Vira e mexe a gente ia procurar minha tataravó, ela estava em cima do telhado ralando a mandioca. Ralando milho em cima do telhado, pra garantir que o sol ia ficar ali, bem em cima da cabeça dela, que era como ela gostava. E era um sacrifício pra tirar! Você imagina uma senhora, toda magrinha, miudinha, subia, escalava o telhado e ficava lá, sentada com o ralador dela. Enlouquecia a minha vó. E eu convivi muito com isso, assim.
E minha avó e meu pai tinham uma certa... minha vó não era vergonha, ela tinha um receio de dizer que era índia; o meu pai já, mais, vergonha, mesmo, de assumir que era índio. Eu acho que muito pelo preconceito que o povo nordestino sofre quando chega aqui em São Paulo.
Minha vó falava muito isso pra mim: “A gente é, sim, tudo índio, mas minha filha, estar aqui em São Paulo e dizer que é nordestino já é um problema. Se a gente disser que a gente é índio, a gente está morto”. Eu me lembro que, numa ocasião, a minha tataravó estava preparando um remédio pra mim. Eu não estava muito bem. E tem uma coisa: o povo Fulni-ô não fala, não fala mesmo porque ele está fazendo, como está fazendo, porque a gente nasce com o dom ou a gente não nasce. Se a gente nasce, em algum momento a gente vai aprender a fazer as coisas. Se a gente não nasce, a gente aprende um pouco com o mais velho, mas nunca é a mesma coisa. Então, a minha avó também não sabia exatamente como eu ia ser. A minha tataravó quando eu tinha uns cinco pra seis anos, algumas coisas da minha vida espiritual já aconteciam, eu falava pouco, mas numa ocasião eu perguntei pra ela como ela fazia o remédio, pra que era o remédio que ela estava fazendo e ela só botou em cima da mesa e mandou eu tomar. E aí eu perguntei de novo, pela segunda vez, ela falou: “Toma logo aí esse remédio, você precisa dele e só toma”. Aí, quando eu terminei de tomar, daí ela sentou, olhou pra mim e falou: “Olha, minha filha, nós somos todos índios e eu...
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Vira e mexe a gente ia procurar minha tataravó, ela estava em cima do telhado ralando a mandioca. Ralando milho em cima do telhado, pra garantir que o sol ia ficar ali, bem em cima da cabeça dela, que era como ela gostava. E era um sacrifício pra tirar! Você imagina uma senhora, toda magrinha, miudinha, subia, escalava o telhado e ficava lá, sentada com o ralador dela. Enlouquecia a minha vó. E eu convivi muito com isso, assim.
E minha avó e meu pai tinham uma certa... minha vó não era vergonha, ela tinha um receio de dizer que era índia; o meu pai já, mais, vergonha, mesmo, de assumir que era índio. Eu acho que muito pelo preconceito que o povo nordestino sofre quando chega aqui em São Paulo.
Minha vó falava muito isso pra mim: “A gente é, sim, tudo índio, mas minha filha, estar aqui em São Paulo e dizer que é nordestino já é um problema. Se a gente disser que a gente é índio, a gente está morto”. Eu me lembro que, numa ocasião, a minha tataravó estava preparando um remédio pra mim. Eu não estava muito bem. E tem uma coisa: o povo Fulni-ô não fala, não fala mesmo porque ele está fazendo, como está fazendo, porque a gente nasce com o dom ou a gente não nasce. Se a gente nasce, em algum momento a gente vai aprender a fazer as coisas. Se a gente não nasce, a gente aprende um pouco com o mais velho, mas nunca é a mesma coisa. Então, a minha avó também não sabia exatamente como eu ia ser. A minha tataravó quando eu tinha uns cinco pra seis anos, algumas coisas da minha vida espiritual já aconteciam, eu falava pouco, mas numa ocasião eu perguntei pra ela como ela fazia o remédio, pra que era o remédio que ela estava fazendo e ela só botou em cima da mesa e mandou eu tomar. E aí eu perguntei de novo, pela segunda vez, ela falou: “Toma logo aí esse remédio, você precisa dele e só toma”. Aí, quando eu terminei de tomar, daí ela sentou, olhou pra mim e falou: “Olha, minha filha, nós somos todos índios e eu não quero que você nunca esqueça disso, que nós somos índios”
E um dia, numa entrevista de emprego, eu coloquei lá indígena e estava lá a opção pardo, porque não tinha opção indígena. Tinha negro, pardo, branco, tal e aí eu risquei o pardo lá e escrevi à mão indígena no currículo, porque na época você não preenchia currículo digitado. Você chegava no lugar onde você estava querendo trabalhar e preenchia à mão, mesmo, três folhas lá, um monte de coisa. Aí eu preenchi e voltei pra casa e fui chamada uma semana depois pra fazer, mesmo, a entrevista. E eu fiz toda a entrevista, depois que terminou a entrevista, o homem que estava lá fazendo a entrevista comigo olhou pra mim e falou assim: “Olha, então, acho até que você poderia trabalhar aqui, só que você é índia, né?” Eu falei: “Sim, sou índia”. Ele falou: “Então, eu acho que eu tenho pessoa que cumpre melhor essa vaga do que você”. Eu acho que essa foi, realmente, a primeira vez que eu formulei o que isso significava. Minha vó falava, meu pai falava, minha tataravó falava: “Nunca esqueça que nós somos todos índios”, mas assim, tá. O que isso queria dizer exatamente nesse mundo foi naquele dia que eu descobri. Eu voltei pra casa muito mal. Sabe quando algumas fichas caem, assim? Que aí você vai entendendo porque algumas pessoas te destratavam, porque eu não conseguia namorar, porque o menino me chamou de macumbeira. E aí eu falei: “Gente, mas é isso?” Eu fiquei, naquela ocasião, com alguma vergonha, não vou mentir. Falava: “Então eu acho que eu não quero ser mais isso, porque se é pra ser isso, pra ter que aguentar esse tipo de situação...” Eu voltei muito mal pra casa. E acho que foi a primeira vez que realmente me doeu a descoberta, assim. Eu não conseguia ter orgulho naquela época. E aí eu acho que foi dali pra frente que eu realmente comecei a formular o que isso significava
