PSCH_HV760_OLIVIO_JEKUPE
ENTREVISTA DE OLIVIO JEKUPE
ENTREVISTADO POR JONAS SAMAÚMA e WERA KUNUMI
SÃO PAULO, 5 DE MAIO DE 2019
PROJETO HISTÓRIAS INDÍGENAS
ENTREVISTA PSCH_HV760
PROGRAMA CONTE SUA HISTÓRIA
TRANSCRITO POR SELMA PAIVA
P1 – Bem-vindo, Olívio! Eu queria que primeiro você co...Continuar leitura
PSCH_HV760_OLIVIO_JEKUPE
ENTREVISTA DE OLIVIO JEKUPE
ENTREVISTADO POR JONAS SAMAÚMA e WERA KUNUMI
SÃO PAULO, 5 DE MAIO DE 2019
PROJETO HISTÓRIAS INDÍGENAS
ENTREVISTA PSCH_HV760
PROGRAMA CONTE SUA HISTÓRIA
TRANSCRITO POR SELMA PAIVA
P1 – Bem-vindo, Olívio! Eu queria que primeiro você começasse dizendo o seu nome e o lugar que você nasceu.
R – Então, eu me chamo Olívio Jekupé, sou natural do Paraná e atualmente eu moro aqui na aldeia Krukutu, já faz vários anos, sou casado, minha mulher também é guarani e tenho cinco filhos e a gente vive nessa aldeia chamada Krukutu, que fica aqui na região de São Paulo, região de Parelheiros e sou escritor, gosto de falar um pouco sobre essa questão, que eu acho muito importante a gente falar sobre a literatura e também fui liderança por vários anos na aldeia e hoje eu dei uma parada, porque a gente sai muito, pra dar palestra, então não dá pra gente ficar na liderança. Então, já tem outros jovens assumindo, mas a gente está aí na luta, né? Dando a nossa força, contribuindo através da escrita, através das palestras, pra conscientizar a sociedade, que o povo precisa saber um pouco sobre a gente, porque se não souberem, sofreremos grande golpe, que o Brasil foi invadido e de repente os brancos vão pensar que nós é que invadimos o Brasil. Por isso eu gosto de falar muito nas palestras.
P/1 – Interessante! Eu queria, pra começar, que você contasse uma história, mesmo.
R- Eu gosto, como sou escritor, de contar uma história, que tem várias histórias, são tantas histórias que 500 anos é pouco. E eu vou contar a história de um livro que eu publiquei e nunca consegui vender direito, porque no Brasil é difícil você publicar um livro crítico e vender, porque as secretarias do estado, municipal, o MEC, não têm muito interesse nessas áreas. Então eles gostam de ver o índio publicar uma história mitológica, ficção, alguma coisa assim, né? E eu, quando comecei a escrever as minhas histórias, eu comecei a escrever em 1984, eu era garoto, naquela época não ouvia falar de escritores indígenas. Ouvia falar muito de antropólogos publicando livro em vários cantos do Brasil. Sempre publicando. E eu não via índio. Daí, em 1984, eu resolvi escrever e daí, de repente, eu comecei a pensar e falei: “Caramba, eu sou escritor, porque eu escrevo poesia, conto, romance”. Então comecei a pensar. Eu não tinha experiência. E daí eu coloquei na minha cabeça que eu era escritor. E daí comecei a escrever coisas pra tentar mostrar o problema social indígena. E daí eu fui perceber, dez anos depois, que não adiantava ficar escrevendo essas coisas, que as editoras não vão publicar. Já não publicava livros de autores indígenas, não tinha, principalmente você escrever uma coisa crítica. Eu comecei a perceber isso dez anos depois.
P/1 – Qual que era a história crítica?
R – A história que eu tinha escrito era a história de
ngelo Kretã, que era um líder, quando eu era garoto, em 1980 eu era garotão ainda, mais novo e a gente ouviu falar na imprensa, naquela época, eu morava no Paraná e no Paraná havia um grande líder kaingang, que morava na região de Mangueirinha e esse líder ficou conhecido no Brasil todo, porque ele se tornou um grande líder, um grande revolucionário da história indígena e ele se tornou o primeiro vereador do Brasil. E daí o povo ficou impressionado: um índio vereador? Então, ele é antes de Juruna. Então, ele ficou conhecido no Brasil, porque um índio vereador, lutando pela causa e de repente ele ficou muito conhecido, por causa das lutas indígenas, contra os grandes fazendeiros. E daí, de repente, prepararam uma cilada contra ele na época. Então, a gente era pequeno, a gente ouviu comentário: “Morreu
ngelo Kretã, foi assassinado, foi morto em uma emboscada”. E eu era garoto, ficava escutando aquilo e eu ficava assim: “Caramba, a gente tem que escrever uma história, pra gente mostrar pra essa cidade que nós temos líderes que são assassinados no Brasil e os livros de História não mostram essas coisas, só mostram dia 19 de abril, Dia do Índio, não sei o que, enfeitar as crianças”. Eu achava que nós, indígenas, poderíamos escrever essas histórias críticas. E eu era novo, daí eu resolvi escrever essa história sobre ele, que é a história do
ngelo Kretã. Até o nome do livro, quando eu consegui publicar pela primeira vez, foi aqui em São Paulo, na Editora Peirópolis, chamado Xerekó Arandu, a Morte de Kretã, mas eu tinha escrito o texto e não conseguia publicar, porque era difícil. Eu consegui publicar por acaso. Foi uma coincidência de ter publicado esse livro, porque a Secretaria de Educação resolveu comprar esse livro, daí foi obrigada a entrar numa editora, a editora comprar esse livro, pra chegar na Secretaria de Educação Municipal de São Paulo. Mas era uma história linda, pra tentar mostrar essa história verdadeira que aconteceu com um líder que foi assassinado. Então eu peguei essa história e transformei, na realidade, uma história que quando eu morava em Curitiba, no final dos anos 80, com uma índia chamada Belarmina e, por coincidência, ela morreu faz três meses agora, ela morreu esse ano e eu morava com essa índia lá e eu estava estudando em Curitiba e eu morava com ela e umas filhas dela e daí, eu contando um dia sobre
ngelo Kretã, porque essa Belarmina era cunhada do falecido
ngelo Kretã. Daí ela falou: “Olívio, como você gosta de contar história, eu vou contar uma história pra você, que é a história do
ngelo Kretã” e ela começou a contar a história do
ngelo Kretã, como foi toda essa coisa, acontecimento, dele ter ido pra uma aldeia e depois voltar e os carros o pegarem e tudo como foi planejado, a cilada que fizeram contra ele e daí ela conta a história sobre a morte do Kretã. E daí contou quando foi para o hospital, o velório, tudo ela contou e daí eu resolvi transformar em uma literatura, pra que essa literatura chegasse nas escolas. Por quê? Porque o Brasil tem o costume de falar sobre os seus líderes, porque todo mundo tem seus mitos, você entendeu? Só que as pessoas não contam, porque não é bom, a sociedade não quer que a sociedade saiba. Então, as pessoas matam índios e depois matam a história dele também. Então, isso é uma coisa triste que, desde pequeno, eu comecei a pensar nessas coisas, que a gente tem nossos mitos também, nossos líderes, que a gente tem que continuar mostrando a história. Ele foi assassinado, mas temos que mostrar pra sociedade, pra que ele não seja morto duas vezes, porque mesmo depois de enterrado, mata-se a história dele. Então, por isso eu resolvi e falei: “Vou escrever a história do
ngelo Kretã”. Por quê? Porque você vem na cidade e você vê uma pessoa com a camisa do Che Guevara. Por quê? Porque ele é um líder respeitado mundialmente. Você vai e vê uma mulher, de repente, com a camisa... vamos dar exemplo de Nossa Senhora. É um mito pra ela. Outra com a camisa de Jesus Cristo. De repente você vê outra pessoa, com a camisa de Martin Luther King, dos Estados Unidos. Então, às vezes é um negro carregando essa camisa, porque é um símbolo pra ele. Depois você vê uma pessoa humilde, que tem pessoas humildes que seguem essa coisa e falam: “Eu estou com uma camisa do Mahatma Gandhi”. Então, essas pessoas estão vivas, porque a sociedade faz com que ela continue viva. Porque senão a história morre, porque já matou o homem e agora vão matar a história também. E assim que aconteceu com os líderes indígenas. Os índios são assassinados e a história mata também, pra que ele não seja conhecido. Então, eu pensando nisso, falei: “Vou escrever um livro sobre
ngelo Kretã, o maior líder dos anos 80, você entendeu? Um líder que, na época, a gente era pequenininho e a gente escutava falar dele.
P/1 – Me conta a história dele, então, que eu não conheço.
R – Ele foi o primeiro vereador indígena do Brasil e ele era cacique de Mangueirinha e daí ele começou a lutar em defesa da aldeia dos índios kaingang de Mangueirinha e dos guaranis, por quê? Porque a reserva Mangueirinha era uma reserva imensa, a maior reserva de araucária do mundo! Só que os fazendeiros roubavam madeira todo dia, porque a aldeia, como é grande, então a comunidade é pequena, mas o território é indígena, então o fazendeiro vai, passa a noite toda roubando madeira araucária e ninguém fica sabendo, mas os índios estão sabendo, só que os índios resolvem, o
ngelo Kretã, resolve denunciar na época, para a Justiça, para a Funai, para o Ministério Público, que tem fazendeiro roubando madeira e então os caminhões passam à noite pela aldeia, porque a aldeia é grande, então às vezes ninguém está sabendo e daí ele denunciou, só que o
ngelo Kretã começou a receber ameaça na época e, ao receber ameaça, ele ficou preocupado, aí ele avisou o Ministério Público e, na época, a Funai também, juntamente com o Ministério Público, mandaram polícia entrar na aldeia pra poder proteger o
ngelo Kretã, que ele estava sendo ameaçado de morte, só que aí o
ngelo Kretã, naquela época, tinha um fusquinha, que era tecnologia da época. Naquela época, anos 80, fusquinha era um carrão e o
ngelo Kretã tinha esse carrinho, esse fusquinha e ele ficava na aldeia dele, mas ele ia pra aldeia vizinha, que era dos guaranis, pra poder ver se estava precisando de alguma coisa, não sei o que, as necessidades, mas só que daí tinha uns policiais o acompanhando, junto, no carro. E, na volta, quando ele vai atravessar de uma aldeia pra outra, ele vai e entra no asfalto, que é a BR que passa pelo meio da aldeia, a aldeia é grande, você entra, passa pela BR e daí você vem embora pra outra aldeia. No que ele está vindo, vem vindo de encontro um caminhão, porque a estrada é junta, então estava o carro indo pra cá e o caminhão vindo pra cá, então está normal. Só que daí, o que acontece? O
ngelo Kretã está indo embora pra aldeia e, de repente, em seguida, esse caminhão, que era de madeireira, está vindo, na mesma direção, só que quando chega perto do carro do
ngelo, o que ele faz? O caminhão vira e passa por cima do fusca, pra matar o
ngelo Kretã. E daí, quando sofreu aquela pancada, assim, forte, gente de longe escutou o barulho, paaaa, e daí
ngelo Kretã caiu ali semi morto, os policias conseguiram sobreviver e daí a ambulância levou o
ngelo Kretã pra cidade mais próxima, se eu não me engano, Pato Branco, ainda levaram o corpo dele pra Pato Branco, mas ele ainda estava vivo, o caminhão passou por cima, o esmagou todo, mas mesmo assim ele continuou vivo, levaram pro hospital e ele aguentou mais alguns dias na cidade de Pato Branco, até que morreu no dia 29 de janeiro de 1980. Daí chegou a notícia na televisão avisando o Brasil todo: “Morreu o cacique
ngelo Kretã, o líder dos kaingang”. Então, é uma história triste que eu escrevi, pra mostrar pra sociedade, que a gente precisa mostrar os nossos líderes que foram assassinados, os problemas sociais que acontecem, que as pessoas pensam que o índio vive no paraíso, que o índio está num hotel cinco estrelas. Não. A gente gosta de viver na floresta, no meio da mata, mas o nosso maior paraíso é ter sossego, viver tranquilo, sem problema com fazendeiro. Então, muitas aldeias no Brasil sofrem. Por isso que a gente tem que registrar essas coisas através de uma literatura. Então, foi assim que eu comecei a escrever minhas histórias e daí fui passando pra literatura infanto-juvenil, porque eu vi que as editoras têm esse medo de publicar um texto crítico. Eu estou com o
ngelo Kretã, o livro, digitado até hoje, guardado no meu pen drive. Quem sabe um dia uma editora corajosa chegar e falar: “Vamos publicar”.
P/1 – Mas a Peirópolis não publicou?
R – A própria Peirópolis não reeditou mais. Ela, só, apenas, fez a primeira edição, porque a prefeitura, a Secretaria de Educação, na época, eu vou dar exemplo, vou falar a verdade: a Marta Suplicy ganhou a eleição e daí a gente teve muito acesso à Secretaria de Educação. E daí, a Secretaria de Educação, sabendo que eu era escritor, falou: “Olha, vamos comprar o livro do Olívio Jekupé, pra divulgar” e daí eu mostrei esse livro do
ngelo Kretã, que eu o tinha produção independente. Eu tinha o Iarandu, o Cão Falante e tinha Xerekó Arandu, a Morte de Kretã, mas era produção independente, que eu cheguei e publiquei e daí a Secretaria falou que ia comprar e então, esse livro independente passou pra uma editora. Então, passou pra Peirópolis. A Peirópolis editou a primeira edição pra distribuir para as escolas. Só que daí, depois, ela não reeditou mais, porque eles acharam muito pesado o texto. Então, às vezes, as pessoas têm medo de falar, mas tem que mostrar, porque nós temos muitos problemas, que às vezes as pessoas não sabem. Então, fala: “Vamos escrever uma história sobre o macaco, a história do peixe, não sei do que”. Não. Isso aí é importante. Mas também não pode deixar de falar dos problemas.
P/1 – Muito interessante isso que você falou, de deixar a história viva. Então, pra deixar, também, a sua história viva aqui, para todas as gerações, eu queria começar do começo. Então, pra você contar um pouco o que você sabe da história dos seus avós e dos seus pais .
