Projeto Ponto de Cultura – Museu Aberto
Eixo Temático: Memórias do Samba Paulista
Depoimento de Roberta Oliveira
Entrevistado por Marta Delellis e Isabela Ribeiro de Arruda
São Paulo, 04/02/2010
Realização Museu da Pessoa
Entrevista PC_MA_HV235
Revisado por Gustavo Kazuo
P - Roberta, pra começar eu queria que você falasse o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R - Nome completo? É Roberta de Oliveira, mas eu tirei o “de”. Foi em 1972, já faz tempo, dia 24 de agosto em Campinas.
P - Qual é o nome dos seus pais?
R - Ah, tadinhos, eles são falecidos já. É Adalton Valente de Oliveira, nome pomposo, né? O apelido dele era Nenê, ele era jogador de futebol e da minha mãe era Maria Aparecida Dantas.
P - E o que ela fazia?
R - Já? De cara? Então, minha mãe era dona de casa até os meus 12 anos, mais ou menos. Ajudava meu pai, era vendedora lá em Campinas, tudo. Só que daí ela separou do meu pai e a gente tava numa situação muito difícil nessa época. Eu não sei pra onde eu olho.
P - Voltar um pouco.
R - Não. Mas eu acho que está bom assim, falar dos pais porque as fotos também... Eu escolhi muita coisa deles, né?
P - Então vamos lá. Começamos de novo, Roberta. Fala pra gente o seu nome completo o local e a data do seu nascimento.
R - É Roberta de Oliveira, que eu tirei o “de” pra não ser de ninguém, nem do Oliveira, só Roberta Oliveira. Nasci em Campinas, dia 24 de agosto de 1972.
P - E qual é o nome dos seus pais?
R - Meu pai era Adalton Valente de Oliveira, os dois já são falecidos. Adalton Valente de Oliveira, o apelido dele era Nenê e ele era jogador de futebol em Campinas, também, né? E minha mãe era Maria Aparecida Dantas, também falecida e morava lá em Campinas também.
P - E o que eles faziam, seus pais?
R - Então, o papai é uma história mais fácil, então eu vou começar da história do meu pai. Meu pai era jogador de futebol. Ele era super conhecido, era o...
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Eixo Temático: Memórias do Samba Paulista
Depoimento de Roberta Oliveira
Entrevistado por Marta Delellis e Isabela Ribeiro de Arruda
São Paulo, 04/02/2010
Realização Museu da Pessoa
Entrevista PC_MA_HV235
Revisado por Gustavo Kazuo
P - Roberta, pra começar eu queria que você falasse o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R - Nome completo? É Roberta de Oliveira, mas eu tirei o “de”. Foi em 1972, já faz tempo, dia 24 de agosto em Campinas.
P - Qual é o nome dos seus pais?
R - Ah, tadinhos, eles são falecidos já. É Adalton Valente de Oliveira, nome pomposo, né? O apelido dele era Nenê, ele era jogador de futebol e da minha mãe era Maria Aparecida Dantas.
P - E o que ela fazia?
R - Já? De cara? Então, minha mãe era dona de casa até os meus 12 anos, mais ou menos. Ajudava meu pai, era vendedora lá em Campinas, tudo. Só que daí ela separou do meu pai e a gente tava numa situação muito difícil nessa época. Eu não sei pra onde eu olho.
P - Voltar um pouco.
R - Não. Mas eu acho que está bom assim, falar dos pais porque as fotos também... Eu escolhi muita coisa deles, né?
P - Então vamos lá. Começamos de novo, Roberta. Fala pra gente o seu nome completo o local e a data do seu nascimento.
R - É Roberta de Oliveira, que eu tirei o “de” pra não ser de ninguém, nem do Oliveira, só Roberta Oliveira. Nasci em Campinas, dia 24 de agosto de 1972.
P - E qual é o nome dos seus pais?
R - Meu pai era Adalton Valente de Oliveira, os dois já são falecidos. Adalton Valente de Oliveira, o apelido dele era Nenê e ele era jogador de futebol em Campinas, também, né? E minha mãe era Maria Aparecida Dantas, também falecida e morava lá em Campinas também.
P - E o que eles faziam, seus pais?
R - Então, o papai é uma história mais fácil, então eu vou começar da história do meu pai. Meu pai era jogador de futebol. Ele era super conhecido, era o Nenê da Ponte Preta, da época o melhor time da Ponte do Guarani de 60 e pedrada lá, pouco antes de eu nascer. Tanto é que quando ele faleceu, eu não sabia que ele era tão famoso assim. Jogou como Nelsinho Batista, jogou com outras pessoas, Zé Duarte, tudo e ele era super conhecido porque a minha família inteira é de boleiro. Meu vô, o Barriga, era boleiro, o meu tio Bebeto de Oliveira até hoje, até pouco tempo atrás estava no São Paulo, no futebol e meu pai, Nenê, eu não sabia que ele era famoso. Depois ele parou de jogar bola quando eu nasci, porque com filho, né, naquela época ninguém ganhava que nem os Romário da vida, esse povo aí tudo. Aí ele desistiu e foi ser vendedor. Ele começou a vender umas... Imagina que absurdo, ele virou caixeiro viajante e vendia louça e botava numas malas e ia de trem, fazia a linha Mogiana inteirinha vendendo no trem, vendendo as louças. Ele chegava no lugar pra vender, estava tudo quebrado. Mas ele, assim, era bom vendedor porque ele conseguia vender, mesmo a louça quebrada. Depois vendeu roupa, bijuteria, ele vendia de tudo. Ele tinha uma boa lábia pra vender. Depois no final da vida dele ele tava trabalhando como vendedor da Santista, vendendo tecidos pra grandes confecções em Goiânia. Daí ele viajou o Brasil inteiro fazendo isso.
P - E a sua mãe?
R - Então, por isso que eu já bebi a água. Pra dar fôlego. A minha mãe a história é mais complicada porque até os 12 anos, como eu tava contando pra vocês, ela era muito de casa, vendedora também de shopping, moça bonita, cabelão comprido, morena, olho verde, né, cinturinha e tudo. Aí ela não tava conseguindo dar conta porque a separação foi muito difícil pros meus pais. Eu fiquei muito no meio dos dois porque eu sempre fui a mais velha, tal. Daí levaram a minha mãe pra trabalhar na zona de Campinas. Foi difícil no começo porque eu não sabia. Eu via que ela começou a trabalhar à noite, mas não sabia o porquê ela tava trabalhando à noite. Eu era terrível, adolescência. Nisso no começo da minha adolescência eu queria saber o que tava acontecendo, porque ela chegava tarde da noite, porque ela não falava direito onde que ela trabalhava, porque eu não podia contar pro meu pai, né? Aí eu comecei a pegar as histórias, ela falando no telefone, alguém contando alguma coisa. Um povo diferente começou a aparecer lá em casa, todo mundo muito alegre. Aí ela falou pra mim que trabalhava como rodomoça de uma empresa de ônibus e que ela ia mostrando os pontos turísticos do lugar. Depois eu descobri, com 13 anos quase, que ela tava se prostituindo na zona de Campinas. E a zona de Campinas antes era o Jardim Itatinga. Ainda é, só que antes era muito diferente, eu tenho 37, com os meus 13 anos aquilo lá tava bombando. Então ela começou a trabalhar, aos poucos eu fui descobrindo e perguntei pra ela. Só que engraçado, eu como filha mulher não contava pra ninguém porque eu não gostava da minha mãe estar trabalhando na zona, imagina, né? Filha da puta legítima. E como é que você vai falar isso pros outros, assim? Bem, eu via que as pessoas discriminavam a gente, eu não podia brincar com as pessoas. Então de uma vida de mimos que eu tinha, que era extremamente mimada, de repente o meu mundo caiu, acabou tudo e daí eu passei a ser um, sei lá, uma peste com as outras crianças, porque eu não podia brincar com ninguém. Foi pesado isso, um monte de gente terminou amizade com a gente, tudo.
P - Quantos irmãos vocês são, Roberta?
R - Então, do mesmo pai somos dois, depois tem mais um que é...
P - É você e fala o nome do seu outro irmão.
R - O Carlos Eduardo, o Edu que mora lá em Goiânia, em Trindade, né? E o Guilherme, que é filho só da minha mãe com outro pai, que mora no Paraná. Porque com a morte da minha mãe a gente se separou até por uma questão de segurança. Foi bem complicado também isso. Mas isso aí eu vou falar depois.
P - Você sabe um pouquinho da origem da sua família? Como é que seu pai e a sua mãe foram parar lá? Que origem de imigração? Se a sua família sempre foi de Campinas?
R - Não. Assim, a parte do meu pai, eles vieram lá de Ribeirão, pro lado de Ribeirão, Bebedouro, aquele lado. A família da minha vó veio de um lugar que chama Beija Fulô, na Bahia, que era uma terra de feiticeiros, grandes feiticeiros. São desse lugar. Então a família da minha avó que era de índios e negros veio de lá. Aí eles começaram a vir no lombo de um burro da Bahia, chegaram até Bebedouro e ali eles ficaram, por parte de pai. E ela conheceu o Barriga que já morava ali, eles ficaram juntos, casaram lá e mudaram pra Campinas, daí fizeram toda a história de vida deles lá. Da parte da minha mãe é muito louco porque o meu vô é filho de um dos cabras de Lampião. Já é falecido também, senhor Dantas. E daí ele veio de lá, foi pro Paraná, conheceu a minha avó que era a maior filhinha de grandes pedreiros da cidade, cidade pequena, que eram de origem espanhola. Ela casou com a minha vó novinha e levou a minha vó pro sertão. Quando chegou lá, ele ficou noivo de outra mulher. Minha vó teve que pegar minha mãe, que tava grávida já do meu tio, e fugir pro sul de novo.
R - E aí voltou pra Campinas?
P - E aí no sul ela ficou lá um tempo e meu pai e minha mãe, meu pai foi jogar bola em Maringá, que era onde a minha mãe tava morando na época, daí eles se conheceram lá e meu pai trouxe minha mãe pra Campinas. Ufff.
P - E Roberta, o que você lembra assim dessa sua primeira infância? Você se lembra da sua casa de infância lá em Campinas?