(…)
Peguei um ônibus aqui no Jabaquara, sabia que tinha aldeia e cheguei lá e entrei, sentei com meu cachimbo, fiquei lá fumando um tempão. Não tinha um guarani que me dava valor, né? Eu fiquei lá fumando, fumando, fumando, fumando, sentada numa pedra, mesmo. Aí, criando coragem, também, pra falar, porque eu estava criando coragem. Aí passou um guarani, assim, na frente da Upã casa de reza, aí eu o chamei, me apresentei, falei que eu era indígena e aí comecei a conversar e tal, aí ele me mostrou a aldeia e aí eu fiz uma primeira relação e depois disso eu só sei que eu fui indo aldeia por aldeia, conhecer cada uma delas. Eu só ia, gente, com a cara e com a coragem. E aí eu tinha colocado na minha cabeça que eu tinha que construir luta e que o dia que eu tivesse um pouco mais de condição, fosse financeira, fosse de espaço político, que eu ia ajudar a resolver questões dessas aldeias, dessas pessoas que estavam pendentes. E aí, sim, muito tempo depois, na verdade, que eu fui trabalhar, trabalhei na prefeitura de São Paulo, mas pra fazer política pras mulheres, porque eu sempre militei com o movimento de mulheres. Aí eu falei: “Agora eu consigo fazer coisas que são concretas pras mulheres indígenas, desde organizar conferência de mulheres pra que as guaranis pudessem participar, até compor grupos de trabalho com a Funai, com órgãos públicos, pra discutir situações de demarcações de terra. Tudo isso eu fui fazendo, mas foram processos de anos, assim, mesmo, de trabalho mesmo, de ir conhecer liderança por liderança, ficar participando das coisas e muitas vezes você nem tem nenhum tipo de visibilidade, ficava lá no cantinho ouvindo todo mundo falar. Tudo isso eu fiz, assim. O que vocês imaginarem. Desde chegar três horas da manhã, no meio de uma rodovia, pra subir a serra e entrar numa aldeia, eu fiz. E foi assim que eu fui, concretamente, construindo luta. Tudo que eu podia, até mesmo não tendo dinheiro, tirar dinheiro do bolso pra fazer coisas, eu fui fazendo.
Eu fiquei três anos indo e voltando de lá da aldeia em Pernambuco. Deixei essa documentação na mão dessa liderança, aconteceram várias coisas nesses dias todos que eu fiquei lá e aí, antes de eu sair de lá, ele olhou pra mim na frente dos meninos lá todinhos e falou: “Você é Fulni-ô, sim e não tem problema nenhum que você diga onde você for, que você é Fulni-ô, porque você é”. Eu acho que, a partir dos documentos que eu dei, ele realmente já sabia, porque como é liderança, a liderança realmente conhece todas as famílias. Então eu acho que ele sabia quem eram os mais próximos meus, vivos, mesmo, lá dentro da aldeia. E aí eu fiquei indo e voltando, indo e voltando, até que realmente o que o pajé disse aqui, que eu não ia aguentar passar aqui, eu não estava mais, mesmo, aguentando, espiritualmente falando e aí eu decidi que, tanto eu tinha uma missão política de ir lá ajudar a fazer a demarcação da terra, quanto eu tinha que terminar meu processo e eu realmente não ia conseguir ajuda do pajé aqui, porque é outra etnia e eu tinha que estar lá pra isso e aí eu larguei tudo aqui e fui.
Eu não fui pra cobrar nenhum tipo de dívida. Mas eu fui atrás de quem eu sou.
Eu podia ter feito a escolha mais fácil, que foi a que meu pai e minha mãe talvez fizeram e dizer: “À toa, deixa isso tudo pra trás”. Só que quando se é índio, se é índio. Você não está índio pra ninguém. Você é e ponto, porque você nasce índio. Você pode até fingir que você esqueceu que você é, mas não tem como. A gente tem algo maior no que a gente acredita, que é aquilo que pertence à nossa espiritualidade e que jamais vai deixar você simplesmente esquecer o que você é, sem nenhum tipo de - não dá nem pra dizer cobrança – memória permanente, porque concretamente, quando você se relaciona com o que está pra fora, quando você é índio, nunca é igual pra quem não é índio e a gente sabe que é.
Depois que eu fui a primeira indígena a dar uma aula na faculdade de São Francisco, eu quero agora estudar Direito, pra ver se eu consigo ampliar um pouco o meu conhecimento e ajudar mais na construção aí na luta por demarcação de terras porque, de fato, exige muito conhecimento jurídico e muitas vezes é melhor que a gente, que é índio, esteja lá na frente, defendendo esses casos e fazendo essa relação com o Judiciário, do que quem não é índio.
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