Projeto Memória Aracruz
Depoimento de Carlos Augusto Lira Aguiar
Entrevistado por Carla Vidal e Maria Aparecida Resende Mota
Aracruz, 27/10/2004
Realização Museu da Pessoa
Entrevista ACZ_HV027
Transcrito por Écio Gonçalves da Rocha
Revisado por Ana Calderaro
P1 – Bom... Bom dia.
R – Bom dia.
P1 – Em nome da Aracruz, do Presidente da Aracruz, eu agradeço muito a sua presença aqui no Projeto. É uma presença importante. A gente costuma começar pedindo para que a pessoa se identifique com nome completo, data e local de nascimento.
R – Carlos Augusto Lira Aguiar. Nasci em Sobral, no Ceará, em 1945. Portanto, estou com 59 anos.
P1 – Festa no ano que vem, então.
R – Boa festa no ano que vem. Eu já passei de meio século. Já fiz uma festa boa. Agora, com com anos, estou entrando na terceira idade. Tem a quarta e a quinta. Ainda estou longe de me entregar. Então tem que fazer uma festa boa pra começar de novo.
P1 – E em que dia você nasceu?
R – Dia 24 de julho. Leão.
P1 – Já nasceu sob o signo da batalha. Qual é o nome dos seus pais?
R – José Moacir Rocha Aguiar, que já faleceu, e Francisca Lira Aguiar, que ainda é viva e mora lá em Fortaleza.
P1 – E o que você sabe a respeito da origem deles, da origem do nome?
R – Lira e Aguiar são nomes originários de Portugal e Espanha, mas a família em si é originária de Portugal. São meus avós que são originários de lá. Minha mãe é filha de portugueses, mas já com brasileiros, provavelmente indígenas. E do meu pai, tanto o avô materno quanto o paterno, eram ambos de origem portuguesa.
P1 – E seus avós chegaram, eles são imigrantes, vieram pro Brasil? Como é que é essa história?
R – Não, os avós, não. Os bisavós é que eram imigrantes. Mas a história dos imigrantes eu conheço muito pouco. Eu conheço mais dos avós. Meu avô por parte de pai era...
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Depoimento de Carlos Augusto Lira Aguiar
Entrevistado por Carla Vidal e Maria Aparecida Resende Mota
Aracruz, 27/10/2004
Realização Museu da Pessoa
Entrevista ACZ_HV027
Transcrito por Écio Gonçalves da Rocha
Revisado por Ana Calderaro
P1 – Bom... Bom dia.
R – Bom dia.
P1 – Em nome da Aracruz, do Presidente da Aracruz, eu agradeço muito a sua presença aqui no Projeto. É uma presença importante. A gente costuma começar pedindo para que a pessoa se identifique com nome completo, data e local de nascimento.
R – Carlos Augusto Lira Aguiar. Nasci em Sobral, no Ceará, em 1945. Portanto, estou com 59 anos.
P1 – Festa no ano que vem, então.
R – Boa festa no ano que vem. Eu já passei de meio século. Já fiz uma festa boa. Agora, com com anos, estou entrando na terceira idade. Tem a quarta e a quinta. Ainda estou longe de me entregar. Então tem que fazer uma festa boa pra começar de novo.
P1 – E em que dia você nasceu?
R – Dia 24 de julho. Leão.
P1 – Já nasceu sob o signo da batalha. Qual é o nome dos seus pais?
R – José Moacir Rocha Aguiar, que já faleceu, e Francisca Lira Aguiar, que ainda é viva e mora lá em Fortaleza.
P1 – E o que você sabe a respeito da origem deles, da origem do nome?
R – Lira e Aguiar são nomes originários de Portugal e Espanha, mas a família em si é originária de Portugal. São meus avós que são originários de lá. Minha mãe é filha de portugueses, mas já com brasileiros, provavelmente indígenas. E do meu pai, tanto o avô materno quanto o paterno, eram ambos de origem portuguesa.
P1 – E seus avós chegaram, eles são imigrantes, vieram pro Brasil? Como é que é essa história?
R – Não, os avós, não. Os bisavós é que eram imigrantes. Mas a história dos imigrantes eu conheço muito pouco. Eu conheço mais dos avós. Meu avô por parte de pai era comerciante, dono de salinas. Dono de, na época... Não eram supermercados, mas eram armazéns. E meu avô por parte de mãe era maquinista de trem, pilotava trem, era funcionário, então, da estrada de ferro da Rede Federal de Estrada de Ferro. E eu nasci em Sobral, mas com dois meses de idade já nos mudamos para outra cidade no litoral, chamada Camocim. Nessa mudança faleceu um irmão mais velho, na época, em função de uma doença que tava pegando forte, e eu fiquei morando com meus avós pra não pegar a tal doença. Como eu já tinha na frente uns três irmãos, fui ficando lá com os meus avós. Os meus pais ficaram com pena de tirar. E _____ que passou lá uns seis meses, um ano. E aí, quando resolveram me buscar, deu lá uma certa emoção entre eles e eu fui ficando. Depois, quando aprendi a falar, aprendi a entender um pouco das coisas, e eu já não queria mais também largar deles. Então, o certo é que até casar eu morei com os meus avós.
P1 – Qual o nome deles?
R – Antônio de Lira e Eugênia de Lira. Esse que tinha sido o maquinista. Então, eu frequentei muito a estação quando era pequeno, porque ia lá esperar que ele voltasse das viagens, do trabalho. E essa cidade era interessante porque ela tinha, naquela época... Eu nasci em 1945, mas eu me lembro das coisas acontecendo talvez lá de 1952. Antes eu não me lembro de nada, mas já em 1952, 1953 eu me lembro de algumas coisas. A cidade tinha aeroporto, pousavam aviões comerciais naquela época, tinha trem, tinha porto, lá aportavam navios. Então, quando alguém ia a Fortaleza, por exemplo, que era a capital do estado, ia de navio, de trem ou ia de avião. Tinha os três meios de transporte. Mais à frente é que passou a ter ônibus. Nem tinha ônibus nessa época. Outra coisa que era muito interessante naquela cidade, que hoje eu fui lá agora, há pouco tempo, e não é mais a mesma coisa do que era na minha visão de criança, é que ela tinha sido uma base aérea americana na época da guerra e tem alguma influência na presença dos soldados por lá. Então, as músicas que eu ouvia quando era pequeno eram todas músicas do Glenn Miller, músicas americanas, jazz, aquele jazz rápido daquela época., o Charleston e tal. Cheguei a ver a banda da cidade. E os americanos deixaram os instrumentos todos lá, as partituras e tudo. Na banda da cidade os instrumentos eram todos em inglês e só se tocava música americana. Depois é que começaram a entrar as músicas mais brasileiras, na medida que o pessoal foi evoluindo no aprendizado. E foi de lá também que eu me acho, me analiso como um cara do mundo. Sempre, desde pequeno, eu me lembro muito disso, de que eu não queria ficar lá na cidade, queria conhecer o mundo e queria ir pros Estados Unidos para ouvir Jazz ao vivo em New Orleans, que eu escutava muito lá. O Jazz tinha nascido em New Orleans e eu queria ir a New Orleans de qualquer jeito. Desde pequenininho eu já imaginava isso. Já sonhava que algum dia eu tinha que achar esse caminho. Tanto que quando eu comecei a trabalhar, minha primeira chance de fazer uma viagem aos Estados Unidos foi uma viagem de treinamento. Eu trabalhava numa empresa americana e eles me levaram pra lá pra fazer um treinamento. O meu chefe, que na época era americano, sabia dessa história, desse meu sonho, desse meu desejo. Ele arrumou toda a viagem de tal sorte que para no fim dela a gente passasse o final de semana em New Orleans pra eu matar esse desejo, esse sonho. Então, o desejo nasceu lá na minha cidadezinha, em função dessas coisas passadas da guerra. E o pessoal da cidade, até hoje eu tenho ainda lá vários parentes, eu estive com eles lá, eles contam várias histórias. A cidade... Passou o zepelim por lá, o maior avião do mundo na época, tinha doze motores e tal. Pousou lá. É um avião que pousava na água. Pousou lá. O Truman, que era Presidente americano, pousou lá pra ir pra Europa visitar os soldados na guerra. Vários artistas famosos de Hollywood, na época, que iam pra Europa pra se apresentar lá para os soldados, passavam por lá. Chegavam, pousavam lá de manhã, dormiam, descansavam, e no outro dia iam embora. De forma que ela tinha uma certa cultura, uma certa movimentação na cidade em cima disso. E eu acho que isso fez com que não só eu, mas com que muita gente de lá quisesse sair. O que será que tem por trás dessas histórias todas? E uma coisa mais fantástica ainda, que é uma coincidência dessas da vida, que teve uma família de noruegueses que tinha navios e esses navios levavam madeira do Pará pro Ceará, e levavam sal do Ceará para o Pará. E esse pessoal, quando ia levar os navios para fazer reparos e pintura lá na Noruega, eles paravam na minha cidade, enchiam o navio de locais lá, de cidadãos locais e levavam. Eles iam trabalhando, pintando o navio até a Noruega, e lá eles terminavam de arrumar o navio. Voltavam com tudo pago pelo dono do navio. Na saída era uma festa e na volta era outra festa. Aí eu comprei o livro da história da cidade. Quando eu estou lendo a história que eu ouvia dessa época, essa família de noruegueses era traduzida como a família Lourenço. Quando eu fui ver o livro, não era Lourenço, era Lorence. E pra minha surpresa era o meu, era _____ Veracruz, que hoje também continua sendo dono de navios, e era o avô dele que tinha esse navio que trafegava por lá. Eu dei a cópia desse livro, dessas páginas desse livro, para ele. Ele ficou emocionado em saber que, de alguma forma, a gente já teve alguma ligação. Meus pais conheceram os pais dele, e por aí vai. Então, houve muita coincidência nessa vida. Eu estou com ele trabalhando aqui na Aracruz há vinte e tantos anos. Já conheço ele há vinte e poucos anos. E isso nos ligou ainda um pouco mais. Mas a cidade tinha essa faceta muito cultural, que tem até hoje. Ainda se sente um pouco nas pessoas isso. É um lugar pobre, como qualquer lugar do Nordeste, era mais um lugar pequeno, mas era um pessoal besta. Eles chamavam o pessoal metido a saber fazer poesia, a ler Camões, a entender de cinema. Minha mãe tocou piano no cinema. O cinema era mudo naquela época, e tinha um piano atrás da tela. Cada filme que vinha, vinha com as partituras. E minha mãe tinha mais duas irmãs. Todas as três tocavam piano. E as três se revezavam atrás da tela porque elas também queriam ver o filme. Então elas ficavam, cada noite uma tocava pra acompanhar aqueles filmes lá do Charles Chaplin, aquelas coisas todas lá. Só pra dar uma ideia de como a cidade tinha lá os seus centros culturais. E muito, que é claro, foi em função de ser um ponto onde vem muita gente de fora. Traz cultura, traz conhecimento, impõe determinados padrões. A presença de uns soldados americanos lá também impõe porque, em geral, onde vai soldado em época de guerra ou em época de paz, eles levam música, eles levam apresentações, eles levam cultura. Quer dizer, o Brasil agora _______ com certeza deve estar lá fazendo diversas apresentações lá do seu pessoal. Às vezes, quando ia alguém daqui pra lá, alguma Daniela Mercury da vida pra animar o pessoal, tudo isso vai ajudando a transmitir. E o Nordeste em geral tem essa parte cultural muito forte. Às vezes muito mais forte até do que o sul. Então, na minha avaliação dos porquês de alguns atrasos do Brasil, por que a gente ficou pra trás em relação, por exemplo, aos americanos? Nós somos da mesma idade e nos atrasamos muito. Chegamos a ser até mais adiantados. Ouro Preto foi melhor do que Nova York algum tempo atrás. Mas em parte eu acho que também é o excesso de pensamento poético e pouco pensamento matemático nesse país. O país é um país que não tem muita propensão para os negócios, muita propensão para matemática. Você pega lá, a maioria dos Presidentes nesse país são poetas, são sociólogos, são caras de muito boas intenções, de muitas ideias mirabolantes do ponto de vista de resolver os problemas, mas ninguém faz conta. Aí a dívida aumenta, a gente depois tem que aumentar os juros e aí complica. Enquanto no modelo americano os caras fossem talvez menos preparados culturalmente, no âmbito geral, mas na matemática eles sempre foram muito bons. E tudo faz a conta direitinho pra chegar lá. Então, a minha cidade era desse tipo.
P1 – Voltando um pouco. Agora, sim, a gente teve um panorama muito interessante. Mas voltando um pouco a essa cidade, como que era viver com os avós, como era a casa, como é essa memória do menino?