R - Eu tive três casas. Uma era abandonada e daí minha mãe espalhava brinquedo no terreiro pro povo não entrar, porque viam que tinha criança, respeitavam um pouco mais. Antigamente era assim, hoje em dia não adianta muito. Então a gente morava no São Fernando, que era do lado de um córrego horrível e uma casa que acho que até hoje tá abandonada. O papai não tinha condição, judiação, ele pegou e falou: “Olha, eu não vou morar mais com a minha mãe. Vamos morar nessa casa”. Botava uma cadeira no trinco e eu ficava brincando com os bichinhos. Então era sapo, gambá, tudo coisa perigosa, escorpião, e adorava ficar brincando com os bichinhos. Aí minha mãe toda hora tinha uma síncope e me levava pra dentro. Mas eu era muito doente quando eu era nova, eu tinha bronquite e anemia profunda. Eu era isso. E daí eu ficava muito internada. Então eu passava mais tempo no hospital do que em casa. Depois de lá eu fui pra outra casa que era atrás do cemitério. Era uma delícia. A gente contava história de terror a noite inteira, eu não dormia, dava um trabalho, mas eram uma delícia as histórias. Histórias de múmia, de vampiro eram as mais legais. Nessa fase eu tinha amizade, essa fase eu me lembro de amigos que eu ia a casa, falava mal dos outros, mexia na geladeira dos outros, fugia pra não apanhar da mãe dos outros. Tudo porque eu era uma menina bem tranquila. E depois a gente foi pra casa no Nova Europa que foi a última casa que a gente morou e que ainda está comigo essa casa, mas que eu já estou vendendo porque lá tem muita coisa boa, mas o...
P - E você se lembra de algum amigo especial? Algum causo de alguma...
R - Dessa infância? Ah, eu me lembro do menino que eu beijei. Eu devia ter uns quatro anos e tinha um monte de menino bonitinho pra beijar, eu beijei justo o que tinha o dente bem podre. Eu não me lembro do nome dele, mas aí eu contei pra minha mãe assim: “Ai, eu beijei esse menino”. Eu me lembro do Rogério que era um loirinho, eu falei: “Mãe, eu beijei um menino”. Ela: “Ai, Nica, quem foi? O Rogério?” que era o mais bonitinho, né? Falei: “Não. Foi o...” e falei o nome do menino. Ela: “Justo aquele com o dente podre? Sua porca”. Ainda me bateu. (risos) E eu tinha uma amiga, a Rosângela, que eu devia ter uns três, quatro anos, ela tinha uns oito, então ela era grandona já. Era meu sonho de consumo ficar grande que nem ela. Mas nunca mais eu vi. Eu perdi o contato total com essas pessoas.
P - E do que vocês gostavam mais de brincar?
R - Ah, história de terror e beijo. (risos)
P - Você se lembra de alguma história de terror do cemitério?
R - Tinha aquela que o Joãozinho... Vou contar essa aqui, né? Tinha uma que a gente contava assim, que tinha o Joãozinho que ia pegar carne pra mãe. A rua atrás do cemitério era rua de feira e vendia, né? Carne, frango, aquelas coisas. Então a gente sempre achava um ossinho e ficava mexendo, mostrando. Daí a gente conta que o Joãozinho foi comprar carne pra mãe, mas ele ficou brincando, esqueceu-se do horário, passou o tempo e ele tinha que passar no cemitério pra levar a comida pra mãe. Só que daí, como ele passou do horário o açougue fechou, ele não tinha como levar a carne. Falou: “Putz. Agora tô perdido. O que eu vou fazer?”. Passou no cemitério, pegou um pedaço de carne de algum defunto que tava lá. Aí ele levou pra mãe, todo mundo comeu, ele inventou uma dor de barriga porque ele não ia comer a carne que ele sabia de onde tinha vindo. Aí ele falou assim: “Mãe, vou dormir, tô cansado. Amanhã a gente conversa”. Fechou, apagou a luz da casa, tudo, ele começou a ouvir vozes: “Joãozinho, eu tô voltando pra pegar o braço que você me roubou. Joãozinho, eu tô atravessando a rua...”. E todo mundo assim, ouvindo: “Joãozinho, eu tô atravessando o muro. Joãozinho, eu tô abrindo a porta da sua casa”. Nhiiii, fazia o barulho. “Joãozinho, eu tô subindo a escada” tuf tuf tuf. “Joãozinho, eu tô na porta do seu quarto. Joãozinho...!”. Aí assustava todo mundo. Nossa. Era a melhor. E o engraçado é que eles contavam essa história toda sexta-feira. Então a gente não tinha mais o porquê assustar, todo mundo sabia o ensejo, mas mesmo assim a gente fingia que assustava.
P - E essa época você ia pra escola, Roberta?
R - Não. Nessa época da Mirassol, não. A rua. Chamava Mirassol. Eu não ia. Eu comecei a ir à escola depois que eu me mudei, que fui pra Santa Cruz das Palmeiras que era essa última casa. Aí eu fui pro pré-primário com aquelas “marias-chiquinhas” infernais e aquelas meiazinhas de babado. Eu odeio isso hoje. Nossa, eu odeio porque eu ia com muito laço. E ninguém gostava de mim nessa época justamente por isso e eu não sabia por que. Porque eu era um entojo, né? E daí eu comecei a estudar no Orozimbo Maia que era um colégio super tradicional de Campinas, maior legal, estudei vários anos nessa escola, em anos alternados assim. Mas daí eu já comecei, né, estudar com a tia Luiza... Eu tenho amigos do pré-primário até hoje. A gente se achou no Orkut, mas assim, proximidade eu não tenho mais porque eu mudei, mudei pra um monte de lugar.
P - Mas o que você achava da escola? Você gostava de ir? Você era estudiosa?
R - Eu era, mas eu sempre fui muito popular, então assim, todos os problemas da escola... Eu fui tratar uma vez da loira do banheiro. Ninguém sabia o que fazia com a loira. “Não. Vamos lá que a gente vai ver o que é dessa loira do banheiro”. Eu sempre fui meio de me meter em histórias coletivas, sabe? Querer resolver problema. Então eu participava de grêmio, eu participava de discussões, assembleias. Eu sempre fui ativista estudantil.
P - E o que era a loira do banheiro?
R - Então, vocês não conhecem a loira do banheiro? Vocês nunca ouviram falar da loira?
P - Não.
R - Tem. A loira do banheiro é uma mulher que... Aliás, o Kiko Dinucci no Moviola, no Duo Moviola, eles têm uma música pra loira do banheiro. A loira era uma mulher infernal que ficava assombrando as meninas no banheiro feminino sempre. Ela morreu no banheiro, uns dizem que era aluna... Aluna do noturno, sempre, porque a gente era do diurno. As coisas ruins eram tudo do noturno. Depois que eu fui pro noturno eu vi que as coisas ruins eram do noturno mesmo. (risos) Mas assim, era uma mulher do noturno ou uma professora, geralmente a mais megera assim, que morreu ali. Daí ela vinha com algodão no nariz e vinha assombrar a gente. Eu em dois surtos meus eu vi duas vezes uma loira no banheiro aqui. Branca que nem ela e fugi. Depois eu peguei um monte de menina e a gente foi lá ver o que era a história da loira do banheiro. Isso eu já não estava mais no pré-primário porque não era tão descolada assim. Mas na quarta série eu já enfrentava a loira.
P - E você lembra assim de alguma professora, Roberta, que te marcou?
R - Olha, eu me lembro da tia Luiza, eu me lembro da dona Odete Cera Silva. A dona Odete Monteiro de Barros, professora Regina. Aí já é quinta série pra frente. Menóia. O povo judiava desse professor de matemática. Eu me lembro do Osnilton que foi um professor que marcou a minha vida no magistério porque ele era enorme e ele vivia breaco. Ele chegava sempre muito louco. Ele era magrelo e breaco. Então ele chegava com uma mochila desse tamanho assim e ele era enorme. Aí ele me via, ele ajoelhava no chão e falava: “Roberta, ascuta me...”. Eu odeio essa música, mas toda hora ele cantava essa música pra mim, então você acostuma. Eu lembro muito de um, eu não sei se eu posso contar, vai que a mulher dele vê. (risos) Mas teve um, eu não vou falar o nome porque é sacanagem, mas era o meu professor de história, eu ia muito bem nessa matéria e, tadinho, eu menti que eu tinha 18 anos já, mas eu não tinha, eu tinha 17 só. Então deu um puta de um rolo porque foi a primeira pessoa que eu saí, o primeiro homem da minha vida assim. Deu a maior complicação pra ele isso. Professor, né? Fetiche de toda adolescente. Alguns conseguem alcançar, outras...
P - E o que você gostava mais de estudar?
R - História, lógico, por causa do professor. Mas eu gostava muito de filosofia e eu adorava química e física. Assim, isso já no magistério, né? Mas eu fiquei meio traumatizada com física porque eu fui meio que agredida por um professor. Ele não aguentou as críticas que a gente fez, o grêmio, e a gente discutindo a grade ele teve um surto nervoso e ficou louco e veio pra cima de mim. Então eu peguei um pouco de trauma de física, mas eu gostava de todas, eu me dava muito bem em tudo. Mas mais assim em filosofia, sabe? Na faculdade, quando eu comecei Psicologia, eu gabaritei em filosofia porque eu adorava.
P - E lá atrás, quando você era pequena, o que você achava que você ia ser quando você crescesse?
R - Eu não sei. Eu gostava... Eu cheguei até... Eu fiz oito anos de teatro amador em Campinas. Tanto é que eu casei, o meu marido trancava a porta pra eu perder a hora. Ele ia jogar a bola e trancava a porta pra eu não conseguir sair de casa no horário do teatro, tinha que esperar ele voltar do futebol. Eu pulava o muro. Eu pegava o meu filho pequenininho assim, soltava ele no muro e a gente ia a pé pro Téspis, fazer teatro. Mas eu queria ser atriz, era o que eu mais queria. Como eu fazia teatro na escola eu escrevia as peças, então eu acho que era mais esse caminho... Eu sempre quis ser artista, mas eu achei que não dava certo. Depois eu quis ser professora, que também tem que ser artista pra ser professora.
P - Vamos votar lá atrás um pouquinho, Roberta. Conta essa coisa da separação dos seus pais.
R - Ah, isso foi horrível porque eles começaram a brigar muito, muito, muito, muito e eles me usavam na disputa. Então o meu pai viajava o mês inteiro, ficava o mês todo fora e minha mãe ficava comigo, cobrando lição, cobrando roupa, enchendo o saco. Mãe pega no pé. Então eu era muito voltada pro meu pai e daí eu tomei partido. Na época eu ajudei muito meu pai na separação. Então eu falava coisas da minha mãe, falava do namoro que ela tinha com o vizinho, falava de tudo. Aí na hora da separação ele foi embora, me largou e falou: “Agora não dá pra te levar” porque ele saiu com uma mão na frente outra atrás: “Então você vai ficar aí”. Aí eu fiquei ouvindo da minha mãe porque eu tinha ajudado, porque eu fui responsável. E eu me senti responsável pela separação até um pouco antes de eu casar, era uma coisa que eu realmente acreditei que eu tinha ajudado. Imagina. Eu não fiz nada, eu só falava o que acontecia, né?