R – Então, eu tenho uma vó, o nome dela era Lázara, ela é do povo guarani e daí ela já morreu, acho que morreu agora faz uns cinco anos, mais ou menos, e ela era do povo guarani, da região de São Paulo e tinha uma cidade chamada Piraju, aqui no interior de São Paulo, que era no rio Paranapanema. Então, nos anos de 1900, haviam muitas aldeias na região chamada rio Paranapanema, porque antigamente, o que acontece? Você não tinha a Sabesp pra te dar água. Não tinha um mercado pra te dar água. Então, o que acontece? Os povos indígenas se localizavam sempre próximo dos rios, porque ali você tem que ter água. Então, você bebia água do rio. Não é igual hoje. Hoje ninguém vai beber água do rio Tietê. Você vai beber da Sabesp. E, naquela época, haviam várias aldeias pelo rio Paranapanema, entendeu? E nos anos de 1900 começou a haver um problema muito sério, começou a haver a dominação, em São Paulo, dessas regiões, onde foram criadas muitas cidades próximas a esses rios e minha vó, naquela época, era pequenininha, foi obrigada a sair daquela época todos os irmãos, saíram fugidos. Porque haviam as aldeias, tanto a aldeia kaingang que ela morava e outras aldeias também, de outras etnias até, né? E daí, o que acontece? Veio a história da construção das linhas de trem e, nessa época, houve um massacre muito grande, porque os índios começam a fugir, porque começa a haver um problema muito sério. E muitos índios são obrigados a sair das aldeias e muitos vão começar a morar dentro da cidade próxima, onde vão trabalhar de empregado também. E, naquela época, minha vó tinha medo, que ela nunca gostou de contar a história pra nós, por que ela tinha medo, porque ela era medrosa de contar a história, porque a gente falava assim: “Vó, conta uma história pra nós”. Isso foi minha mãe, né? Ela falava que ela não gostava de contar história, porque houve um massacre muito grande nos anos 1900 e essa coisa foi assustadora. Então, muitos indígenas saem dos seus territórios e começam a ir pra sítios na época, fazendas, cidadezinhas pequenas e vão andando. E daí começa a haver essas coisas de miscigenação, muito fortes. E minha avó, na época, era pequenininha, se perdeu com todos os irmãos, cada um pra um canto e ela tinha acho que 12 anos e daí, na época, o povo tinha costume de ver as índias andando, na época e o que aconteceu? A pegou e casou com ela. E daí ficou essa história da minha vó, que dava dó, que ela contava essas histórias pra nós, mas contava com medo, porque ela não gostava. Daí, com o passar do tempo, que ela foi crescendo e começou a ter os filhos dela também, daí foi passando uma coisa engraçada, que daí ela começou a reencontrar os irmãos que tinham se perdido e daí foi indo, foi se encontrando, pa, pa e daí tudo bem, só que daí, o que acontece? Eles foram crescidos nos interiores e daí, o que acontece? Foi uma coisa triste, porque daí as pessoas começam a perder o contato com o povo, né? Então ela falava sempre do tio... morreram todos, já, agora, porque eram todos velhos, né? Foram ficando velhos. Morreu o tio Nicolau, morreu o tio Otávio, que era irmão dela e morreu minha vó. E depois tinham outros também, que eu não lembro o nome. E esse tio Otávio, meu, era impressionante, porque daí ele casou com uma branca também, porque daí vai casando com branca, né? Ele casou com uma branca e daí ele falava assim... uma vez encontrei com ele e ele falou assim: “Pois é, eu sei muita história. Eu conheci o Marechal Rondon” e ele começou a contar a história e falou: “Já pensou? Eu deveria ter ficado na aldeia, mas só que daí eu fui morar na cidade, depois casei com uma branca também, deveria ter casado com índia, pra poder ter ficado na aldeia”. Depois, demora um pouco, esse meu tio casou com uma branca também e assim foi indo. Minha vó casou também e assim foi indo essas histórias e daí vai perdendo. É uma coisa triste essas coisas, porque as histórias vão morrendo, entendeu? Eles deixam de contar e depois vai perceber... porque a violência foi tão grande, que daí eles ficam com medo de seguir uma história indígena. Que hoje, não. Hoje a coisa é diferente, né? Mas nos anos de 1900 os indígenas tinham que viver mais no esconderijo, não ficar mostrando, entendeu? Porque havia um forte preconceito, havia uma forte dominação, um forte massacre. Então, essa minha vó não contou muita história. Ela só contava que tinha essa aldeia na região de Piraju. Mas ela contava uma história que eu não esqueço, que minha mãe conta hoje. Minha mãe sempre fala assim, que a mãe dela falava que tinha uns parentes das aldeias, que tinha uma família lá que chamava Olegário Gabriel dos Santos e daí, por coincidência, um dia nós descobrimos uns parentes nossos que nós nem sabíamos. Eu ia sempre na aldeia visitar e essa índia morava perto da aldeia que, na época, ela tinha casado com um branco e daí eu ia sempre na casa dela. Eu ia lá, visitava os filhos dela e daí demora um pouco, já não está mais com esse branco dela, foi pra aldeia e está com um índio. Normal. Voltou pra aldeia. E daí, como eu ia sempre visitá-la, daí eu sei o nome dela tudo certinho, que ela chama Irondina. E daí final de semana, eu estava estudando na USP na década de 90 e eu estudava na USP e final de semana eu ia pra aldeia e daí eu ficava na casa dela. Normal. Eu ficava na casa dela, a gente era muito amigo, assim, só que a gente era só amigo. Daí, um dia, eu falei: “Vou trazer minha mãe pra conhecer você aqui”, peguei e fui levar minha mãe lá pra conhecer, porque essa Irondina é pajé e então sempre ela me benzia. E daí eu falei: “Eu vou trazer minha mãe um dia pra você benzer aqui e daí vocês já aproveitam e vocês vão se conhecer”. Daí tudo bem e um dia a gente foi na casa dela e ficamos lá, chegamos lá, daí almoçamos e daí, na tardezinha, conversa vai e conversa vem entre as duas e eu só ali, sentado, porque as duas, minha mãe e ela, já de idade, mais velha do que eu as duas, e daí eu fiquei sentado, do lado, escutando as duas conversarem, cada uma contando caso pra lá, caso pra cá, demora um pouco minha mãe começou a contar as histórias e daí minha mãe pegou e falou ... minha mãe sempre conta que antigamente, antes de sair da aldeia, daqueles massacres que houve no passado, ela sempre fala dos nossos parentes, mas eu não conheço e ela falou: “Minha mãe sempre falava de um homem que era parente dela, que chamava Olegário Gabriel dos Santos”. Daí essa Irondina falou assim: “É meu pai. A gente é parente”. Daí eu levei um susto, falei: “Ué”. Eu fiquei quieto. Minha mãe falou isso e ela falou: “Não, então a gente é parente. É meu pai”. Eu falei: “Caramba!” Levei aquele susto assim na hora, só que daí, depois, eu fiquei assim até sem jeito na hora e falei: “Será que a Irondina não está inventando essa história aí, que é o pai dela?” Fiquei pensando, né? “Será que é o pai dela, mesmo, não está inventando? Só pra média, essas coisas, assim, normais. “Não, é meu pai”. Daí eu fiquei pensando que ela tinha inventado na hora, né? Daí eu fiquei quieto. Daí minha mãe falou: ‘Nossa, que interessante, porque a gente é parente, então e a gente não sabia”. Aí começaram as histórias, né? Eu fiquei quieto, lá, só escutando. Daí, quando foi no outro dia, eu tinha ido na aldeia passear, lá na barragem e daí eu cheguei e falei assim para uns índios que são mais de idade, também, da época e falei: “Vocês sabem quem é o pai da Irondina?” “Sei. Ele já é falecido, já”. Eu falei: “Mas você sabe o nome dele?” “Sei. É Olegário Gabriel dos Santos” Eu falei: “Ih, caramba, então é parente, mesmo”. Daí que a gente foi ver que era parente nosso, que a gente sabia só os nomes, né? Então, foi uma coincidência. Daí hoje a gente fica contente, porque daí a gente, sempre quando pode, vai lá e elas estão morando lá em São Vicente, que tem uma aldeia lá, né? Então eu chego lá na aldeia, em São Vicente, tem um lugar chamado Ponte Pênsil e daí a aldeia fica ali, que é uma aldeia que os índios estão lutando pra conseguir aquelas terras, demarcar. E daí mora a família lá: a Irondina com as filhas, com netos, estão todos lá e daí, a gente, de vez em quando, quando tem oportunidade, vai lá. Eu não vou muito por causa da falta de tempo, né? Eu sempre cobro. Essa semana mesmo eu estava conversando com uma prima minha e daí o Werá estava lá passeando, foi passear esses dias atrás lá na aldeia e daí eu mandei uma mensagem pra ela: “Você viu meu filho aí?” Ela falou: “Não, primo. Eu não vi, não, mas se eu ver, eu te aviso. Pode ser que ele chegou aí depois”. Então, a gente fica contente em saber que são uns parentes que a gente descobriu por acaso, né? Mas daí é gostoso a gente saber que, mesmo a gente ter vivido fora da aldeia e minha família, mas a gente tem essa coisa do resgate, pra gente fortalecer a cultura, porque a gente não pode perder, porque, às vezes, muitos povos no Brasil perderam a cultura, por quê? Porque, às vezes, muitos vieram pra cidade, porque o passado é triste, foi massacrante. Então, as pessoas vinham pra cidade e vão se misturando, vão casando e vão deixando a cultura de lado, entendeu? Então, a cultura é uma coisa que a gente tem que fortalecer, né? Então, eu casei com uma guarani também e daí, o que acontece? E tenho os meus filhos. Então, o que acontece? Como a gente está lá na aldeia, o índio que viveu a vida toda na aldeia, tem uma cultura mais forte. A gente, que viveu fora da aldeia, tem um pouco de conhecimento de índio, mas temos conhecimento, também, do branco e então a gente tem os dois lados. Então, o da aldeia tem mais força de conhecimento, sabem mais, porque aprenderam a língua, costume, religião. Então, lá dentro fica só a visão guarani. Só que muitos vêm pra cidade, casam e daí, depois, os filhos, como moram na cidade, às vezes não aprenderam a língua indígena, não aprendem os costumes, não seguem a tradição. Então, o que acontece? É ruim, que essas pessoas, no futuro, de repente, o filho dele quer voltar à questão indígena e depois vai sofrer preconceito, porque ele não sabe nada, entendeu? Por isso que é importante muitos indígenas terem esse resgate de cultura e de seguir o costume sem vergonha, mesmo. De repente você é um indígena da cidade, mas de repente casa com uma índia da aldeia e não precisa ir lá buscá-la pra vir pra cá. Não, pode ir pra aldeia também. Vai lá e vai trabalhar e vai ajudar o povo, entendeu? Porque nós temos nossas comunidades e falta muita ajuda. Hoje em dia a gente sabe que tem muitos índios, até formados, estudados, mas às vezes não chega essa ajuda nas aldeias e as aldeias precisam de ajuda, porque o índio sempre foi ajudado pelos antropólogos. E hoje, o que aconteceu? Como tem muitos índios estudados, a gente continua dependendo dos antropólogos do mesmo jeito, não mudou nada, entendeu? Porque a gente precisa da ajuda desses indígenas, diretamente na aldeia. Então, eu me criei fora da aldeia, mas eu sempre fiquei preocupado com a aldeia. Às vezes, final de semana, eu ia sempre pra aldeia, pra ir lá viver o dia a dia, aprender, seguir. Depois eu casei e daí eu trouxe minha mulher pra cidade de Osasco, estudando na USP, daí ficamos um ano na cidade e ela não acostumou, ela ficava com dor de cabeça toda noite, todo dia e daí eu tinha que comprar Dipirona. Daí, quando eu resolvi ir pra aldeia, eu falei: “Então vamos lá, ficar um tempo lá, pra ver”. Daí, quando eu fui pra aldeia, nunca mais saí de lá e quando eu cheguei, voltei pra aldeia, acabou a dor de cabeça. Então, a dor dela era de viver na cidade, que ela não gostava. E daí eu falei: “E agora? Um de nós tem que renunciar”. Ou ela renuncia lá ou eu renuncio aqui. Daí eu renunciei aqui e fui pra lá. Aí estou lá, acostumado, que eu gosto, daí nasceram meus filhos. Como a gente está na aldeia, aprenderam guarani normal, como todas as crianças, aprenderam a cultura, seguem os costumes. Isso é importante, porque você não pode sentir vergonha: “Ah, mas você mora na cidade, vai deixar falar que é superior?” Não, a gente tem que ser tradicional também. Então, tem que seguir os costumes. Quando você sai de uma cidade pra vir morar na aldeia, você não pode trazer superioridade da cultura de fora, você tem que ser humilde de aprender também. Pra daí você respeitar a cultura do seu povo, porque esse é o seu povo. Então, a cultura de fora é dominante. Então, é ruim, por exemplo, vamos dizer: tem indígena na cidade que muitos deles são católicos, outros são evangélicos e daí, se ele vai pra aldeia, fazer visita, eles ficam falando na cabeça do índio, não sei o que, não sei o que, um monte de coisa. Não, você não pode fazer isso aí. Você tem que respeitar. Porque essa religião é a dominante. Você não pode fazer a cabeça do índio, entendeu? Porque o costume indígena tem que ser respeitado também. Você tem que valorizar. Se você não valoriza, você está desrespeitando. Então eu, sempre mesmo quando eu morava na cidade, eu fumava no cachimbo indígena, porque a gente tem um cachimbo que chama petenguá. Eu sempre pitei no petenguá, sempre fumei no cachimbo. Mas as pessoas achavam engraçado, falavam assim: “Caramba, você acredita nessas coisas?” Eu falo: “Acredito”. Daí eu fumava cachimbo lá na USP, depois do almoço, eu sentava debaixo de uma árvore lá e fumava o cachimbo porque é a força que a gente recebe através do cachimbo. A gente aprende, entendeu? Daí eu aprendi isso, então eu fumava no cachimbo e as pessoas falavam: “Mas você é uma cara que é estudado, estuda na USP, você acredita nessas coisas?” Falo: “Acredito. A gente tem que acreditar, porque todo mundo acredita em alguma coisa, entendeu? Então, não é porque você é um filósofo, que você vai deixar de seguir sua cultura. Pra alegrar os intelectuais? Não. Todo mundo tem que seguir alguma coisa. Então, até os caras que falam que não acreditam em Deus, está acreditando em alguma coisa. No que ele acredita? Ele acredita no não Deus. Então, não existe alguma coisa que a gente não acredita. A gente acredita em algo. Mesmo o ateu”.
P/1 – E aí, pra você me contar um pouquinho, eu queria saber se você sabe alguma coisa da história do seu nascimento. Teve alguma história de como você nasceu?
R – O que eu sei é que, como a minha mãe, na época, de família guarani, casou com um baiano, então o meu pai veio da Bahia e daí, quando ele veio, na década de 60, ele foi conhecer minha mãe lá no interiorzinho do Paraná, a família guarani da cidade, morava na cidade, cidadezinha bem pequenininha, porque nos anos 60 a coisa não era como hoje, que estão as cidades todas grandes, né? E ela morava, essa minha vó que eu falei que já morreu, que era índia, morava nessas cidadezinhas pequenas e daí meu pai, que é baiano, chegou nessa cidade lá e conheceu minha mãe e, como meu pai era baiano e o povo nordestino é engraçado, que são um povo que é trabalhador demais, eles não têm moleza, nordestino só perde pra japonês, né, porque japonês é fogo, mas nordestino é coisa porreta, os bichos trabalham mesmo e daí, como ele casou com minha mãe, daí meu pai, na época, não parava quase em lugar, porque naquela época era tudo diferente, né? Daí ele casou com minha mãe e ficou um tempo lá numa cidadezinha chamada São Sebastião de Amoreira, de lá ele mudou para o interior, outra cidadezinha. Naquela época eram só fazendas, não era igual hoje. Daí meu pai pegou minha mãe e foi morar numa fazenda lá perto de Apucarana, pra lá de Londrina, chamada 300 Alqueires. Daí ela disse que eu nasci lá, nessa fazenda chamada 300 Alqueires. E daí, de lá, já mudou, de repente disse que meu pai veio - a gente era pequeno - pra São Paulo, trabalhar pra cá, porque naquela época serviço era tudo mais fácil, né?
P/1 – Mas você nasceu lá?
R – Isso. Nasci lá.
P/1 – E o que você lembra de lá, assim?
R – Eu não lembro nada, porque eu só nasci. Daí, o que acontece? Ficou um tempo lá nessa fazenda e daí meu pai começou essas andanças dele, daí disse que veio pra São Paulo, depois de mais um pouco ele foi pra Bahia e daí eu já era pequenininho, já estava crescendo, daí meu pai deixou minha mãe lá na Bahia e era um sufoco, porque naquela época lá, os baianos não gostavam dela, né? Por causa que os baianos queriam que meu pai tivesse casado com uma baiana, não sei o que, daí foi casar com uma mulher do interior, de origem indígena? Então minha mãe disse que sofreu muito. Eu era pequenininho, mas minha mãe fala que sofreu muito na mão dos parentes do meu pai, né? Então, eu era pequeno, depois meu pai voltou pra Bahia, trouxe minha mãe de volta e daí a gente foi pra São Paulo, depois de São Paulo voltou pro Paraná de novo, daí ficava arrumando emprego, pra lá e pra cá, porque naquela época emprego era fácil, né? Então bastava você sair de um emprego e ia pra outro. E daí foi passando o tempo e eu morava numa cidade chamada Cornélio Procópio e daí eu comecei a me preocupar muito com essa questão indígena, que a gente via as aldeias perto da gente e minha avó sempre falava que é de guarani e daí a gente era pequeno e aí tinha uma aldeia vizinha lá perto dessa cidade, do povo kaingang e sempre os kaingang vinham pra cidade vender artesanato. E minha vó sempre deixava as turmas irem dormir na casa dela e então ela era simples, né e todo mundo chegava, ia lá e já sabia quem era minha vó. Daí, eles dormiam lá na casa dela. Então, eu ficava sempre observando, daí às vezes eu ia passear nas aldeias, mas eu sempre tinha essa preocupação do problema social que a gente via que, na década de 70, 80, era uma coisa muito triste, porque você não tinha questão de saúde, questão de educação escolar, era muito difícil.
P/1 – Mas como é que você via, criança? Alguém te falava que aquilo era problema de saúde, de educação? Como é que você sabia que eram problemas sociais?
R – Por causa que eu era pequeno e a gente ouvia falar muito de mortes, porque, por exemplo, nos anos 70, mesmo eu sendo garoto, eu ficava sempre acompanhando as coisas através da oralidade, os outros falando, jornais, revistas e eu ficava sempre preocupado na questão indígena. E daí a gente via que, nos anos 70, eu percebia que morria muita criança. Então, daí, eu ficava observando as coisas, porque as pessoas tinham aquela visão... quando você chegava numa aldeia, nos anos 70 a 80, você via aquele monte de velhos e poucas crianças. Daí eu começava a perceber as coisas, que tem coisa errada, porque tem muito velho e pouca criança. Que é diferente de hoje. Hoje, no ano de 2019, quando você vai numa aldeia, os brancos falam o contrário, hoje, pra nós: “Nossa, mas cadê os velhos? Não tem?” Aí você vê aquela multidão de criança. Inverteu, entendeu? Então, você tinha muito velho e pouca criança. Hoje você vai na aldeia e você vê muita criança e poucos velhos. Por quê? Porque começou a haver uma nova mudança nas aldeias, porque morria muita criança nos anos 70, porque o índio pegava um vírus e morria. Não tinha saúde indígena, não tinha escola nas aldeias. Então, isso me preocupava. Eu era pequeno e já ficava preocupado com isso, porque eu falei: “Nossa, o indígena precisa estudar, pra que ele seja defensor da própria causa”, entendeu? A gente não precisar, a vida toda, ter que ter um branco o defendendo na aldeia. Porque, desde 1500, sempre foi assim. Existem os grandes líderes que lutaram pela causa indígena, brancos e a gente respeita. Mas por que os nossos não são falados, entendeu? Então, hoje em dia, por que é importante escola na aldeia? Pra que esse índio possa ser um conhecedor da causa. Não é só porque ele é tradicional e vai lá e fica assim, o cara filmando, pra mostrar que ele é índio. Não. Ele tem que ser um tradicional, mas ele tem que chegar e bater de frente com o branco. Igual a gente, quando a gente conversa com os brancos, daí a gente sofre preconceito: “Mas então ele não é índio, porque o cara é mais inteligente do que eu”. Deixa ele falar. “Mas ele não pode ser índio, o cara tem 17 livros e eu não tenho nenhum “. Daí, o outro branco, falando para os outros, fala assim: “Mas como pode? Aquele índio lá anda de moto e eu que sou branco não tenho nem bicicleta”. Então, esses preconceitos, deixa eles falarem. O importante é a gente estar armado com conhecimento. Então, a luta, hoje, porque antigamente o índio teve que brigar na bala e em arco e flecha, né? Enquanto o braço dava um tiro, o índio dava uma flechada, né? Então, enquanto o branco matava dez índios, o índio matava um branco. Hoje a gente tem que bater frente a frente, entendeu? Quando ele debater, o índio vai lá e debate também. Com a mesma arma, a arma igual. Então, por isso que é importante o conhecimento, entendeu? Por isso que eu falo que a literatura nativa, que nós começamos a escrever, é isso: trazer conhecimento pras pessoas da cidade, pra que as pessoas respeitem a gente e, ao mesmo tempo, ficar nas escolas das aldeias, pra que os índios não deixem sua história morrer, entendeu? Segundo, vem outras coisas. Hoje o índio é advogado pra lutar pela causa indígena, pela demarcação; a gente ter médicos, pra que você tem posto de saúde... na nossa aldeia a gente tem posto de saúde, mas os brancos é que dominam. Por quê? Porque a gente não tem, mas a gente tem que lutar pra que, no futuro, tenha nossos médicos, nossos dentistas, nossos enfermeiros, lá dentro, sem precisar trazer de fora. Daí hoje surgiu, como vocês ouviram hoje, falaram com meu filho aí, o Kunumi MC, ele é cantor de rap. Eu, hoje, gosto de rap por causa dele. Porque antigamente eu achava um absurdo rap, não entendia, porque o rap não era entendido. Daí, quando eu comecei escutar as músicas dele, daí que eu fui perceber a importância que tem o rap, por quê? Porque é uma arma, entendeu? Com branco, com as pessoas de fora, você tem que conversar no bate papo mesmo, então a música é um bate papo de conscientização pra sociedade. Então, por isso que eu comecei, a primeira vez que eu ouvi o rap, mesmo, eu o levei ao Sesc Interlagos, que ia ter um show do Bro MC e daí o Sesc falou: “Se vocês quiserem, a gente dá um ônibus pra cada aldeia. Daí a gente vai na aldeia e pega vocês pra assistirem o show do Bro MC”. Eu falei: “Pode trazer um pra nossa aldeia”. Daí o ônibus foi lá, levamos a turma da nossa aldeia Krukutu e depois o Wera era pequenininho, acho que tinha uns nove anos, talvez. Dez, não sei, alguma coisa assim. Entre nove e dez anos. Daí ele era pequenininho, ficou escutando o Bro e daí foi descobrindo os talentos dele, porque ele é cheio de talentos e daí, um dos talentos dele foi começar a cantar rap. Ele começou a escrever as letras, que ele leu o meu livro de poesia e ele começou a escrever poesia também, só que daí ele começou a escrever rimada e começou a cantar essa poesia aí. E daí ele percebeu que dava pra cantar em rap. E daí ele começou a cantar rap. Então, eu gostei, por quê? Porque a gente vê que é uma poesia crítica. É uma arma. Então, a arma não é só você pegar uma espingarda, um revólver e dar tiro nos outros. Você pode enfrentar as pessoas abrindo a boca, só. Então, o rap é uma das formas. Então, literatura escrita também é uma arma. Então, por isso que eu fico feliz quando eu vejo um indígena que está preocupado em estudar, mesmo. Eu falo assim: “Estude, mesmo, porque isso vai ser importante, você ter conhecimento, pra gente enfrentar”. Então, quando as pessoas chegam na aldeia e vão conversar comigo, falam: “Nossa, você entende bem. Por que você não mora na cidade?” Eu falo: “Mas por que eu tenho que viver na cidade? Do mesmo jeito que eu moro na cidade, na aldeia, o conhecimento é a mesma coisa. Então, não é por causa que eu conheço, que eu tenho que ir pra cidade” “Mas você se sente feliz aqui no mato?” “Sinto”. Eu gosto da natureza, então, se a gente gosta da natureza, por que eu vou ter que morar na Paulista?” “Mas o apartamento lá é bonito” “Mas eu me sinto feliz aqui”. Então, a gente tem que aprender...