R – Meu avô era pobre. Você pode imaginar que um empregado da Estrada de Ferro já aposentado, mesmo que o Brasil naquela época fosse um pouco mais justo, um pouco melhor do que é hoje, ainda assim era muito pobre. Pra dar um exemplo, eu nunca... Nessa época eu era pobre porque também não tinha roupa, você não comprava roupa pronta. Toda a roupa lá de casa era feita pela minha avó. E ai se rasgasse qualquer coisa, porque não tinha uma outra roupa nova. Você tinha que consertar aquilo ali e ficar eternamente com aquela roupa. Trocar um sapato era uma coisa raríssima, eu andava a maior parte do tempo com o pé descalço. Eu não tinha sapato, a não ser pra ir pra escola e voltar. Refeição da gente era boa, mas era muito simples. Café da manhã era um leite tirado direto do peito da vaca. O almoço era ovo com arroz e feijão. E, às vezes, no jantar tinha uma carne ou alguma coisa assim, mas era tudo muito regrado. O restante a gente complementava plantando no quintal onde tinha milho, feijão, melancia, aquelas coisas que só dava também quando chovia. Como lá é seco, era difícil pra gente. E muitas vezes a gente guardava coisas pra época que não tinha chuva. A água era tirada de cacimba. Todo dia tinha que puxar água para encher os potes. Lá não tinha bomba, não tinha ____. Energia era uma hora por noite. Energia acendia às seis e apagava às sete, na cidade. Eu estudava à noite. Fiz o ginásio à noite. Pra começar, eu não fiz o primário em escola, eu fiz o primário em casa. Não tinha como frequentar a escola. Tinha que pagar, não tinha escola pública, e todas as que tinham estavam lotadas. E os ricos é que iam pra escola lá. Então, eu estudei em casa basicamente. O último ano antes, que antecede o ginásio, que a gente chamava naquela época, tinha o exame de admissão. Aí sim, eu tinha uma tia minha que era professora numa escola e ela disse: “Não, você vem, você vai entrar aqui mesmo que não tenha, que ninguém aceite. Mas você vai aprender o que os outros estão aprendendo,de qualquer jeito.” Aí eu ia. Bom, entrei no ginásio, era o aluno mais jovem do ginásio. E esse foi o primeiro ano que foi instaurado no ginásio lá na cidade, que era de padres e tal. Por ser o mais novo, tinha gente que trabalhava e que estava fazendo o ginásio. Um pessoal bem mais velho e tal. Então eu era super bem tratado lá. Fiz o ginásio todo à noite, à luz de petromax, que eram uns candeeiros especiais que tinha naquela época, porque não tinha energia elétrica, a não ser das seis às sete.
P1 – Borracha era miolo de pão?
R – Não, acho que tinha borracha, aquelas borrachas que ficam na ponta, em cima aqui do lápis, mas não tinha essa borrachinha legal, não. Mas tinha aquela lá que você, quando apagava, sujava mais o caderno do que apagava. Eu me lembro que eu morria de medo quando terminava a aula porque eu ia voltar pra casa na escuridão. Os meninos mais ricos tinham lanterna pra voltar pra casa e eu não tinha. Voltava no escuro mesmo. Toda noite era um sofrimento porque, em determinados locais, tinha uns cachorros das casas, cuidando das casas, e eles corriam atrás da gente. Então, eu me lembro muito bem daquele pavor que eu ia ter que passar, sair correndo e o cachorro atrás. Vários cachorros, não era só um. Então foi duro. Era complicado. Fiquei lá até terminar esse ginásio, foi quando a gente foi pra Fortaleza, aí já tinha outro jeito de vida. Mas a vida da gente era bastante apertada. Eu lembro que eu sonhava com um brinquedo que eu via na casa dos meus primos, eu tinha um tio que era Prefeito da cidade, que tinha dinheiro e tal. E eu sonhava com aqueles brinquedos, que eu ia brincar com os primos. Eu queria um brinquedo daqueles lá e a minha avó dizia: “Não, então você vai ter que tirar a siriguela das algas e vender nos bares pra juntar dinheiro pra comprar o brinquedo.” E eu me lembro que eu morria de vergonha de pegar uma cesta, botar na cabeça, enchia de siriguela e ia vender no bar. O bar era de um primo meu, então era pior ainda. A vergonha, o mico era maior de chegar lá com aquele troço. E, realmente, quando eu chegava lá eles me gozavam pra caramba, mas me compravam. Eu levava o dinheiro de volta até juntar o suficiente pra comprar o brinquedo. Que era um brinquedo, às vezes, muito simples, mas eu não tinha. Meus brinquedos todos eram inventados pelo meu avô. Então era um ferro elétrico, um ferro de passar que ficava velho. Arrancava a tampa, enchia de areia, botava um arame amarrado e eu saia puxando como se fosse um carro sem roda. Ou então um carro de roda de madeira que ele fabricava na marcenariazinha no fundo de quintal, então era essa. Mas eu não tenho nenhuma lembrança ruim. Só tenho lembranças boas. Joguei muito bola de gude, futebol... Quando chovia era uma coisa sensacional, porque não chove. Quando chovia, eu me lembro que a gente saía feito louco para o meio da rua para se molhar todo. Aí formava poça d’água, a gente mergulhava na poça d’água. Aquilo era uma verdadeira consagração, você ficar na chuva no dia que chovia. Era tão raro que valia a pena. Lembro muito também que de manhã, muito cedo, a gente às acordava cinco horas. A gente tinha lá umas três vacas no nosso quintal, que era de onde a gente tirava o leite. Eu acordava cinco horas pra ir com o meu avô levar essas vacas para um pasto pra elas comerem. E depois, quando voltava na época de previsão de chuva, a gente ia plantar. Ele furava as covas e eu ia plantando, ia jogando o milho ou o feijão dentro da cova e fechando a cova com o pé. Eu detestava fazer aquilo também, era um trabalho chato, horrível, pesado, mas fazia porque não tinha ajudante. Não tinha como pagar ninguém, tinha que fazer. E ele sempre dizia pra mim: “Você vai estudar pra não fazer isso. É duro, eu sei que é duro. Você fica nesse sol quente, é um sofrimento grande. Vai estudar pra você não ter que passar por isso que eu estou passando.” Ele sempre me incentivou muito a estudar.
P1 – Quem que te alfabetizou na casa?
R – Minha avó. Quem me ensinou tudo foi minha avó. Apanhei um bocado, evidentemente, de palmatória e tal, pra poder dar conta. Porque eu preferia sair pra jogar pelada, jogar futebol com a meninada, do que ficar estudando. Mas como era ela quem ensinava, tinha um controle total. Quando eu entrei nessa escola, já pra fazer o exame de admissão, várias vezes eu saía da escola pra ir brincar de futebol com a meninada, a minha tia ia lá e me entregava. Quando eu chegava, era uma surra boa pra consertar.
P1 – Nesse período, só você ficou morando com os avós?
R – Não. Tinha mais um outro primo meu que também morou junto, mas por pouco tempo. Ele é bem mais velho do que eu. Logo ele saiu e foi pro seminário, já lá em Sobral. Voltou para Sobral para fazer o seminário lá. Aí eu fiquei completamente só.
P1 – E seus pais iam te visitar com frequência?
R – Não. Eu ia mais lá à casa deles, porque os meus avós iam muito lá. Mas eu não tinha intimidade nenhuma com eles. Tanto que papai e mamãe eram meus avós, e aprendi a chamá-los de papai Moacir e mamãe Francisquinha. Dizia o nome de cada um. Quer dizer, é uma coisa bem distante. E se ele me perguntasse: “Você não quer vir aqui pra casa?” “Ah, não quero.” Fiquei por lá. Evidentemente que os padrões de vida eram diferentes. Na minha casa lá com meus irmãos tinha outro padrão porque meu pai ganhava muito melhor. Era muito mais jovem, estava na ativa. Minha mãe também, ela não trabalhava, mas ganhava o dinheiro do governo, como acontece nesse país. Então, a gente tinha um padrão de vida bem melhor do que o que eu tinha lá morando com o meu avô. Mas eu não dava conta dessa diferença. Nunca prestei atenção pra isso. Minha roupa, eu nunca olhei se as roupas das meninas eram melhores do que a minha ou se. Eu sabia que a comida era melhor porque quando eu ia lá eu adorava comer doce. Lá em casa não tinha. Eu comia uma goiabada, achava maravilhoso. Comia um bom bolo e tal, que lá em casa não tinha. Então, sabia que a comida era melhor.
P1 – Hoje, olhando, o que você acha que te levou a optar por essa vivência com os avós? Você consegue identificar alguma coisa?
R – Bom, se eu imaginar por que lá atrás eu decidi isso, eu não tenho a menor ideia. Eu sei que hoje eu tive lucro com isso. Eu acho que foi a melhor decisão de todos nós juntos. Dos meus pais atuais, dos meus avós e minha. Mas eu não tenho nada a ver com a decisão. Fui ficando e pronto. Mas eu acho que é o seguinte. Eu costumo dizer pra minha mulher que eu só tenho dois amores incondicionais. Amores por mim, não eu por eles. Mas eu costumo dizer que esse povo é muito melhor do que eu. Foram o meu avô e minha mulher. Esses dois têm um amor que eu posso fazer a besteira que eu quiser e eles estão comigo. Não sei se a recíproca é verdadeira, mas de lá pra cá é, eu sei que é. Por decisão deles, não é por mérito meu. Eles que querem ser assim. Eu acho ótimo. Então, eu sempre tive um carinho, um amor desse meu avô. Eu diria até que mais dele do que da minha avó. Geralmente o pessoal diz que o homem gosta mais da mãe. Mas eu gostava muito mais dele do que gostava da minha avó. Então eu sentia essa força grande. Ele, apesar de ser um homem que só tinha o primário, tinha pouquíssima instrução, era uma pessoa sorridente sempre. Eu nunca vi aquele homem triste, só vi ele chorar uma vez na vida. Foi no dia que eu vim embora, quando me formei, que eu vim embora pro sul. Mas ele chorou ali duas lagriminhas e sempre dizia o seguinte: “Vai que você está certo, você vai vencer. Você é um vencedor.” Ele nunca foi um cara triste, nunca foi um cara de reclamar de absolutamente nada. Era um cara que eu acho que não sentia nem dor. Eu vi ele se cortar várias vezes trabalhando com um machado, partindo lenha, ele partiu o pé. O cara não dizia um palavrão, não reclamava: “Pô, eu parti o pé. E agora o que eu vou fazer?” Aí ia lá ele mesmo, numa planta daquela, cortava, pingava aquele leite, aquele troço todo, amarrava tudo e tal. E não berrava, não enchia o saco, não reclamava de nada. Era um cara especial. Tanto que a minha mulher morou com ele um ano quando eu casei estudante. Ela morou lá em casa um ano. Ela se apaixonou por ele de uma forma que eu acho que ela já gostava mais dele do que eu gostava. Mais do que eu, tendo vivido tanto. É um cara especial. Dentro da ignorância de instrução que ele tinha, ele tinha uma visão de vida, uma psicologia. Eu costumo dizer o seguinte: a psicologia do brasileiro é pra baixo, é um cara fraco, a gente vende esse peixe. E você vê qualquer americano, por mais estúpido que seja, ele acha que vai ganhar. Ele acha que é bom. Aqui a gente sempre acha que bom é o estrangeiro, é o europeu, é o não sei quem. E a gente é. E esse cara não era assim. Meu avô sempre era um cara que: “Eu faço, eu resolvo. Você vai resolver. Você vai.” Eu estava estudando pras provas na faculdade, ele chegava lá: “Caboclo...” Ele me chamava de Caboclo. “Caboclo, como é que está aí?” “Ih, rapaz, eu acho que vou me ferrar nessa prova. Não estou conseguindo entender este troço de jeito nenhum. Não to conseguindo engrenar.” Ele diz: “Ah, não. Não é assim, não. Você é inteligente, você não vai fazer uma prova numa situação dessas. Estuda mais umas duas horas pra você ver se você não vai aprender esse troço.” Aquilo me dava uma responsabilidade, uma vontade de provar pra ele que ele tava certo. Não era nem provar pra mim, era pra provar pra ele que ele tava certo que eu ficava ali até dar certo. Então tinha essa. Eu acho que isso me prendia. Quem não quer ser amado, quem não quer ser gostado incondicionalmente? Eu lembro que eu ria muito porque até quando eu já estava grande, esse meu primo voltava de férias pra lá, a gente saía os dois na noite e nós dois bebíamos. Separados. A gente não andava junto. Aí voltávamos pra casa. De vez em quando vomitava, aquele negócio todo. E ele dizia que o outro vomitou porque tinha bebido. E eu não. Era porque eu tinha comido alguma coisa estragada. Ou seja, tinha aquela proteção que era sensacional. Eu ria. Depois, ele riu também porque? “Pô, pai, isso é que é proteção. Se o Francisco bebe, foi o porre. Se eu bebo, foi a comida.” “É porque você sabe beber. É diferente dele e tal. Você sabe se comportar. Isso aí foi alguma comida que estragou. Não foi a bebida em si.” Então são exemplos, vamos dizer, de como a pessoa é sem deixar de, na hora que tinha que ir pro pau, ir pro pau também. Ele nunca me deu colher de chá. Nunca. Sempre numa disciplina ferrenha, como era dos pais daquele tempo. Não tinha essa história de psicologia, de que você não pode bater, que não sei o quê. Na hora que tinha que bater, batia. Na hora de proibir de fazer as coisas, proibia. E ficar de castigo, ficava. Não tinha conversa. Tinha a palmatória pendurada lá, sempre mostrando: “Olha, aqui a regra do jogo está por aqui. Te manca aí também.” Então, eu acho que essa não é uma decisão, essa foi uma consequência de toda essa paixão que existia entre a gente. E a minha avó do jeitão dela também. Ela era uma mulher fortíssima. Ele era generoso, bondoso e ela era forte e decidida, ambiciosa. Dentro da pobreza dela, ela nunca aceitava ser pobre. Ela sempre dizia: “Você tem que ser ali como aquele fulano lá e tal. Você tem que se vestir como aquele cara lá. Você tem que estudar pra chegar daquele jeito. Você tem que saber tocar piano, porque quem toca piano é melhor na sociedade.” Então, me obrigava a estudar piano. Eu achava ruim pra caramba, mas ia. Levava uns tapas da professora, mas ia e tal. Então, tive esses dois lados que foram forjando a minha forma de ser. Eu adoro a forma generosa desse meu avô e procuro praticar isso, muitas vezes, até como forma de agradecimento a ele. E ao mesmo tempo eu tenho os meus objetivos, tenho a minha força de vontade de conseguir fazer determinadas coisas que vieram dela, e que a minha mãe atual também tem. Minha mãe atual também é uma mulher forte pra caramba, uma mulher que não se entrega, uma mulher que se põe lá em cima...
P1 – Desculpe interromper, só um instante, por favor.