P - Mas ele descobriu depois que a sua mãe foi trabalhar na zona?
R - Então menina, descobriu. Todo mundo... A gente... Até hoje eu falo isso tranquilamente porque minha mãe foi depois que eles se separaram, por uma necessidade que ela... A gente tava num mato sem cachorro, não tinha dinheiro pra comer. A gente comia, no Natal... Porque ela se apaixonou pelo vizinho e eu era amiga de infância da Débora, então a gente ficava inconsolada.
P - Que era filha do vizinho?
R - Que era filha do vizinho. Então aquela bagunça, aquele rolo, a vizinhança toda falando. Daí sobrou pra gente porque a errada era minha mãe, não era o vizinho que deixava a mulher e pulava o muro da minha casa quando meu pai tava viajando. Aí a gente teve que assumir tudo isso. Então todo mundo virou a cara pra gente, ninguém ajudava mais, meu pai saiu de casa e no Natal a gente ouvia todo mundo comemorando, a gente comia arroz e repolho. Era o que tinha no Natal pra comer. Vela, a gente se divertia eu e o meu irmão porque a gente queimava a casa inteira. Queimava, cortava a luz, não tinha dinheiro pra pagar. Aí minha mãe foi pra zona. O moço falou: “Você tem corpão, tá bonita. Vamos lá”. O que ela ganhava num dia na zona, ela ganhava num mês vendendo sapato, aqueles Pimpolhinho na Piccolotto, que era uma loja num shopping de Campinas, Shopping Iguatemi. Então é absurdo, né? Ela viu tudo aquilo, ela falou: “Vou tirar meus filhos desse buraco”. Daí era bem complicado assim, essa fase pra gente. Mas passou, minha vó foi morar com a gente, a mãe dela. Eu não sei se foi bom ou se foi ruim. Não. Eu tenho certeza que foi ruim. Porque a vovó bebia pra caramba e ela ficava bebendo a noite inteira. Minha avó até hoje, ela toma um negócio que chama... Nossa, uma bebida horrível que tem não sei quanto... 32% de teor alcoólico. E ela tomava aquilo. Na época ela tomava vinho Chapinha. Eu odeio vinho Chapinha por causa disso, porque ela fazia a gente trocar as latas de óleo que o meu pai deixou em casa pra levar no boteco... Então eu frequentava boteco com dez anos, onze anos, trocar por leite, doce, vinho Chapinha e cigarro pra ela, que era a despesa da casa. E minha mãe não sabia, a gente não podia contar. Então às vezes elas brigavam e a minha vó ia embora e eu ficava cuidando do meu irmão que era menor, cinco anos de diferença. Então eu cuidava da casa, eu cuidava dele, eu cuidava da minha mãe. Minha mãe teve um aborto eu tinha acho que 12 anos. Não. Eu acho que eu tinha um pouco mais, uns 14. E ela teve um aborto involuntário, tal e foi pro hospital, pra Casa de Saúde que era de freiras. Ela disse pra mim que foi involuntário, que foi sem querer, mas ela achou que tava de dois meses e tava de quatro e ela provocou o aborto. Então ela ficou muito mal e eu tive que levá-la pro hospital. Ela dirigindo, eu controlando o câmbio porque ela não aguentava mexer os dois braços, então ela só segurava a guia e o pedal e eu ia mudando a marcha, e lá eu tive que assinar como responsável por ela. Aí foi muito pesado pra mim nessa época assim. Daí já era o começo do que ia acontecer depois porque o resto da vida toda foi assim, dela.
P - E aí seu pai o que aconteceu com ele? Vocês continuaram mantendo contato.
R - Não. Ih, o papai ficou bravo. Porque homem é assim, mãe fica com o filho, ela faz um monte de coisas. O pai, não. O pai ficou bravo com a mãe, vai embora. Ele foi embora. Eu fiquei dois anos sem ver meu pai. Depois quando a gente se aproximou que a gente voltou a conversar, ele explicou pra mim que ele não tinha condição. Tadinho, tava todo mal com a separação, ele dormia em... Ele comprou um fusca que parecia o carro dos Flintstones, que não tinha assoalho. Ele falava assim que ele passava na poça, vinha aquela água, ele xingava até a quinta geração dele: “Tô todo estourado ainda acontece isso”. Ele dormia em canavial. Ele contou que um dia ele tava... Porque ele trabalhava Minas inteira. Então ele ia pra Patos, Passos, Manga, tudo cidade que ninguém conhece em Minas ou pouca gente ouviu falar, o papai ia. Daí ele falou que um dia ele tava com dinheiro pra comprar ou cigarro ou um lanche de mortadela no posto e que ele não sabia o que ele fazia. Ele tava com fome, mas era viciado em cigarro, não tinha jeito. Ele falou: “Vou comprar o cigarro, pelo menos eu não passo nervoso. Eu vou aguentar ficar sem comida”. Depois ele até arranjou um cara que ajudou ele e comprou o lanche. Mas tava passando apertado também. Só que a gente não se via. A gente se encontrava quando eu levava uma surra muito grande da minha mãe, que ela batia muito. Não adiantou nada, mas eu apanhei assim, de levar mordida. Eu apanhava com fio de cobre, sabe? Com corrente de... Depois eu virei dark e a mesma corrente que eu apanhava eu usava no pescoço, porque eu virei gótica. Eu apanhava com essas correntes, a mamãe era muito nervosa. Quando eu apanhava muito dela eu fugia de casa. Ou eu ia andar na estrada, porque eu morava na beira da Anhanguera... Eu sempre morei em beira de estrada. E daí na beira da Anhanguera eu ficava andando. Uma vez até eu fui atropelada por causa disso. Ficava nervosa e ficava andando. Eu tenho histórico de andarilhos na minha família por parte de pai então eu parei um pouco. Dá pra ver, né? Engordei. Daí eu fugia, ia pra casa da minha vó e do meu tio por parte de pai. Então quando eles me acolhiam o meu pai tava morando ali, então a gente se aproximava de novo, mas era tudo muito, sabe, tudo dava choque, não durava muito.
P - E nessa época o que a turma fazia pra se divertir no bairro? Você falou que você ia a boteco muito cedo.
R - É. Eu ia porque eu tinha que ficar com a minha vó. Minha vó amigava e os amigos dela eram tudo chapadeiro. Então eles levavam a gente pra passear aonde? No boteco. Eles enchiam a cara o dia inteiro e a gente na sinuca comendo doce. Então ficava super ativo, aquela coisa elétrica e a gente se divertia porque a gente conversava com todo mundo. Mas assim, era engraçado porque nessa época que a minha vó cuidava da gente, era uma época dos collant, né? E minha vó também era bem assim avantajada, a mãe da minha mãe. Ela botava uns collant cor-de-rosa, cor clara marca mais. Eu estudava de manhã, então minha mãe brigou com ela um dia e falou assim: “Mãe, eu não quero mais que a senhora beba aqui em casa porque as crianças ficam vendo, não é legal. A senhora pode beber na rua?”. Aí minha vó ia num lugar que chamava Caracol e no... Ai, que pena, eu esqueci o nome do bar. Lá na João Jorge. No Galeto. Ela ia pro Galeto. Aí ela enchia a cara no Galeto e voltava, às vezes na segunda de manhã, só que eu tava na escola. Aí ela descia do ônibus, porque a gente morava no ponto final, era o ponto final aqui, a escola e minha casa. Então ela descia aqui, todo mundo da escola via, ela descendo pra minha casa daquele jeito. O povo entrava na sala de aula, falava assim: “Ai, Roberta, vi sua vó”. Com aquele collant rosa, com aquele peito imenso, chapada na segunda-feira de manhã. Eu queria a morte. Eu queria a morte. Falava: “Não é possível que eu vou ser obrigada a ouvir isso”. Falava: “Gente, não me conte. Eu não quero saber”. Aí eu fui aprendendo a lidar com isso, porque eu fui crescendo também, ela não ia parar de beber e não tinha muito que fazer. Uma vez ela tentou se matar no Natal nessa época também. Ela pegou, se trancou e falou: “Vou me matar. Não quero mais viver”. A minha mãe: “Mãe...”. O Natal da gente sempre era muito triste, muito frágil e minha vó tentando se matar, ficava mais divertido, né? Porque você tinha uma coisa pra mexer com todo mundo. Aí um dia pra brincar com ela eu peguei e falei assim: “Vó, você lembra ontem o que você fez? Que coisa feia, que papelão”. Eu fui crescendo eu fui pegando e dando uma bronca no povo, sabe? Tentando dar um norte da família, ser a matriarca com 15 anos. Falei: “Você lembra que você tentou se matar?”. Ela: “Eu?”. Falei: “Tentou vó, com a colher. Você pegou a colher e ficava fazendo assim pra sofrer”. Mentira, né? Foi com a faca, mas a faca tava tão cega que parecia uma colher. Então eu menti que ela tentou se matar com a colher. Ela acreditou. Até hoje ela acredita nisso.
P - Roberta, você se lembra do seu primeiro namorado dessa época assim de adolescente?
R - Lembro. Era o Júlio Beiço. (risos) Me deixa beber água. (risos) Era assim, eu tinha 13 anos e minha mãe, como ela trabalhava na zona, ela não me deixava respirar. Então ela cuidava de mim mais que uma freira cuida de nossa senhora no altar, sabe? Porque ela via muita coisa errada, daí ela queria, sei lá, ficava preocupada também. Daí eu não podia sair. Aí eu comecei a namorar o Júlio escondido. Pra beijar o bendito do Júlio, que era Júlio Beiço não era à toa, ele tinha um beição imenso. Ele tinha um baita de um beiço. Eu ficava treinando. Aí eu treinava com a laranja, assava toda a boca. Ai que burra, né? Treinava no braço, vivia com mancha roxa aqui, aí fazia reloginho pra disfarçar. Porque tinha que treinar pra beijar aquela boca, não dava, né? Não tinha abertura praquilo tudo. Mas a gente namorou, a gente namorou...
P - Mas você se lembra do primeiro beijo do Júlio Beiço?
R - Uai, eu lembro. Eu me perdi toda. Eu não sabia o que eu fazia, não sabia pra onde que eu virava a língua, como é que encaixava a boca. Foi péssimo. Foi horrível. A gente se encontrou outro dia, ele tá com cinco filhos, graças a Deus nenhum comigo. E ele é um bom pai, isso tudo, sabe? A gente tava conversando, a gente ria pra lembrar as histórias assim. Porque eu era muito... Nossa, eu era muito bobinha. Eu era bem bobinha. Eu pegava aquelas fitas cassete, e eu sempre fui chorona, né, aí eu chorava ouvindo aquelas músicas Lady... Como é que é aquela... A dama de vermelho. Eu chorava ouvindo aquelas músicas. Aí eu pegava e gravava, daí ficava no pause, a hora que tocava a música eu ia lá e apertava o pause.