P/1 – Mas assim, no começo da sua vida, você morava na cidade e ia de vez em quando pra aldeia?
R – Isso. Eu morei em várias cidadezinhas, porque eu morei mais no norte do Paraná, né, então eu morei em várias cidades, porque meu pai não parava, meu pai sempre estava mudando de uma cidade pra outra, porque ele era motorista e às vezes as empresas mudam, as empresas de ônibus, mudam pra uma cidade, mudam pra outra. E daí, sempre ficava transferindo. Daí, eu era pequenininho, ficava mudando, né? Mas aí, quando eu parei numa cidade chamada Cornélio Procópio, daí ficou melhor, porque ficou mais tempo lá. Aí ele ficou trabalhando numa empresa lá e daí, o que eu fazia? Às vezes eu ia nas aldeias, passear, porque eu sempre falava: “A gente tem que ir na aldeia, pra gente ficar sempre vendo como é que está o dia a dia, a gente tem que ficar sempre, não pode fugir”. Porque como tem muitos indígenas no Brasil, às vezes não gostam de ir na aldeia, entendeu? Às vezes têm vergonha. E isso não é bom. A gente tem que ter orgulho, porque quando você tem orgulho, você vai valorizar a cultura, por mais que você seja estudado, entendeu? Então, meu filho ficou conhecido hoje mundialmente, mas não mudou nada, ele continua na aldeia, segue a religião, pita no cachimbo, segue os costumes normais, entendeu? Então, a cidade é só pra vir dar as palestras, fazer show, mas a gente tem que valorizar a aldeia.
P/1 – E como você via, pequeno, ir da cidade pra aldeia? Como era isso dentro de você? Você tinha vontade de ir morar na aldeia?
R – Quando eu era pequeno, eu tinha vontade, sempre tive vontade, desde pequenininho, porque eu sempre falava pra minha mãe: “Eu queria ficar na aldeia” e ela: “Vai lá e conversa com o cacique”, mas só que daí tinha uma coisa que me impedia, que era a questão dos estudos. Então, eu ficava preocupado, eu queria estudar. Então, eu tinha um interesse muito grande na escola. Então, desde pequeno, eu sempre batalhei, batalhei, batalhei pra estudar, estudar, estudar, estudar e aquilo foi, sempre, me inspirando, inspirando. Depois comecei a aprender a escrever as histórias, literatura e isso foi me incentivando, foi indo até... não imaginava, quando eu fui ver, eu pensei em fazer faculdade, falei: “Será que vou conseguir chegar na faculdade?” Foi indo, cheguei na faculdade. Então, a questão da escola, da educação, fez com que eu ficasse meio preso na cidade e daí, sempre final de semana, eu ia pras aldeias e daí foi o que aconteceu quando eu vim pra São Paulo: entrei na USP, daí, todo final de semana eu ia pra barragem, porque daí eu falava: “A gente tem que estar sempre na aldeia, porque a gente tem que ajudar, pensar em alguma coisa, alguma forma. A gente lutar aqui na cidade, em defesa, é uma coisa, mas a gente precisa também estar lá ocupando o chão”. Então, sempre, eu estudava na USP nos anos 90, mas eu ia sempre pra aldeia lá da barragem, onde eu sempre ficava passeando, pra ficar sempre em mente, porque se a gente não faz essas visitas, você não vai sentir vontade de ir, mais pra frente. Então eu, desde pequeno, tenho essa coisa e eu queria morar, mas não tinha jeito, por causa da escola. Daí foi indo, até que chegou uma hora, que eu tinha casado com essa minha esposa e daí viemos morar em Osasco, eu estudando na USP, daí depois, quando eu voltei lá pra essa aldeia, daí fiquei por lá e não saí mais. Estou lá até hoje. Então, já faz 25 anos que eu estou lá.
P/1 – E, voltando à educação, como era a educação que você recebia do seu povo, não a de escola, mesmo? O que você sentiu, que foi exemplo até hoje pra você, que foi essencial, que conseguiram te transmitir, pequeno?
R – Eu sempre via assim, por exemplo: na família da gente eu sempre via a questão da humildade, né? Então, a humildade foi uma coisa que... porque da minha família, povo do interior, essas coisas assim, é diferente. Por mais que você queira ou não, a gente aprende aquela coisa da humildade. E a gente não teve riqueza, essas coisas, mas a gente aprendeu essa coisa da humildade. Que você ainda tem respeito pelos pais. Porque até hoje... eu vou ter que contar um segredo pra vocês: eu estou com 53 anos, mas até hoje, quando eu encontro meu pai e minha mãe, eu ainda dou bênção pra eles, que é coisa caipira pra os outros. Os outros: “Nossa, que caipirice!” e pra mim não, questão de educação que você aprende a respeitar, porque quando você aprende, desde pequeno, a respeitar os seus pais e seus parentes, isso, pra nós, é uma educação muito importante. Então eu, quando era pequeno, aprendi muito. Sempre fui uma pessoa... os outros falam assim: “Olívio, nossa, você é uma pessoa muito humilde”, mas essa humildade veio de família, entendeu? Não é que a gente entrou na escola e ficou humilde. Não. Isso aí é uma coisa que eu, desde pequeno, aprendi e então eu fico feliz com isso, porque meus pais, quando eu vou visita-los, eles falam: “Nossa”, mas porque eu estudei bastante, não sei o que, mas nem por isso eu deixo de respeitar, porque a educação a gente aprende em berço, quando é pequeno. Então, educação não pode perder, entendeu? Porque o povo da cidade tem aquela visão de que, o cara, quando entra na universidade, ele é o poderoso. Não é poderoso coisa nenhuma, se ele não for humilde; se ele não for humilde, ele não é ninguém, entendeu? Então, quando eu estudei na USP, eu fiquei impressionado, porque havia uma filosofia lá chamada filosofia do bem comum. A filosofia do bem comum é aquela coisa: eu saí de uma família humilde e entrei na USP. O que mudou? Nada. Eu continuo sendo uma pessoa humilde e não muda nada. A única coisa que foi que mudou é que eu aprendi mais conhecimento, mas eu continuo sendo a mesma pessoa, entendeu? Então, se você sai do interior de uma fazenda e você é de uma família caipira, então você vem fazer a faculdade na USP e você vem caipira, quando você vem de lá, você era caipirão, então você continua caipira do mesmo jeito, não tem que mudar nada, entendeu? E daí tinha um filósofo da USP que falava que não, que tinha que mudar, sim, que tem que haver uma mudança. Então, a mudança é igual o branco fala assim... eu, quando eu saí do interior, naquela época eu escutava Tonico e Tinoco. Agora que eu vou pra uma USP eu não posso mais ouvir Tonico e Tinoco – “Você tem que ouvir Chico Buarque”. Não é assim que funciona as coisas. Se eu era caipira e ouvia Tonico e Tinoco, eu continuo gostando de Tonico e Tinoco, estou na USP e nem por isso eu vou deixar de gostar de Tonico e Tinoco. Então, as pessoas mudam e essa mudança do cidadão que nós, simples, que vinha do interior e escutava Milionário e Zé Rico e daí, quando ele chega aqui agora, ele tem vergonha e agora ele começa a escutar Chico Buarque, Gilberto Gil, porque daí é a música dos intelectuais, né? Não tem nada a ver. Quem escuta música de Chico Buarque quando é pequeno, se ele gosta, ele continua gostando depois. Se eu gosto de Tonico e Tinoco, se eu gosto de Milionário e Zé Rico, eu continuo do mesmo jeito. Então, a humildade é isso. Então, às vezes a pessoa fala que eu sou humilde, mas a minha humildade é porque eu aprendi com a minha família, com o meu povo, entendeu?
P/1 – Nossa, que aprendizado!
R – Quando eu era pequeno, eu não fui muito de ouvir muita história, né? Minha mãe era uma pessoa muito simples, assim. Ela não era contadora de história, porque às vezes as pessoas ficam pensando que todo mundo é contador de história, né? Então, não é. Igual, por exemplo, eu tenho um sogro, ele está com 110 anos, mas ele não é um contador de história. As pessoas pensam que, na aldeia, eles falam assim: “Os velhos que são os contadores de história”. Eu falo: “Não. É quem nasce com o dom”. Como eu falei: minha mulher já tem livros publicados e ela é contadora de história, só que não sabe ler, nem escrever. Então, ela tem o dom de contar história. Então, minha mãe nunca foi de contar história. Ela é mais de ficar ouvindo, né? Então, eu não sei muita história. Então, eu ficava sempre atento, mas eu aprendi mais no dia a dia, com a comunidade, mesmo, porque desde pequeno eu sempre estou acompanhando e eu sempre gostei de ouvir história.
P/1 – E se contava histórias onde?
R – Por exemplo: essa tia minha, que eu falei, a Irondina, foi uma pessoa que me contou muita história, porque quando eu era garoto e estudava na USP já naquela época, ela falava assim: “Olívio, eu fico impressionada, porque você é uma pessoa que gosta muito de ficar ouvindo história”. Então, ela gostava de contar história pra mim. Ela ficava contando. Então, uma coisa engraçada, que às vezes as pessoas, não sei se vocês já perceberam, mas o contador de história gosta de contar história pra quem gosta de ouvir, entendeu? E eu sempre gostei de ouvir as histórias e daí minha tia percebeu e ela falava: “Olívio, eu vou te contar a história, porque eu sei que você gosta de ouvir”. Então, a gente sentava e ela ficava ali contando as histórias. Então, é um dom, porque a pessoa guarda aquelas histórias na cabeça e quer contar pra gente. E eu, por exemplo, se você pedir pra eu contar umas histórias do que ela contou pra mim em vários anos, eu não sei, eu não lembro, porque eu não tenho dom pra isso. Eu tenho o dom de criar. Então, você vê a diferença? Eu escrevo poesia. O Werá declama minhas poesias. Eu não sei declamar, porque não guardo na cabeça. Então, a minha tia contou muita história pra mim. Só que daí, mesmo eu não lembrando das histórias, mas o cérebro da gente, que é criador, vai e cria as histórias, em cima do que a gente ouviu, entendeu? Então, a história do saci, quando eu contei a história, porque eu sempre ouvia a história do saci indígena. Daí, um dia, eu falei assim: “Tia Irondina, você já ouviu falar da história do saci indígena? Sabe que os brancos, na cidade, contam história, outra?” Ela falou assim: “Eu já ouvi falar muito, mas eu vou contar a história do saci pra você, indígena mesmo, como é que é”. Ela começou a contar a história pra mim, do saci, personagem, tudo e daí que eu fui, conforme ela contou, peguei e criei a história de um saci, pra mostrar pra cidade como é o saci indígena. Daí eu escrevi um livro, naquela época, chamado... em 1994, se não me engano, ela contou pra mim. Daí eu escrevi essa história chamada, o título do livro chamado O Saci Verdadeiro e eu lancei esse livro, porque o saci verdadeiro é indígena, entendeu? E as pessoas não sabem. Por isso que eu falo que ela gostava de contar as histórias pra mim, por causa que ela falava: “Eu conto pra você porque eu sei que você gosta, então quem gosta, a gente tem que contar. Se as pessoas não gostam de ouvir, então não precisa contar pra ele”. Então, eu sempre gostei. E daí, meus filhos, desde pequenos, quando eram pequenos, a gente contava história pra eles. Então, eu sempre falei assim que a gente tem que ver quem tem interesse. Então, o Kunumi, que você conheceu hoje, quando ele era pequenininho, me deu trabalho pra chuchu, porque ele falava assim: “Pai, me conta história”, toda noite. Daí eu contava. Daí eu contava, pra facilitar pra mim, a história dos meus livros. Porque já tinha pronto, né? Daí eu contava e daí, quando chegava na outra noite, ele falava assim: “Pai, conta uma história” e eu falava: “E agora?” Daí eu tinha que inventar uma história na hora e aí eu inventava uma história e contava. Vou contar uma história aqui e tal, daí eu inventava. Porque daí foi indo. Daí, com o passar do tempo, o Wera, que é o Kunumi, começou a aprender a ler e escrever já no primeiro ano do ensino médio, né? No que ele aprendeu a ler, que ele aprendeu rapidinho na escola, né, com três meses ele estava lendo, já. Daí ele começou a pegar meu livro e começou a ler. Então eu fiquei contente, falei: “Então, agora, eu fico mais sossegado”, que daí eu não precisei ficar contando toda noite. Daí ele pegava o livro e ficava lendo, entendeu? Então, são realidades diferentes. Então, eu percebi que o Wera era o que mais gostava de ouvir história. Que eu tenho os outros filhos também, né, mas ele era curioso e ficava em cima toda hora, tal. Então, isso é bom. Então, por isso que hoje, quando eu ia dar palestra, daí ele ia comigo. Quando era um carro que ia nos buscar na aldeia, então eu levava a família toda. Daí, com o passar do tempo, eu tive uma moto, daí, quando eu ia dar palestra, ele queria ir junto e daí eu o levava, com sete, oito anos, ele ia na garupa. Foi indo e foi acostumando. Com nove anos ele já estava dando palestra. Tem foto dele. Eu estava mostrando hoje pra França, um cara francês, eu mostrei a foto dele, daí o francês estava vendo lá a foto dele, ele desenhando quadro, com nove anos, mais ou menos, entendeu? E isso é bom, porque a criança, você já vai percebendo a diferença de cada filho, porque cada filho tem um jeito. Todo mundo é inteligente, o único burrinho sou eu, mas meus filhos são todos inteligentes, só que cada um tem um jeito diferente do outro e ele é mais... ficou bom pra mim, por quê? Porque ele tem mais curiosidade de sair, ficar ouvindo, escutar o que eu falo, entendeu? Por isso que ele me segue há anos. Todo lugar que eu vou, ele está junto. Os outros eu chamo, às vezes não têm muito interesse, porque não é que é interesse, é o ritmo deles que é diferente, então cada filho tem seu jeito. Nada é igual.
P/1 – Qual foi, da infância ainda, uma coisa que te marcou tanto, que você acha que poderia estar em um livro e que ainda não está?
R – Um acidente que eu tive quando eu tinha acho que dez ou 12 anos. Que isso daí deveria transformar numa história. Eu fiquei impressionado porque eu era pequenininho, morava no interior do Paraná e daí, de repente, um amigo meu, vizinho nosso, trabalhava num lugarzinho lá que vende óculos e daí ele vinha todo dia almoçar e vinha com uma bicicleta. Naquela época, nos anos 80, se eu não me engano, não sei que ano que eu sofri o acidente. Ah, foi antes, na década de 70, tinha aquelas bicicletas Monark e ele vinha de bicicleta e deixava perto da minha casa, onde eu estava morando e daí ficava lá, daí ele deixava a gente andar, enquanto ele ia almoçar e falava: “Pode andar aí”. E eu ficava andando. Um dia eu parei, no que eu estou andando de bicicleta, um carro em alta velocidade me atropelou. Eu era pequenininho. Aí o carro me jogou longe, eu caí e daí os vizinhos da rua, porque é interiorzinho, todo mundo viu e o cara fugiu, bateu e ficou aquela coisa: veio ambulância pra me levar, daí naquela época, a cidade de Cornélio Procópio não tinha assistência pra dar um atendimento pra mim, daí me levaram pra Londrina, daí eu fiquei internado em Londrina. Fiquei 30 dias desacordado e, quando eu acordei, eu acordei assustado, porque nesses 30 dias que eu estava lá, eu ficava sonhando com um monte de coisa. Eu sonhava, sonhava, sonhava. Quando eu acordei, eu falei: “Caramba”. Eu ficava tentando lembrar as coisas, porque eu tinha ido pra outro mundo, eu ficava imaginando um monte de coisa, que eu tinha ido para o céu, um monte de coisa e daí eu falei: “Caramba, eu estou aqui, mas parece que eu já tinha ido pra outro canto”. Então parece que o espírito da gente sai, vai embora e depois volta, né? Que não era pra eu ter morrido. Daí, uns 30 dias depois, eu acordei.
P/1 – Trinta dias depois você acordou? E você lembra dos sonhos que você teve?
R – Que eu ia pro céu, aquelas coiseiras e daí eu ficava imaginando que eu não estava na Terra e daí eu ficava imaginando que eu estava em outro canto, em outro paraíso. E daí, quando eu acordei, levei um susto, porque eu falei: “Cara, eu estou aqui”. Daí que eu fui ver que eu tinha sofrido um acidente, não sei o que, não sabia de nada, só sabia que eu estava dormindo esses 30 dias e daí, quando eu voltei, saí do hospital depois de 30 dias, daí acordei, fui indo, tomei uns remédios lá, depois voltei pra cidade de Cornélio Procópio e, no que eu voltei pra cidadezinha lá, foi engraçado, porque daí eu não sabia, eu não conhecia ninguém mais, né? Eu sabia que era minha família que eu estava morando ali, que eram meus pais, mas daí eu não sabia ninguém. Eu olhava assim, quem será? Daí as pessoas me cumprimentavam, daí eu falava: “Como é seu nome?” Daí ele: “Tal”. Daí eu ficava: “Ah, tá”. Daí eram os vizinhos, daí eu fui pegando, começando do zero, porque eu não sabia ninguém, daí eu fiquei na minha, ali, tal, observando e daí os médicos falaram assim... e naquela época eu estudava no grupo, que não existia ensino médio, não era fundamental, era grupo, de primeiro ao quarto ano, né? E, naquela época, eu estava no segundo ano do grupo, que eu era novinho, acho que eu tinha dez anos e, como eu estudava no grupo, daí, quando eu saí do hospital, daí eu voltei, fui lá visitar a escola, tal, daí eu lembrei um pouquinho que eu estudava ali, fui lá, as professoras me receberam, os alunos ficaram todos contentes que eu não morri e daí tudo bem, eu cheguei lá e eles falaram: “Daqui uns dias você volta de novo a estudar”, daí dei um tempo, daí os médicos falaram assim: “Olha, só que ele não vai lembrar de mais nada, porque como ele bateu uma cacetada muito forte, então ele não lembra das coisas e ele vai ficar com a cabeça ruim, que ele vai ficar, assim, bobão, aquelas pessoas assim bobonas” e daí eu fiquei assim, não entendia nada, ficava observando. Daí depois eu voltei a estudar, depois acho que de três meses de acidente. Daí, no final do ano, já estava quase no final do ano, daí eu voltei pra estudar de novo, daí eu votei em novembro ou outubro, pra estudar de novo, começar os ensinos, daí eu falei: “Vou começar de novo”. Daí eu comecei a estudar, acho que de outubro em diante, até final de novembro e daí, quando foi ver, por azar, por causa do acidente, que aconteceram aquelas coisas e, na época, era complicado, me deu meningite. Eu falei: “Caramba”. Eu ruim da cabeça, me deu meningite. Voltei pra Londrina. Quando eu volto de Londrina, depois do hospital que eu tinha sofrido meningite, já era janeiro, depois eu falei: “Eu acho que eu reprovei de ano, né?” Daí os outros falaram: “Não, você passou de ano”. Eu falei: “Passei de ano? Nossa, nem estudei direito”. Mas daí, o que acontece? A escola ficou com dó de mim, né? Porque eu era bobão, eu não entendia nada. Eu ficava assim, boboca. Daí as pessoas ficavam com dó de mim, porque eu era assim.