R – Então, eu acho que toda esse clima de família da minha formação, eu vejo as influências disso no restante da minha vida. Não tenho dúvida nenhuma de que isso me influenciou a ter uma certa ambição comedida, ser um cara desafiador, mas ao mesmo tempo com muito bom senso. Então, tem um certo equilíbrio na minha forma de agir que vem dessa dupla lá que me criou. Depois, o meu pai e a minha mãe são muito parecidos com os avós. Meu pai é um sujeito de alto bom senso, um cara generosíssimo, pacato e tal. E minha mãe é aquela mulher forte, tem que fazer, tem que não sei o quê. Tão forte que até eu acho que prejudicou um pouco o futuro das minhas irmãs, que se submeteram muito mais à força dela, enquanto eu e o meu irmão nos liberamos muito mais cedo. Nunca aceitamos a coisa. Mas sempre fomos motivados por esse desafio. Uma outra coisa interessante pra falar do sistema de vida, quando eu fui fazer o vestibular... Porque eu já fiz o científico lá em Fortaleza, no Colégio Marista, já tinha a presença do meu pai biológico querendo que eu estudasse num colégio bom. Não era pra ir mais pro Liceu, que era um colégio público, mas já estava naquela época começando a decadência do ensino público, que tinha sido muito melhor do que o privado. E ele me pôs no Colégio Marista. Era um colégio na época muito forte. Eu fiz todo o científico lá. Quando foi pra entrar na faculdade, eu levei um pau no primeiro vestibular, até porque eu não sabia que tinha vestibular. Pra ver como eu era bem desinformado dessas coisas todas. Eu achava que eu terminava o científico, do mesmo jeito que eu terminei o ginásio e entrei no científico, e que ia entrar em qualquer Universidade direto. Aí os caras: “Não, tem que fazer um vestibular.” Eu fui fazer a prova. Não sabia absolutamente nada. Pau. Aí eles falaram: “Não, mas tem que fazer um cursinho.” Aí não tinha cursinho ainda no formato que tem hoje. Tinha uns colégios lá que fazia algumas aulas especiais. Mas aí surgiu, isso já foi em 1964, surgiu na Sudene [Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste] um curso preparatório para vestibular pago pela Sudene. Talvez tenha sido o primeiro cursinho no modelo dos atuais lá no Nordeste. E ele tinha uma coisa fundamental, porque pra você entrar nesse cursinho você passava por uma entrevista. Iam lá Assistentes Sociais na minha casa, na casa do meu avô. Olhava quantas calças, quantas camisas, quantos sapatos, quanta cueca, o que eu comia e tal, e decidia que eu era pobre. E ele dizia: “Mas isso aí não vai dar certo, porque eu posso estar aqui na minha casa e ser rico. Você ir lá entrevistar na casa de um pobre.” Mas funcionou. E, ao mesmo tempo, eles diziam o seguinte que tinha que ter também ricos dentro dessa mesma sala de aula para poderem os ricos servir de exemplo para os pobres, por terem uma formação escolar, vamos dizer, talvez melhor do que a que os pobres tinham. Uma formação intelectual talvez melhor. E uma formação de empreendedorismo talvez melhor, o que era verdade. Eu sei porque eu era pobre, não sabia nem que tinha vestibular. Então, pra você ver a minha desinformação naquele tempo. E quando a gente formou a nossa sala, por exemplo, no cursinho, tinha assim uns 70% ou 80% de caras como eu, que vinham de família bastante pobre, e os 30% de caras de classe média, porque naquele tempo não tinha nem rico no Ceará ainda. Mas tinha de classe média alta e tal. Caras com muito mais informação. Muito mais empreendedores, muito mais decididos do que a gente, que serviram de exemplo pra gente. E você estudava o ano inteiro, ganhava uma bolsa de estudo. Você podia tirar zero no primeiro mês de prova, podia tirar zero em tudo, não tinha problema nenhum. Só que, depois de seis meses, você tinha que subir, não podia nunca mais cair. Você tinha que dar uma subida até nivelar em nota sete. Daí não podia mais abaixar. Se abaixasse você perdia a bolsa, perdia o cursinho e tudo. Então, você via que a gente estudava dia e noite, principalmente quem nunca tinha ganho um tostão na vida e de repente tava com uma bolsa daquela na mão.
P2 – Doutor Aguiar, eu queria que o senhor reformulasse a seguinte questão. Por que a família decidiu ir pra Fortaleza?
R – Porque, primeiro, várias irmãs minhas que tinham feito o ginásio lá no interior precisavam continuar estudando e foram morar com outros parentes nossos lá em Fortaleza. Então, nós ficávamos num negócio meio complicado. Elas estavam morando na casa dos outros, embora fossem primos, era complicado. Então, nós éramos oito, duas já tinham ido embora e o resto ia precisar ir. Aí o meu pai biológico chegou à conclusão de que não dava pra ficar lá na cidade. Teria que mudar pra Fortaleza. E aí transferiu o trabalho dele dos correios para lá. E ao se transferir para lá, ia chegar a hora de eu terminar também o meu e ter que ir. Aí ficou aquele drama, se eu iria morar com eles lá em Fortaleza e deixava os avós sozinhos aqui, ou se os avós iam pra lá. o que ocorreu é que os avós foram juntos, o que eu diria que foi uma tristeza muito grande. Aí que eu digo o valor desse homem, porque a casa em que a gente morava foi construída por ele com as próprias mãos, ele é um pedreiro. Tá certo? Ele todo dia ia pro quintal plantar, cortar, serrar e fazer as coisas. Subia em telhado. Ele era um cara, apesar de aposentado, ativíssimo na vida. E ele teve que vender o terreno dele de lá, tudo que ele construiu, vender e se submeter a morar lá em Fortaleza numa casa alugada, paga pelo meu pai. Devendo favor para o genro pra poder ficar comigo. E aí tiveram várias coisas desagradáveis no meio do caminho porque depois disso a minha mãe, que era louca por eles também, fez com que um cunhado dela que tinha dinheiro, que era deputado, comprasse uma casa pro meu avô pra que ele não sentisse mais aquele peso de estar alguém pagando o aluguel. Aí o cara comprou a casa. O cara tinha dinheiro. Comprou uma casinha pequenininha, pobre lá e tal. Aí eu voltei, voltamos a morar nessa casa juntos. Depois de algum tempo a filha dele, mulher desse cara que comprou a casa, quis tomar a casa. Quer dizer, a filha querendo tomar a casa do pai. E aí você vê o transtorno que dá isso numa família. Eu tava já trabalhando no sul. Aí peguei o avião e fui pra lá e tal. Aí resolvemos a coisa pra eles não terem que sair da casa. É complicado. Mas a razão foi essa, para o pessoal estudar.
P2 – E o vestibular, eu quero saber o quê que o levou a fazer Engenharia Química.
R – Pois é. Então, quando eu fiz esse cursinho, esse cursinho era pago pela Sudene, foi uma idealização inicial do Celso Furtado. No fundo, o cursinho era pra gente estudar, mas também pra você ser líder. Então eu tinha aula de Marxismo, de sociologias, e provando que o Brasil estava todo errado, que tinha que ser implantado era o comunismo mesmo, não sei o quê e tal. Só que aí veio a revolução e essa parte política foi abolida do sistema, ficou só a parte realmente de estudo. Mas eu peguei, eu assisti muita aula, muito filmezinho do Che Guevara, não sei o quê e tal. Ainda peguei muito dessas histórias. Tanto que eu, durante os meus primeiros dois anos de faculdade, era bastante esquerdista e tal. Até que eu enxerguei algumas coisas que estavam indo pelo caminho muito errado e caí fora desse processo. Então eu fiz o cursinho e fui crescendo nas notas. Comecei muito mole e fui crescendo nas notas. Me mantive lá acima da nota sete, que era obrigatória. Inclusive, essa coisa era interessante, porque se você passasse no vestibular e entrasse na faculdade, pra receber a bolsa você tinha que manter as médias lá em cima também, para receber durante a faculdade inteira. Então foi muito bom porque ajudou, durante a faculdade, a gente a manter um certo padrão. E na hora de decidir que carreira fazer, por que que eu decidi fazer Engenharia? Porque não tinha... Não tem nada muito racional por trás da minha decisão, não. O que acontece é que eu tinha... É o que eu te digo. Esses amigos mais ricos, eles sabiam exatamente que queriam fazer Medicina, Engenharia ou Agronomia. Como eu tinha um amigo que era mais influente sobre mim do que os outros e ele queria fazer Engenharia, eu disse: “Eu vou querer fazer que nem você, vou fazer Engenharia também.” Foi por aí que eu decidi. E Engenharia Química foi por acaso também porque, quando eu estava já prestes a fazer o vestibular, foi fundada a Faculdade de Engenharia Química naquele ano. Aí eu gostei muito do símbolo da Engenharia Química. Eu achei: “Pô, uma coisa nova que não tem aqui. Vai ser melhor, vai ter mais mercado pra mim e tal. Vai ter mais charme e tal.” Aí achei um monte de desculpa boa pra fazer a Engenharia Química e fiz Engenharia Química. Mas eu poderia ter feito Mecânica, Civil, qualquer outra aí. Eu sempre digo pras minhas filhas: “Eu acho que se eu fosse ser padre, eu ia ser um bom padre; se eu fosse ser médico eu ia ser um bom médico.” Apesar de eu não gostar de sangue, mas a gente aprende. Se eu fosse. Eu não acredito tanto assim que tenha uma vocação. “Não, se eu não fizer a carreira que eu to querendo fazer, eu vou ser infeliz na vida.” Nunca acreditei nisso. Eu acho que a gente é infeliz quando você põe na cabeça dificuldades que, na realidade, o mundo não te apresenta. Você é que cria as dificuldades. Eu faço qualquer coisa que for. Tanto é que, depois de ser engenheiro, eu aprendi um monte de coisa que não tem nada a ver com Engenharia e que eu estudei. Fui atrás, fui buscar para aprender o que não tinha nada a ver com a minha Engenharia. Então foi muito... Não foi uma coisa que veio dos meus pais ou que eu visualizei ser o Presidente da Aracruz. Nada disso. Eu venho com esse meu colega, filho de rico. Vai fazer esse troço, deve ser bom. Pô, essa aqui que é novinha, tem um símbolo bonito e tal, charmosa e tal, deve ser melhor ainda. Então eu fui por aí. Não vou mentir pra vocês que foi uma coisa pensada porque realmente não teve nada disso.
P1 – E o trabalho nessa época do vestibular, já começou a trabalhar?
R – Não. Apesar de toda a pobreza, eu não tinha como trabalhar porque eu tinha aula de manhã, de tarde e tinha que estudar de noite pra dar conta das aulas. Era pesado, o cursinho era seríssimo. Pra gente ganhar dinheiro, a gente tinha que responder bem aquele negócio. Então não trabalhava. Durante a faculdade inteira eu trabalhei, mas não um trabalho formal, com carteira assinada. Eu sempre dei aula em cursinho ou em colégios,substituindo professores.
P2 – De que matéria?
R – Química. Dei aula de química e nem gostava de química, não. Mas era o que o pessoal me dava pra dar aula, eu dava. É o que eu te digo. Se mandar dar aula de religião, eu vou estudar e vou dar aula de religião também. Não tem problema. Então, eu pegava aquilo, estudava, ia dar aula e ganhava o dinheiro que era deles. Como eles não podiam dar por outras razões, eu dava a aula deles e depois eles me pagavam aquela aula. E, ao mesmo tempo, para ganhar dinheiro, já que a minha Engenharia Química era de manhã e de tarde também. Não tinha chance de você trabalhar. Tinha algumas pessoas que trabalhavam no Banco do Nordeste, já eram funcionários do Banco, então fizeram vestibular e entraram. Mas aí o Banco dava umas colher de chá pra eles faltarem e tal. Eu não tinha esse privilégio, tinha que me virar de noite. Então, eu dava aula à noite ou eu tocava. Nós formamos uma banda e eu tocava numa banda. Eu tocava piano. Era o mais novo dessa banda também, era o único não profissional da banda. Nunca aceitei tirar a carteira de músico porque, primeiro, músico naquele tempo era mal visto, era boêmio, vagabundo, não queria estudar e tal. Então eu não queria ter essa pecha, mas tocava com eles. E, ao mesmo tempo, eu era de menor ainda. Foi logo na época que eu comecei a faculdade. Eu ainda era menor de dezoito anos, não podia tirar a carteira também. Então eu tocava à noite nos bailes. Também, outra coisa que eu queria era a minha liberdade. Então, chegava no baile e dizia: “Eu vou dançar com aquela moça lá e tal.” E o profissional não podia ir. Como eu não era, eu podia ir. “Você vai dançar?” Digo: “Vou. Eu vou dançar com ela, você fica tocando pra mim aí.” Então era legal.
P1 – O que vocês tocavam?
R – Naquela época era salsa, bolero, cha-cha-cha, Lê Muller (?). Eram as músicas da época romântica, isso entre 1964 e 1969, na época da Revolução aqui. E a época era bastante... Apesar da Revolução, da repressão e tudo mais, a música era muito gostosa naquele tempo. A música brasileira fez um salto enorme, bossa nova e não sei o quê. Então era bossa nova, música cubana, música italiana, que naquele tempo tinha penetração muito grande. Depois eu parei de tocar porque aí a faculdade foi ficando mais difícil. Aí eu parei de tocar.
P1 – A banda como se chamava?