P - Da rádio?
R - Da rádio. No cassete. Aí eu mostrava pras minhas amigas elas: “Roberta, que tosco. Você não consegue gravar uma música inteira? Liga pra rádio, pede a música, fica esperando. Não faz isso”. Eu falava: “Ah, mas assim não tem emoção. O legal é fazer essas coisas quebradas”. Eu sempre fui envolvida com música, eu sempre vivi ligada em música, desde pequena.
P - E nessa época do colégio que você começou a se envolver com a história do teatro?
R - É. Na verdade foi na igreja. Porque eu fiquei meio zuretada. Eu morei num outro lugar que foi onde eu nasci, que era na Avenida da Saudade, na Bráulio Gomes. E nessa avenida eu nasci na casa da minha vó, da minha vó mãe do meu pai. Ela e o Barriga moravam ali, minha mãe morou lá. Só que o meu vô Barriga ficou esclerosado, então ele andava pelado atrás de todo mundo. Meu pai não aguentou ver o meu vô correndo atrás da minha mãe o tempo inteiro e mudou, foi pra essa casa lá do São Fernando. Eu voltei pra esse mesmo prédio, depois eu voltei quando o meu pai e a minha mãe estavam separando porque o problema era o vizinho, né? Então eles mudaram pra deixar aquele infeliz, eu não posso ver esse homem até hoje, pra deixar aquele infeliz e foram de volta pra Bráulio Gomes. Só que lá foi péssimo assim, porque lá eu fui muito... As pessoas xingavam a gente, jogavam coisa na casa, lá minha mãe tentou se matar por causa desse vizinho. Nossa, lá aconteceu de tudo. Tinha barata nessa casa, eu odeio barata e foi numa época difícil. Então, sabe, você dá uma... Foi horrível. E quando eu voltei pra essa casa, nessa avenida tinha a igreja de um lado e o cemitério no fundo. Então eu acho que eu já tava fazendo sincretismo da umbanda nessa avenida, né? Porque eu ia na igreja, rezava, rezava. Tocava...
P - Era igreja o que? Católica?
R - Católica. Eu fui crismada lá. Primeira comunhão. Crisma eu não fiz. Aí eu ia lá, tocava na missa. Só que eu tocava com a Débora que era filha do vizinho e daí lá também começaram a me virar a cara. Então eu saí da igreja. Foi a primeira vez que eu fui expulsa da igreja. Eu fui expulsa duas vezes da igreja católica. Aí saí da igreja e comecei... Eu ia pra igreja, pro cemitério e ficava andando com a Bíblia embaixo do braço. Uma coisa louca assim. E daí nessa minha época da separação, que foi de uns 11 anos, foi a pior fase porque eu fiquei ruim de cabeça, fiquei sozinha, eu não conversava com ninguém, a minha vó bebia que nem uma louca dentro de casa, a minha mãe tava descontrolada e meu pai tava sofrendo. Toda hora eu via aquilo. Então foi bem ruim.
P - Aí você começou a frequentar a igreja pra ver se...
R - É. Na igreja eu já fazia parte antes, então... Eu fui pra fazer a primeira comunhão, eu tocava, então fui aprendendo flauta, tudo com cifras. Até hoje eu toco flauta doce, é o único instrumento. Mas aí não deu pra ficar mais.
P - E você acreditava naquilo? Como que era a sua ligação com a religião.
R - Eu não sei. Na época eu acreditava em tudo. Eu achava que podia me dar algum conforto, mas não deu. Aí eu saí, depois eu larguei de tudo, de toda religião. Depois que a minha mãe morreu eu rompi de vez.
P - Quantos anos você tinha quando sua mãe morreu?
R - Ah, já era velha. Faz nove anos que ela morreu. Fez em dezembro. Eu tinha 28 já, 27, mas eu tava morando na casa. Tinha acabado de me separar e tava voltando pra casa da minha mãe com dois filhos, morando no fundo e com um monte de restrição. Na verdade eu acho que Deus é sábio, né? Porque eu voltei pra minha casa em agosto, no dia do meu aniversário. Dia 6 de dezembro minha mãe foi assassinada.
P - Nossa.
R - Então eu tinha que estar lá porque fui eu que cuidei de tudo.
P - Mas na rua assim?
R - Não. Ela foi assassinada dentro da casa dela pelo sócio mandante. Foi horrível.
P - Qual que era o negócio dela? O sócio...
R - Então ela entrou como prostituta, certo? Mas ela era muito legal, minha mãe era legal. Minha mãe era muito brava. Eu sou, eu acho que eu peguei um pouco a marra dela e do meu pai. Olha que coisa. Peguei dos dois. E meu pai era muito sério, muito direito, muito reto. Se ele recebia um troco ele devolvia. Minha mãe, não. Minha mãe qualquer negócio ruim ela tava no meio, sabe? Ela queria tirar preso não sei da onde do Pará, ela queria resgatar um amigo dela que tava fugindo da prisão no Pará. Falei: “Mãe, não pode fazer isso. Não é certo” “Ai Nica, mas é legal. Vamos com a mamãe”. Falei: “Nem morta. Não vou. Você é louca, mãe não faz convite assim pra filha”. Então outra vez ela começou a levar carro pro Paraguai. Não. Coisa de seguro, não sei o que era que ela fazia, que graças a Deus eu não sei direito. Ela pegava e levava os carros embora pro Paraguai. Aí um dia ligaram de lá, ela tava presa no Paraguai. Falei: “Como assim? Como é que a gente vai fazer pra tirar daí?” “Ah, não, Nica. Já tô vendo. Daqui a pouco eu vou voltar”. Era tudo assim muito tranquilo, mas tudo de errado a mamãe se metia, porque além de tudo ela viciou. Começou a se viciar em cocaína e aí não teve jeito, com muito dinheiro, muita ilusão. A casa dela era... Tinha o Galo de Ouro, ainda tem, que é um quarteirão inteiro e tinha a Casa da Bia, que era metade do quarteirão com 23 quartos. Então assim, a gente viveu no meio do bordel. Eu me divertia porque, nossa, as histórias assim, uma mais linda que a outra. Linda, não. Triste. Mas histórias riquíssimas de vida, de menina que sofreu muito na mão de família, tudo e ia pra lá maior de idade trabalhar com a minha mãe.
P - Ah, então ela montou um negócio?
R - Ela pegou e arrendou a casa da Dona Maria Boturi que era como se fosse uma Eny de Bauru, era a Dona Maria. E minha mãe assumiu isso com a fama que a casa tinha. Então se você falar em Bia de Campinas até acho que Pirassununga, o pessoal vai conhecer porque era uma casa imponente, era uma casa de luxo.
P - E você ia lá? Que impressões você tinha quando você ia?
R - Oh. Eu ia muito. Mas era assim, antes de casar eu ia bastante, só que como eu tava morando na casa, minha mãe me respeitava muito. Então ela não levava homem, não levava ninguém lá em casa. Ia um ou outro que era o pai do meu irmão, que era casado e tudo, até hoje continua com a família e tal, mas ia lá em casa, né? Eu ia falar o nome, melhor não.
P - Que não é o Edu, né? Daí já é o Guilherme.
R - Não. É o Guilherme. O pai do Guilherme. Eu e o Du, a gente ficava ali no meio. Então aconteciam umas coisas assim muito loucas na minha casa. Uma vez teve uma moça que era de lá, que ela incorporou um negócio. E eu ficava ouvindo aquela gritaria toda porque minha mãe fazia os trabalhos lá em casa, na casa que a gente morava mesmo. Daí eu tinha que ficar ouvindo aquilo, eu tampava o ouvido do meu irmão pra ele não ouvir. Então eu sempre fui meio mãe do meu irmão porque a gente passou muita coisa junto. Uma vez minha mãe chegou muito louca em casa, muito louca com um casal. E eu ouvia tudo aquilo, eu vi tudo aquilo, no dia seguinte eu peguei uma faca e botei o cara pra fora de casa. Eu tinha acho que quase 15. Ele vinha me agradando tudo: “Ai, e aí Robertinha?”. Eu falei: “Robertinha, não. Sai daqui agora. Se não sair daqui eu vou te furar inteirinho”. Aí eu falei pra minha mãe: “Não quero mais ele aqui”. Então esse tipo de coisa ela respeitava e não ia. Até que ela ficou de vez pra lá, ela vinha final de semana e tudo.
P - E o Guilherme era pequenininho?
R - O Guilherme era pequeno. E ela perguntou pra mim se eu queria cuidar do Guilherme: “Nica, você quer cuidar do Gui?”. Eu falei: “Mãe, eu tô namorando. É o primeiro namorado sério que eu tenho”. A família do Marcelo é de italianos, feirantes, gente legal, família. Eu adoro a família do Marcelo, do meu ex-marido, até hoje. Eu adoro gordo até hoje, mas não dá pra ficar mais junto. Mas a família dele...
P - Como que vocês se conheceram? Você e o Marcelo?
R - Então, numa dessas. Porque eu sempre fui muito, eu era muito brava assim, muito desaforenta. Ainda quando minha mãe jogava alguma coisa na minha cara eu: “Ah, é? Não precisa então”. Então eu trabalhei em cada serviço ruim só pra não depender dela, do dinheiro dela, ficava brava. Então eu trabalhei em loja, em escritório. Em um dos escritórios que eu fui trabalhar eu conheci o Marcelo, eu era auxiliar de escritório. Daí a gente começou a namorar no escritório. Eu tinha 18 anos.
P - E já que você falou dessa coisa do trabalho, você se lembra do seu primeiro trabalho, do primeiro dinheiro que você ganhou?
R - Lembro. Foi num salão de cabeleireiro. Foi numa das brigas com a minha mãe também e foi num salão. Eu era um barato assim porque eu lavava aquele cabelo das madames, eu aprendi a fazer as coisas e não era vaidosa assim. Eu não me arrumava, eu era maior relaxada. Eu sempre fui meio “hippona”. Aí o povo me chamava de feia, minha mãe falava: “Não, Niquinha. Sai do serviço. Vem aqui com a mamãe. Vamos”. Minha mãe era muito... É incrível isso porque é um paradoxo. Do mesmo jeito que ela era prostituta, trabalhava na zona, lidava com o pior tipo de gente e com o melhor também. Porque as pessoas são boas ou ruins independente do cenário que elas tão ocupando. E ela era muito mãe, ela cuidava muito da gente.
P - Protegia.
