco sua história, de uma generosidade muito grande e tenho certeza que eu aprendi, para mim foi uma pós-graduação e acho que muitas pessoas vão poder aprender com a sua história, com a sua obra.
R – Ô, que maravilha.
P/1 – Gratidão.
R – Gratidão da minha parte também, são dois acolhimentos mútuos aqui, duas gratidões fazendo um sol muito bonito brilhar entre nós, apesar de que agora começou a garoar aqui em Vitória, mas tem um sol lindo brilhando entre nós.
P/1 – Eu vou parar aqui a gravação, tá? Espero te encontrar pessoalmente.
R – Eu espero, sim. Eu espero sobreviver essa fase difícil para a gente se encontrar pessoalmente, sim, e visitar o Museu da Pessoa pessoalmente também.
P/1 – Vai ser um prazer.
R – Igualmente, Rosana, enorme prazer.
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