R – Eu toquei em várias bandas. Na época tinha o Tampa Trio, aqui no Rio. A nossa era Tampa Trio. E aí esse Tampa Trio foi formado assim: a gente tinha uma turma bastante esquerdista lá e a turma estava um pouco se dissolvendo. Um preso, outros saiam à noite pra pichar parede, e estava um pouco perdendo o rumo. Aí começou cada a ir um pro seu lado, cada um tendo medo uns dos outros. Porque quando você entra na clandestinidade, entra numa dessas organizações secretas, Partido Comunista e não sei o quê, vai ficando muito difícil de conviver com aquelas pessoas. Além do que as pessoas que se dedicam a isso, elas entram como se entrassem numa maçonaria ou numa religião xiita. Eles ficam doutrinados de tal sorte que ficavam, que eu comecei a enjoar de falar com aqueles caras. Apesar de eu também na época ser esquerdista, eu dizia: “Pô, mas tudo se explica através disso? Não pode estar certo. O mundo lá fora não é assim.” Eu sempre desconfiei do mundo interno. Por isso que eu sempre quis sair do Ceará, quis sair do Brasil. Eu sempre desconfiei quando as coisas estão muito iguais. Não pode estar certo. Todo mundo pensando igual não pode dar certo, não. E aí eu convenci o padre: “Oh, padre, o pessoal fica tudo comunista aqui. Vai acabar com esse pessoal e tal. Então, nós precisamos formar um conjunto aqui, uma banda pra gente reunir essa turma de novo.” Aí o padre foi lá e disse: “O que é preciso?” Eu: “Uma bateria, um contrabaixo e um piano, aí a gente começa a formar essa banda. Vamos formar um trio tipo Tampa Trio, não sei o quê e tal.” O padre mandou buscar um contrabaixo lá na polícia de Teresina. Conseguiu direto o contrabaixo, compramos um piano velho lá e tal, ele comprou a bateria, e formamos o Conjunto. Aí começou a atrair de novo as moças e os rapazes para aquelas noites lá do conjunto tocando. Primeiro a gente tocava só por diversão. Depois tocava pra ganhar dinheiro também. Então era o Tampa Trio. Teve outra vez que a gente formou outra banda que foi tocar até em Brasília, que era Os Cariris. Essa banda também tocava música nordestina direto. Essa na qual eu tocava nos clubes, que já era música americana, cubana, italiana e tal, essa não. Essa já era cheia de profissionais, os caras tocavam muito e tal. Então era diferente.
P2 – E os namoros, as paqueras, como elas aconteciam?
R – Era bem diferente de hoje. Eu não sei se eram piores ou melhores. Mas eu diria que, na minha época, imperou muito mais aquela... Não sei o que digo, anos dourados ou anos românticos e tal. Tudo era romântico no meu tempo. Então, o namoro era uma coisa quase que sublime. Você adorava as meninas pela beleza e pela amizade muito mais do que pelo toque, pelo agarrar, pelo lado sensual da coisa. Então dançar era uma coisa fantástica. Você, quando dançava com uma moça, naquele tempo fazia fila pra pegar as meninas, as mais bonitas ou as mais interessantes e tal. Eu nunca fui um cara muito namorador. Eu sempre fui um cara que, quando ligava em uma pessoa, ficava admirando aquela pessoa por muito tempo e tal. Às vezes eu namorava uma pessoa e ela nem sabia. Era diferente naquela época do que é hoje, não tinha muita aproximação. Você para pegar na mão da menina, levava não sei quantos meses naquela conversa mole, tentando convencê-la disso e tal. Pra dar um beijo, então, era difícil pra caramba. Então tinha esse jeito diferente de ser. E eu acho que a gente também era diferente. Acho que os rapazes, naquela época, a gente tinha muito esporte, muito interesse fora do interesse que hoje é muito comum, da droga, do sexo, desse troço todo. A gente não tinha muito essa. Mesmo quando eu estava faculdade, eu já via algumas pessoas usando drogas. Mas a turma que eu andava, por exemplo, a gente até bebia. Bebia um bocado, tomava uns porres lá. Mas os porres eram num modelo Vinicius de Morais. Era um porre pra ficar apaixonado, ficar corajoso pra declamar uma poesia com a namorada lá qualquer. Era um porre romântico, um porre pelo porre, não era um porre pra quebrar as coisas ou pra ser violento. A gente nunca praticava esse tipo de coisa. Pelo menos na minha época, na minha turma, era assim. E tinha, já depois, se formando, essas tribos de gente que, aí sim, era violento. Aprendia karatê e ia testar na rua. Mas na minha época não teve muito isso. A gente era muito politizado. Eu participava muito dessas reuniões para derrubar a ditadura, implantar o comunismo, aquelas coisas todas. Então a gente se dividia lá. Uns a favor, outros contra. Mas era uma discussão muito mais teórica do que outra coisa. Então, estudava-se muito também na minha época. Quando eu fiz a minha faculdade, como era a primeira turma de Engenharia Química, nós nos reunimos, éramos trinta alunos. Nos reunimos e propusemos um quorum de ética em que a turma da esquerda disse que “isso é fascismo, isso é coisa da direita”. Nós, os alunos, nos impusemos um código de ética em que ninguém podia colar naquela turma. E nós jubilamos quatro alunos que foram pegos colando.
P2 – Como assim, conseguiram jubilar?
R – Provamos que o cara colou do outro. O código existia e foi feito por nós. Não foi feito pela direção da faculdade, não foi feito pelo Exército, não foi feito por ninguém. Por nós. Então? “Nós vamos fazer isso e nós vamos seguir a regra.” “Ta feito?” “Ta feito. Isso aqui não tem conversa mais.” Então, dois caras colaram um do outro, tá certo? Não foi nem o professor que entregou. Quando saíam duas notas iguais, a gente pedia pra ver as provas. Tinha uma comissão que sentava: “Eu quero ver as provas aqui.” E aí via se houve coincidência ou se houve cola.
P2 – Vocês não eram fascistas. Vocês eram stalinistas.
R – Stalinistas. A gente chamava os caras e dizia. Aí fazia o questionamento com eles lá e tal. Fizemos quatro caras saírem da nossa turma. E os caras nem eram de esquerda, nem eram de direita coisa nenhuma. Simplesmente colaram e acabou. Eu acho que isso foi uma coisa também crítica para a formação daquela turma. Dos vinte e poucos que ficaram, porque outros foram embora e vieram estudar no Rio e tal. Dos vinte e poucos que ficaram, todos deram certo na vida. Todos são homens. Eu, aqui e acolá, encontro um deles. Todos são homens que dirigem alguma coisa aqui, no Nordeste, ou seja onde for. E todos são homens com muita ética. A ética passou a ter um valor muito grande ali dentro daquela turma. Exercício: “Oh, você pode fazer isso em casa, pode consultar todos os livros, mas não pode consultar o amigo.” A gente não fazia mesmo. Não tinha essa coisa, essa permissividade que a gente tem hoje, naquela época lá não. Não estou dizendo que todas as turmas foram assim, não, porque foi a primeira turma que foi a minha. Depois a segunda turma seguiu o exemplo. Na terceira já acabou. Porque aí entrou muito aquela pressão do pessoal da esquerda, que isso era fascismo, que isso era um absurdo, que todo mundo cola, que colar é uma coisa da natureza humana e não sei o quê e tal. Aí degolou. Por isso o Brasil tá onde tá agora. Porque essa gente vai sempre abrindo mão das coisas em função de pseudo teorias que explicam: “Não, você tá passando fome, pode matar.” Então, você abre mão desse princípio. Daqui a pouco o cara que não está passando fome, mas tá insatisfeito, mata também porque, pô, matar já não é uma coisa tão grave como foi. Já não é pecado mortal mais, já não é isso. E as religiões cada vez mais estão afrouxando também pra faturar. Então, o mercado funciona também assim.
P1 – Você falou no início um pouco que você conheceu sua esposa nesse período de faculdade. Casou ainda...
R – É, quando...
P2 – Fala um pouquinho dela, como é que foi isso?
R – Eu acho que eu estava ainda no segundo ano da Engenharia. Ela morava em Recife e sempre passava as férias em Fortaleza, na casa dos primos. Por acaso, era no bairro que eu morava. Numa noite lá que a gente fazia essas festinhas, em vez de fazer uma festa numa boate, a gente fazia festa na casa dos outros, com disco e tal. E servia lá meia de seda, que é uma bebida, um pouquinho de nada de álcool com chocolate e não sei lá o quê. E nos conhecemos naquela noite lá. Eu tirei pra dançar e perguntei se podia namorar com ela. Ela era bonita, era de fora. E eu justamente estava pensando em pegar uma menina de fora, que aí não tinha que ficar preso. Depois terminavam as férias, ela ia embora e tal. Aí dançamos. Eu perguntei se podia namorar. Ela topou. Ela disse: “Mas amanhã eu não venho porque tem jogo do Ceará, eu não vou poder namorar.” Eu disse: “Mas, pô, mal começou e você já vai mudando o curso das coisas.” E ela disse: “Mas amanhã não posso vir de jeito nenhum.” E aí fomos nos gostando. Isso foi nas férias de janeiro. Nas férias de julho ela veio novamente. Aí houve uma empatia muito grande e nós passamos a nos corresponder mais. Daí há pouco eu tava fazendo uma carta por dia. Todo dia escrevia uma carta e botava no correio. Ela escrevia uma e botava pra cá. E aí, nas outras férias, ela foi pro Recife. Depois o pai dela foi transferido para Santa Catarina, aí complicou pra caramba porque eu tinha que juntar muito mais dinheiro, era muito mais longe. Pegava o ônibus de Fortaleza pro Rio, do Rio pra lá. Eram três dias de viagem. E juntava dinheiro pra, na volta, eu voltar até o Rio de ônibus e do Rio para Fortaleza de avião pelo menos. E aí ela também, às vezes, ia a Fortaleza. Mas na maior parte das vezes eu ia lá. E a ia gente escrevendo todo dia. Às vezes três cartas por dia. Chegava da faculdade, eu sentava lá. E aquilo ali foi um verdadeiro romance escrito. A gente brigava por carta. Ela contava que tinha feito não sei o quê lá em Lages. Aí eu dava um esporro daqui pra lá: “Não pode fazer isso, não sei o quê.” “Não, mas porque eu tive que dançar não sei o quê.” “Mas não pode dançar sem me perguntar e tal.” Eram aquelas brigas doidas lá por carta. E os meus amigos do Ceará, todos eram loucos por ela também. Então ela conquistava aquele pessoal todo. Ela era uma mulher muito agradável, muito educada e tal. Aí o pai dela foi transferido pro Equador e eu falei: “Ah, agora não dá. Não posso ir atrás de ti mais lá. Então nós vamos casar.” “Como casar, se você não está trabalhando, tá na faculdade ainda?” “Ah, tem um monte de amigo meu que casou aqui e ta vivendo. Então, pra lá eu não vou. Como nós gostamos muito um do outro, vamos nos casar.” E ela disse: “Vamos morar onde?” “Vamos morar em Fortaleza. Eu tô estudando, temos que morar aqui e morar na casa do meu avô. Você vem ver a casa e olha pra ver se você topa, porque vai ser pobre, não tem jeito.” Aí, quando eu fui falar, a primeira vez na vida que eu pedi alguma coisa pro meu pai, o pai biológico, eu cheguei pra ele e disse o seguinte: “Olha, a Elaine vai, o pai dela foi transferido pro Equador. Ela vai ter que ir embora e eu não quero perder ela. Então, eu quero casar. E é a primeira vez que eu estou pedindo alguma coisa pro senhor. Eu quero o seu apoio pra casar e, se for muito complicado, a gente vem morar aqui. Se ela não quiser morar na casa do meu avô porque a casa é muito humilde, a gente viria morar aqui. Quero ver se o senhor aceita.” Aí, na hora ele disse: “Pô, meu filho, você nunca pediu nada. Isso é uma coisa justíssima e tal. Mande bala e pode ir pra frente.” Porque eu sabia que a minha mãe não ia topar. Então fui logo nele, que era o mais generoso. Ela era muito mais objetiva. Ela iria dizer: “É um absurdo casar estudante, trazer uma mulher de outro lugar pra cá. Isso não vai dar certo.” Nem falei com ela. Depois ela ficou possessa da vida, mas já estava decidido com o meu pai. Então casamos e fomos morar lá. Ela era professora primária, então passou a dar aula lá no Ceará. Sofria pra caramba, porque ela andava a pé não sei quantos quilômetros pra chegar na escola. Mas enfrentou aquilo de peito erguido, de cabeça erguida, de peito aberto, até eu terminar a faculdade. Nesse período que ela morou em Santa Catarina, que eu vinha pra Santa Catarina, tinha lá uma fábrica de celulose e papel. Então, pra eu não ficar lá janeiro e fevereiro sem fazer nada, ela conseguiu um estágio pra mim. Ela foi lá, falou com o diretor da fábrica, porque o pai dela era comandante do batalhão de lá. Então tinha um prestígio grande, conhecia bem toda a elite lá. E de vez em quando tínhamos jantares. Ela participava junto e eu via quem tinha oportunidades de trabalho. Então ela falou com esse americano: “Ah, meu namorado tá vindo passar as férias aqui. Ele está fazendo Engenharia Química, gostaria muito de fazer um estágio e tal. Dá pra conseguir um estágio pra ele, pra ele não ficar aqui, não perder essa oportunidade?” Aí o americano arranjou esse estágio e eu fui lá. Trabalhei os dois meses. No ano seguinte eu trabalhei um mês. Quando eu estava no final do último ano da Engenharia, aí começa a vir aquela dúvida: “O que é que eu vou fazer da minha vida?” Porque aí acabou essa vida mansa de estudante, vai ter que trabalhar e não tinha a menor chance de enxergar o que poderia ser. Aí apareceu um concurso da Petrobrás, para ser Engenheiro da Petrobrás. E, no meio do caminho... Só um parênteses aí: Quando eu casei, eu casei lá em Lages. E esse povo todo dessa amizade dela lá compareceu ao casamento, me conheceu mais de perto e fiz uma certa amizade com eles. Então, quando estava perto de terminar, que tinha que ir atrás de emprego, tinha o concurso da Petrobrás para o qual eu estava estudando pra fazer. Eu enxergava que o único meio de eu sair do Ceará e ser alguma coisa na vida era vindo pra cá, e talvez a Petrobrás fosse um bom caminho, eu vinha estudar no Rio e tal. E aí apareceu o convite pra ir lá pra essa fábrica dos americanos. Mas eu, com os meus cabelos longos e meu modelo socialista de pensar, eu disse: “Ah, você tá louco. Vou lá pra trabalhar pro imperialismo yankee, trabalhar pra americano e tal. ___ Petrobrás e tal.” Aí baixei o pau de estudar pra Petrobrás, aquele troço todo. Mas aí, quando chegou o mês de dezembro, o americano em pessoa fez uma carta pra mim dizendo: “Pega um avião, venha pra cá. Vou lhe oferecer um bom trabalho, um bom desafio.” Aí eu fiquei seduzido: “Um cara, que é diretor de uma empresa americana, deve ter visto alguma coisa que prestasse aqui em mim e tá me convidando assim, com tanto sulista lá à disposição dele. Tanto Engenheiro Químico sendo formado no Paraná, no Rio Grande do Sul e tal.” E aí eu disse pra minha mulher: “Eu acho que eu vou pra lá. Vou enfrentar esses yankees velhos lá.” E aí pegamos um ônibus. Eu não fui de avião. Morria de medo de chegar lá, ele não me pagar e acabar todo o meu dinheiro. Peguei um ônibus, viajei três dias e fui até lá. Aí cheguei lá e ele disse: “Cadê as passagens pra eu pagar de volta. Tá aí?” Eu falei: “Eu vim de ônibus.” “Ah, você veio de ônibus?” “Vim.” “Você é louco mesmo, né? Você consegue pra trabalhar comigo.” Então comecei a trabalhar lá com eles. E esse cara é um dos meus gurus. Ainda é vivo. Mora nos Estados Unidos, mora no Canadá. Na realidade, ele é canadense, mas viveu muitos anos nos Estados Unidos.