P/1 – Mas depois do acidente?
R – É. Por causa do acidente eu fiquei assim bobão, que eu não tinha noção de mais nada. Daí os caras falaram: “Ele não vai conseguir mais desenvolver o cérebro”. Daí a escola ficou com dó de mim e falou: “Como ele está no hospital, internado agora, vamos passa-lo para o terceiro ano, mas ele não vai ter futuro, mesmo”. Então, essa era a visão da turma. Daí, quando foi ver, minha família... eu não gosto de contar essa história, porque meu pai e minha mãe, se contar essa história, eles choram, por causa que daí eles falaram: “Como pode, né?”, que os médicos falaram que eu ia ficar bobão da cabeça, por causa da cacetada, né? E daí, de repente, foi indo, foi indo, foi começar a estudar e desenvolveu normal e fez faculdade, depois virou escritor. É uma história.
P/1 – Você quer contar um pouco da sua entrada na faculdade, como você conseguiu?
R – Daí, quando eu já estava... melhorou a cabeça minha, que os caras acharam que eu ia ficar bobão e, no fim, foi sarando aos poucos. E daí, depois, eu fui crescendo, daí foi indo essa preocupação da questão indígena e eu ficava naquela de fazer uma faculdade e eu ficava pensando: “Como pode fazer uma faculdade? A gente não tem dinheiro pra pagar”. Daí foi passando um tempo e eu falei: “Caramba”. Conheci uns padres no Paraná e daí eu conheci o seminário, na época. Aí eu fiquei curioso, fui lá no seminário conhecer os seminaristas e fiquei impressionado, porque eu gostava, daí aprendi, na época, o que era Filosofia e percebi, fui aprender que os estudantes do seminário vão fazer faculdade de Filosofia. E aí eu fiquei curioso e toda semana eu ia lá visitar esse seminário, pra eles me emprestarem livros de Filosofia pra mim. E eu era pequeno, comecei a ler e daí eu fiquei curioso com a Filosofia, fiquei apaixonado pela Filosofia. E daí eu falei: “Mas como eu vou fazer Filosofia?”, porque eu não tinha noção direito e eu falei: “E tem que pagar, é caro”. Daí eu peguei e fiquei pensando e falei: “Caramba, então, pra eu fazer Filosofia, eu tenho que entrar no seminário também”. Daí eu peguei e fiquei curioso, eu era garoto, acho que eu tinha uns 15 anos, daí eu falei para os padres: “Eu queria ser padre, então, porque eu quero fazer Filosofia”. Daí eu peguei e entrei no seminário. Só que não entrei de um dia para o outro. Eu fui estudando com eles, uma vez por semana eu ia lá no seminário e estudava junto com os seminaristas, pra eu ver se era isso que eu queria, mesmo. Daí foi indo, chegou um tempo e eu entrei nesse seminário lá na cidadezinha do interior chamada Leopólis. Uma cidadezinha lá do interior. E daí eu entrei nesse seminário. Daí comecei a estudar, com intenção de fazer Filosofia. E daí, depois, com o passar do tempo, eu fiquei dois anos no seminário e o bispo falou que eu não tinha dom pra ser padre. Eu falei: “Caramba. O que eu vou fazer? Mas eu quero” “Não, mas você não tem dom”. Daí, me tirou do seminário. Aí, eu peguei e saí do seminário e vim pra São Paulo. Daí demorou um pouco, comecei a fazer contato com as turmas aqui também, daí em Osasco eu conheci uma congregação religiosa também, daí comecei a frequentar, quando foi ver, resolvi entrar no seminário e daí eu já estava no terceiro ano do ensino médio, terminei e resolvi entrar e fazer Filosofia na PUC. Quer dizer: essa congregação faz Filosofia lá na PUC do Paraná, né? Daí juntei com os seminaristas e fomos pra lá. Daí fiz o vestibular lá, passei na PUC e daí comecei a fazer Filosofia na PUC lá. Daí fiquei estudando o primeiro ano de Filosofia lá na PUC. Daí, em todo lugar que eu ia, que eu vou, eu fico conhecido rapidinho, por causa do meu jeito e tal, e daí os outros: “Chegou um índio aqui”. Em todo lugar que eu vou é assim. Daí eu estava no seminário do Paraná, em Leópolis, os estudantes falavam: “Tem um índio aqui estudando aqui no seminário”. Daí, todo mundo queria me conhecer. Daí, um dia até peguei carona com um cara na cidadezinha lá, daí eu peguei carona pra ir, porque lá eles pegam muita carona, no interior. Eu peguei carona com um carrão, conversando com o cara, eu falei: “Quem é o senhor?” Daí ele falou: “Ô índio velho, você não conhece o prefeito da sua cidade?” Era o prefeito, né? E daí eu: “Ah, tá, o senhor que é o prefeito?” E eu já era conhecido na cidade. Em duas semanas que eu entrei, já era conhecido na cidade toda. E daí, nesse seminário que eu estava em Colombo, tinha um padre que era nosso formador na época e eu ficava conhecido em todo lugar, daí já começa não sei o que, a cidade toda já fica: “Tem um índio estudando aqui no seminário, não sei o que”. Daí na PUC também. Eu sempre fui assim muito chegado ao público, né? Então, em todo lugar que eu vou, eu fico conhecido, uma rádio quer conversar comigo, uma entrevista pra lá, uma entrevista pra cá e sempre foi assim. E esse padre começou a, acho, sentir ciúmes de mim, porque ele que é o padre, não era famoso na região. E eu já sou mais conhecido do que ele. Daí eu falei: “Caramba”. Daí o cara ficou meio assim, né? Daí, quando foi ver, eu fiz o primeiro ano de Filosofia, fiz o segundo, quando eu fui entrar no terceiro ano de Filosofia, no final do ano o padre faz uma avaliação com todos os seminaristas, do que achou. Eu falei: “Eu fiz minha avaliação, gostei, estou muito feliz, tal, tal, tal tal” Daí ele falou: “É, índio, você me desculpe, mas a gente vai ter que fazer uma avaliação e você não tem jeito pra ser padre”. Aí eu falei: “Caramba, eu não tenho jeito? Mas como assim? Porque eu quero, eu estou falando que eu quero. Eu quero lutar pela causa indígena sendo padre. Porque eu quero entrar na Filosofia com essa intenção, de ser um padre pra lutar na defesa da questão indígena”, eu falava assim pra ele. “Só que não, você não tem jeito, você é uma pessoa que não tem fé, não sei o que” e começou a falar um monte de coisa. Daí eu peguei e fiquei na minha. Daí eu falei: “Então está bom”. Daí foi um sufoco, num dia de retiro, pra daí ele falar pra mim que eu não tinha dom e que eu tinha que sair do seminário, né? Daí eu saí.
P/1 – Mas você tinha interesse na questão da fé, mesmo, das crenças? Você tinha as crenças guaranis ou tinha mais crença...
R – Eu tinha as duas, porque eu acho que a gente tem que ter. Como eu estava no católico, então eu tinha que ter as duas. Não pode deixar uma, nem outra. Então, eu tentava ser as duas. Só que eles achavam, o discurso, né? Daí, o que aconteceu? O padre me tirou do seminário, porque ele falou que eu não tinha jeito pra ser padre. Daí eu falei: “Então está bom, se você está falando, se você sabe, porque eu acho que quem sabe é só Deus. Você está falando que eu não tenho dom, que eu não tenho condições. Eu estou aqui porque eu quero, porque senão eu não queria ser padre, porque eu quero ser padre, no sentido de lutar pela causa, então essa é a minha intenção”. E daí, quando ele me tirou do seminário, eu falei: “Então está bom, vou dar continuidade na minha vida e vou continuar a minha Filosofia”. Daí vim pra USP e dei continuidade, casei e nunca mais fui no seminário, né? E daí, o que acontece? Daí, até hoje, nesses 30 anos depois, meu sonho era encontrar esse padre, entendeu? Eu tinha vontade de chegar e olhar na cara dele e falar: “Mas você disse que eu não tinha dom pra ser padre e por que você renunciou ao sacerdócio?” Porque ele largou do sacerdócio. “Eu não larguei, você me mandou embora. Quem fez o maior erro? Quem cometeu pecado?” Porque ele falou que eu não tinha dom. Ninguém pode julgar o outro, pra falar se ele tem dom ou não. Se o cara está falando que quer, então deixa. Se um dia ele quiser renunciar, o problema é dele. Daí, o que aconteceu? Esse padre que me tirou do seminário, acho que três anos depois ele se apaixonou por uma mulher, casou e largou a batina. Então, eu queria perguntar pra ele um dia: “Porque eu não ia tirar você, chegar em você e falar: “Você tem que largar de ser sacerdote, porque eu acho que você não tem o dom”. Eu não posso falar isso pra ele. Porque isso aí é um problema dele. Ele renunciou, por quê? Agora, como ele vai fazer eu renunciar de uma coisa que eu achava que eu poderia ser padre, pra poder defender a causa? Daí, como ele tirou, eu falei: “Não vou mais atrás”. E daí, quando foi ver, eu conheci outros padres também, que eu tinha amizade com vários padres, daí eles falaram: “Então por que você não entra no nosso seminário?” Eu falei: “Não, agora eu não quero mais. Porque agora eu luto pela causa indígena do meu jeito, sem depender de ser padre”. Porque eu faço a mesma coisa. Hoje, os padres, meus amigos antigos, me veem no Facebook, daí... você entendeu? Continua do mesmo jeito. Porque naquela época eu lutava pela causa indígena e hoje eu continuo lutando, só que sem ser padre. Não precisa ser padre.
P/1 – Nossa, interessantíssimo! Aí você saiu do seminário, foi pra universidade?
R – Daí eu saí do seminário, que eu estudava na PUC, na universidade, só que daí eu saí, porque daí, na época, eu não tinha condições de pagar. Como eu vou fazer agora? Os caras me mandaram embora do seminário. Daí eu fui e consegui, um ano depois, pedir pra PUC cancelar as minhas dívidas, eles absolveram as minhas dívidas e deixou zerado. E daí eu falei: “Então vou tentar entrar na USP, porque lá não paga”. Daí eu consegui fazer a prova aqui, transferência, consegui passar e entrei aí. Daí eu fiquei quatro anos. Só que daí, quatro anos depois que eu estava fazendo Filosofia, porque na verdade eu tive que começar tudo do zero, que daí eu arrependi também, porque eu entrei na PUC, faltava um ano pra terminar. Daí, quando eu entrei aqui, tive que começar do zero, porque a USP não dá perdão pra gente. Você entrou, eles falam: “Não, tem que começar do zero, porque a USP é uma faculdade muito boa, a gente não pode se rebaixar”. É um absurdo. Então, eles não eliminaram as matérias que eu tinha feito. Tive que começar do zero.
P/1 – E como você continuou a sua experiência de indígena na universidade? Como é que era?
R – Então, na época, quando eu entrei na universidade, todo lugar que eu vou é assim, então as pessoas já olham, quem gosta de índio vem falar com a gente e quem não gosta, não olha, mesmo, né? Então, isso aí é coisa comum. Quando eu estava na PUC também foi a mesma coisa. Então, a gente, quando entra em um lugar, por exemplo, num restaurante, quem gosta de você, de índio, eles olham pra gente, cumprimentam, nem se não conhece a gente, mas veem que é índio e cumprimentam: “Opa, tudo bom?” Agora, quem não gosta, não olha, entendeu? E é preconceito, mesmo. E quando eu estava na USP foi a mesma coisa. Então, tinha aquelas pessoas que são mais chegadas na questão indígena, têm respeito, têm valor. Então, eles vinham conversar comigo e tinha uns que não vinham, porque não gostam, mesmo. Tem pessoas que não gostam de índio. Quando não gostam, não adianta você jogar sal na cabeça dele, pra ver se sai o diabo da cabeça dele, pra ele começar a gostar da gente, né? Não adianta. Ele não gosta, não gosta. Então, eu não chego perto dele, porque você sabe quem não gosta da gente.
P/1 - Como você sabe que não gosta?
R – Porque a pessoa não olha pra você, ele faz de conta que não te vê. Ele está do seu lado, entendeu? Eu, quando estava na USP, conheci antropólogo que não olhava pra cara da gente, entendeu?
P/1 – Nossa!
R - Eles não olhavam pra cara da gente. Então eu falei: “Que coisa de louco! Por que esse cara está trabalhando com a questão indígena, se não gosta nem da gente?” Na época, quando eu estudava na USP, tinha eu, o Daniel Munduruku e o Hiparendi, éramos nós três que fomos nos anos 90 que entramos na USP. Então, foi uma experiência muito grande na época. Porque, ne época, a gente até brincava, eu e o Hipa. Tinha um antropólogo lá que não gostava de índio, que ele falava que nós éramos modernos demais, que o índio dele era o índio lá que anda pelado, aquelas coisas assim, que não fala português. Então, essa visão de certos antropólogos, aquela visão preconceituosa que é o índio primitivo, pra ele ter o controle na mão e quando você vê um índio, hoje, fazendo universidade, entendeu, ele não gosta, porque ele quer um índio pra ele. O antropólogo não é dono da gente. Ele é apenas um estudioso. Então, eles passavam perto da gente, assim, na FFLCH, faziam de conta que nem viam a gente. Dai, ele não gosta da gente”. E não gostava, mesmo. Agora tem antropólogo que tem aquele respeito com você. Eu ficava impressionado, que eu conheci bastante gente da Antropologia, que era amigo da gente, estudante também, porque estudante tem aqueles uns que gostam da questão indígena muito forte e então tem um valor muito forte. Então, eu peguei amizade com bastante estudante de Ciências Sociais. Da Filosofia era menos, porque eu fazia Filosofia, mas os meus contatos eram com as Ciências Sociais. Porque a USP, muitos estudantes que estavam lá, eram filhinhos de papai, entendeu? Estuda Filosofia por prazer. Então, era um povo mais fechado. Então, era outra realidade.
P/1 – E essa coisa da escrita, como é que foi que você começou a escrever?
R – A escrita, isso que eu falei, desde o começo, aquela hora, que é essa questão da preocupação da questão indígena. Então, por isso que eu comecei cedo e daí eu tive sorte que meus filhos começaram mais cedo do que eu, né? Porque eu comecei a escrever, mesmo, aos 15 anos. Então, aos 15 anos, eu comecei a perceber que comecei a escrever as coisinhas. Escrevia, mas não guardava. Porque eu não tinha noção que eu ia ser um escritor um dia. Não tinha experiência. Então, eu comecei cedo, com essa questão da preocupação, de ver a realidade indígena, porque você vê as coisas e eu falava: “Isso aqui tem que estar escrito”. Então, por isso que essa é minha preocupação. Eu sempre falo: “Como hoje você tem escola nas aldeias, em muitas aldeias do Brasil, cada aldeia tem que descobrir seus indígenas, que tem talento pra ser escritor”. Então, escrever, entendeu? Então, escreve. Porque tem gente que fala: “Mas eu não sei como eu vou publicar”. Não. O importante é você escrever, igual eu faço. Quando eu comecei a escrever, eu guardava tudo no caderno. Hoje, eu, quando vou escrever uma história, já escrevo direto no computador, do computador passo para o pen drive e eu fico com as histórias guardadas. Quem sabe um dia dá certo, entendeu? Quem sabe um dia consiga publicar. Então, é isso que eu faço.
P/1 – Você foi na questão da causa, pra ajudar a causa. Só que como foi que a escrita foi se aperfeiçoando?
R – Então, eu comecei a escrever e daí eu fui só escrevendo. Eu escrevia tudo errado, com português errado, tudo rabisco, letra feia, porque na minha época não tinha computador, na minha época era caneta e papel. Então, eu pegava os cadernos e ia escrevendo as coisas. Então, assim eu fui levando a vida e daí, mas só que eu gostava muito de ler e então eu, nos anos 80, comecei a escrever muita história crítica, mas eu seguia um grande mestre da literatura, que era o Leonardo Boff. Eu sou da geração do Leonardo Boff. Não sou velho, assim, tanto, igual ele, mas eu sou da geração. Eu era garoto naquela época. Então, na década de 80, havia uma grande falação da Teologia da Libertação. Então, por isso que começou a haver uma grande preocupação minha, na época, porque a Teologia da Libertação se espalhou com as questões dos negros, a questão dos pobres, a questão dos indígenas e isso eu comecei a me preocupar nessa área, de escrever histórias assim. Então, por isso que eu comecei a ler muito Leonardo Boff e começou a desenvolver minha mente, porque minha mente era, assim, Nossa Senhora, uma visão que a gente nem dormia de tanto pensar. Então eu li Leonardo Boff, Frei Beto, gostava do Gutierrez, Pedro Tierra, que era um poeta que fala dos pobres, Henrique Dussel, que eu comecei a ler depois, mais pra frente. Henrique Dussel é o maior filósofo da América Latina, ninguém conhece, entendeu? O cara mais crítico da Filosofia, que fala da filosofia indígena e dos negros. Então, no Brasil não se fala, porque não pode dar valor ao indígena. Porque se todo mundo no Brasil ler Henrique Dussel, ia ficar espantado e falar: “Caramba, mas os índios são ricos de conhecimento”. Então, Henrique Dussel é o maior filósofo da América. Por isso que as grandes universidades, federais principalmente, ou estaduais, não se cita Henrique Dussel, entendeu? Tem que citar Kant, Descartes, Rousseau, entendeu? Agora o Henrique Dussel quase ninguém lê, entendeu? Então, eu comecei a ler esses caras. A mente da gente fica assim, voando, acendendo, brilhando, porque a gente quer escrever alguma coisa crítica. Então, foi isso que minha vida foi difícil, por causa disso, porque eu comecei a escrever dez anos só coisas críticas e não saía nada.
P/1 – Você escrevia e guardava?