R - Muito. Muito. De tudo. Ela falava assim: “Eu faço tudo pra um filho meu não cair em coisa errada”. Mas também não sobrava nada, ela fazia tudo. Aí eu fui trabalhar no salão de cabeleireiro. Eu nunca ficava um ano no emprego, mas eu trabalhei num salão. Depois eu fui ser gerente de uma churrascaria porque eu era muito descolada, mas eu não tinha maturidade praquilo, durou pouco. Depois eu fui trabalhar numa loja que chamava Inventando Moda que eu detestava a mulher. Eu comecei a ler um livro... Eu sempre fui de ler. Eu comecei a ler um livro chamado A função do orgasmo, do Wilhelm Reich e eu tinha o que? Uns 16 anos. Aí eu tava lendo esse livro, tinha uma capa vermelha, chamava atenção, na loja. Aí a filha da dona da loja de uns dez anos vira pra mim fala assim: “Roberta, o que é o orgasmo?”. Eu olhei pra cara dela e a mãe dela chegou e ouviu e olhou pra mim disse: “Fala”. Eu falei: “Pergunta pra sua mãe. Eu espero que ela saiba o que é”. Aí eu fui mandada embora desse serviço.
(Troca de Fita)
P - Que é a Casa da Bia que chamava?
R - Então. Olha que louco. Casa da Bia.
P - Casa da Bia igual lá da Barra Funda.
R - Quando chegou, o moço falou pra gente: “Ó, Bia”. Isso é fogo.
P - Roberta, você tava contando da morte da sua mãe, que foi o sócio dela.
R - Foi.
P - Era o sócio lá da Casa da Bia?
R - Foi assim, minha mãe ficou 15 anos tocando a casa sozinha. 15 anos.
P - Que guerreiraça, né?
R - Não, sozinha. Fazia a festa do Havaí, festa de não sei o que, e a gente ia pras festas. Aí lá eu comecei a cantar no palco, minha mãe gostava de me ouvir cantando então de vez em quando eu ia cantar. Quando eu era casada eu ia escondida, depois que eu separei eu ia descaradamente, não tinha mais por que. E eu levava meu ex-marido, na época meu marido, levava pra ir lá. Então a gente tinha um ambiente muito familiar ali. Minha mãe era dona da casa, então ela fazia o que ela queria. O meu irmão era caixa, barman e controle de qualidade. Toda menina bonita que chegava o Du, né, lau. Imagina. 18 anos cuidando da casa da zona, você acha que ele ia fazer o que? Nessa época, quando o meu irmão foi pra lá, eu trabalhava no Carrefour de segurança e meu tio e minha mãe são terríveis. Meu tio já foi preso por roubo de carro e tudo e a minha mãe tinha a casa na zona. Meu irmão, eu arranjei emprego pra ele no Carrefour, pra trabalhar no banheiro, de limpar as coisas, porque ele era um playboyzinho, maior folgado, fumava maconha pra caramba, não fazia nada. Aí ele levou uma surra da polícia uma vez. Roubou o carro da minha mãe, levou uma surra da polícia e a gente não teve mais como mandar ele de volta pro Carrefour, porque como é que ele ia todo estourado daquele jeito? Aí a minha mãe falou: “Vem cá trabalhar com a mamãe”. Tudo que ele queria. Então nesse ambiente familiar frequentava meu tio, que era fiador, a minha vó que ia com o meu irmão mais novo passar domingo porque tinha piscina, tudo, fazia churrasquinho e tal. Eu ia com o Marcelo às vezes e às vezes com o Henrique que era meu filho mais velho, o Felipe não existia ainda, e a gente ficava ali. Um dia que eu levei o gordo pra ver... A gente tava meio mal no casamento, tava tudo meio desanimado, tudo.
P - Vocês casaram na igreja mesmo? Como que foi esse casamento?
R - Na igreja? Foi lindo assim, mas eu não gostei de nada. Eu casei com uma roupa que... Eu tava grávida, eu casei porque eu tava grávida, não queria casar de jeito nenhum. Mas a minha mãe tinha essa cobrança, imagina uma filha dela vai ser mãe solteira. Ela falou: “Separa, mas não vai ser mãe solteira. Filha minha mãe solteira?”. E me fez sair de noiva de casa pra vizinhança inteira ver porque ela era mal falada, eu não. Aí eu saí e nessa época eu ainda tava meio mal com o meu pai, meu pai não ajudou no casamento, não tinha grana, ajudava muito pouco. Minha mãe falou: “Pede pro Valter te levar” que é o pai do meu irmão mais novo. Eu falei: “Não, mas... Pô, o Valter é quem me ajudou, ele que não me deixou largar da escola, ele que foi meu padrinho de formatura, ele que me acompanhou num período, mas não posso fazer isso com o meu pai”. E juro, é a melhor coisa que eu fiz na minha vida, eu não me arrependo, eu chamei meu pai pro meu pai entrar comigo na igreja. Aí o papai entrou, ele e a mamãe não se falavam, então minha mãe ficava com a mão estendida assim pra não encostar no meu pai aqui. Mas se amavam os dois. Aí eu casei com a família do Marcelo inteira. A gente casou na igreja Nossa Senhora das Graças, lógico, cheia de graça, né? Aí o padre era jornalista e amigo do meu cunhado, a igreja não tinha lugar de gente assim, pra gente ficar em pé não tinha lugar, ficou gente pra fora, tinha mais de 500 pessoas na igreja. Foi o maior show que eu fiz até hoje. E o padre falava assim: “Olha pra trás pra todo mundo te ver”. Aí eu fazia assim com aquela cara. E o Marcelo tinha um monte de amigo, a gente era bem divertido. Foi todo mundo, o pessoal da minha escola, do magistério, professor, todo mundo.
P - E aí vocês foram morar juntos ou vocês já moravam juntos?
R - A gente foi morar na casa da minha sogra que é um amor, mas eu era casca grossa, então eu xingava todo mundo, eu falava palavrão pra todo mundo. O povo ligava, eu corria no telefone, era a maior folgada, né? Tinha 19 anos, morava na casa do povo e ainda queria dar uma de grande. Então pegava no pé de todo mundo. Aí foi difícil porque pra eles eu era a única preta. Então eu tinha que ouvir todas as piadas de King Kong a Maguila, tudo eu tinha que ouvir e me enchia o saco aquilo tudo. Então eu xingava todo mundo, quebrava o pau... Quando o Henrique nasceu foi muito difícil porque eu fiquei com a... Deve ter um nome essa doença, eu não sei o que é. A mãe que não deixa ninguém olhar pro filho, que fica com a criança assim, parecendo bicho? Eu fiquei com isso. E a família deles é enorme, eu morava na casa do povo, não tinha jeito. Aí todo mundo vinha e dava palpite do umbigo: “Ah, bota...”. Eu ficava verde pra não xingar a pessoa, aí às vezes não dava, o povo ouvia um berro assim que era eu tocando a pessoa do meu quarto. Tocava mesmo, era o maior barato, eu: “Tava aqui, a cesárea tá em mim. Ninguém vai mandar no meu filho”. E eu tive meu filho na Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], então eu saí de lá sabendo fazer tudo. Eu segurava o Henrique com uma mão, olha o tamanho da mão. Segurava o Henrique com uma mão, dava banho, cuidava do umbigo. Aí ele teve refluxo, ficou muito doente, quase morreu. Foi difícil também porque a minha mãe nessa época brigou com a família do Marcelo, se desentenderam. Então ela não podia tá junto e eu fiquei meio perdida no meio de um povo todo, mas a minha cunhada, todo mundo ajudou. Foi legal, a gente ficou casado sete anos.
P - O que você acha que mudou quando você foi mãe, o seu sentimento?
R - Eu fiquei mais filha. Eu aprendi a respeitar mais a minha mãe. (choro) Tava segurando até agora ó. Mas assim, eu fiquei mais respeitosa com ela, eu tenho muita saudade. E foi legal porque dá um trabalho do cão. Filho bom, sem problema nenhum já é difícil, imagina ele com refluxo e numa época que existia uma história de simioto tinha que levar pra benzer. A família de italiano meu Deus, acho que a família inteira ficava em volta de mim falando o que eu tinha que fazer com o menino, que benzimento que tinha que fazer, que remédio que tinha que dar. Eu não ouvia ninguém, eu ia só até o médico, levava ele pra exame toda semana. O Henrique sofreu muito, porque ele ficava num aparelho que descia assim e ele ficava 12 horas sem comer, porque tinha que tomar o líquido de contraste. Aquilo a gente tinha que ver o caminho que fazia no aparelho digestivo dele. Digestivo ou digestório, cada um fala de um jeito. Nesse aparelho aí dele. Você tinha que ver o caminho que fazia. E eu não conseguia botar a chupeta na boca dele, eu não conseguia botar a mão e pôr a chupeta na boca de tão prensado que ele ficava. E ele ficava quatro horas embaixo desse aparelho. Então assim, foi muito difícil, mas eu ia sozinha porque o Marcelo era meio sossegadão, sabe? O Marcelo até hoje eu tenho que... O Henrique foi morar com ele uns tempos atrás, eu tinha que dar bronca nos dois: “Marcelo, você é pai dele. Para de ficar tratando ele como amigo”. Precisa de limite, de ajuda. É legal ser amigo, mas tem diferença. E eu sempre respeitei muito a minha mãe, antes, depois que eu tive filho eu respeitei mais ainda. Tanto é que algumas vezes eu a vi usando drogas, eu vi uma vez, a peguei arrumando a droga pra usar. Eu entrei assim no quarto ela fez: “Ai, Nica...”. Falei: “O que foi?”. Aí eu olhei na mesa, vi, eu saí, eu me escondi. Eu fiquei acho que uma noite inteira escondida num lugar lá na casa lá, que eu não conseguia dirigir pra sair de lá, e ela ficou três dias de cama porque a gente não conseguia falar do assunto, sabe, de tamanho respeito que era.
P - E aí depois do Henrique você teve outro?
R - Tive. Demorou um pouco. Na verdade foi assim, o Rique veio, eu e o Marcelo... Eu era apaixonada pelo Marcelo, lógico, senão eu não teria um filho com ele e nem ficaria sete anos casada. Mas foi acabando porque o Marcelo parece que não gostava de mim, sabe? Ele não demonstrava muita coisa. Ele não tinha ciúmes, eu fazia o que eu queria, podia chegar quem fosse pra mexer comigo, ele não abria a boca, aí eu só ouvia um xingo: “Ah”. Eu sempre fui muito mandona, eu sempre fui muito dona do meu nariz e ele não sabia muito lidar. Então o que eu tinha de paixão foi acabando e no final, quando eu achei que tava bem ruim, eu tinha uma amiga que é prima da madrinha do Henrique, que ela falou: “Olha, vamos pra igreja? Tem um negócio lá...” no Liceu, católica de novo, foi a segunda vez que eu fui expulsa. Ela falou assim: “Vamos lá que vai ter encontro de casais com Cristo, quem sabe ajuda e tal”. A gente começou a participar desse encontro de casais. Eu não lembro se eu tava grávida ou se eu fiquei depois do encontro de casais. Eu acho que não.