P2 – Quem é ele?
R – Stuart Lang.
(pausa)
R – Essa empresa naquela época se chamava Olinkraft Celulose e Papel Ltda. Era uma empresa 100% americana. E a diretoria dela toda era americana, canadense. E aí eu tive a minha primeira experiência real assim de confrontar os meus princípios políticos. Quando eu cheguei lá eu comecei a olhar e tal, trabalhar, e verifiquei que, em determinados setores da fábrica, o pessoal descarregava a madeira no caminhão para ser processada, com as mãos. E aquilo fazia frio de dez graus abaixo de zero. Os caras sangravam as mãos. De vez em quando cortava e tal, um trabalho muito duro. Aí eu fui lá e falei com ele: “Samaro, coisa ridícula isso. Uma empresa americana e o pessoal lá sofrendo, descarregando aquelas toras com as mãos, um frio, no meio do tempo. Isso parece aquelas histórias em que os imperialistas ficam usufruindo da pobreza do Terceiro Mundo.” Não sei o quê e tal. E ele só ouvindo. Quando terminei, ele disse assim: “Bom, já que você tem esse pensamento tão puro, tão socialista, tão digno, vá lá, estude e me dê uma solução. Por exemplo: investimento, quanto vai custar, o retorno que isso vai ter, o que vai acontecer com as pessoas que estão trabalhando, a melhoria que você vai ver.” Aí eu fui, estudei e voltei com um belíssimo projeto de mecanizar, botar um troço que tirava. Aí cheguei pra ele, mostrei tudo isso e ele disse assim: “Faltou uma coisa no trabalho aqui.” “O que foi?” “O que vai ser feito com as pessoas?” “Como assim?” “Não, se você vai botar lá um braço mecânico qualquer, um trator pra empurrar esse troço todo, não vai precisar de tanta gente. Lá tem trinta pessoas trabalhando. Você vai reduzir talvez a uns dez caras pra fazer tudo isso. Vinte vão ter que sobrar. E vai fazer o que esses vinte?” Aí eu me toquei que eu não tinha pensado nisso. Então ele disse: “Volta e estuda de novo.” Aí eu sentei com outros colegas mais experientes e os caras: “Não tem jeito, Doutor. Se não precisa dele, a empresa não vai poder pagar uma pessoa que não tem o que fazer. Vai ter que demitir.” Eu voltei pra ele: “Oh, tem que demitir vinte pessoas.” Aí ele disse o seguinte: “Eu folgo em saber que não é o imperialista yankee que tá propondo isso, porque eu não tô propondo isso. Eu sei como é que é a solução também. Só que eu não tenho coragem de demitir as vinte pessoas. Eu acho que é complicado fazer essa demissão. Agora, Doutor, você é um engenheiro novo, você trouxe a solução. Você tem que implantar essa solução. Ou você acha que a solução é ruim?” Eu digo: “Do ponto de vista de Engenharia, a solução certa é essa.” “E do ponto de vista social?” “Não é a mais certa.” Aí eu comecei a ficar na dúvida. Aí ele disse o seguinte: “Olha, você precisa entender de uma vez por todas que não existe nada certo e nada errado definitivamente. Todas as soluções podem ter o certo e podem ter o errado. Depende do ângulo de quem tá tomando a decisão. Agora, você quer a minha opinião pessoal? A decisão certa é a sua. Vá lá e demita, porque esse é o certo. Eu não tenho coragem de fazer, mas o certo é esse mesmo. E as empresas que não fizerem isso não vão longe. Eu sei que quando chegar na hora de decidir, decida. Não tenha beneplácitos com a coisa correta. Eu tô fazendo errado.” Ele teve o peito de dizer isso pra mim. “Eu to fazendo errado. O certo é esse. Vá lá e faça.”
P1 – E aí, qual foi a decisão?
R – Aí foi duro. Eu chorei um bocado na minha casa e tal. Passei umas duas ou três noites muito ruins. Mas cheguei lá e fiz. E o certo é o certo. Eu tenho que fazer o certo. Aprendi a lição pro resto da vida. Parei de encher o saco deles de ser yankee, rico e não sei o quê, e passei a entender que quando você tem que tomar uma decisão, lógico, você tem que olhar toda a ética da decisão, todo o conteúdo dela, pra tomar uma decisão. Mas não pode falhar na hora que você sabe que a decisão é aquela que tem que ser tomada. Então, passei por outras situações aqui dentro onde eu tive que reduzir o quadro de pessoal aqui, em 1993, violentamente. E sofri um bocado de novo, mas fiz com plena consciência de que depois eu vejo o resultado dessa decisão, pra frente. Porque toda decisão não pode ser vista no momento. Ela tem que ter um certo tempo pra provar que ela deu certo ou deu errado. Então, aprendi muito com esse cara e aprendi muito nessa empresa, porque ela é uma empresa muito cheia de gente quase que semi-analfabeta. Eu era um dos primeiros turmas de Engenheiros a chegar nela. E aí eu vi várias coisas interessantes quando ele nos chamou, os engenheiros novos, e disse o seguinte: “Olha, vocês são o futuro dessa empresa. O que é que vocês querem ser?” Aí um, que era lá do sul, disse: “Eu quero ser logo gerente de produção, porque aquele cara que tá lá de gerente de produção é semi-analfabeto e eu quero logo ser o chefe dele.” Aí ele se virou pra mim: “Carlos, o que é que você pensa lá na área da celulose?” “Eu não quero ser o chefe dele.” Era um senhor já de bastante idade. “Eu quero ser o assistente dele. E daqui a alguns anos, quando ele se aposentar, eu posso ser o chefe do departamento. Agora eu não quero ser chefe dele.” “Mas por quê?” “Primeiro, porque ele sabe muito mais do que eu. Embora ele não seja engenheiro, embora ele seja ignorante, ele sabe pra caramba daquele troço que eu não sei. Eu nunca estudei isso. Eu vou aprender agora. Então, como é que eu vou ser chefe de uma coisa que eu não entendo? Tem que aprender com ele. Se eu for chefe dele, ele não vai me ensinar. Se eu for assistente dele, ele vai me ensinar tudo.” E não deu outra. Quer dizer, eu conquistei o cara rapidamente, aprendi pra caramba e depois ele foi lá na ______ e disse o seguinte: “Olha, o Carlos está pronto. Eu não preciso ser mais o chefe. Eu aceito que ele seja o meu chefe.” O cara pediu. Foi completamente diferente. Se eu tivesse ido por cima, eu tinha quebrado a cara, com certeza. Como eu vi os outros quebrarem a cara lá. Essa empresa me ensinou muita coisa. Me ensinou muita coisa da forma como eu via até o estrangeiro. Os caras eram muito mais humanos do que eu imaginava que fossem, muito mais solidários do que nós somos, do que nós brasileiros somos. Um pessoal muito mais ético. Quer dizer, muito interessante. Aprendi pra caramba. Depois eu me senti preso. Santa Catarina não era o meu mundo. Não tinha praia, não tinha calor, o sotaque era muito diferente. Eu era visto como quase um bicho lá dentro. “O que o nordestino está fazendo aqui dentro? Como é que você resiste a esse frio?” As perguntas eram sempre essas. “Você tá maluco de vir morar aqui.” Mas isso tinha uma ponta de discriminação, uma ponta de inveja, uma ponta de expulsão. Aí eu disse pra minha mulher. Eu digo: “Olha, você gosta daqui, você morou aqui e tudo mais. Eu não quero ficar aqui. Eu quero ir embora. Eu quero ir pra São Paulo.” “Pô, mas logo São Paulo? Lá tem muito mais discriminação do que aqui.” Eu digo: “Mas, se eu vencer em São Paulo, aí não tem mais, aí é só o exterior pra me provar. Vencendo lá, eu venço no resto.” E aí, contra a vontade dela, fui. A primeira vez que a gente teve uma decisão sem consenso. Eu disse: “Oh, se você não quer ir, você fica. Mas eu vou. Eu não fico aqui mais, não. E quem trabalha sou eu. Então...”
P2 – Em que ano foi isso?
R – Isso foi em 1975, 1976. Aí fui trabalhar noutra empresa americana lá em São Paulo.
P2 – E como foi a chegada em São Paulo. Qual a visão da cidade?
R – Primeiro, antes de ir morar definitivamente, eu fui trabalhar lá. Eu fui com a minha mulher e duas crianças ainda puxadas pra ficar um mês num hotel lá trabalhando num projeto. Ficamos seis meses. Você imagina só, uma mulher com duas crianças dentro de um hotel na Avenida Nove de Julho, ali no Centro da Cidade. Duas crianças que nem andavam direito. Ela não tinha amigo lá em São Paulo, a gente não conhecia nada, nem carro a gente tinha naquela época. Foi um inferno aquele troço. Ela aguentou firme. E esse americano, no final de semana ele disse: “Não, pega o avião e vai pro Rio pra ela ficar com os pais. Tudo por conta da empresa.” Ele entendia essa coisa, essa dificuldade da gente. Mas mesmo assim eu decidi que eu queria ir pra São Paulo. Mas de forma definitiva, pra morar lá e tal. E tomada a decisão, você imagina só o pavor que ela tinha de São Paulo por causa dessa temporada lá. Ainda mais ficar numa cidade grande. A gente morava num lugar pequeno. Eu quebro o braço jogando futebol e chego em São Paulo sem dirigir, com o braço quebrado, tendo que arranjar mudança, entender a cidade, aprender a ir pro trabalho. Ela tinha que me levar ao trabalho. Foi um inferno.
P2 – Onde vocês moraram lá?
R – Moramos no Itaim, que era muito próximo do escritório, porque quando nós chegamos, fomos morar num apartamento que era da própria empresa. Então era ali perto. Logo depois eu comprei um apartamento lá. A gente morava numa casa de trezentos metros quadrados lá em Santa Catarina e fomos morar num apartamento de oitenta metros quadrados lá em São Paulo, quando eu comprei o apartamento. Então, eu tive que dar móveis lá em Santa Catarina. Minha máquina de secar roupa eu tive que deixar na casa dos amigos. Só botei lá dentro o que cabia. Mas eu queria ir pra São Paulo, então fui pra lá. Mudei de empresa, fui trabalhar numa outra empresa americana. Lá conheci um outro americano, que é meu amigo até hoje, fantástico. Jean Louis. Ele já aposentou-se também, mas é um cara espetacular. E contei muito dessas histórias que eu to contando, pra ele aqui. Ele também era um cara que vinha de família humilde lá no sul dos Estados Unidos. E ele disse: “Não, mas eu vou te levar pra treinar lá. Você vai ser o melhor profissional desse setor no Brasil. Gostei de você e vou te incrementar. Aí nos levou, pagou a passagem também da Elaine, nós fomos pra lá e deixamos as filhas com o sogro. Ele disse: “Além disso, eu vou te levar para New Orleans, que eu sei que é o teu sonho, e nós vamos acabar com essa coisa toda, vamos iniciar uma nova vida pra você aí.” Eu já fui em New Orleans umas vinte vezes de lá pra cá. Nunca mais parei de ir. Então, esse cara me ensinou muita coisa diferente do outro. Ele me ensinou, por exemplo, uma coisa que eu não fazia. Todo assunto que a gente ia resolver, ele me ensinou a estudar. “Carlos, eu só quero a solução depois que você tiver lido pelo menos vinte artigos técnicos diferentes. Vai pra biblioteca ou me fala, que eu mando buscar nos Estados Unidos. Mas você tem que ler, no mínimo, vinte artigos sérios sobre esse assunto. Aí eu vou aceitar a tua solução.” E eu digo: “Pô, mas que saco. Eu sei desse troço.” “Mas eu quero que você leia os vinte artigos.” E eu tinha que tirar as cópias e mostrar. “Aqui os artigos.” E tinha que citar, onde eu ia apresentar o projeto, frases daqueles artigos todos. Passou um certo tempo e eu comecei a entender o valor daquilo. E aí depois: “Realmente, os caras não são bons à toa, não. Eles são bons porque eles têm método, eles têm paciência, eles têm disciplina pra fazer as coisas e __________.” E esse cara era experientíssimo. Eu via ele lendo, sabe? Ele lia os vinte artigos também. Foi impressionante. Um cara jovem. Naquela época, era um pouco mais velho do que eu. Eu tenho 59 anos, ele deve ter uns 62, 63, por aí. Forte, um cara bonitão. Então, esse também foi outro bom exemplo que eu adotei pra minha carreira. E aí esse projeto para o qual eu fui deu errado por questões políticas do nosso grande Maluf. Mesmo no Governo Militar, a gente não conseguiu a aprovação ambiental. Aliás, a aprovação foi dada pela CETESB [Companhia Ambiental do Estado de São Paulo]. Na hora que eu fui buscar esta licença, o Presidente da CETESB me chamou na sala dele e disse: “Olha, infelizmente, por ordens superiores, eu não posso te dar essa licença mais.”