R – Escrevia e guardava. Comecei a escrever histórias, contos, poesias. Eu escrevi um livro chamado... porque eu comecei a escrever poesias, eu consegui publicar um livro chamado 500 Anos de Angústia. Esse livro são poesias críticas. Eu nunca consegui publicar em uma editora, porque eu sei que, se mandar, não vai ser aprovado, mesmo. Então, eu fiz produção independente. Fui na gráfica, na editora simples, publiquei e paguei. Daí eu levo pra casa e vou vendendo para o público, de boca em boca. Então, isso que é difícil, porque eu acho que a literatura nativa é isso: é você transformar história verdadeira que acontece com os povos indígenas, quanto a questão contada, da oralidade, aprender, mas você criar história também dentro da própria aldeia. Então, isso é uma literatura nativa, que tem que chegar no povo. Não é essa literatura indígena de José de Alencar, entendeu? Que faz com que a sociedade crie preconceito, ainda mais, sobre os povos indígenas. José de Alencar escreveu um livro chamado O Guarani. Ficou famoso. Ficou tão famoso, que a Manchete resolveu escrever um filme, O Guarani. Aí eu morava em Curitiba, com essa família kaingang que eu te falei, com a índia xetá, que é filha dela, e daí elas: “Nossa! Já pensou a Manchete vai passar uma minissérie”, sei lá se era uma minissérie, alguma coisa, sobre O Guarani de José de Alencar. Eu falei: “Vamos tentar assistir”. Daí, beleza. O primeiro dia que nós fomos assistir o filme, não mexeu com a gente, a gente foi dormir, entendeu? Por quê? Porque não é a realidade do índio. Então, José de Alencar escreveu uma literatura indígena. Essa literatura indígena é preocupante, porque as pessoas inventam a história do índio, entendeu? Por isso que o índio tem que começar a escrever as suas histórias. Pra que daí a sociedade comece a entender melhor o índio e comece a valorizar. Agora, quando você escreve uma história que as pessoas inventam em cima das invenções dos outros, faz com que a sociedade crie mais preconceito ainda sobre a gente. Porque o preconceito já existe. E quando ele lê esses caras, daí faz com que o preconceito brilhe ainda mais na visão. Então, por isso que as pessoas falam assim: “Olha, vocês são assim e assim” “Nós somos assim, como? Não estou sabendo, não” “Mas eu vi no livro, fala que é assim” “Não estou sabendo”. Você entendeu? “Tal pessoa não sei o que, no livro fala isso”. E o cara vai e ainda fala assim pra gente: “Então vocês não são guaranis”. Você entendeu? E as doideiras dessa literatura indígena, que existe desde 1500, falando sobre o índio. Então, por isso que é importante valorizar o indígena que está ali na aldeia, que vive a sua realidade e daí, quando ele vai escrever uma história, ele escreve na visão indígena, mesmo, pra daí trazer esse conhecimento e fazer com que a sociedade respeite o índio, valorize, porque o índio tem que ser valorizado, porque a gente foi só explorado e a sociedade desvalorizou, desde 1500, pra fazer com que a sociedade veja que o índio não é ninguém na vida. E nós somos... eu sempre brinco pra sociedade, quando eu dou palestra, eu falo assim: “Nós, indígenas, somos uma potência, só que as pessoas não querem que descubram que nós somos”, você entendeu?
P/1 – Quando foi que você publicou o seu primeiro livro? Qual que foi?
R – O meu primeiro livro foi um livro sobre a cidade que eu morei, que eu estava, quando eu te falei que eu fui morar na cidade chamada Leopólis. Eu, quando morei lá, fiquei impressionado que daí a cidade toda gostava de mim, era impressionante. Eu fiquei valorizado pela cidade. Nossa, foi uma coisa assim... é uma cidade que eu não esqueço. E daí, quando eu vim pra São Paulo, eu resolvi e falei assim: “Eu vou escrever um livro sobre essa cidade, porque eu fui tão bem recebido lá na cidade, que eu vou fazer o contrário de José de Alencar”. Eu falei assim: “Porque José de Alencar escreveu sobre o índio e eu vou fazer o contrário: agora eu vou escrever sobre o branco”. Daí eu resolvi escrever um livro de poesias onde eu falava sobre o chafariz, a praça, não sei o que, pessoas, professores, fui contando um monte de coisa. E daí eu resolvi escrever um livro em poemas, pra falar sobre a cidade, a importância de valorizar essa cidade, que eu fui bem recebido lá, né? E daí eu vim pra São Paulo, eu descobri essa editora aqui em Pinheiros, fica aqui na Rua Lacerda Prado... Lacerda Franco. A editora é Scortecci. Fica aqui perto. Eu descobri essa editora e vim fazer um orçamento aí na época e resolvi publicar esse livro, foi o meu primeiro livro. Daí eu consegui lançar esse livro aqui em Osasco, no dia 16 de outubro de 1993. Eu sempre dou nas minhas palestras, quando perguntam, eu falo isso aí: “Meu primeiro livro foi lançado dia 16 de outubro de 1993, às duas horas da tarde”. Depois eu brinco, falo assim: “No dia do lançamento, foi na Câmara dos Vereadores de Osasco, não tinha muita gente, mas eu descobri qual foi a causa e eu não fiquei chateado, porque eu também sou fá dele, porque nesse dia estava acontecendo o show do Michael Jackson”. Então, Michael Jackson, como eu gosto, então eu não fiquei triste, porque se não tivesse o show do Michael Jackson naquele dia, quem sabe ia estar lotado, né? Brincando, isso é uma brincadeira, uma ironia, né? Então, foi nesse dia que aconteceu meu primeiro lançamento.
P/1 – E esse seu primeiro livro, então, foi uma antropologia do índio com o branco?
R – Isso, é. Hum hum.
P/1 – E o que você observou do povo? Você pode me contar?
R – Porque é aquela coisa: porque a gente fica contente quando as pessoas gostam da gente, porque tem pessoas que são apaixonadas pela questão indígena. Então, quando ele vê, ele te trata bem, tem um respeito muito forte. Então, quando eu morei nessa cidade de Leópolis, eu fiquei impressionado, que foi a cidade que eu passei que todo mundo... eu fazia duas semanas que eu já estava morando nessa cidade, a cidade toda, acho que tinha umas duas mil pessoas, dois mil habitantes, porque naquela época tinha muito sitiante e o povo trabalhava na roça e eu fiquei impressionado que todo mundo comentava: “”Tem um índio que chegou na cidade aqui”. Então, todo lugar que eu ia, Nossa Senhora, era incrível, daí a cidadezinha era pequena, e às vezes, sábado e domingo, o povo do interior vai tudo pra praça e daí eu ia pra praça também, passear. Nossa, todo mundo queria conversar comigo, não sei o que, jovens e a cidade toda queria que eu fosse almoçar sábado e domingo na casa deles e daí, todo sábado e domingo, eu almoçava na casa de alguma pessoa. Almoçava e jantava. E daí eu fiquei contente, falei: “Nossa, já pensou que as pessoas aqui me tratam muito bem, então isso foi uma coisa, assim, que me deixou inspirado. Por isso que eu comecei a escrever poesias, falando deles, né, do povo. E daí foi indo, fui continuando minhas poesias, até que depois eu comecei a mexer mais só com a questão indígena, porque daí eu falei: “Não, agora eu vou escrever só sobre a questão indígena”. Então, a questão do branco é mais pra escrever histórias, depoimentos. Foi só um exemplo que eu fiquei olhando, imaginando José de Alencar e eu falei: “Vou fazer o contrário: como ele escreveu sobre o índio, eu vou escrever sobre o branco”. Então, essa foi a minha ideia.
P/1 – E daí você caminhou pra onde? Você fez o seu lançamento.
R – Daí o livro ficou comigo e daí, como eu estudava na USP, então eu sempre levava. Também naquela época que eu estava estudando na USP, eu dava aula à noite e então às vezes eu ia fazendo contato. Eu sempre andava com uns livrinhos e então: “Eu sou poeta e tal”, daí eu ia vendendo. Vendia um livro, dois livros, três livros. E eu fui fazendo assim essa vida. Depois, quando foi no final de 93, começo de 94, daí eu falei pra cidade: “Eu lancei um livro sobre vocês, aqui, quero lançar aí o livro”. Daí eu fui lá na cidade, levei uns livros na prefeitura, fiz um lançamento do livro lá, que a cidadezinha é pequena, todo mundo fica sabendo: “O índio vai lançar um livro aqui”. Daí foi gostoso, porque daí a cidade toda sabe. Então, todo mundo sempre comenta desse livro. Então, até esses dias atrás, acho que um ano atrás, uma moça falou assim: “Eu ainda tenho seu livro até hoje”. Eu falei: “Caramba, já pensou?” Porque as pessoas que compraram o livro guardaram, porque é um livro inédito na cidadezinha pequena, o único livro que fala da cidade. Que é diferente de São Paulo. Se você jogar em São Paulo, ver livros que falam sobre São Paulo, você acha uma pancada. Agora, se você chegar e falar assim: “Tem livro escrito sobre Leópolis?”, você vai achar o meu, que foi escrito naquela época. Mas não tem, assim... porque foi uma produção independente, né? Mas depois fui dando continuidade nos livros, outros independentes, até que meu livro começou a crescer um pouco mais e foi surgindo pras editoras, daí eu fui começando a mandar, de vez em quando aprova um, aprova outro, porque não é fácil a questão, porque publicar um livro é difícil, mas a gente está na luta.
P/1 – Como foi que você conseguiu imprimir esse primeiro?
R – Então, pra eu imprimir... você fala o primeiro livro de Leópolis?
P/1 – É.
R – Então, como eu dava aula lá em Osasco, então eu fui nessa editora e falei pra eles: “Olha, eu queria publicar um livro, eu queria saber como funciona”. Daí ele me explicou, falou: “Se você publicar, publicação, você pode publicar quantos livros você quiser. Pode publicar dois livros. Mas cada preço vai aumentando conforme a coisa. Mas se você quiser a gente pode publicar cem livros seu, pode publicar duzentos, quinhentos, mil”. E essa editora Scortecci foi meu primeiro livro, então foi em 93, mas antes de eu lançar o meu primeiro livro, eu já tinha lançado poesias com livros de antologia dessa editora. Daí eu comecei, todo ano, lançar algumas coisas nessa editora, que eu estava no Paraná, quando eu estava no seminário, em Leópólis. Então, meu primeiro trabalho acho que foi publicado em 1984. Que eu mandei pra editora, eu descobri pelos jornais alguma coisa e daí eu fiz contato com a editora e ele falou: ‘Manda umas poesias, daí você paga, deposita no Banco, não sei o que”. Daí eu mandei duas poesias, daí saiu num livro, que era um livro de vários poetas e cada um tinha um espaço pra escrever duas poesias, duas páginas. Daí eu fiz isso aí. Depois, no mês seguinte, o outro semestre, fui lançando. Então, 84, 85 e 86. Então, foram três anos que eu fiquei publicando poesias nessa editora. Daí, quando eu vim pra São Paulo, que eu resolvi lançar o meu primeiro livro. Então, meu início de escrita foi assim: foram antologias. Então, por isso que eu falo: o livro, mesmo, foi 93, mas a publicação começou em 84. Então, por isso que eu falo que eu sou escritor daquela época.
P/1 – E, já que você falou nessa coisa da poesia, como foi você descobrir a poesia, mesmo? Porque eu já caminhei por muitas aldeias que eu falava que fazia poesia e o povo nem conhecia, assim. Como foi que você conheceu a poesia, que você começou a escrever e tudo?
R – Eu comecei a descobrir porque eu... deixa eu ver, lembrar alguma coisa assim, duas coisas junto, né?
P/1 – Primeiro como chegou em você a poesia?
R – Porque eu sempre fui brincalhão com as meninas, né? E, quando eu era moleque, molecão, eu sempre fui brincalhão com as meninas e eu gostava de elogiar as meninas, sabe? E eu falava: “Não sei de onde vinha essas coisas, porque naturalmente a gente não...” Se o cara falar assim pra mim: “Escreve uma poesia”, não sai, só que quando eu começava a brincar com as pessoas, parece que saía aquela inspiração, daí não sei o que, daí eu comecei a perceber que eu tinha o dom pra escrever poesias e daí, de repente, brincando com as meninas, porque tipo assim, no xaveco, hoje fala, né? Então, no xaveco, naquela época, com as meninas, eu ficava sempre brincando, porque as meninas gostam de elogio, né? Porque tem pessoa que não tem o dom de ser conquistador em palavras, é conquistador, mais direto e fica ali e eu, sempre, desde moleque, era brincalhão e as meninas sempre gostam de elogio e eu ficava sempre com esse jeito. E, nisso, eu comecei a perceber. Daí eles falavam: “Nossa, mas como você consegue falar tudo isso?” Eu falei: “Não sei, sai, vem na hora, vou coisando e tal”. Então, foi. E daí, de repente, quando eu era pequeno, então no Paraná a gente ouvia muita música sertaneja, porque era, sempre foi sucesso no Paraná. Então, eu ouvia muita música. Daí, de repente, quando eu comecei a escrever, eu comecei a perceber que eu tinha dom pra escrever letra. Eu comecei a escrever letras também. Daí, eu escutava uma música, bastava eu escutar uma música, daí eu colocava melodia na cabeça, tan tan tan tan tan e, conforme a melodia, eu escrevia uma letra, entendeu? Então, eu comecei a escrever, mesmo, foi letra, né? Só que eu não tinha dom, porque eu não sei tocar, eu não sei essas coisas, porque tem que ter tudo... eu criava a melodia e daí eu escrevia a letra. Daí eu cantava aquela música lá lá lá lá lá lá lá lá lá lá lá lá. Só que daí, depois, no dia seguinte, surgia outra inspiração e eu escrevia outra letra. Daí aquela lá já foi embora, porque eu não lembro mais, porque daí as pessoas falavam: ‘Não, quando você ouvir uma melodia na sua cabeça, você tem que pegar um gravador e gravar aquela melodia, pra daí você não esquecer, daí você passar. Daí fica guardado aquilo lá, pra daí um dia alguém que é cantor, vai cantar suas músicas”. E eu era moleque, não tinha experiência e ia morrendo tudo, eu deixava só escrito no caderno. Eu tenho as músicas escritas até hoje, estão num caderno. Não sei se está em Osasco ou está na minha casa. Está pra algum canto lá, está guardado. Então, na época, eu comecei a escrever letra, daí que eu descobri, que eu falei que eu sou poeta. Mas antes surgiram as letras. Escrevia música, né?
Então, foi assim que surgiu essa ideia de falar que eu sou poeta. Mas primeiro começou a letra.
P/1 – Você lembra alguma poesia sua?
R – Então, eu sou ruim pra guardar minhas poesias. Eu não guardo, assim. É difícil. Eu só lembro uma que ficou na história, porque eu morava em Curitiba e tinha uma índia, lá, na época, que veio de Santa Catarina e ficava lá na Casa do Índio e é de outro povo, eles são do povo xokleng. Daí eu a vi, uma índia muito bonita naquela época, né? E daí eu peguei e resolvi escrever uma poesia pra ela e ela não falava bem português. Daí eu peguei, declamei a poesia pra ela e falei assim: “Canta, canta, minha xokleng. Xokleng me canta”. Daí ela pegou e falou assim, naquele português rústico: “Você só escreve besteira?” (risos) Porque ela não entendeu nada o que eu falei, né? Ela não entendeu nada, então ficou, a cabeça dela, perdida. Só que daí eu não guardo poesia na cabeça. Então, eu lembro... deixa eu ver se eu lembro: “Em 1500 começou a injustiça, fomos invadidos, perdemos nossas terras, perdemos nossos rios, nossas madeiras e outras coisas mais. Por isso, irmãos, devemos estar sempre unidos, índios do Brasil, de todas as nações. Por isso, irmãos, devemos estar sempre unidos, índios do Brasil, de todas as nações”. Então, esse é o estilo que eu escrevo minhas poesias, né? Mas eu não guardo na cabeça. Eu guardei essa por acaso, porque eu gravei no CD do Wera, essa poesia e eu tive que guardar um pouco, mas eu não guardo, eu esqueço. Porque ele tem o dom de guardar minhas poesias na cabeça, né, que nem a poesia do meu livro 500 Anos de Angústia, é comprida e eu não guardo nenhum pedacinho e ele está na cabeça a poesia lá, ele a declama e eu falo: “Caramba, como pode, né?” Mas são dons diferentes: um tem o dom de criar a inspiração e o outro tem o dom de guardar a poesia, entendeu? Então, é importante a gente ter todas essas coisas. É igual os outros falam assim, a geração, né? As pessoas me veem no celular, a gente apanha, porque isso aqui é coisa moderna, né? E a gente que vem mais antigo, que é outra realidade, a molecada de hoje fica tuc tuc tuc tuc tuc. O que eu faço? Deixa eles fazerem pra mim, eles fazem, porque no futuro eles vão sofrer igual nós, porque daí vai vir outra tecnologia tão avançada, que quando eles tiverem com 40, 50 anos, igual eu, daí os filhos dele vão falar assim: “Nossa, mas como o pai é difícil pra entender as coisas”. Não, não é que é difícil, é porque as tecnologias vão mudando, seguindo a realidade da época. Então, eu sou da época que, quando eu comecei a escrever, eu escrevia com caderno, onde você escreve aqui, caneta e papel e guarda o caderno ali. Hoje, não. Hoje não tem como você escrever mais no caderno. Hoje é direto no computador e, no futuro, você vai dormir no sofá e você fica pensando e o computador vai escrevendo pra você tudo que você está pensando, entendeu? É assim. A tecnologia vai mudando conforme a época.
P/1 – Eu queria te fazer uma pergunta bem diferente: o que você tem de memória do fogo na sua vida?
R – De fogo? Eu, quando era pequeno, eu escutei muita história de contador de história do nordeste. E eu sempre tinha vontade de ver isso, porque eu sempre ouvia, lá no Paraná, os outros falarem: “Porque lá no nordeste, o povo muito devoto” e eu achava impressionante, porque lá no nordeste é muito forte, não conheço lá, mas eu ouço falar muito na questão da cerimônia que tem lá todo ano. Hoje eu não sei como é que está, mas naquela época, nos anos 70, 80, era impressionante que as pessoas contavam com muita fé, por exemplo, o povo da cidade do interior, que era não sei como é o nome e eu tinha vontade de ver, porque eu falava: “Como pode? Que fé danada que esse povo tem” porque as pessoas fazem uma fogueira e eles tinham uma fé tão grande no santo lá, não sei como é que é, que daí tinha a brasa, porque acendia a fogueira e depois ficava a brasa e as pessoas que eram muito religiosas, de fé, subiam na coisa e ficavam andando, entendeu? E a gente, se não tem fé, você põe a mão ali, queima na hora, né? E os caras andavam. E eu ficava ouvindo essas histórias, falei: “Caramba, como pode?” E daí a gente via sempre os comentários, que eu ficava impressionado. Desde a época do Lampião se escuta essas histórias, né? Então, Lampião era um cara religioso, muito crente nessas coisas. Por isso que fala muito que o Lampião estava naquelas guerras, mas ele era devoto de Padim Ciço, né? Eles falam muito dessas histórias. Então, essas turmas do nordeste eram muito devotos religiosos, que eles acreditavam... eu não sei como é a história. Eu sei que eles andam na brasa e eu sempre ouvia essa história e eu tinha vontade de ter visto isso, mas eu escutei muito essas histórias de fogo.
P/1 – Nossa! E de árvore? Você tem alguma lembrança sua, forte, com alguma árvore? Alguma história junto de alguma árvore, que te marcou?