P - Casal se encontrou mesmo.
R - É. Pelo menos na cama, né? Pra ter um filho. Não. Eu acho que eu já tinha o Felipe. Daí a gente melhorou um pouco, mas eu separei, meu filho tinha um ano, o segundo.
P - O Felipe. E como é que foi essa separação?
R - Foi boa. Foi boa porque a gente separou... Eu sou muito difícil, quando eu falo que eu não vou voltar atrás eu não volto, seja por orgulho ou por que for eu não volto atrás. Assim, uma vez eu pensei em voltar com o Marcelo, quando minha mãe morreu porque eu fiquei ameaçada de morte e daí eu fiquei com muito medo pela vida dos meus dois filhos. Aí eu quis voltar. Como o Marcelo veio falar comigo todo assim, eu falei: “Ah, bem, morra, vá pro inferno, não quero mais. Também não volto”. E foi a única vez que eu pensei em voltar, as outras vezes não. E foi difícil porque... Mas eu conversava muito com os meus filhos, até hoje eles sabem tudo de tudo. Eles não têm vergonha da vó, de ter sido prostituta, todos os problemas que eu passei, tudo que eu fiz de errado eles sabem. Tudo, tudo, não tem meias palavras em casa. E eu avisei o meu filho que eu tava separando, que eu não amava mais o pai dele. Não mesmo, não tinha porque a gente ficar junto. Aí eu avisei a família, falei: “Olha, eu vou separar. Tá insustentável. Eu tô falando muito mal dele pros outros e tá virando casal sem vergonha. Vamos separar logo enquanto a gente pode ser amigo e criar os filhos juntos”. Todo mundo entendeu, mas ficou meio estranho. Eu morava na casa do meu cunhado, aí meu sogro falou assim: “Você sabe que não é ele que tem que sair da casa, né?”. Eu falei: “Eu sei. O senhor me dá um mês?”. Eu saí em dez dias.
P - E aí você foi morar aonde?
R - Voltei pra casa da minha mãe. Mas muito contrariada, voltei sofrendo muito. Eu chorava sem parar todo dia, de ter que ter voltado praquela casa. Porque era muito pesada a casa pra mim e voltei com os meus dois filhos, meu irmão era pequeno. Porque o Henrique e o Felipe de diferença tem um ano. Acho que um ano, um ano e pouco. Tanto é que a minha mãe, eu falei um pouco atrás, ela perguntou: “Você quer cuidar do seu irmão?”. Eu falei: “Não. Quem tem filho é você, eu não tenho filho”. Paguei. Um ano depois tava eu buchuda, grávida.
P - O Guilherme essa época tinha que idade?
R - O Guilherme quando eu fui morar lá... Se ele tem 19 agora... A gente tem 18 anos de diferença. Eu tinha 28 ele tinha dez anos, ele era super novinho. Aí minha vó tava cuidando dele já, tudo. Só que eu voltei e eu voltei como dona da casa, né? Porque minha mãe confiava em mim, tudo ela falava: “Nica, resolve, resolve”. Aí você tinha um pouco de ciúmes, minha vó ficava enciumada, inventava umas fofocas, eu quebrava o pau com ela, saía andando. O Marcelo me perseguiu essa época. Porque até hoje ele fala que... Eu acho que ele não deve ser tão louco ainda, mas se eu falava: “Gordo, vamos voltar?”, ele volta. Eu frequento a casa dele, a família, a gente é muito próximo. Agora esse ano é que eu tô tentando separar um pouco pra ele seguir a vida dele, senão ele fica amarrado numa relação que não vai voltar.
P - E essa época você foi morar na casa da sua mãe. No que você trabalhava, Roberta?
R - Ah, isso aí foi legal. Porque eu sempre trabalhei com um monte de coisa, mas nessa época, como eu tinha magistério... Um pouco antes, eu era casada ainda, eu comecei a vender joias. Lábia boa, falava pra todo mundo. Comecei a vender joia e levar o meu filho no carrinho e daí uma menina que comprava minhas joias falou: “Meu irmão trabalha no projeto social, no Bate Lata, você já ouviu falar?”. Eu falei: “Bate Lata? Acho que já. Não tem umas crianças pobrezinhas que ficam tocando latinha?”. Aí eu fui ver, o projeto era muito maior e como eu tinha magistério eu fui me inscrever. Quando eu vi que tinha só uma vaga eu me levantei e falei: “Olha, obrigada, né, minha experiência é de mãe. Não vou trabalhar de educadora, não tenho formação, nem sei se eu quero ter, não sei se eu consigo trabalhar”. Como a minha história de vida era muito legal e o meu magistério foi muito bom, eu comecei a trabalhar na Orsa como educadora. Eu trabalhava com as crianças de uma favela, uma favela já urbanizada, mas uma área bem deflagrada na região leste de Campinas.
P - Deixa-me voltar um pouquinho. Como que você escolheu o magistério?
R - Minha mãe. Eu não queria. Eu queria fazer Artes Cênicas na Unicamp, até prestei. Ia lá como ouvinte, tudo. Mas aí ela me obrigou a fazer magistério porque era na frente de casa e porque no final de quatro anos eu tinha um diploma. E foi o que me ajudou porque é com isso que eu trabalho até hoje.
P - Mas você nunca foi professora antes da Orsa?
R - Fui. Eu levava várias mordidas dos meus alunos. Tinha um menino deste tamanhinho, o Buiú, que ele mordia minha bunda todo dia na sala de aula. Mas não era professora, eu era estagiária. Então todo mundo da vila onde eu morei passou por mim. Não sei se foi bom pra eles, mas foi legal assim, porque era tudo... Eu fui criada naquele bairro e depois eu ficava com os menores, né?
P - E aí você foi trabalhar na escola do bairro?
R - Não. Aí eu dei aula numa escola de pedagogia Freinet, a Curumim, um tempo, comecei a trabalhar de estagiária. Eu sempre trabalhava em outras coisas, em loja, em tudo. Tanto é que quando eu casei, eu tava trabalhando de secretária e eu fui muito secretária de médico. Sempre. Ginecologista. Eu trabalhava com os médicos todos, nessa coisa de recepcionista, tudo, de receber público...
P - Então você tinha feito estágio, o estágio do magistério...
R - Estágio do magistério e trabalhei na Curumim um tempo, mas nada assim que foi embora.
P - E aí quando chegou lá na Orsa você tinha pelo menos essa coisa do magistério de ter sido...
R – Eu tinha do magistério, mas eu não tinha experiência. E daí foi ótimo porque isso mudou minha vida. A Fundação Orsa com o Alexandre. Hoje ele é meu ex-amigo, o único ex-amigo que eu tenho porque a relação nossa era muito difícil. Mas foi muito legal, o Bate Lata. Tem uma menina que mora até hoje comigo, do Bate Lata.
P - Você foi lá nesse dia e falou: “Eu não quero, isso aí não é pra mim”. E como que foi? Eles te chamaram?
R - Eles me chamaram. Gostaram de mim e me chamaram. Aí eu fiquei oito anos como educadora em Campinas. Depois que a minha mãe morreu eu tive que sair de Campinas. Aí eu fui pro Mato Grosso, morei com os meus dois filhos num garimpo de diamante. Do Mato Grosso... Eu fui pra Goiânia, de Goiânia eu fui pro Mato Grosso, do Mato Grosso eu fui pra Itapeva, Nova Campina e de lá eu vim pra São Paulo.
P - Você tá indo muito rápido, Roberta. Eu vou querer que você conte lá de trás. Vamos lá. Nessa época da Orsa, quando você tava trabalhando na Orsa foi quando sua mãe morreu?
R - É. Também. Porque eu fiquei oito anos na Orsa. Então muita coisa... Meu filho tinha um ano, eu tinha acabado de separar quando eu fui pra Orsa. Então tinha muita coisa borbulhando. Então caí de cabeça nesse trabalho. Tanto é que eu só saí da Orsa quando eu deixei de acreditar nela, porque era a minha casa. Dez anos em uma instituição não é pouco. Eu fiquei lá firme e forte, todos os lugares que eles mandavam, precisavam de uma gestora que tinha um projeto difícil de lidar, eles me mandavam e eu ia. Ia porque tinha uma estrutura, lógico, ia porque não queria ficar dependendo de ninguém. Então eu conversava com os meus filhos e a gente ia embora.
P - Em oito anos de Orsa assim, qual o projeto que você acha que mais te marcou?
R - Ah, sem dúvida o de Campinas, o primeiro. Eu tinha a minha turma, a gente discutia muito, era uma equipe muito boa, sabe, era... Não dava pra pensar naquele espaço sem a minha presença e eu não conseguia me ver, ver minha vida sem aquilo, era tudo... Eu entrei pra cuidar da brinquedoteca. Era difícil porque eu sempre fui muito bocuda e muito briguenta e eu me metia na vida das pessoas. Então se ligava alguém: “Roberta, meu pai tá querendo matar a minha mãe aqui”. Eu largava, falava: “Marcelo, eu não vou pra casa hoje”. E descia pra favela, ia acudir o povo. Tanto é que até hoje eu sou bem quista lá.
P - E aí nessa época da Orsa que a sua mãe morreu... Você falou que ela foi assassinada, Roberta.
R - Ela morreu em 2000. Foi isso. Ela começou a... Arrendou a casa e ficou 15 anos trabalhando.
P - Lá na Casa da Bia.
R - Só que pelo vício... É a Bia era ela, né?
P - Bia era o nome dela?