P1 – Mas vocês iam implantar uma fábrica?
R – Uma fábrica de celulose e papel lá em Aratuba, ali perto de Itapetininga, por ali. Nós já tínhamos até começado a trabalhar lá no local. E aí foi uma primeira enorme decepção na minha vida, porque eu me deparei ali em São Paulo, primeiro, com a discriminação contra nordestinos, contra mim. Várias vezes aconteceu isso. Me deparei com a fraude nesse processo todo, me deparei com a corrupção em Brasília. E lá na Assembléia de São Paulo, com CTI, esse negócio todo, me deparei com ecologistas que botaram uma mala preta pedindo um milhão de dólares para poder sair a licença que ele pagaria pra não sei quem e tal. E me deparei com a fraqueza até dos militares, que o presidente era o Geisel, que sabia que a gente estava certo, todos os dados foram fornecidos pra aquilo ali, e não fez nenhuma pressão pra coisa funcionar. O resultado é que os americanos viram que isso não era um país sério e disseram: “Não dá pra investir aqui. O que nós já investimos está perdido. Nós vamos embora.” E me ofereceram pra ir com eles pra lá. Então, pra eu não ficar desempregado... Quer dizer, iam fechar tudo e iam embora. Pra eu não ficar desempregado, então, eu disse pra eles o seguinte: “Eu não tenho a menor ambição de morar nos Estados Unidos. Eu gostaria muito de trabalhar lá pra mim provar também um pouco, mas não de morar definitivamente. Então, eu acho que eu vou buscar alguma coisa no Brasil antes, fechar tudo e ir embora e, em último caso, eu vou com vocês. Mas eu só vou se eu não achar outra coisa aqui.” Aí botei meu nome no mercado. O projeto vai acabar mesmo. Daqui uns seis meses eu vou estar desempregado. Tô buscando. Aí esse amigo anterior, o Stuart Lang, que já estava morando nos Estados Unidos, soube que o projeto não estava dando certo, que eu ia procurar emprego. Ele falou lá nos Estados Unidos com o Presidente da Alcoa, que ia fazer uma fábrica grande lá no Maranhão naquela época. Estou lá em casa num sábado à tarde, com caxumba e tal, todo deitado. Aí toca o telefone. Era o americano. “Olha, eu to aqui com seu nome que me foi dado pelo Stuart Lang, lá em Nova York, e eu quero lhe entrevistar agora pra você entrar pra trabalhar pra gente.” Eu digo: “Mas quando? Segunda-feira?” “Não, agora.” Eu falei: “Mas hoje é sábado, o senhor está no escritório?” “No escritório.” E o escritório dele era na Nove de Julho, muito perto da minha casa. “Venha agora aqui.” Aí eu digo: “Se o cara me ver todo inchado com esse troço, ele me joga lá de cima, do décimo andar. Morto de medo de pegar doença tropical.” Aí eu falei pra ele: “Mas o que eu faço?” “Não, bota um cachecol.” Tava muito frio lá em São Paulo. Eu me vesti e fui lá. Cheguei lá, o tava com os dois pés em cima da mesa. Ele disse assim: “Olha, não tem muita conversa, não. Eu quero você trabalhando pra gente. Amanhã de manhã vai passar um carro na sua casa, vai te levar a Poços de Caldas pra você ver a nossa fábrica pra você, segunda-feira, decidir se você quer ou se você não quer.” Eu digo: “Espera aí, calma. Eu não entendo nada de alumínio. Eu nunca trabalhei nisso. Eu não vou tomar uma decisão dessa, desse modelo.” “Não, mas amanhã você vai lá, né?” “Tá bom, eu vou lá amanhã.” No outro dia, o cara passou e me levou a Poços de Caldas, de cara inchada ainda. Fui lá. Conheci. _____ estava o diretor da fábrica me esperando. Me mostrou, explicou como era o processo e tal. E aí eu voltei, liguei pra um amigo meu de uma firma de engenharia que entendia de alumínio. Convidei ele pra conversar um pouco. Ele disse: “Carlos, se você estudar seis meses, você domina isso aí e tal. Pode ir em frente que não tem problema.” Eu digo: “Não, mas não é assim, não. Eu não conheço, não tenho muita coragem de enfrentar dessa forma.” Segunda-feira eu fui lá falar com o cara e ele já veio com uma proposta. “Quanto é que você ta ganhando?” Eu disse: “Tanto” “Então eu pago 10% a mais. A sua mulher fala inglês?” Eu digo: “Fala.” “Então vocês vão pra Austrália, morar um ano na Austrália para ser treinado. Você me disse que não é do setor e eu sei que você não é, mas com um ano lá você vai aprender que nem qualquer um dos nossos aqui e tal. Se o Stuart Lang acreditou em você, é porque você aprende mesmo. Então vai pra casa e conversa com a tua mulher. Eu quero a resposta até quarta-feira.” Aí eu tremi. Porra, uma mudança de vida total. O que eu fiz? Liguei pra cá, tinha um amigo meu que trabalhava aqui, era gerente de produção daqui. Eu disse: “Valério, eu tô indo embora, saindo do setor. Recebi uma proposta pra ir pra Austrália. Eu não tenho outro emprego, eu vou. O que você acha?” Ele disse assim: “Bom, peraí. Eu te ligo daqui a meia hora.” Ele desligou, ligou pro Diretor daqui, que era um inglês. E o cara disse: “Não, de jeito nenhum. Chama o Carlos aqui amanhã.” Isso era segunda à noite. Terça de manhã ele chamou a gente aqui. Aí eu vim pra cá na terça-feira. Chegou aqui na terça-feira, essa era a segunda vez que eu tava sendo chamado aqui na Aracruz. Já tinha tido uma primeira. A primeira vez que eles me chamaram, quando eles souberam que o projeto lá não tava dando bem, quiseram me contratar. E era pra posição de gerente de produção. Eu cheguei, ouvi a conversa toda, aí disse pro Diretor, que era David Watson o nome dele: “Mas, Senhor David, você não precisa de mim aqui. Você já tem o cara certo aqui dentro.” Ele disse: “Quem é?” “O Valério.” “Bom, mas eu não tô entendendo. Eu tô te chamando pra essa posição e tu me oferece outra pessoa? Qual é a tua ambição?” Eu digo: “A minha ambição é de crescer, mas eu sei que tem um cara aqui dentro que é melhor do que eu pra essa posição porque ele já tá aqui há vários anos. É meu amigo. Eu conheço ele muito bem. É muito bom. E, pô, eu não vou chegar aqui e tomar o lugar de uma pessoa que eu acho que tem tanta capacidade quanto eu e um pouco mais, porque ele já conhece e eu não conheço. Então, acho que o senhor vai fazer errado se o senhor não colocar ele.” E o certo é que, nessa primeira vez que eu vim, eu falei tudo isso. Eu voltei pra casa e disse pra ele: “Olha, não vai dar certo porque eu acho que eu iria passar por uma pessoa que eu gosto muito. Eu não vou fazer isso.” E ele disse: “Não, tá certo. Se você ficar desempregado uns tempos aí, a gente aguenta. Não tem problema nenhum. Você não deve fazer isso mesmo, não.” Aí à noite o Valério me ligou chorando e dizendo assim: “Você é um louco, você é um filho da puta. Porra, eu lutei pra lhe trazer pra cá, você chega aqui e me põe no seu lugar. Agora o cara tomou a decisão de que eu vou ser o Gerente de Produção.” Eu disse: “Não, tá certo. Então você vai ficar importante, não vai?” “Vou.” “Então, pô. Depois você me leva pra aí. É melhor desse jeito. Eu vou fazer a coisa pelo caminho certo.” Aí ficou por isso mesmo. Então, chegou essa oportunidade de eu falar pra ele: “Olha, eu to indo pra Austrália.” Ele falou com o David e o David me chamou aqui na terça-feira. Então, fui almoçar na casa de hóspede ali e ele me perguntou: “Por que você vai pra Austrália?” “Porque é a oportunidade que eu tenho. Eu tenho mulher e filho pra cuidar. Eu acho que é uma boa chance de ser treinado num país legal, um país desenvolvido. E quando eu voltar eu tê com o emprego garantido. Vou ser Gerente lá no Maranhão. Apesar da minha mulher não querer de jeito nenhum ir pro Maranhão, que fica cada vez mais longe da família dela e longe do centro que a gente acha que é bom pro futuro dos nossos filhos.” E aí ele disse o seguinte: “E quanto é que eles vão lhe pagar?” “É tanto.” “Eu pago a mesma coisa. O que mais que eles estão te oferecendo?” “Isso, isso, isso e mais esse ano na Austrália.” “O ano na Austrália eu não vou te mandar, o resto tudo eu lhe ofereço e você vem pra cá.” Eu digo: “Eu vou fazer o que por esse dinheiro todo?” Aí ele disse: “Bom, por enquanto eu não sei, mas venha que a gente vai achar.” Aí, pronto, o sofrimento aumentou mais ainda. Agora eu to com duas decisões pra tomar. Cheguei lá em casa... Aí, como eu já tinha ido pra São Paulo sem consenso com a minha mulher, dessa vez eu digo: “Eu quero o consenso.” Aí fiz lá uns cinquenta itenzinhos com peso, nota e tal. Chamei ela: “Dê as notas aqui, dê os pesos e vamos fazer o ranking de uma por uma.” Aí deu assim, terminou cem pra Aracruz e 99 pra Alcoa. (risos). Como tava quase empate técnico, eu disse pra ela: “Você decide agora. O que você decidir, eu faço. Eu já fui muito ditatorial na outra decisão. Nessa agora eu aceito o seu feeling, o seu sentimento.” “Eu prefiro ficar na Aracruz. Eu não quero morar no Maranhão de jeito nenhum.” Aí fui lá no americano e disse pra ele: “Olha, infelizmente não dá.”
P2 – Você é doido, né? O cara olhou pra ele e falou isso.
R – “Infelizmente, não vai dar.” “Por que não vai dar? Parece um negócio bom e tal.” “Não, é que eu tive uma outra proposta parecida pra ficar no Brasil. É do meu setor. Eu prefiro ficar lá.” E fiquei amigo desse cara até hoje. Aí ele disse: “Tá bom. Isso é que eu gosto. Você, no dia que foi marcado pra decidir, decidiu.” “Então tá bom. Tá decidido.” Aí vim pra cá. E assim que eu cheguei aqui, no dia oito de setembro de 1981... E aí a decisão de vir foi tomada rapidamente. E decidi, como era em setembro, que a minha família ficaria em São Paulo. Eu viria sozinho. E no dia quinze de setembro eu liguei pra ela e disse: “Ah, não fico sozinho. Venham pra cá.” Aí ela disse: “Ta bem, eu topo. Nem que eu tenha que dar aulas pra essas meninas aí fora de hora para elas acompanharem a diferença dos colegas, eu vou embora.” Aí mudou todo mundo pra cá imediatamente, também para o Coqueiral. Não aguentei uma semana sozinho. Então já vieram. Eu entrei aqui como engenheiro de processos, não foi como gerente naquela época. Depois passei a chefe de divisão logo em seguida. Aí teve um teste importante aqui que eles me deram pra coordenar e eu mostrei que eu sabia de alguma coisa. Tinha um departamento que era gerenciado por um sueco e esse sueco não tava andando muito bem. Aí eles tiraram o cara. O cara voltou pra Suécia e eu assumi o Departamento de Controle Técnico, que era qualidade, meio ambiente, controle da fábrica. Depois fui Gerente de Produção. Depois fui Gerente Geral. Depois fui Diretor da fábrica. Depois Diretor das operações. E por aí foi.
P1 – É uma carreira mesmo.