R – Uma coisa que me marcou muito no Paraná, quando eu era pequeno, eram os pés de manga. Porque quando eu era pequeno, a gente, por mais que você morava numa cidadezinha do interior, só que a gente tinha costume de ir pros sítios, porque naquela época não era igual hoje. Hoje são fazendas imensas, né? Então você tirou muito essa questão de sítios. Então, o povo dos interiores, eles sempre estavam passando em regiões de sítios e então você via aqueles pés de manga, que o Paraná era uma região, até hoje ainda é, de muita manga. Então, era gostoso, porque você vai passear, visitar sítios, você ia visitar amigos em sítios e, quando você vai, você está com fome e, toda vez que você está com fome, você come uma manga. Então, a gente nunca passava fome, né? E hoje em dia, você, na cidade, pra você comprar uma manga, é caríssimo, né? Então, naquela época, era uma fartura. Então, quando eu era pequeno... porque eu gosto muito de manga, eu fico impressionado... às vezes eu estou no mercado, vou fazer compra, então minha mulher fala: “Compra suco” e então eu só compro suco de manga. Porque a manga, mesmo no suco, é a melhor fruta que tem, é o melhor suco que tem, que eu gosto, é esse. Então, eu sou apaixonado por manga. Gosto demais, demais, demais. Então, quando eu era pequeno, eu chupei muita manga na minha vida. Então, isso me faz lembrar quando eu era pequeno, né?
P/1 – Voltando a sua trajetória, você publicou o primeiro livro, lá na cidade...
R – Isso, lançamento.
P/1 – E aí, o que você decidiu fazer da sua vida, como caminhou?
R – Daí depois eu lancei o livro, daí voltei pra São Paulo, fui só lançar o livro lá, daí continuei, eu já estudava estudando aqui na USP, só que daí, depois, em seguida, isso em 94, depois, quando foi em 95, eu casei, aí trouxe a mulher pra São Paulo, falei: “Estou estudando lá na USP, não vai ter como morar aqui” e ela falou: “Então vou morar com você lá em Osasco, mesmo”, daí fiquei morando em Osasco. Só que daí, depois, ficou aquele problema que ela ficava com muita dor de cabeça e daí, na época, eu falei: “O jeito é eu ir pra aldeia, então”. Que eu vi que sarava a dor quando eu ia pra lá, né? Não ficava com dor. Então resolvi: “Vou ficar aqui um tempo. Daí, depois eu termino a faculdade. Daí eu vejo como eu faço pra terminar depois”. Faltava, porque na USP é crédito, as optativas eu já tinha terminado tudo e as obrigatórias faltavam acho que 40 créditos ainda. Então, faltavam esses créditos e eu falei: “Depois eu venho terminar”. Daí eu fui pra aldeia e daí, de repente, a aldeia, naquela época, era muito difícil, não tinha nada, tinha um cacique da época, que era o Nivaldo, que faleceu e daí a gente começou a ajuda-lo, porque naquela época a dificuldade era grande, que não tinha muito contato com a cidade. Daí eu comecei a fazer contato, tentar receber escolas na aldeia, fazer divulgação e começamos a fazer uma coisa, de vez em quando ir pra cidade dar uma palestra, a gente pedia pra fazer uma campanha de alimentos pra ajudar a aldeia e então a gente começou a mexer muito nessa questão e daí foi indo, foi indo, foi indo, foi passando o tempo, daí de repente eu saí dali, resolvi sair dali, fui para o Paraná de novo, daí fui para uma aldeia lá no Paraná chamada Laranjinha, que fica perto de Cornélio Procópio também e, chegando nessa aldeia, daí eu resolvi, consegui pegar umas aulas lá pra eu dar aula. Daí eu peguei, fiquei dando aula por um ano e pouco, um ano e meio. Daí, com o passar do tempo, o projeto, que era de uma ONG, venceu e o governo não renovou, daí eu perdi o emprego, fiquei desempregado e falei: “E agora?” Daí eu ganhei a rescisão de contrato, fundo de garantia, essas coisas, naquela época 550 reais. Em 1999. Eu falei: “O que eu vou fazer com esse dinheiro agora, quando acabar, o que eu vou fazer aqui na aldeia?” Porque na aldeia, lá, no Paraná, o único serviço que tinha era a roça, trabalhar na roça para os brancos. Os brancos vêm buscar os índios lá na aldeia. Daí eu fiquei pensando: “O que eu vou fazer? Eu vou em Londrina”. Daí eu peguei e fui em Londrina, levei umas poesias minhas e falei: “Olha, eu queria publicar um livro, queria saber como você faz, tal, tal, tal, tal”, peguei e entreguei a poesia pra ele e falei: “Vamos fechar, então, com 250 livros e daí eu pago 500 paus que você está cobrando”. 500 ou 450, alguma coisa assim. Daí eu fechei com ele, fui pra lá, uma semana depois eu voltei pra buscar os livros, que já estavam prontos. Daí ele viu e falou: “Eu vi que você é um cara esforçado, rapaz. Você, lá da aldeia, vai e vem, correria pra lá e pra cá, seu esforço pra publicar um livro e eu resolvi dar uma ajuda pra você: 250 livros eu fiz 300, 50 a mais pra você de graça”. Eu falei: “Que beleza!” Daí eu voltei pra aldeia com os livros e cheguei lá e falei pra turma, pra aldeia, para o cacique: “Eu vou lançar um livro aqui”. Daí a cidade toda ficou sabendo que eu ia lançar o livro: “Então vamos lançar aqui, não sei o que, na cidade, na praça, não sei o que”. Eu falei: “Não, eu vou lançar o livro na aldeia, porque a gente tem que valorizar o nosso nome na aldeia. Se eu fizer aqui, daí eu vou ter que trazer a turma da aldeia pra cá, é outra realidade. Eu acho que nós temos que valorizar o nosso nome lá dentro. A aldeia tem que ser respeitada, tem que ser valorizada”. Daí, quando foi ver, a cidade de Londrina ficou sabendo que eu ia lançar um livro, daí eu fui lá em Londrina, falei pra um jornal: “Olha, eu vou lançar um livro, eu queria saber de vocês se vocês dão uma força pra mim aí, tal, tal” e daí o cara falou: “Então está bom, tal, tal”. Daí, o que aconteceu? A Folha de Londrina não deu muita atenção. Daí o cara colocou na última página, três linhas: “Olívio Jekupe, índio guarani lá da aldeia de Laranjinha, vai lançar um livro chamado 500 Anos de Angústia”. Só isso. Uma frase, assim, pequenininha. Daí, o que aconteceu? Só que os outros jornalistas de outros jornais, ficaram observando tudo que acontece, porque jornalista é aquela coisa: quando ele não valoriza um, mas tem outro que vai e pega. Daí, quando foi ver, o Jornal da TV Gazeta, jornal Gazeta do Paraná, viu a matéria. Quando saiu a matéria domingo avisando que eu ia lançar o livro, daí eu lancei o livro no domingo na aldeia... isso aí foi no ano de 1999, que eu lancei o livro lá chamado 500 Anos de Angústia, saiu a frase desse tamanhozinho na Folha de Londrina, quando foi ver o jornal Gazeta do Paraná viu a matéria e falou: “Caramba, um índio lançando um livro na aldeia”. Quando foi ver, no outro dia, na segunda-feira, chega um carro de Londrina, daí eu vi escrito Gazeta do Povo. Eu estava na aldeia e eu fui indo pra cidade, porque a cidade é longe, tinha que ir a pé naquela época. Daí eu estou indo a pé pra cidade, que dá mais ou menos uns quatro quilômetros a pé, até chegar na cidade, né? Tem que comprar as coisas, tem que ir a pé. Daí eu estava indo a pé. Na hora que eu estou passando na estrada, passou um carro correndo perto de mim, poeirão danado no norte do Paraná, daí passou um carro e eu vi escrito Gazeta do Povo. Quando eu vi essa Gazeta eu falei: “Esse cara veio atrás de mim”. Voltei, virei pra trás de novo e comecei a vir pra aldeia. Daí eu vim embora, pa, pa, pa, pa, daí, no que eu chego em casa, que eu vim rapidinho, né? Vim tentando um pique mais rápido, pra chegar em casa, daí acho que eu gastei uns 30 minutos, daí consegui chegar em casa. No que eu cheguei, o jornalista estava lá em casa, me esperando. (risos) Daí já conversou com minha mulher, tinha duas criancinhas pequenas na época, uma hoje está grande, a outra morreu e daí elas eram pequenininhas, ficaram conversando, tirando fotos, conversando com minha mulher, que não entendia direito. Daí eu cheguei lá e falou: “Você que é o escritor?” Eu falei “É”. Ele falou: “Dá pra gente conversar?” Eu falei: “Dá”. O cara tinha visto a matéria na Folha de Londrina, daí foi bom, porque quando foi ver, no dia seguinte, saiu numa página sozinha, só pra mim. A página do jornal é grande, né? Daí sai lá fotos minhas com as crianças, eu lá na aldeia contando história, tal, tal, tal, tal, saiu uma imensa matéria. A Folha de Londrina morreu de inveja depois. Falou: “Já pensou? Perdemos. O jornal, o outro, aproveitou o embalo”. E daí foi uma matéria inédita, porque ‘Índio lança livro na aldeia. Primeira vez que um índio lança um livro numa aldeia’. Então era uma novidade, só que o jornalista não deu atenção, não valorizou. Então, às vezes, tem muito jornalista, não importa de que área, mas eles sempre fazem a besteira, então, quando ele tem preconceito, daí o outro vai lá, pega e daí adeus. Ele vai e ganha em cima. Daí eu fiquei contente com o jornal, que a matéria saiu e foi uma coisa bonita. Todo mundo viu: “Nossa, saiu no jornal”. Porque a tecnologia da época dos anos 80, 90, até 2000 era jornal, porque pra sair uma matéria no jornal não era fácil. Hoje não, hoje tem jornal pra todo canto, né? Tem revista, tem Facebook, tem internet, tem whatsapp, qualquer coisa que você coloca, você consegue divulgar. Naquela época, não. Naquela época era jornal. Quem conseguisse chegar no jornal, estava feito. E hoje, quando sai no jornal, ainda sai digital ainda. Fica lá pra sempre, pra vida toda, né? Essa noite, mesmo, eu saí na TV Gazeta. Mas não vi ainda, que não tive tempo, né? Eu fiquei a noite toda acordado, pra ver, eu fiquei assistindo o programa Encrenca, na Rede TV e daí, quando chegou onze horas, eu passei no canal da TV Gazeta. Quando chega
na TV Gazeta, o canal não estava pegando. Eu falei: “Caramba, passei a noite toda esperando”. Daí agora entrei em contato com a mulher do jornal e falei: “Depois, a hora que vocês colocarem no You tube, me enviam o link, pra eu assistir, né?” Então, hoje em dia, a tecnologia está assim, mas naquela época, não era assim. Então, eu tive uma sorte danada pra divulgar meu segundo livro.
P/1 – E como foi o lançamento na aldeia?
R – Então, foi muito gostoso. Como a cidadezinha é pequena, todo mundo ficou sabendo: “O índio Jekupe vai lançar um livro na aldeia” e todo mundo queria que eu lançasse na igreja, outros no pastor, outros na prefeitura, eu falei: “Não, é na aldeia que eu vou lançar, porque a gente mora na aldeia, a gente tem que valorizar o nosso povo. Não é eu ir lá na cidade”. Daí, o que acontece? Daí eu convidei alguns amigos da cidade pra ir: “Vou lançar um livro aqui, tal, tal”. Saiu no jornal, todo mundo comentando. Quando foi ver, no dia do lançamento, vieram alguns amigos meus de Londrina, quando viu apareceu gente de Cornélio Procópio, que ficou sabendo, daí apareceu gente lá pra ver o livro, quando eu olho, demora um pouco, porque na cidade pequena é engraçado porque existem três pessoas que são conhecidas, quem? O pastor da cidade, o padre e o prefeito. Vieram os três. Estavam os três: estava o pastor da cidade e um padre e o prefeito e alguns vereadores vieram também e alguns fazendeiros. Daí vieram, todo mundo, assistir, papapapapapa, bonito, estava arranjado. Não convidei ninguém, mas vieram, porque ficaram sabendo, entendeu? Se eu fosse na cidade, ia lançar o livro lá e podia estar lotado de branco, mas os índios das aldeias, nossos parentes mesmo, iam se sentir incomodados, com vergonha, porque daí todo mundo ia ficar em cima de mim, como aconteceu e, como está na aldeia, a turma fica mais à vontade. Então, a gente tem que valorizar o nosso povo dessa forma. Então, foi muito gostoso o lançamento na aldeia Laranjinha. É uma aldeia que eu tenho muitas saudades de ir lá. Às vezes eu vou passear lá. Eu estive esse ano agora. No final do ano agora, em dezembro, eu fui levar o Wera pra cantar, fazer um show lá na aldeia, que daí tem duas aldeias: o Posto Velho e a aldeia Laranjinha. O Posto Velho é uma ocupação que os índios perderam essas terras, os fazendeiros invadiram e eles reocuparam esse território, que está na luta ainda. Então, eu fico feliz que os nossos parentes guaranis estão lá lutando pela demarcação. Uma coisa muito triste, porque os fazendeiros ameaçam, falam, sempre querem assustar o povo das aldeias. Isso é comum no Brasil. Mas as pessoas têm que ter força, acreditar e lutar, que um dia vai conseguir.
P/1 – Deixa eu te perguntar um negócio, essa coisa que você está falando, muito importante, que eu achei, que além da parte mitológica das histórias, assim, trazem coisas sociais. Você sentiu, em algum momento, que a sua literatura ajudou socialmente, assim, as questões indígenas e guaranis?
R – Hum hum. Eu acredito que sim porque, por exemplo, a literatura fez muitos professores conhecerem um pouco melhor a realidade indígena. Porque falta conhecimento. Então, não adianta o professor falar do índio sem conhecer. Então, as pessoas, a partir do surgimento dos escritores indígenas, esses professores começaram a entender melhor porque o índio é assim, assim e assim, cada etnia. Então, as pessoas chegam na aldeia e, por exemplo, nossos jovens fumando cachimbo. Ué! Tem que entender que faz parte da cultura guarani, da força, da crença. Por exemplo: um livro meu, que eu lancei com a minha mulher, chamado A Mulher que Virou Urutau. Muitos brasileiros não sabem o que é essa ave, urutau. Muitas pessoas não têm noção porquê o guarani fala o lua. E o povo da cidade fala a lua. Tem diferença.
P/1 – Por quê?
R – Porque na cidade as pessoas falam a lua como feminino. Nós falamos o lua, porque o lua é masculino. São crenças diferentes. O lua é o Jaxi, que é irmão do Kûara. Que o sol é irmão do Jaxi. Então, o branco fala o sol e a lua, entendeu? São diferentes. Então, as pessoas começam a perceber que o mundo indígena é diferente. Então, é preciso respeitar. Eu sempre falo que, quando você respeita um povo, você consegue entender melhor. Aconteceu um negócio esses dias atrás, eu sempre falo assim: “Eu respeito toda a religião, mas só que ele tem que respeitar a minha também. Se ele não respeitar, daí eu meto o pau. Porque você tem que respeitar a religião do outro. Se você não respeitar, eu tenho direito de meter a paulada na sua cabeça, porque você está me desrespeitando”. Então, eu sou seu amigo. Então, quando nós acabarmos a coisa aqui, quando você chegar na sua casa, você vai fazer sua crença do jeito que você quer e eu faço do meu jeito. Então, ninguém está errado. A partir do momento que eu falar que você está errado, aí você cometeu um erro. Então, eu fiquei impressionado esses dias atrás, eu vou contar um negócio aqui: eu peguei o carro da minha filha e fomos em um sítio lá em Imbura, que ia tomar ayahuasca. Foi eu, o Wera, minha mulher, a mulher do Wera e o filhinho dele. Aí fomos de carro. Só que, antes disso, eu falei: “Vamos passar na colônia primeiro, que precisa colocar gasolina, que está vazio. Está meio seco. Vamos pôr, pra gente não ter... a gente vai vir de madrugada”. Daí, quando eu estou passando, quatro horas, cinco horas da tarde, eu passo no posto de gasolina lá na colônia, encostei o carro, sou amigo dos caras, falei: “Coloca aí 50 paus de gasolina”. Bem na hora que eu estou ali conversando com os caras, com os frentistas, demora um pouco, ia passando por trás, vinha vindo a procissão dos católicos. Eu sei como que é muito bem a procissão dos católicos: aquelas imagens, cantos de música à Nossa Senhora, não sei o que. Daí, os católicos, no posto, todo mundo católico olhando, ficam contente de ver quando veem procissão, bem na hora que passam os católicos, estão vindo pela estrada, estava tendo culto dos evangélicos na outra esquina. Os evangélicos, quando viram o pastor, falaram: “Fecha a coisa, porque os diabos vêm vindo”. Então, aquela coisa humilhante, humilharam a outra religião. E eu fiquei olhando assim, falei: “Caramba”. E os crentes plá, plá, fechando tudo as coisas. E os católicos, o padre olhando, as freiras e as crianças observando. O que a criança... é um crime você fazer isso aí com uma criança, porque a criança está sendo humilhada, faz parte da religião dela. Então, você fazer uma coisa dessas aí! Eu olhei aquilo, eu peguei e falei: “Caramba, que absurdo!” E os caras, frentistas, que eu percebi que eram católicos, falaram: “Caramba, que falta de respeito! Os caras da religião estão passando, católicos, tem que respeitar. Pra que fazer isso aí com o povo? Fechar a coisa na frente deles, pra humilhar”. Daí eu fiquei só olhando, né? Eu olhei, falei: “Caramba, como pode, né? Os caras não vão reagir. Eles vão, só, falar”. Daí eu peguei e falei: “Caramba, coisa feia os caras fazerem isso aí na frente! Não pode humilhar os outros”. Daí eu peguei e falei: “Eu vou lá falar, dar uma dura nesses caras lá”. Daí eles fecharam todas as coisas, ficaram todos os crentes lá dentro e ficou um lá fora. E o cara encostou um carro do lado. Daí eu peguei e falei: “Espera um pouquinho, que eu vou lá falar com eles, vou dar uma dura neles”. Daí o cara falou assim: “Vai mesmo, vai mesmo”. Porque eles não têm coragem de ir, né? Eu falei: “Deixa que eu vou lá”. Eu parei, saí do posto, encostei o carro assim bem do lado, que eu sabia que os caras iam sair, encostei o carro. Em contramão, encostei o carro bem do lado. Daí ele foi educado, né? Porque na hora deles fazerem essa sacanagem, eles fazem. E, na hora que eles querem ser educados, também. Daí ele pegou e falou assim: “Faz favor, dá pra você sair daí, que o rapaz vai sair com o carro”. Daí eu peguei e falei assim: “Não, eu não vou sair daqui”. Falei assim, na cara dele, né? “Não vou sair, porque está tendo procissão ali e eu tenho que respeitar a religião dos outros. A hora que eles saírem de lá, eu saio”. Daí o cara ficou sem jeito. Daí eu falei, comecei a falar um monte pro cara, né, do lado ali do posto: “Vocês têm que respeitar a religião dos outros, porque toda religião tem que ser respeitada. Se você não respeita a religião dos outros, você não tem moral nenhuma”. Daí eu peguei e falei: “Está vendo?” – falei assim, pra assustá-los: “se eu vier aqui outro dia, eu vou trazer 40 índios aqui e nós vamos meter a flechada em vocês, só pra vocês verem como é, que vocês têm que respeitar a religião dos outros”. Falei desse jeito e os caras sabem que lá nós moramos na aldeia, sabem que tem aldeia ali, ficaram quietos. “Não, mas estou pedindo fazendo um favor, dá licença, porque o carro vai passar”. Daí eu peguei e continuei falando, falei: “Seus filhas da puta” – na cara dura, mesmo – “vocês têm que respeitar a religião dos outros, porque vocês viram esses dias atrás? Os muçulmanos mataram 40 evangélicos lá na África, deviam ter vindo matar vocês aqui”. Falei na cara dele. “Vocês não têm respeito pela religião dos outros. Você tem que respeitar. Se você não respeitar a religião dos outros, aí você tem que levar na cara”. Eu falei desse jeito, mas duro, porque eu sempre falo isso aí. Crente me ofendeu... lá na aldeia, quando chega e vem dar uma de duro, eu... porque toda religião está certa, por que o que as religiões falam? Qual é a essência? Deus. Se ele fala diferente, se ele fala isso, fala aquilo, se a língua é diferente... porque Deus, a única coisa que está certa, Deus é só em português? Não. Deus é em africano, línguas africanas, línguas indígenas, porque Deus são palavras diferentes, conforme a língua e as crenças também são diferentes. Então, você tem que respeitar. Então, eu sempre falo assim: “A partir do momento que você não respeitar a minha religião, eu tenho direito de meter a paulada na sua cabeça, porque você está me desrespeitando”.