R - Ela era a Bia. Tanto é que outro dia eu encontrei meu tio ele falou: “Ah, porque a Bia, a Bia...”. Eu falei: “De quem que você tá falando?” “Ué, da Bia.” “A sua irmã?” “É.” “Ela chama Maria. Bia pros outros, não é pra você. Você é da família”. E daí, falar o nome de guerra da minha mãe, o irmão dela? Não dá, né? Aí ela pegou e começou a chamar o sócio. Olha o que ela fez. Ela chamou o sócio da casa da frente. Esse sócio da casa da frente, como ela tava muito embaixo, sem grana pra nada, ele começou a botar dinheiro e tirava tudo da casa sem dar nada pra ela. Pra ela tirar esse sócio, ela se aliou com o amigo dele. Então uma amizade de 40 ela melou esta história dos dois. Então os dois depois... Aí esse Ademir, Ademir Justino o nome dele, ele começou a crescer o olho nas coisas e queria a parte dele. Só que ele não buscava mulher, ele não fazia nada que eles tinham combinado. Aí ela pegou e tirou ele também. Aí o que aconteceu? Os dois magoados se juntaram e mandaram matar ela. Foram três homens matar a minha mãe no dia seis de dezembro de 2000. Três. Foi bala 45 calibre. Isso vocês não sabem o que faz. Estraçalha assim. Então eu tava combinando com o meu irmão o que a gente ia fazer pra tirar minha mãe disso. Porque ela tava muito viciada, ela não tinha força mais pras coisas e ela chegou a falar: “Eu não tenho força pra sair. Não dá. Eu não consigo. Eu cheiro todo dia. Eu não consigo parar”. E no meio daquilo... Porque você cheira, você fica mal. No dia seguinte sete horas da noite você já tá melhorando. Sete horas da noite ela começava de novo. A gente tava combinando e no dia ela ligou pra mim na Orsa e falou: “Nica, eu tô me sentindo... Eu tive um sonho que eu levei um tiro na barriga. Tô morrendo de medo porque eu tô sendo ameaçada e eu sonhei que eu tava num vale de lágrimas chorando sozinha”. Eu falei: “Mãe, você não tá sozinha nunca. Eu sou louca, mas eu te amo. Vamos lá... Eu largo da Orsa, eu largo de tudo, o Du dá um jeito” “Ah, o Du não quer saber de mim, o Du não gosta de mim”, o meu irmão, porque eles brigavam muito. Eu falei: “Mãe, claro que gosta, ele tá grudado em você o tempo inteiro. Vamos combinar hoje à noite, vamos conversar? Eu saio daqui e vou pra lá. Mãe, não chora, não fica triste, eu nunca vou te abandonar” falei pra ela. Fui embora pra casa isso era o que? Umas três horas da tarde. Cheguei em casa cinco horas, eu vi que tava estranho, sabe? E eu tenho umas coisas assim de... Alguma merda que vai acontecer, sabe, dói o meu braço, alguma coisa. Eu sinto. Aí eu peguei, cheguei em casa e recebemos um telefonema: “Ai, corre, vem pra cá, uma tragédia, uma tragédia”. E minha mãe tava lá em casa, a gente viu a minha mãe, ela deu tchau, tava com aquela roupa com umas fitinhas na perna, tudo: “Du, leva esse cheque pra mim no banco pra mamãe?”. Ele falou: “Não vou. Eu falei pra você mãe, sai de lá. Você não vai sair?” “Não vou sair, lá é meu. Não vou sair por causa de ninguém”. Dito e feito. Eles brigaram, ela foi embora, foi a última vez que a gente viu a minha mãe. Porque depois disso o telefone começou a tocar: “Ai uma tragédia, uma tragédia, uma tragédia”. Eu falei: “O que foi? Foi com a minha mãe?” “Foi”. Eu falei: “Então tá”. Aí eu fico boa. Eu não sabia o que era, eu achei que ela tava machucada. Eu liguei pro meu irmão, liguei pro Érico, um amigo nosso que trabalhou lá na zona e era amigo, a família toda querida assim, aceitou, nunca discriminou a gente por isso. Eu falei: “Érico, por favor, eu não consigo táxi. Eu tô chamando um táxi da zona pra vir me buscar, mas eu não consigo, me pega pra me levar lá em cima?”. Aí a Luana, que era uma menina que trabalhava com a minha mãe na época, pegou e contou pro Érico. O Érico não foi me buscar, porque ele já sabia o que era e eu fiquei esperando sem saber. Aí o meu irmão passou com o carro lotado de neguinho do carro, falei: “Desce. Sai todo mundo”. O Du falou: “O que foi?”. Falei: “Vamos subir. Vamos lá em cima que aconteceu alguma coisa com a minha mãe”. Ele falou: “Não vou”. Falei: “Vai. Vai sim. Desce”. Catei neguinho por aqui e tirei pra fora do carro. Entrei. Enquanto eu subia eu ligava no celular da minha mãe, não dava, não atendia. Falei: “Ai meu Deus do céu, o que foi que aconteceu?”. A hora que eu cheguei à porta da zona, tudo parado, tudo assim, fez um vácuo. Qualquer barulho, eu não ouvi mais nada. Aí eu vi um carro de polícia na porta, as luzes todas apagadas. Aí eu entrei e falei: “Meu Deus do céu”. Já fui pensando o que ia dar. Aí eu olhei pra todo mundo, todo mundo olhava pra mim e abaixava a cabeça. Porque eu tava ali sempre, mas eu não era dali. Minha mãe uma vez deu uma surra numa menina porque a menina me chamou de negrinha: “Ah, aquela negrinha da sua filha” “Negrinha? Minha filha é autodidata, minha filha não precisa disso”. Deu uma surra na menina. Ainda cheguei e falei: “Ai Patricinha Refugo, o que aconteceu? Bateram em você filha?” “Ah, é”. Foi minha mãe que bateu na menina por minha causa. Aí eu entrei assim, a hora que eu entrei todo mundo: “Ah, ela tem que ser forte, ela tem que ser forte”. Falei: “Pronto”. Peguei, dei a volta, tinha um salão enorme assim e um balcão que era o bar. Ela tava jantando, tinha acabado de jantar, tadinha, e foi descansar. Quando ela voltou, ela chamou as meninas: “Vamos gente. Vamos, tá na hora, tá na hora. Sete horas da noite, não sei o que, tem...”. Nessa hora é a hora mais morta de lá porque as meninas estão se arrumando e a função não começou ainda. Aí ela pegou, saiu lá do quarto, passou pela piscina, entrou no bar. Entrou um cara atrás dela e falou: “E aí Bia, lembra de mim?”. Ela fez assim: “Não”. Ele deu aqui assim, a queima roupa. Ficou o caminho da bala no rosto, da bala 45 que estourou aqui, um aqui, dois na barriga e dois na perna, porque enquanto ela foi caindo eles descarregaram três revólveres. Três. Tinha bala pra tudo quanto é lado. Quando eu cheguei, eu a vi com a roupa que ela tava lá em casa, caída no chão com o rosto assim de lado, o olho aberto, as pernas meio afastadas assim e o pescoço machucado. Eu ia desmaiar, sabe quando você vê que você vê que você vai cair? Um homem puxou assim, eu vi um bigode na minha frente e o bigode mexia assim. Até pouco tempo eu ainda sabia o nome do policial, depois eu esqueci. Ele veio e falou assim: “Eu preciso de alguém forte pra lidar com isso daqui. Com quem que eu vou falar?”. Aí eu respirei assim. Eu fiquei com esse respiro acho que uns dez dias, sem respirar. Eu falei assim: “Pode falar comigo. O que é pra fazer?”. Eu falei “Mas espera aí, o que aconteceu?”. Aí ele mostrou as balas tudo, eu olhei, falei: “Cadê o cordão dela que tava aqui? Por isso que o pescoço dela tá machucado?”. Eu olhei, a polícia arrancou o cordão pra roubar e jogou no meio da perna dela. Eu comecei a olhar e falei: “Pode parar. Fecha tudo, fecha. Sai todo mundo daqui”. Aí um cara veio olhar, eu catei um copo e joguei na cara do cara assim, meti copada em todo mundo, tirei todo mundo de lá. Falei: “Eu não quero curioso olhando minha mãe. Ninguém vai olhar minha mãe. Se alguém entrar aqui vocês vão se ver comigo. Vocês, quem que tava aqui na hora? Você, você e você? Pode ficar aqui. Não sai”. Fechei a porta, falei pra minha vó: “Você espera lá fora”.
P - E quem que chamou a polícia?
R - Ela tinha acho que uns 30, 40 funcionários na casa com as meninas. Aí chamaram a polícia. Homicídio na zona ainda, né? Peguei tudo que tinha que fazer, eu fiquei quatro horas com a minha mãe no chão naquele estado. Eu não podia mexer. Eu fechei o olho dela e desliguei o celular. Porque tava com pouca bateria e ele ficava apitando no bolso dela. Ainda olhei pra ver se ela tinha alguma droga no corpo, né, porque vivia com coisa enfiada no sutiã, tudo. Aí eu olhei, falei com o meu irmão, falei: “Du, faz uma varredura, olha o quarto dela, vê o que tem pra não dar problema porque ele ainda vai responder por alguma coisa e a gente não sabe o que isso vai dar”. Ele olhou tudo, a polícia chegou, a perícia, tudo, aí veio aquele...
P - Ah, você chegou antes da polícia então?
R - Não. Tinha um carro de polícia.
P - Tinha um policial.
R - A perícia foi depois. Eu tinha que esperar a polícia científica chegar. Vieram me contar que a mulher do cara que mandou matar minha mãe tava rindo do outro lado da rua. Eu peguei, não fiz isso com a minha mãe lá porque eu achei vergonhoso, eu peguei, fiz um cordão de meninas assim, falei: “Vocês podem sair da sala porque vão passar com o caixão da minha mãe?”. Aí todo mundo me olhou assim, minha vó, a mãe dela levantou, o irmão dela foi dormir, foi embora e eu fiquei sozinha com a minha mãe. Meu irmão passou mal, de família só fiquei eu. Eu tirei todo mundo da sala, falei pras meninas: “Faz um cordão aqui”. Porque a frente era de vidro, então o cara que mandou matar ia ver. Ele não ia ver. Eu mandei fechar tudo, ela saiu com o caixão, o cara ainda fez assim: “Ó. Estourou o crânio”. O cara falou assim: “Olha a menina aí”. Eu falei: “Eu não vou sair daqui, pode fazer o que for”. Aí viraram. Essa hora foi terrível. Porque a hora que eles viram assim, você fala: “Não é possível”. Porque é um... É qualquer coisa. Eles viraram assim, eu fiquei mal aí botaram no caixão tudo e levaram. Eu fiquei procurando no carro do IML [Instituto Médico Legal] onde é que eu ia segurar. O cara falou assim: “O que é que você tá olhando?”. Eu falei: “Eu não vou junto? Não tem que trocar ela, tudo?”. Ele falou: “Não, louca. A gente que faz isso. Vê a roupa que você quer que a gente põe e você não vai junto com o corpo. Tem outros dois corpos aqui, como é que você vai junto? Vai cuidar das coisas porque agora você tem que correr”. Porque tem valor de tudo, né?
P – Toda a burocracia.