R – É, foi uma carreira. E aí eu digo o seguinte, que o sucesso de qualquer pessoa... Primeiro, precisa definir bem o que é sucesso. Se é ser o Presidente ou se é ser bom no que você faz. Pra mim, sucesso sempre foi ser bom no que eu estava fazendo. Nunca foi ser o Presidente. Eu nunca almejei nem ser Diretor, nem ser Presidente da Aracruz. Isso não é charme, não é coisa nenhuma. Não almejei, como também não sabia que tinha que fazer vestibular pra entrar na faculdade. Então, não faz parte da minha cabeça engendrar coisas muito fantasiosas pra minha vida. Eu só penso coisas possíveis. Eu não penso coisas impossíveis. Eu só sonho com coisas que eu sei que eu vou poder um dia fazer. E vou batalhar pra fazer dentro daquela minha esfera. Então, quando eu era Gerente de Produção, queria ser o melhor Gerente de Produção do mundo. Eu estudava pra cacete, vivia dentro da fábrica, não sei o quê e tal. Então, eu quero ser bom nisso. Aí eu sempre concluía o seguinte. Se eu for bom nisso, alguém me descobre, alguém vê. Como também nunca na vida eu fui pedir aumento de salário. Em 34 anos de carreira eu nunca pedi aumento de salário pra ninguém. Eu não acho que tem que pedir. Eu acho que as pessoas têm que enxergar o que eu tô fazendo. E se eu não gostar, eu saio. Ou eu entro assim, feliz da vida, que o cara ta me enxergando. Porque eu gosto de outras coisas da região que for. Ou eu fico infeliz da vida e vou-me embora, como eu saí lá do sul e vim pra São Paulo, e por aí vai. Ganhava bem. Tinha um bom prestígio lá, mas não tava feliz. E eu mesmo tomei a decisão de sair. Aqui eu nunca pedi aumento porque eu sempre achei que eu que tenho que fazer primeiro, eu que tenho que demonstrar trabalho pra poder alguém me ver. Isso não veio, azar dele. Então, são muito inteligentes ___. Mas sempre vêem. A verdade aparece no final das contas. Então, minha carreira foi muito mais fundada. E é isso que eu passo para as minhas filhas. Muito mais fundada na transpiração do que na inspiração, do que na conversa bonita e tal. Mas eu reconheço que eu tenho um bom modelo de construção de amizade, de construção de relacionamento, de convencimento das pessoas a andar na mesma direção e tal. Eu acho que isso é natural, eu não estudo pra isso. Nunca procurei ler esses livros de autoajuda ou de gestão de pessoas. E sempre digo pro meu pessoal: “Vocês lêem demais até. Muitas vezes vocês lêem coisas que são feitas para americanos, que funcionam para americanos, mas não funcionam pra brasileiros Então, vocês tem que ser um pouco mais do seu próprio feeling das coisas, da sua próprio personalidade, e não ficar se baseando só no que os outros escrevem para outras culturas, para outras realidades. Então, precisa saber discernir isso.” Muitas vezes o que acontecia, hoje acontece menos, é que um livro que era feito nos Estados Unidos, que serviu muito lá, chegava aqui com dez anos de atraso, e a realidade do mundo já era outra. Você ia aplicar isso aqui e o cara já tinha abandonado lá. Mas a gente não sabia, achava que estava no auge da moda a coisa, e quebrava a cara de novo.
P2 – Como foi o seu encontro com o Senhor Lawrence, a relação, como se deu esse contato?
R – Quando eu virei Gerente dessa área de controle técnico, como era uma área que mexe com qualidade, com meio ambiente, vamos dizer, com os controles da empresa... E o Senhor Lawrence é um cara que sempre esteve muito ligado à fábrica, vinha aqui visitar e tal. Eu passei a ser um dos gerentes que visitavam a fábrica pra mostrar pra visitante, pra mostrar pra ele e tal. Então, ele vinha como visitante estrangeiro e eu ia junto. Aí ele percebia que eu tinha muito interesse na fábrica, nas questões ambientais, nas questões sociais, nas questões políticas, porque eu conhecia. Não era a minha função, mas eu prestava atenção e via que tinha que saber um pouco dessas outras áreas também. Então ele começou a notar essa veia um pouco mais abrangente, que não era só a técnica, e começou a me puxar pra várias coisas que ele vinha fazer aqui, me chamava pra ir junto e tal. E a gente foi começando. Nos jantares à noite com os visitantes, ele percebia que o meu interesse era genuíno pela conversa toda. De vez em quando eu ia pra Suécia, Finlândia, conhecia os gringos por lá, os gringos já vinham e falavam bem de mim: “Oh, cadê o Carlos?” Ele começou a perceber ali que eu tinha muito interesse no meu trabalho e na empresa em si. E tinha um bom relacionamento com os finlandeses, os americanos, o pessoal que vinha aqui nos visitar. Então isso foi criando uma certa intimidade. Quando foi em 1985, tinha acho que uns 35 anos de idade, eu fui promovido a Diretor Industrial. Na época, então, esse inglês teve um câncer, operou e disse: “Carlos, eu não pretendo mais ficar. Os médicos disseram que eu tenho dez anos de vida. Então eu quero me aposentar e viver meus dez anos na Inglaterra muito bem e tal. Aproveitar.” Só que ele não morreu. Ele continua vivo até hoje e muito bem. Então, está aproveitando mais do que ele pensou. “E eu vou precisar botar alguém aqui. E você é uma pessoa que eu acho que tem a visão mais completa das operações e tal. Eu vou te indicar pro Lawrence e para o conselho.” Na época o Lawrence, que era muito cioso do peso dessa operação toda: “Não, mas o Carlos é muito jovem. Você fica aí então de consultor por um ano pelo menos pra ver o que ele vai fazer e tal.” Aí____: “Não, eu fico.” Então me promoveram. E, de fato, ele ficou um tempo. Mas com menos de quatro ou cinco meses ele disse: “Carlos, eu to mais atrapalhando do que ajudando. Você já tá dando conta fácil disso aqui. Eu vou-me embora, tá bom?” Aí isso fez me ligar muito ao Senhor Lawrence, porque, ele, com medo de que eu fizesse alguma burrada por aqui, ficava mais em cima olhando, perguntando e tal. Então, ficava aquele desafio de eu provar o tempo inteiro que estava dando certo, que as coisas estavam andando.
P1 – Dentro dessa trajetória da Aracruz, você é um dos poucos que esteve realmente a liderar, estar presidindo uma empresa, que teve uma carreira de conhecer processos, de vivenciar o dia-a-dia da fábrica. O que você acha que isso é de diferencial na condução da Aracruz?
R – Eu acho que a Aracruz é uma coisa interessante. É uma empresa de sucesso, é uma empresa que é conhecida no Brasil e no mundo. Respeitadíssima. Ontem tinha uns suecos aqui nos visitando. Os caras terminaram a visita e disseram: “Poxa, fazia dez anos que eu não vinha aqui. Quando eu pensei que a Aracruz era tudo aquilo que eu tinha visto, vocês estão muito melhor do que eu já vi. É respeitável o trabalho que é feito nessa empresa, o gabarito dessa empresa e tal.” Quer dizer, você fica cheio de orgulho por tudo isso. É claro que o fato de eu vir de dentro da empresa não é o que determinou isso. A empresa já era boa antes de eu ser Presidente. Mas eu acho que ela era boa porque a fundação dela, o início dela sempre teve gente muito dedicada aos processos, às coisas internas dela. Conhecedores do processo. Gente que conhecia a floresta, gente que conhecia fábrica, gente que conhecia vendas. Apesar dos Presidentes anteriores serem todos generalistas, mais ou menos interessados no que acontecia, os Diretores sempre foram muito fortes. Eram poucos e fortes. A ____ impunha sempre muito mais ao Presidente do que ele impunha a nós porque a gente tinha base, conhecimento e estava com a diretoria certa. Eu acho que esse foi o grande fundamento da Aracruz. O fato de eu ser um Presidente agora, vindo de dentro, facilita muito mais pra mim como Presidente, porque ninguém me enrola, apesar de ninguém querer me enrolar. Mas é mais difícil um Diretor, mesmo que não queira enrolar, errar. Principalmente se for nas áreas que eu conheço. Aí eu digo: “Não, não pode ser assim. Também não vou aceitar isso dessa forma.” Então, é muito mais difícil o cara trazer uma coisa sem ter estudado. Eu não aceito muito isso. O negócio dos vinte artigos e tal. Eu acho que tem que ter estudo pra o cara trazer qualquer projeto. Tem que ter base pra trazer as coisas. Enquanto um Presidente leigo, se você levar um determinado assunto que esteja não com um conteúdo, mas com uma roupagem bonita, ele compra. Compra porque eu já vi comprar, várias vezes aqui dentro da Aracruz, coisas muito lindas e que por dentro não tinham absolutamente nada. Ele compra porque é bonito. Qualquer um. Eu também compro lá numa loja uma capa de CD maravilhoso. Eu nem sei o que é que tem o CD. “Pô, eu gostei tanto dessa capa aqui que eu vou levar pra ter uma capa bonita na minha coleção.” Então, é mais difícil quando o cara vem de dentro, porque ele conhece. Principalmente, outra coisa importante, por exemplo, os empregados também confiam mais. Mas quando eu falo que a empresa está em dificuldades, que a gente vai precisar fazer uma contenção de despesas, eles não acham que é aquela coisa do capitalista, do cara mentiroso e tal. Quando eu digo que o lucro em reais que é publicado é grande, mas esse não é o lucro verdadeiro, o lucro verdadeiro é em dólar, então eles sabem que eu estou falando a verdade. Não estou enganando ninguém, não to usando de subterfúgios que, geralmente, os caras mais generalistas usam. Como o cara não tem a intimidade com a Organização, ele tem que achar outros meios de convencer. Ou fica muito ditatorial. Por outro lado também é isso. Quando eu vejo que o pessoal trabalhou pra cacete, produziu acima do que foi esperado, mas o preço do mercado é que determinou mal o resultado, eu não penalizo ninguém por isso. Eu chego e digo: “Não, o pessoal trabalhou mesmo, deu duro. Vamos dar os bônus que eles merecem.” Porque eu entendo o que está acontecendo. Não fico só olhando o que o mercado pensa da Aracruz, o que é que o acionista pensa. Eu vou lá e brigo a favor desse negócio porque eu valorizo esse trabalho. Então eu acho que essa é a única, diria, grande vantagem de um presidente vir de dentro da organização. E acho que o mundo está mudando. Teve aí um período fortíssimo, principalmente pelo modelo americano de gestão, de que os Presidentes deveriam ser homens financeiros. Tá certo? E geralmente os homens financeiros são homens longe das organizações, são homens frios, que olham só os juros. São homens bons de tomar decisões duras. Eles têm os valores deles também. São homens que, quando precisa demitir três mil pessoas, eles não batem a questão. Eles vão lá e: “Tem que demitir, demite e acabou.” Então, são maravilhosos para tomar decisões duras, decisões pesadas e que, muitas vezes, são a salvação das empresas, esse tipo de decisão. Mas se esse homem fica dez, quinze anos na frente de uma empresa pensando simplesmente nas decisões duras e não têm... amos dizer, não cria o lado emocional que as pessoas têm que ter nas suas empresas, as empresas vão ficando frias, vão ficando desmotivadas. Enfim, toda a inteligência que o cara pôs lá é dissolvida na falta de vontade das pessoas. Então, o mundo enxergou isso já. Nos Estados Unidos, muito da Europa, muito dos presidentes novos estão sendo homens vindos de dentro e, em geral, não mais das áreas financeiras, mas muito mais das áreas operacionais. Em geral, eles têm um coração maior, porque a função deles é viver com gente. Não é porque eles são bonzinhos, anjos. E não é porque os outros são demônios. Os outros não vivem com gente, a gente é do tamanho do meio. Se você não convive com gente, você não tem nenhuma responsabilidade ali. Você não se dói se a mulher do cara pegou um câncer. Eu que vivo conversando com as pessoas, o cara fica doente e eu fico ali já pensando em como é que a gente vai ajudar o cara. Você se dói e tal. Você tem muito mais emoção.
P2 – A gente tem muitas perguntas ainda, mas eu vou tentar dar uma... A Aracruz, ela tem o desafio _____ que é a questão do meio ambiente. Você participou muito desses debates. E hoje a gente tem uma frente de combate que é um discurso de desenvolvimento sustentável. Como que você faz um apanhado desse percurso todo?
R – Eu diria o seguinte. Quando a Aracruz fez a primeira fábrica, em 1978, o Senhor Lawrence pediu que fosse feito uma pesquisa a nível mundial de quais os melhores parâmetros ambientais que existiam no mundo, até porque no Brasil não tinha nada. Aquela Ceima, que era lá em Brasília, não tinha nada. E foram pegos suecos, finlandeses, canadenses, americanos... Pegou-se o que tinha de legal que foi implantado na Aracruz. Porém, naquela época, apesar de fazermos tudo certo, nós vivíamos o Regime Militar, onde a transparência era muito pequena, onde as pessoas não tinham necessidade de explicar o que estavam fazendo. E como a Aracruz, junto com a CST, como a Vale, foram projetos decididos pelas cabeças pensantes em Brasília, mas eram cheio de capixabas no meio disso, só que não foi decidido pelos políticos. Aqui, esses quatro grandes projetos se transformaram num verdadeiro demônio capitalista implantado pelos militares de fora pra dentro. E se paga esse preço até hoje, até porque a geração que pensa assim foi uma geração que se diz perseguida pelos militares, eu acho isso detestável, o cara ainda querer ser eleito dizendo que ele foi expulso do país. Ele tem que ser eleito é pelo que é hoje, nunca por uma coisa que já se passou e que não vale mais nada na minha cabeça. O cara tem que provar que ele é bom hoje. Tanto é que muitos desses que foram expulsos estão roubando, estão fazendo a mesma coisa que os que ficaram fazem também. Então não tem valor mais. Esse pessoal teve um acesso enorme à imprensa, têm uma doutrina de repetição da mentira o tempo inteiro. E isso pegou. Por outro lado, o nosso grande erro foi a ficar calado. Eu sempre digo o seguinte: “Quando você escuta do lado do seu ouvido uma história dez, quinze, mil vezes, e do lado de cá não tem nenhuma pra desmentir ou pra, pelo menos, debater aquela história, essa aqui fica.” Então, o _________ ficou porque o Russo, que era um ecologista daqui, falou isso. Mas falou isso sem a menor condição científica. Ele falou isso muito mais na emoção, porque ele quis trabalhar para a Aracruz e ninguém contratou na época. Foi uma burrice também porque não era comprar o cara, e sim dar um trabalho. Mas por questões, muitas vezes, de ignorância das pessoas, você deixa de fazer uma coisa certa. A Aracruz nunca foi pra imprensa. A Aracruz nunca fez uma propaganda na televisão nesse estado aqui. A Aracruz era 100% autossuficiente em tudo. Os caminhões pra transportar as madeiras eram nossos. Os motoristas eram empregados nossos. Para fazer as placas das estradas, nós fazemos aqui dentro. Então, tudo isso contribuiu para que a Empresa fosse vista como um entrave, um monstro dentro dessa sociedade. De uns anos pra cá, nós fomos dissolvendo tudo isso. Hoje terceirizamos um monte de coisas. Tem um monte de empresários neste estado que vivem em função da Aracruz. Tem mais de sessenta empresas que vivem em função dessa empresa aqui. Mais de sessenta empresas. No último projeto, duzentos milhões de dólares ficaram dentro deste Estado. Tá certo? Hoje a televisão nos vê. A gente é visto na televisão daqui, coisa que não era antes. Hoje eu vou pra qualquer reunião em Vitória, façam qualquer pergunta que quiserem fazer: “Vocês tomaram terra de índio?” Eu respondo tudo isso claramente, pra todo mundo ouvir. E vai dissolvendo essa coisa que tinha de um lado e está começando a ter do outro. Custa por quê? Porque os que contaram esta história estão vivos ainda e não vão voltar atrás porque ganharam dinheiro com isso. Eles foram eleitos com isso. Eles têm todo um mundo deles em função disso. Eles vão continuar mantendo essa história. Mas, provavelmente, os filhos deles... Eu já conheço vários filhos deles que não pensam como os pais, que acham aquilo um absurdo, uma ignorância, um radicalismo tolo e tal. E isso vai mudar com o tempo. Tem que ter paciência porque vai mudar com o tempo. Só que a gente tem que estar buzinando do outro lado. Com uma diferença fundamental, que a empresa não pode mentir. Empresa que tem ações na bolsa de Nova York, uma empresa que o seu Presidente e o seu Diretor Financeiro poderão ser presos nos Estados Unidos, eu não posso mentir. Não posso assinar documentos que eu mando em junho e em dezembro para bolsa de Nova York com mentiras. Porque senão eu nunca mais entro naquele país. Se entrar, vou preso.