P/1 – Teve algum momento que você se sentiu desrespeitado, você mesmo sentiu na sua pele um desrespeito forte?
R – Na aldeia?
P/1 – É, na sua aldeia.
R – Sim, a gente já foi desrespeitado várias vezes. E às vezes eu tenho que enfrentar os evangélicos, porque os evangélicos, quando vêm na aldeia, acham que são poderosos, entendeu? E não pode. Eu sempre falo assim, porque se a gente não for duro com eles, eles começam com discurso e não têm que ficar fazendo discurso, deixa quieto, entendeu? Você só cala a boca do evangélico, quando você fala que vai meter uma facãozada na cabeça dele, entendeu? Daí ele respeita, entendeu? Porque você tem que respeitar. Eu respeito a sua religião, só que você tem que me respeitar, entendeu? Eu respeito a sua mãe, mas se eu xingar sua mãe, você vai virar uma onça, entendeu? Porque nós aguentamos tudo, mas a partir do momento que você xingou a sua mãe, o ser humano vira uma onça, entendeu? Igual religião. Eu tenho a minha religião, tenho que seguir a minha religião. Se você vem falar mal da minha religião, então eu viro uma onça. Então, por isso que eu falo: “Você tem que falar duro, porque não adianta ficar falando, porque eles vão ficar com discurso, que não sei o que, que está errado, não sei o que”. É igual: a gente tem religião, mas muitos indígenas... porque eles acreditam no cristianismo de formas diferentes. Então, por exemplo, como ele aprendeu a questão do cristianismo, tem indígenas que às vezes gostam de usar imagens em casa também, igual católico. Então, minha mulher tem imagem, por exemplo, de Nossa Senhora, guardada. Está lá na casinha do mato, a gente tem a imagem lá. E os crentes, quando vêm, nas aldeias, ficam reparando, né? E daí um dia chegou um crente na minha casa e ele ficou reparando a imagem. No que eu reparei que ele estava reparando a imagem, daí eu comecei a falar assim: “Você vê, isso aqui é da minha mulher. Então, ela tem muito respeito pela Maria, que é mãe de Jesus e ela ganhou isso, está guardado. Eu sei que lá com os evangélicos é diferente, né? Até esses dias atrás a gente viu que os evangélicos entraram numa igreja católica e destruíram todas as imagens, né? Tenta quebrar essa imagem dela ali, pra você ver o que vai acontecer. No mínimo, você vai sair com o pescoço cortado aqui, porque ela vai pegar um facão, porque você está desrespeitando. Você está na casa dos outros, não respeita. Se você tiver coragem de quebrar essa imagem, como o cara fez lá, eu tenho certeza que minha mulher vai pegar o facão e vai te meter a facãozada no pescoço”. O cara ficou quietinho.
P/1 – Mas ele estava falando em quebrar a imagem?
R – Eu falei pra dar uma tocada, né? Porque a gente sabe que eles ficam olhando e eles não gostam. Porque os evangélicos não respeitam a igreja católica. Tem que respeitar, porque toda religião tem que ser respeitada. A umbanda tem que ser respeitada. É o jeito deles, cada um tem as suas crenças, são formas diferentes. Então, eu respeito a umbanda, o candomblé, católico, evangélico.
P/1 – E a sua, mesmo, é qual?
R – A religião guarani é diferente. A religião nossa é um culto. É uma forma cultural que existe, que à noite as pessoas vão chegando na casa sagrada e daí as mulheres acendem a fogueira, vão cortando fumo, as pessoas vão chegando, vão sentando, vão contando um causo, depois as pessoas vão, colocam bancos, o pajé começa a fazer as curas, depois tem um momento de cântico, daí as pessoas já preparam, tocam violino, violão, já se preparam as meninas e os meninos, daí já faz um cântico, vai passando as horas e depois tem um momento que daí as mulheres já cortaram o fumo, já prepararam, daí começa a distribuir os cachimbos, vai e fuma o cachimbo, o cara vai lá fazendo. Então, a forma nossa de ritual é assim: é você contemplar Deus através do fumo, entendeu? Então, a gente fala com Deus através do fumo e do cântico, que esse é o jeito do guarani.
P/1 – Teve alguma vez... eu sei que teve várias, mas qual foi uma que você pode me contar que sentiu uma presença espiritual, mesmo, no seu caminho?
R – Foi o dia que minha filha morreu, né? Daí eu não esqueço até hoje, né? Que a gente que é filósofo, dorme com a cabeça quente, de tanta preocupação, porque por mais que você acredita, mas a gente fica meio fraco nas crises, porque a cabeça da gente é cheia de ideias, né? Então você fica naquela teoria, porque você estuda dos dois lados, o ser ou não ser, eis a questão. E tudo vem, essas ideias. E a gente fica naquela teoria, porque a gente estuda os dois lados. Então, eu estudei na Filosofia a existência de Deus e depois eu estudei a não existência. Então, você estuda os dois lados. Então, a cabeça da gente fica um bagaço. E a cabeça da gente fica assim. Quando minha filha morreu, no ano de 2000... no ano de 2000 eu perdi uma filha de três anos. E daí, quando a gente veio fazer o velório, à noite, lá na aldeia, eu chorei muito, minha mulher chorou, foi uma coisa muito triste, a gente ver aquele velório. Vieram muitos amigos meus da cidade, participarem do ritual, da cerimônia que a gente faz à noite e eu estou ali, acompanhando, muito angustiado, com muito choro e daí, de repente, a menina dormindo no caixão, todo mundo fuma no cachimbo, que a gente faz as cachimbadas e ela deitada e a gente olhava nela, parece que está dormindo. Daí, demora um pouco, eu peguei o cachimbo, fui lá fumar chorando e daí eu pus a mão no peito dela, né? No que eu pus a mão no peito dela, daí ficava assim, aí eu levei aquele susto, porque fez desse jeito assim: hunfffffff. Daí tirei a mão, levei aquele susto e falei: “Caramba, o que será?” Daí eu olhei pra trás, assim, a turma todo mundo normal ali, daí eu peguei e pus a mão de novo. No que eu pus a mão, hunffffffffffff, hunfffffffffff, hunfffffffffffff. Daí eu peguei, levei aquele susto, tirei de novo, falei: “Caramba, o que será que está acontecendo? Será que eu estou ficando maluco? Vou pôr a mão pela terceira vez, pra ver se eu estou louco ou não, se eu fiquei doido”. Daí eu pus a mão, no que eu pus a mão, do mesmo jeito: hunfffffffffff, hunffffffffffffff. Daí eu mexi assim: hunffffffffffffffff, hunffffffffff. Daí a menina estava acordada: hunffffffffffffffff, hunffffffffffffffffff. Ela fazia desse jeito. Eu peguei, levei aquele susto, tirei a mão pela terceira vez, olhei pra trás. Achei estranho. Daí fiquei pensando: “Será que eu chamo o pajé e falo pra ele o que está acontecendo? Mas será que ele vai pensar que eu estou maluco? Porque, se ele falar que não está acontecendo nada, ele vai falar que eu estou ruim, com problema de cabeça, estou maluco”. Daí eu peguei e fiquei com medo de falar, chamar o pajé, o que está acontecendo, que eu ponho a mão e faz hunffffffffffff, hunfffffffff, daí eu saí, que estava de noite, saí da casa de reza e, quando foi ver, um amigo meu que estudou na USP, chama Sidnei, era sociólogo, tinha terminado Sociologia, estava estudando Sociologia ou terminou, parece, na época, viu tudo que estava acontecendo, pondo a mão e ficou observando, viu que tinha alguma coisa errada. Saía, punha a mão. Ele achou estranho e pegou e fingiu, levantou devagarzinho, que todo mundo sentado, ele levantou e chegou no corpo da menina também. Daí ele pegou e resolveu pôr a mão. No que ele pôs a mão: hunffffffffffff, hunffffffffffff. Daí ele pegou e disse que tirou a mão. Daí ele pegou e pôs a mão de novo, no que ele pôs a mão: hunffffffffffff, hunffffffffffff. Daí ele pegou e falou: “Caramba, por isso que o Olívio saiu de perto”. Daí ele pegou, abriu a porta e saiu lá pra fora. Daí ele pegou e veio conversar comigo. Daí ele pegou e falou assim pra mim: “Eu vi que você colocou a mão na sua filha três vezes e eu já sei porque você saiu”. Eu falei: “Pois é”. Daí ele falou assim: “Sabe o que é?” Ele falou na minha cara: “Deus provou pra nós a existência dele. Não tem como duvidar, mais. Agora eu acredito”. Daí eu falei: “Pois é, eu também não tenho como duvidar mais”. Deus provou a existência dele pra mim e pra ele através da menina, que ele falou que as crianças morrem, mas ela está viva, porque ela vai para o Paraíso, mesmo. Então ela não está morta. É só o corpo que morreu. Mas o espírito continua vivo. Então, foi uma forma, assim, de mostrar. Ainda mais ele que fazia Sociologia, meio descrente e eu fazia Filosofia, então ele falou assim: “Viu só como Deus prova pra gente?” Daí eu falei: “A partir de hoje nunca mais duvidei”. Então, eu acredito em Deus por causa da minha menina. Porque quando o corpo está morto, está assim. E quando você põe a mão no ser vivo, faz assim: hunffffffffffff, porque está vivo. Então, como a menina, eu punha a mão, porque ela está morta, nela, daí ficava: hunfffffffffffffff? Então, Deus provou pra mim que o corpo morreu, mas o espírito dela vai estar vivo. Então, não precisa se preocupar. Então, é assim que a gente acredita em Deus, porque Deus... a gente morre, mesmo, mas é o corpo só. Então, o corpo está vivo. Essa foi a minha maior prova que daí, quando os outros perguntam, falam pra mim: “Você acredita em Deus?”, eu falo: “Acredito” “Mas você tem prova?” Eu falo: “Tenho, através da minha filha. Deus mostrou pra mim”. Eu fiquei impressionado, você põe a mão na pedra, a pedra está ali, dura, mas você põe a mão no corpo morto, está assim, também, duro. Eu punha a mão: hunfffff, fazia assim: hunffffffff, sentia o movimento do corpo dela, que é o espírito dela, estava mexendo comigo, mexia assim, normal, como se estivesse viva, então estava só dormindo. Então, foi a maior experiência que Deus mostrou pra mim que ele existe. Então, não tem como duvidar dele. Então, essa é a maior prova.
P/1 – História forte!
R – É, muito forte.
P1 – Eu queria que você contasse um pouco, voltando, como se seguiu, não vou fazer você falar de cada um dos 17 livros. 17 bom são os seus livros, né? Que você contasse um pouco como foi sua trajetória de escritor, do momento que você lançou o seu livro na aldeia, até hoje, o que você fez que te marcou?
R – Isso. Quando eu lancei esse livro em Laranjinha, eu fiquei impressionado, porque daí eu tinha um pouco do primeiro livro, e tinha esse livro que eu lancei, 500 anos de Angústia e daí eu comecei a perceber que era difícil vender o livro lá, independente, porque como na aldeia ninguém vai comprar livro, porque o povo não tem dinheiro, índio não vai comprar livro, porque não tem dinheiro, é difícil, porque trabalha na roça e percebi que o povo da cidade também não ia comprar, porque na cidade, o povo trabalha na roça. Naquela época, o povo ganhava sete reais por dia pra trabalhar na roça. E meu livro custava sete, então quem vai comprar um livro? Daí eu tive outro problema: os fazendeiros, tem muitos fazendeiros, muita gente de fazendas, só que o fazendeiro não tem costume de ler, porque muitos deles não têm nem estudo, então eles não têm o hábito. Então, pro fazendeiro, sete o livro, era caríssimo. Então ele gastava, naquela época, nos anos 90, 99, quando eu lancei o livro, 50 reais tomando cerveja, não era caro pra ele, mas um livro era. Sete reais era caríssimo. Então, no dia do lançamento do meu livro, eu percebi isso aí. Que um fazendeiro não queria comprar, daí a mulher dele o incentivou, falou, ficou falando: “Compra, pra ajudar o índio”. Daí foi indo, arrancou os sete reais, mas foi um sufoco. E eu o encontrava toda semana nas praças jogando dominó, que é jogador de dominó e tomando cerveja. Então, o cara passa uma noite, naquela época, gastava 50 reais tranquilo, como se fosse hoje, continua do mesmo jeito no Paraná, a cidade. Se você chegar lá hoje, no sábado ele fica jogando dominó, baralho, eles gastam 500, 700 paus de cerveja numa noitada, né? Então, naquela época, 50 era como se fosse 700 hoje. Então, o cara gastava, naquela época, 50 reais, mas não gastava sete reais num livro. Porque eles não têm o hábito. Pra ele era prejuízo. Então, eu percebi que eu comecei a ficar um tempo lá em Laranjinha e eu vendia um livro por mês. Eu falei: “Cara, um livro por mês é pouco. Sete reais. O que eu vou fazer com sete reais?” Eu precisava vender mais, porque daí eu tinha que vender mais rápido, pra daí eu tentar reeditar. Daí eu resolvi voltar pra São Paulo. Daí, por isso que eu falei assim pra minha mulher: “É melhor eu voltar pra Krukutu, porque lá na aldeia vem mais turista visitar a aldeia e, às vezes, eu indo pra cidade, sempre vendo mais um livrinho”. Daí eu comecei, voltei pra cá, e daí, com os livros na mão, eu comecei a vender para os turistas, quando vinham na aldeia e daí eu fui crescendo, crescendo, até que eu lancei outro livro independente, fui lançando o quarto e fui conseguindo vender, porque eu vendia um livro por mês e eu vendendo, vamos dar exemplo, 20 livros por mês, já estava bom. De 20 pra um. Mudou muito. Então, começou a haver um crescimento. Daí eu voltei pra cá. E daí, com essa história da Marta ter ganhado a eleição, que a gente pegou muito acesso à Secretaria, aí a Secretaria resolveu comprar três livros meus. Comprou O Saci Verdadeiro, Xereko Arandu, a Morte de Kretã e Iarandu, o Cão Falante. Então, com essa compra dos três livros, meu nome começou a crescer mais e então foi indo e eu fui dando continuidade, vendendo palestras, os livros e hoje eu ainda continuo. E hoje melhorou pra mim porque, como meu filho é escritor e toca o rap e depois toca música guarani, então a gente vai junto, porque daí as pessoas, todo mundo que me chama hoje pra dar uma palestra, falam assim: “Dá pra trazer seu filho?” E quando eles chamam pro meu filho dar uma palestra ou fazer um show, eu tenho que ir junto também. Então, eu estou sempre junto com ele. A gente está sempre fazendo essa troca. Então, a gente continua batalhando, pra tentar publicar mais livro e dar continuidade na palestra. Porque a palestra também é importante, porque é uma forma de você conscientizar a sociedade, porque a sociedade brasileira sabe pouco do índio. O que sabe é falar mal. Então, a gente tem que estar lá sempre falando, pra conscientizar a sociedade e ter um pouco mais de respeito com a gente. Porque é isso que eu falo: tem que respeitar a nossa religião. Nós fumamos no cachimbo porque a gente acredita que a força está ali. A força, nossa, está ali. Deus vai falar conosco através do fumo. Então, se você não respeitar, eu falo: “Não respeitou, eu não respeito você. Então, respeite”.
P/1 – E aí, desses livros todos, qual que foi um que nasceu junto de uma história de vida forte que você viveu? Qual um livro que acompanha história forte?
R – Deixa eu ver. Porque cada história é uma história diferente da outra. A Xereko Arandu, a Morte de Kretã, é o mais forte que tem, porque ali eu transformo a história do
ngelo Kretã, mas eu transformo na minha vida, quando eu entrei na PUC, daí de repente, o meu surgimento de sair do Paraná pra vir pra cá, porque a intenção que já naquela época eu falava que a gente tem que estudar, pra que o mundo possa valorizar a gente. Então, esse livro é muito forte. Pena que eu não consegui reeditar mais, mas ele é um dos livros mais fortes da minha história. Porque eu o li várias vezes, essa história, antes de publicar e depois li o livro, porque o livro dá vontade de chorar quando você começa a ler. Porque é uma história emocionante, verdadeira. E os outros, cada um de uma forma diferente. Eu sempre falo que todos os meus livros são importantes. São diferentes um do outro. Mas o que faz me chocar é a morte do Kretã. Que são várias histórias juntas.
P/1 – E qual foi a cena mais forte que a literatura te levou? O que mais de bom você sentiu receber, de ser escritor?
R – Uma coisa muito importante é que, quando eu comecei a escrever e eu comecei minha carreira, a gente começou a perceber que começou a surgir outros escritores e também começou a vir uma nova mudança na cabeça dos jovens nas aldeias, porque as pessoas começam a perceber que esse índio contador de história é um escritor. Eu sempre falava que toda aldeia sempre teve contador de história. O que falta é apoio. Então, começa a haver uma mudança. Então, por isso que eu falo que meus filhos são todos escritores, porque eles acompanharam a minha vida e começaram a dar continuidade também. Então, não precisou eu falar. Eles começaram a me observar. Então, observando a gente, outros indígenas começam a escrever também. Isso é uma coisa que me alegra. Quando eu vou dar palestra, tem pessoas que falam: “A gente trabalha muito com seu livro, a gente gosta muito. A gente queria... tem um índio lá na nossa aldeia que quer escrever também”. Então, isso é uma coisa que alegra. Porque antigamente o índio nunca imaginava que ia ser um escritor. Então, através tanto de mim, quanto de outros escritores hoje que estão de renome internacional, começa a abrir caminho para outros indígenas também. Então, tem outros indígenas que estão escrevendo. E vai ajudar outros jovens. Assim como o Bro MC surgiu com o rap, daí surgiu o Wera, surgiu o Brô Mc Guarani, que é um grupo também, né, que canta bem também. O Wera canta sozinho, porque não tem ninguém na aldeia que canta rap, só ele. Porque os outros falam: “Por que ele não canta num grupo?” Porque não tem. Mas daí, agora, como não tem, não precisa ter, mesmo, porque daí está dando certo, não precisa mexer, né? Não adianta mexer numa coisa que está dando certo. Então, deixa ele cantar sozinho. Se alguém da aldeia quiser montar um grupo, pode, porque é bom, ele já está acostumado a cantar sozinho, né? Não adianta querer montar um grupo, porque pode dar zebra, né? Quem começa com um grupo, vai com o grupo. Quem começou sozinho, vai sozinho.
P/1 – E como foi a sua volta pra aldeia? A sua volta, não, a sua ida.
R – Então, quando eu fui, naquela época, era uma preocupação, porque eu ficava preocupado, porque eu falei: “Caramba, precisa de dinheiro pra ganhar”. Porque, na época, quando eu entrei, nos anos 90, que eu tive que ir pra aldeia, morar, que eu estava casado, não existia nada, porque todo mundo vivia só do artesanato. Então, a gente comia só peixe, né? Então, no Krukutu, naquela época, a gente vivia só de peixe. Então, a gente não tinha dinheiro. Então, a gente não comprava nada na cidade. Não tinha dinheiro. Então, a gente comia só peixe, peixe, peixe, peixe, peixe. E daí, com o passar do tempo, morando lá, a gente foi indo, passando o tempo, a gente criou a associação e então a gente foi lutando pra poder gerar emprego dentro da aldeia e hoje a gente tem. Então, hoje a gente tem escola do Estado, tem o Ceci, que é da prefeitura, tem um postinho de saúde. Então, gerou emprego na aldeia. E daí alguns vendem artesanato, então uns são funcionários, outros vendem artesanato e eu até brinco, às vezes: “Quem não gosta de trabalhar, vira escritor”. E daí eu vivo das minhas palestras.
P/1 – E você chegou a ser liderança lá, né?
R – Sim, eu fui liderança por 20 anos. Daí eu dei uma parada agora, porque eu estou cansado. É muita... não tinha parada, era reunião... porque eu tenho meu compromisso também, eu tenho meu compromisso de dar palestra, pra ganhar meu dinheiro, dou minha palestra, cobro uma taxa, vendo um livro, às vezes viajo pra um canto, pra outro, às vezes eu tenho que levar o Werá. Meus filhos cresceram, começou a aumentar as coisas, porque dá mais problema, porque quando era pequeno, é uma coisa. Daí meus filhos crescem, casam, e daí eu tenho que ficar ajudando. Corre pra lá, corre pra cá, é problema pra lá... só da família eu não consigo dar conta, mais. Porque cresceram, casaram, têm netos. Então, eu comecei a falar: “Vou sair da associação, porque não consigo dar conta”. E daí eu fui saindo aos poucos, até que na próxima diretoria, eu falei: “Vou sair”. Daí, a gente fez uma nova reunião, uma nova diretoria e daí, por coincidência, a turma elegeu minha filha pra ser presidente da associação, que ela entende bem o português, domina bem as coisas, então hoje ela está na presidência. Daí eu a oriento também. Então, eu estou sempre orientando, fazendo alguma coisa, tentando trazer o turismo pra aldeia, através de uma imprensa, de um jornal, de uma escola, divulgação. Estou direto trazendo alguma coisa, no sentido de trazer o turismo, porque o turismo é importante pra aldeia, porque é uma forma de você fazer com que as pessoas vendam seu artesanato. Às vezes algumas pessoas trazem seu come e bebe, as crianças comem junto, o dinheiro pra entrar pra associação e administrar, porque a associação vive do turismo. Então, a gente continua meio, assim.
P/1 - E como é que é a vida lá? Eu já fui na aldeia, mas como essa entrevista não é pra mim, entre a gente, que você sabe como é, né? Então você poderia me descrever como é que um dia na sua vida, na aldeia?
R – Então, um dia na aldeia é tranquilo. Eu lancei um livro chamado Tekoa, Conhecendo uma Aldeia Indígena, que é uma forma pras pessoas conhecerem como é o dia a dia numa comunidade indígena. Eu escrevi um livro da editora Global, que mostra muito isso: a realidade indígena do dia a dia numa aldeia. Então, a nossa vida, eu sempre falo assim: é tranquila. Porque as pessoas falam: “Mas vocês vivem tranquilos”. Eu falo: “Não. Isso aí é pra todo mundo. Se vocês quiserem, vivam também”. Então, o que é tranquilo? É você viver no meio da floresta, como a gente vive e a gente conseguir sobreviver sem precisar de riqueza, de ostentação, que a ostentação é que está acabando com o mundo, porque se a gente vive no meio da mata, a gente consegue fazer artesanato, tem um empreguinho, tem uma pescaria de vez em quando, tem um bicho pra caçar, uma plantaçãozinha pra você sobreviver de mandioca, um milhinho, uma batata doce. Se as pessoas conseguem tudo isso, pra que riqueza? Riqueza é só pra maluco, entendeu? Quem é maluco, é que gosta de riqueza. Quem quer viver como o Neymar, é maluco, entendeu? Ostentação. Não tem futuro nenhum. Então, isso não é felicidade. Então, as pessoas pensam que pobreza é sofrimento. Então, a gente pode ser pobre na aldeia, mas a gente é rico de felicidade. Então, isso é que é importante. Que a gente tem que viver tranquilo.
P/1 – E qual é o seu sonho de vida, hoje?
R – Viver. Porque eu não estou preocupado com riqueza. Porque, se a gente pensar em riqueza, você fica louco. Daí que o cara fica traumatizado. Fica com muita coisa na cabeça. Não, o meu sonho é que meus filhos vivam bem, cresçam, tenham seus filhos, possam dar continuidade. Porque, pra nós, a gente sempre fala assim na aldeia: “Pra nós o importante é não morrer de fome. Não passar fome”. Então, se a gente não passa fome, a gente é feliz. Agora, as pessoas, na cidade, são infelizes, porque eles não conseguem ter um tênis bonito. Ele tem depressão porque ele não consegue ter uma roupa bonita. Eu falo: “Isso aí é besteira. Isso aí é colocar na cabeça do pobre querer fazer uma coisa que não precisa. Daí tem que ficar trabalhando, trabalhando, trabalhando pra ele sonhar, um dia, ter uma calça bonita. Não, a gente pode andar do jeito que quiser. Se os outros repararem na gente, o problema é deles”. Eu vou falar do jeito que eu vim: estou com uma calça velha, uma bota velha, não estou preocupado, estou com uma camisetinha que eu ganhei. Tranquilo. “Mas por que você não veio com uma roupa nova?” “Vai fazer diferença? Não. Eu vou continuar do mesmo jeito, não vou mudar nada”. O meu filho, olha o jeito que ele veio. “Mas ele é famoso internacional”, daí pensaram que ele vir com um terno, com um baita brinco de ouro, com tênis dos Estados Unidos. Não, não precisa. Ele veio com uma calça simples, uma camiseta comum e chinelo. “Mas não fica feio ele de chinelo na cidade, porque ele é famoso?” Não. Quem reparar é que vai sofrer, porque ele não está preocupado. Então, quem está reparando, é que vai sofrer a depressão. Nós, não. Então, a felicidade é isso. Então, eu fico triste quando eu vejo: o mundo está sofrendo infelicidade por causa desses poucos milionários que existem no mundo, porque eles ficam ricos, gente que era pobre, que fica rica e daí acha que, agora, a felicidade é esbanjar, gastar. Falei: “Gente, isso aí é tristeza”. A gente vê pessoas aí que o cara era pobre, fica rico, gasta milhões à toa, pra quê? Então, se todo mundo repartisse, não havia. O que é repartir? Não é ficar dando dinheiro para os outros, mas se todo mundo contribuísse com alguma coisa pra ajudar, entendeu? Pra que o rico tem que roubar, se ele já é rico? Então, eu fico pensando, porque o governo faz pouco para o Brasil. Pra gente ter uma vida melhor, eu acho que a gente precisava ter uma educação boa, uma escola boa pra todos, mas essa escola existe. O que acontece? São as federais. Então, o que acontece? As estaduais são uma tristeza. Então, o que os ricos fazem? Os ricos pagam as melhores escolas particulares, do prezinho até o ensino médio, terminar o terceiro ano, pra daí ele entrar na melhor universidade do Brasil. Caramba! Então, não entra na USP, Unicamp, Unesp. Entra numa particular. Você passou 15 anos pagando uma particular, por que não paga agora mais quatro, pra fazer a faculdade numa particular e deixar o pobre estudar na universidade federal? Então, fizeram a universidade para os ricos e os pobres para a particular. Então, está invertida a coisa. Então, os ricos deviam chegar, se querem ajudar o povo no Brasil, que nunca ajudaram, faz o seguinte, eu vou dar um exemplo, não vou citar o nome do jogador, mas vamos dar um exemplo: o cara que ganha milhões por dia falasse assim: “Eu vou ajudar um pobre, até ele terminar a universidade”. Então o coloca numa escola particular e fala: “Nossa, mas é caro. Mil reais por mês!”. Não, pra ele não é nada. Pra ele é uma piscada. Então, se todo rico fizesse isso aí, a gente teria os melhores estudantes do Brasil formados, porque a gente precisa de gente que se forme, pra gente ter acesso pra todo mundo. Então, a primeira vez que surgiu as cotas indígenas e as cotas dos negros, começa um monte de rico lá reclamando que não pode, que eles têm que competir igual. Não tem como competir, entendeu? Porque os caras estudam nas melhores escolas. Daí, como você vai competir na USP com um rico, que passou a vida toda estudando, entendeu? É igual quando você encontra, porque eles metem o pau nas cotas dos negros, agora tem coisas que não dá pra competir. Agora, você vê um negão de um metro e noventa, daí você vê um branquinho de um metro e setenta, magrinho e daí você fala: “Vamos ver, quem ganhar na luta, vai ganhar a bolsa de graça”, quem vai ganhar? É um negro. Não, não pode competir assim. Se for competir na força, o negro vai ganhar dele. Então, não é assim. Então, a força é igualdade pra todo mundo. Tem que ter espaço pra todo mundo. O negro não vai ter acesso nas melhores escolas, então ele vai perder. Então, por isso, surgiram as cotas, que é uma forma de você contribuir pra pagar a dívida que você deve, porque o branco deve muito, uma dívida imensa. Então, as cotas indígenas, eles criticam também e eu falo: “Não”. Eles perguntam se eu sou contra ou a favor, eu falo, brinco: “Eu sou contra. Não devia existir cota. Sabe o que devia existir? É vocês pagarem uma indenização pela morte que vocês fizeram contra os índios e contra as terras que vocês estão em cima dela. Daí vocês pagam o que vocês devem pra nós e a gente vai estudar nas melhores escolas do mundo. Aí nós não precisamos de cota”, entendeu? Eles falam que acham que estão dando de graça. Não, não estão dando de graça. Isso aí é pra pagar um pouco do que vocês devem pra nós. Então, a educação no Brasil está triste por causa disso: porque precisa ter uma melhoria que seja pra todos.
P/1 – Eu queria só perguntar assim se tem alguma história que você não contou e que você quer contar agora, da sua vida, pra deixar registrado.
R – Eu contei muita história que daí, depois, a gente não vai dar pra lembrar agora.
P/1 – O Ceci.
R – O Ceci nós temos na aldeia, um centro cultural, que chama Ceci. Tem na aldeia do Jaraguá, tem na aldeia Tenondé Porã e tem na aldeia do Krukutu. Eu fico muito feliz com essa criação do Ceci, por causa que quando a gente criou a associação, no ano de 2000, na época o Sidnei trabalhava pra nós, esse antropólogo que eu te falei, que estudou Sociologia na USP e a gente montou a associação, só que a gente não tinha dinheiro, não tinha nada, ficou aquela coisa e a gente, na época, com o passar do tempo, pensou em fazer um centro cultural na aldeia. E daí, na época, a associação tinha dez mil reais. Daí, de repente, a gente arrumou um cara pra ver como fazia pra construir esse centro cultural. Daí o cara, engenheiro, foi lá na aldeia, pra dar uma olhada, que a gente o chamou, daí ele falou: “Esse projeto de vocês, por menos que 40 mil, não dá, não sai”. Eu falei: “Caramba, então deixa quieto”, porque a gente tinha dez mil, pra 40 mil... e daí, por sorte, a Marta Suplicy ganhou a eleição e a gente começou a ter muito acesso na Secretaria de Educação e eu ia sempre fazer visita pra eles, de vez em quando eles me chamavam pra reunião e eu ia sempre pra lá. Daí, de repente, tinha uma mulher na época, que trabalhava, que era assessora da secretária da Educação - que era a... esqueci o nome da secretária - e essa mulher chama Maria Nilda. E essa Maria Nilda Teixeira Leite eu ia sempre visitar, ela falava: “Jekupe, vem um dia nos visitar aqui, tomar um cafezinho”. Daí, toda vez que eu passava por aquelas regiões, eu parava lá pra tomar um cafezinho, daí eu fazia uma visita. E daí um dia, eu conversando lá na Secretaria, ela falou assim: “Jekupe, vocês não têm projeto com crianças?” Eu falei: “Não, a gente tem um projetinho que a gente fez há uns dois anos, um ano atrás, parece, pra trabalhar com criança na aldeia, só que a gente queria fazer um centro cultural, só que a gente não tem dinheiro pra fazer, porque na época a gente tinha dez mil e daí o cara falou que por menos que 40 mil não dá”. Aí a gente conversou e ela falou: “Olha, a gente podia dar uma força pra vocês. Vocês querem que a gente vá lá?” Eu falei: “Se você falar que vai, a gente marca uma reunião”. Aí eu cheguei na aldeia e na época eu conversei com o Marcos Tupã, com o Geraldo, que era presidente da associação e o cacique, na época, era o Ventura. Daí conversamos. Daí, conversando com essa Maria Nilda, ela falou: “Bom, dá pra gente marcar uma reunião e a gente apoiar vocês”. Daí, conversando, conversei na época com o Marcos Tupã, com o Geraldo, que era o presidente da associação, o cacique era o Ventura e daí marcamos uma reunião pra vir na aldeia, falei: “A turma quer vir aqui conversar conosco, porque eles falaram de nos ajudar. Beleza, então vamos ver se eles vêm, mesmo”. Quando foi ver, rapaz, demorou uns dias a Secretaria apareceu lá com uns três, quatro carros, uma equipe de engenheiros, desenhista, fotógrafo, filmador, um monte de gente, uma equipe. Daí eu falei: “Caramba”. Daí fizemos lá no escritório da associação e começamos a contar toda a história do projeto que a gente tinha, de trabalhar com criança. E a Secretaria só escutando e anotando. Quando foi ver a Secretaria falou: “A gente pode fazer pra vocês esse centro cultural, só que a gente faz maior”. Eu falei: “Nossa, que beleza! Melhor ainda pra nós”. Daí fomos falando e o Marcos Tupã contando e, conforme foi falando, nosso projeto, que era pequenininho, começou a esticar, foi esticando e foi pá e pá: “O que vocês querem?” “A gente queria, já que tem o centro cultural, ter uma cozinha, ter um escritório, ter uma sala, ter uma sala pra atender as crianças, outra sala pra lá, uma sala pras crianças comerem e fomos contando e foi desenhando, os engenheiros só fazendo rabisco. Quando foi ver, terminou a reunião, já estava pronto o desenho, já. E daí, por sorte nossa, a Secretaria falou assim: “A gente pode aprovar esse projeto de vocês, é certeza que a prefeitura vai aprovar, a Secretaria vai aprovar e outra coisa: e se a gente fizer nas três aldeias de São Paulo, que era o Jaraguá e a Tenonde Porã. Se a gente chamá-los, será que eles iam gostar”? Daí eu falei: “Claro que vai. Pra eles vai ser uma beleza, porque fazer um centro desses aqui, grande como vocês estão falando, se fizer nas três aldeias, pra eles vai ser bom, vai ser lucro, eles vão aceitar na hora” “Então a gente pode fazer pras três aldeias”. Daí começamos as reuniões na Secretaria de Educação, juntou as três aldeias e começamos a discutir, até ser construído o Ceci. Então, esse Ceci eu fico feliz, porque foi um projeto da nossa associação que deu certo. A gente nem imaginava que ia acontecer isso aí. Mas a prefeitura resolveu acolher esse projeto e hoje tem esse Ceci nas três aldeias de São Paulo. Que daí gerou emprego, gerou uma melhoria, porque antigamente as crianças passavam muita fome. Porque não tinha emprego, entendeu? Então, as crianças vão lá de manhã, tem café, tem lanchinho, tem almoço, tem à tarde outro lanche de novo, uma mini janta. E as atividades com as crianças. Tem bastante coisa. Então, isso foi muito importante: a construção do Ceci. Então, eu tenho orgulho de falar isso, porque eu sempre falo: às vezes tem pessoas que nem sabem, fazem até propaganda, às vezes, porque muitos não sabem de onde surgiu o Ceci. Esses dias atrás um índio entrou em contato comigo: “Mas o Ceci não foi assim, assim e assim?” “Não. Foi assim, assim, assim e assim, porque eu sei. Tem coisa que a gente sabe. Quem deu a origem, sabe. Então, foi da nossa associação, que a gente tinha uma ideia e dessa ideia surgiu uma grande construção que muitos, às vezes, não sabem”. Então, eu fico feliz com o surgimento do Ceci.
P/1 – Aí eu queria só perguntar pra você o que é memória, na sua visão, na visão guarani? O que é memória?
R – Então, memória é uma coisa que a gente nunca pode esquecer. Como eu sempre falo nos meus livros, que a gente tem que escrever certas coisas, pra que aquilo nunca morra. Como eu gosto de falar da questão do Ceci, porque tem gente que não sabe que foi da nossa associação. Então, se você não conta, aquilo morre. Quando eu falei da história do
ngelo Kretã, hoje eu fico triste, porque tem muitos indígenas jovens do Brasil, até kaingang, que é do povo dele, lá do sul, daí eu chego assim neles e falo: “Você já ouviu falar de
ngelo Kretã?” Nunca ouviu falar. Falo: ‘Pois é, eu lancei um livro sobre ele”. Os caras se assustam. Daí eu falo assim: “O
ngelo Kretã foi o maior líder do Brasil nos anos 80”. Daí os caras se assustam. Então, memória é isso: é fazer com que a história nunca morra, entendeu? Por isso que eu falo: “Mata-se o índio e depois mata a história. Já que matou o índio, pelo menos a história a gente tem que deixar viva, como Sepé Tiaraju; Marcel Tupãí, que foi assassinado; Galdino que foi queimado em Brasília, entendeu? Essas histórias não pode esquecer”. Então, isso é memória: é você não deixar um assassinato ser cometido duas vezes. Então, isso é memória, pra mim.
P1 – E a história indígena, qual que você acha que é o melhor jeito de se fazer uma memória dos povos indígenas? Se você que fosse fazer.
R – Eu, como sou escritor, eu acho que a literatura é uma das melhores histórias pra ficar registrada, porque eu sempre falo assim: se a gente conhece Platão e Aristóteles, é porque eles deixaram a escrita. Então, se a gente quer que o
ngelo Kretã fica vivo, o livro está aí. Então, as pessoas podem usar a literatura, mas daí tem outras formas, cada um tem que seguir conforme suas coisas. Tem várias formas de deixar essa história registrada. Eu, pra mim, é a literatura, porque é o que eu sei fazer. Eu não sei fazer outra coisa.
P/1 - Aweté
R - AwetéRecolher