P2 – Deus me livre. Como é que você vai ouvir o jazz que você tanto gosta?
R – Pois é. Então, eu prezo a minha reputação, prezo o meu jazz e acho bom ir pra lá também. Então, eu não quero fazer, a menos que me enganem aqui dentro, senão não sai nada errado. Só que o outro lado não tem essa obrigação, não tem essa necessidade, não tem. Muito do que estão do outro lado, inclusive, está pago por empresas americanas, empresas europeias, para fazer esse trabalho. Eles atrapalharam. Nós sabemos disso.
P2 – Quando a gente anda pela Aracruz, ou que fala de Aracruz, a gente pensa muito no papel, nessa coisa mágica. E essa é uma pergunta que eu gosto. Você tem essa relação com o papel no seu dia-a-dia, de saber que está lá o trabalho de pegar um livro e perceber a textura de uma folha?
R – Eu leio desde muito pequeno. Então o livro é uma coisa que... Quando às vezes o pessoal fala que vai sair o livro eletrônico, que você vai pegar um livro de plástico e vai ficar lendo aí, eu fico arrepiado com isso. Eu não acho o plástico nada ecológico, e o papel é. O papel é renovável, o papel é próximo à natureza. Eu acho que o papel é o símbolo de desenvolvimento de uma sociedade. Papel é comunicação escrita. Papel é embalagem. Significa higiene, significa proteção dos alimentos, proteção dos produtos que são fabricados. O papel é transmissão de cultura através dos tempos. Então, eu adoro este setor. Acho que este setor paga um preço elevadíssimo pela sua caipirice. Que é um setor que, no interior, vive muito no meio das florestas e tal. É um setor caipira, é um setor de gente simples e de gente que não tem maquiavelismo na cabeça como outros setores têm. Nós não temos isso. No mundo inteiro é assim. Este setor apanha em tudo que é lugar porque todos são homens muito simples, são muito éticos. A maioria são homens simples, pobres. Muitos deles até pobres. Eu conheci ontem um sueco que disse: “Pô, eu sou um fazendeirozinho pequeno, tenho poucos hectares, estou trabalhando nisso. Estou achando fantástico.” Então, o setor é assim. Apanha muito mais do que merece apanhar pelo tanto que ele já contribuiu com a humanidade, com cultura do mundo inteiro. Com inversões maravilhosas, com tecnologias sensacionais. Com proteções ambientais que nem se imagina que se faz neste setor e tal. Então, eu tenho um orgulho grande. Tanto até que eu tenho uma filha que está trabalhando nisso também. Não porque eu impus, mas porque ela escuta e tal, acha que é bom também. Então...
P2 – Trabalhando nisso o quê?
R – No setor de celulose e papel.
P2 – Quantas filhas?
R – São três. Duas engenheiras químicas e uma economista-advogada.
P2 – E já tem netos?
R – Uma neta já, com um ano de idade. Beleza.
P2 – Menina também?
R – Menina também, lógico. Pra mim tem que ter muita mulher. É mais fácil conviver com as mulheres. Difícil em certas horas, mas no geral me ajuda muito nas minhas decisões. Eu divido muita coisa minha com várias mulheres.
P2 – A gente acompanha uma aqui, que é a Angel, uma parceirona.
R – A Ângela está comigo desde 1985. A Ângela, há muitos anos, não é minha secretária. Ela é uma assistente de altíssimo nível, com um poder de discernimento fantástico. Uma pessoa muito inteligente, muito criativa, observadora, e decidida. É um senhor gerente.
P2 – E essa movimentação que parte da Ângela, do Luis Fernando Brandão, de contar a história da Aracruz. Como é que você vê esse projeto?
R – Dou a maior força pelo seguinte: porque eu acho que esta empresa é fantástica. Eu tenho dito muitas vezes que, no dia que eu me aposentar ou que me mandarem embora, seja qual for a razão, eu não vou ficar com raiva de nada, porque eu vou ser o primeiro cara a fazer uma placa em algum lugar aqui da empresa agradecendo por eu ter trabalhado tanto tempo nela. É uma empresa fantástica, realmente. A maioria dos ex-empregados que saem, com raras exceções, têm uma saudade imensa do tempo que trabalharam aqui. Essa empresa nunca me obrigou, em nenhuma das minhas funções, a fazer nada errado. Nunca propôs, nunca tirou a proposta de um acionista, de um diretor: “Faça isso aqui assim e tal. Vamos enganar não sei quem e tal. Vamos resolver dessa forma para melhorar a situação.” Nunca ninguém pediu. A gente paga preços caros para não fazer, para não ceder a isso. E isso também é um valor que era um valor pessoal meu e hoje é um valor cada vez mais importante nas empresas também. Portanto, essa empresa já saiu muito na frente desses valores aí. O aspecto de tratamento humano aqui dentro é fenomenal também. E no profissional, então, nem se fala. É uma empresa em que você tem a liberdade, a minha porta está sempre aberta. Eu jogo pelada com os operadores dessa empresa. Eles, quando querem falar comigo, falam. Não se perde nunca o respeito só porque tem essa abertura. As pessoas viajam pra caramba. A maioria dos Gerentes e Engenheiros daqui conhece o mundo por conta dessa empresa. As pessoas compram livros. As pessoas têm biblioteca. As pessoas têm acesso. Todo mundo aqui usa a Internet. E eu diria, tudo isso com muita dignidade. Não é aquele negócio de você vai viajar, ficam três dentro do mesmo apartamento e tal, pra economizar, não. Porque a gente faz a coisa com respeito que o ser humano deve ter. Então, eu acho que são pequenas coisas que você vai juntando. Parece que eu tô falando porque eu sou o Presidente. Mas se você for olhar a pesquisa de clima que tem aqui, se você pegar as pessoas que saíram daqui, até achando que aqui não era tão bom com é, eles reconhecem que estavam errados. Então, eu tenho plena consciência disso porque eu conheço outras empresas e não preciso mentir e nem preciso me enganar. Eu preciso estar muito certo do que estar fazendo, até pra não perder o pessoal, pra manter o time aqui fazendo bem. Então, eu acho que a força que essa empresa tem é super reconhecida. Talvez seja a única empresa brasileira que já foi chamada três vezes em Harvard para contar sua história. Não é qualquer empresa de um paisinho como o nosso que vai ser chamada lá pra contar a sua história, tá certo? E é uma história, felizmente, que não é pra contar uma história de falhas. É de sucesso. Eu diria isso: que a empresa é reconhecida mundialmente como uma empresa sustentável, uma empresa que tem uma direção no rumo correto. É muito bem conhecida dentro do Brasil. E ela tem os seus problemas locais aqui que podem, dentro daqueles também, sair pro mundo e muitas vezes até nos atrapalham. Mas é como eu te contei. Aqui tem muita coisa do passado mal resolvida que tem que se resolver. Algumas não vão se resolver enquanto determinados atores não saírem da face da terra. Não tem outro jeito. Eles são renitentes no pensamento. Eles não querem mudar o pensamento. Pronto, aí vai. O que é que eu vou fazer? Tem que conviver com isso mesmo. Não tenho raiva de nenhum deles. Já fui confrontado. Um chegou a ser Secretário de Estrada. Eu pedi uma audiência. Ele: “Eu só tô recebendo você aqui porque agora eu to numa função de Secretário, porque odeio a Aracruz e tal.” “Você pode odiar a Aracruz, mas eu não sou a Aracruz, eu sou uma pessoa que vem lhe visitar. Vamos conversar civilizadamente.” Um cara ignorante. Ele não é tanto. Ele é mal intencionado, até pra ganhar dinheiro com isso. Então, é o que eu te digo. Tem essas dificuldades todas. E a gente tem que ultrapassar, tem que levar. Não pode encarar isso como nenhum grande drama, não. Dá trabalho. Enche o saco. Tem que dialogar, tem que resolver, mas faz parte.
P2 – Você gostou de dar a entrevista?
R – Sempre que fala da gente é natural que a gente goste, já diz a psicologia. Principalmente quando eu não estou falando da parte final da minha vida, que é muito fácil de você falar quando já chegou no auge da carreira, do sucesso. Eu gostei demais de falar da parte passada, da infância, das origens, porque essa ninguém conhece. Eu acho que essa é que pode, às vezes, servir de estímulo a algumas pessoas que, quando sabem disso, até se vêem na condição de um dia conseguir algo melhor. Eu sempre também digo que não é todo mundo que vai conseguir e nem você consegue só por seu mérito. É preciso você estar no lugar certo e na hora certa também. Você pode ser um cara ultra competente e ultra preparado. Tem um monte de amigos meus que talvez sejam muito mais competentes do que eu. Conheço vários que são mais competentes do que eu. Só que, na hora da promoção, na hora do acontecimento, eles não estavam aqui dentro. Estavam em outro canto e tal. E eu estava na hora que aconteceu aqui. E por sorte aconteceu numa empresa. Lógico que eu também não vou ser muito modesto e dizer que é só a sorte. Quer dizer, eu tive um trabalho, tenho um trabalho. Tive imensas discussões internas na minha casa porque eu sempre trabalhei doze, treze, catorze horas. E apesar da minha filha mais nova me cobrar muito: “Não, porque você é ausente.” “Ou você aceita ou você vai sofrer sozinha. Eu não vou sofrer. Eu não vou ficar com nenhum remorso porque eu tô fazendo o certo. Então, você tem que se adaptar a isso. Se você estuda num lugar bom, se você viaja, se você tem condições de crescer na vida, eu tô te dando essa condição que eu não tive. E, pra eu ter essa condição, eu vi o quanto o meu avô sofreu carregando lata d’água, carregando tijolo nas costas, plantando no sol quente. E tudo que eu to fazendo agora, que é muito mais confortável, ele fez muito mais desconfortavelmente do que eu fiz pra eu chegar onde eu cheguei. Estou dando a vocês uma opção melhor do que a minha. Não pra ser Presidente, não pra ser rico nem nada disso. Nunca almejei isso e nem sou rico. Mas pra ser digna, pra ser feroz onde você está trabalhando. Ganhar tudo aquilo que você disputa. Ganhar no bom sentido, na dignidade, sem precisar pisar em ninguém. Tem que ganhar na sabedoria, tem que ganhar na inteligência, tem que ganhar na força de vontade, no trabalho. É isso que eu quero que vocês sejam. Não precisa ser Presidente de coisa nenhuma. Se for, vai ser porque o mundo... Até porque vocês são mulheres. Vocês têm que entender que as mulheres têm dificuldades nessa sociedade nossa. Vai ser difícil alguma de vocês chegar no topo. É raro uma mulher chegar no topo. Você já tem que pôr na cabeça que o horizonte de vocês é diferente. Então, não ponha o horizonte muito acima pra ficar sofrida. Vai pondo o horizonte aqui, depois põe outro aqui e depois põe outro aqui. Se chegar nesse aí, maravilhoso. Se não chegar, vocês vão entender que tem milhares de mulheres competentes, milhares de mulheres que estudaram, mais até do que vocês, que tiveram mais condições do que vocês e não chegaram. Como vários amigos meus que são melhores do que eu, estudaram muito mais do que eu, fizeram muito mais curso do que eu, e não chegaram. Não é porque são burros. A questão é porque o topo é afunilado. Cabe pouca gente.” Muito bom.
P2 – Queria agradecer. É uma pena que a gente esteja atrasadíssimo.
R – Pois é.
P2 – Mas se você topar a gente podia fazer depois mais uma rodada, marcar um próximo dia.
R – Já vimos tudo, tá bom. A gente pode conversar. Ainda tem um monte de coisa aí?
P2 – Tem um monte de coisa que eu queria perguntar, saber como foi encontrar o mar.
R – Ah, tá. Então tem muita coisa.
P2 – Agora não dá mais.
R – Mas a gente pode fazer outro dia.
P2 – Vamos combinar. É a velha história. Muito legal.
R – É. Não tem coisas muito fantásticas, não. Até não tem nada radical também aí.
P2 – A própria vida é fantástica.
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