R - A gente tem que correr atrás, tudo. Aí beleza. Aí foi fogo porque ela saiu, eu atravessei a rua, fui lá pra mulher que tava tirando sarro da minha mãe e falei: “O que você falou? Você falou...” ela “É isso mesmo, foi pouco pra Bia ter morrido com um tiro na cabeça. Tinha que ter judiado dela bastante”. Aí eu dei bastante nessa mulher, tiveram que me arrastar de cima dela porque eu ia matar aquela criatura. Daí eu voltei pra dentro, comecei a ligar pras pessoas pra ver quem podia me arrumar 700 reais pra eu pagar o caixão dela. E meu pai me ligando toda hora: “Rô, ó...”. Liguei pro meu ex-marido falei: “Tira as crianças de casa. Tira as crianças de casa porque foi assassinato, foi mandado, eu tô com medo pela vida deles, eu sei quem foi, eu vou denunciar. Então tira as crianças de casa pelo amor de Deus. Você não gosta do meu irmão Guilherme porque ele é meio chatinho, mas leva ele junto pra ele ficar fora disso”. Pra eles ficarem brincando na casa do Marcelo. O Marcelo levou. Aí meu irmão ficou mal e eu comecei a correr. Liguei pro meu tio, meu tio tava dormindo porque ele tava nervoso. Liguei pra um amigo: “Quem? Bia? Não. Não conheço”. Liguei pro outro... Ninguém, ninguém. Gente que ficava lá paparicando ela toda hora. Ninguém. Aí eu pedi pra um traficante, falei: “Olha, por favor, eu sei qual é a forma que você ganha dinheiro, mas eu não tenho pra quem pedir. O meu pai vai mandar o dinheiro pra mim em 15 dias, que é quando ele recebe. Você pode me emprestar o dinheiro?”. Ele falou: “Tá enterrado. Eu não tenho agora. Você pode pegar amanhã?”. Eu falei: “Amanhã eu volto”. Eu peguei o carro dela e voltei pra casa vazia. No dia seguinte fiquei duas horas esperando ali. Um medo porque eu tava na frente do cara que mandou matar a minha mãe. Ele podia querer me matar também porque ele sabia que eu sabia, né? Aí eu fiquei lá esperando. Eu acho que eu nunca passei tanto medo na minha vida do que aquela vez assim.
P - Mas aí você denunciou? Abriu inquérito?
R – Denunciei todo mundo. Até hoje acho que ele tá rolando. Só que da última vez eu recebi uma carta precatória e eu já tava morando em Itapeva, um pouco antes, uns seis anos atrás. Se eu respondesse eles iam saber onde eu tava e eu fui ameaçada, eu e os meus filhos. Então eu não podia falar, eu fiquei quieta.
P - Por isso que você teve que mudar de Campinas.
R - Aí eu fiquei mudando, o meu pai me tirou de lá. Porque era muito perigoso.
P - E de Campinas você foi com as crianças...
R - Aí de Campinas... A gente ficou um ano em Campinas ainda, só que a gente ficou assim, zureta, né? Minha vó foi embora com o meu irmão mais novo, porque não aguentava a gente. Meu irmão fumava maconha o dia inteiro na minha casa. Então eu com os meus filhos podia perder a guarda deles e tudo. Aí eu peguei e meu pai... E tinha sofrido um acidente. Um dia eu tava dormindo atrás do carro, o carro parado no acostamento, veio um doido e pau, bateu o carro. Depois que eu sofri o acidente meu pai falou: “Não dá. Vocês vão morrer aí. Vocês estão muito loucos. Venham embora”. Meu pai falou assim que ele ouvia a musiquinha: “Tan tan tan tan tan tan tan tan” e falava: “Pronto. Morreu alguém”. Aí ele me levou pra Goiânia, pra Trindade. Eu fiquei morando lá com o meu irmão seis meses. A Orsa me chamou de volta pra coordenar o projeto no Mato Grosso: “Ah, você tá aí pertinho, vai pro Mato Grosso”.
P - Ah, por isso que você foi parar no Mato Grosso?
R - Porque eu pedi a conta da Orsa pra ir embora porque eu tava com medo. Denunciei todo mundo, falei nome e endereço de todo mundo. E eu falei tudo como se fosse tudo eu que sabia, pra proteger o meu irmão que era mais novo, não tinha filho ainda. Eu já tinha, tinha uma vida corrida, né? Então não perdia muita coisa assim, eu fiquei pensando. Daí eu fui embora pra lá com o meu irmão pra proteger o meu irmão inclusive. Quando eu fui pra Trindade, eu fui com os meus dois filhos, eu pedi a conta da Orsa. Aí a Orsa falou assim: “A gente precisa de uma pessoa lá que conheça a gente muito bem e que represente a instituição. Você não quer ir pra lá?”. E eu tava dependendo do meu pai, o meu pai me chamando de burra. Porque papai dava tratamento de choque na gente. Aí eu falei: “Não vou ficar dependendo de pai, não. Vamos embora”. Peguei o avião e fui embora com os meninos. Morei um ano e meio no garimpo.
P - E o projeto da Orsa era num garimpo?
R - Era num garimpo.
P - Que projeto que era?
R - Ah, era um projeto de formação que trabalhava com crianças. Aí lá também teve um problema, porque eu denunciei um povo porque tinha prostituição infantil. Eu mandava sempre os meus filhos embora antes porque eu só mexia com coisa ruim, né? Aí eu mandava as crianças embora antes pra não dar BO pras crianças e depois eu vinha. Mas eu vinha com gente jogando pedra na casa. Eu denunciei um cara que tava com uma menina de 13 anos num motel. E a mulher veio falar pra mim: “Eu vou matar a sua aluna”. Falei: “É? Por que você vai matar a Carla?”.
P - Por que a menina era aluna sua?
R - É. “Porque a menina tava com meu namorado num motel”. Falei: “Ah, aquele teu namorado que tem 51 anos? Ele tava com a Carla que tem 13?”. Ela olhou assim pra mim: “Ai Roberta...” falei “Então, você viu o que você falou? Eu vou denunciar essa história lá em Rondonópolis porque aqui não tem justiça” porque era tudo muito pequeno “Mas eu vou pra Rondonópolis e vou denunciar”.
P - E chamava Trindade a cidade?
R - Não. Trindade era a de Goiás.
P - De Goiás. Essa do Mato Grosso...
R - Do Mato Grosso era Guiratinga.
P - Guiratinga.
R - É maior legal essa cidade.
P - Conta um pouco de Guiratinga.
R - Guiratinga é uma beleza. É um lugar quente demais, é muito quente. Eu achava que eu tava chorando e não era, era lágrima. E assim, era um custo de vida muito barato. Tinha o Loda que era o meu secretário. O meu secretário tinha paralisia. Eu não conseguia segurar aquele homem, eu falei: “Deus é justo. Ainda bem que você tem paralisia. Você sem perna, você não volta pra trabalhar depois do almoço...” que ele vai fazer a hora e não volta, a hora é descansar. Ele ia fazer a hora e não voltava mais. Então imagina, né? E era muito legal, eu tive gente muito boa. Tive gente muito ruim assim perto de mim. Uma evangélica que me perseguia e falava que eu era bruxa. Eu nem era macumbeira naquela época, depois eu virei. Mas naquela época eu não era, devia ter sido pra ela largar a mão de ser besta. E a mulher ficava me perseguindo, essa Exu. E aí tinha gente muito boa e eu me divertia muito lá, porque a gente não tinha carro, a gente andava a pé...
P - Era pequena a cidade?
R - Tinha 12 mil habitantes a cidade e assim mesmo... Isso na área mais afastada, contando com tudo. Então tinham os garimpos, tinham os rios. Eu tava conversando com alguém, a pessoa olhava para trás eu tava no rio. Eu me jogava. Aí o povo falou assim: “Cadê a coordenadora do projeto?”. Eu falava: “Só um minutinho”. Ia lá no fundo, molhava a cabeça numa bica que tinha no projeto e voltava molhada, falava: “Pois não?” “Meu Deus do céu, você nesses trajes”. Eu falei: “Bem, não dá pra ser chique com esse calor. Você me desculpa”. Aí o povo falou assim: “Roberta, as crianças querem banhar. Elas não querem ficar aqui, elas querem ir pro rio”. Eu falei: “Vamos embora todo mundo”. Pegava um caminhão, levava minha mesa, só pra fazer uma gracinha e a gente ficava lá sentado na beira do rio. Falei: “Pode dar aula aqui que as crianças vão ficar bem melhor”. Aí tinha a Moreninha que era um balneário. Mas muita falcatrua, os homens muito sem vergonhas. Eu dormia com um facão desse tamanho do lado da minha cama. Porque a casa que eu morei eu pagava 250 reais de aluguel, mas era uma casa que tava fechada porque o aluguel pra região era alto. Então era uma casa que tava abandonada. Tinha uma varanda, era linda, tinha quatro quartos no fundo, eu fazia várias festas lá em casa. E os meninos se divertiam muito ali. Tinha pé de tudo quanto era fruta e a rua era de terra, de areia que nem areia de praia. E era o maior barato porque a gente abria a porta assim e tinha um monte de vaca passando na porta, as boiadas. Então lá era muito gostoso. Só que eu tinha medo porque o povo achava que por eu ser paulista eu era moderninha. Então aquilo ia ser super fácil pra todo mundo porque eu ia sair com todos os homens da cidade. Tinha uns que ficavam me esperando atrás da árvore. Imagina se eu fosse gostosa como é que ia ser. Mas assim, o bom é que esperava atrás da árvore eu chegava: “Ai, o que é isso?” “Vim te visitar” “Obrigada pela visita. Tudo de bom. Pode embora”. Porque mulher sozinha, né? Tinha outro que falava assim: “Você gosta de mato?”. Eu falei: “Não curto muito. Não curto muito mato” “Ai que pena, senão eu ia te convidar pra ir no mato mais eu”. Falei: “Que no mato mais você. Mais você o que? Tá tirando? Tá louco? Vaza daqui”. Daí eu tinha que ser muito bravona lá, acho que em tudo na minha vida eu tinha que ser muito brava. Eu dormia com um facão. A faca era a colher da minha vó, de tão cega que era. Mas ninguém sabia, você pega um bagulho desse tamanho na mão o povo ó, vaza. A faca e o namorado ajudaram bastante a segurar o assédio do povo. Eu namorei 11 meses lá, olha que coisa?
P - Você morou lá um ano?
R - Um ano e meio.
P - Um ano e meio. Como que era o nome do seu namorado?
R - Ah, Cesinha. (risos) Tadinho.
P - E porque você veio embora de Guaratinga?
R - Porque acabou o projeto e porque eu continuava... O pessoal começou a me boicotar por eu ser da Orsa e não ser da região. Então a gente tinha poucas crianças e lá naquela cidade as pessoas descobriram que projeto social dá dinheiro. Paga salário, dá dinheiro nesse sentido. E daí se criava um monte de projeto social e o povo disputava criança a laço. Falei: “Pelo amor de Deus, não sou boiadeira pra ficar laçando criança. Então vamos pegar esse recurso que vocês investem aqui e vamos levar pra outro lugar”. Aí eu fui pro sul, pra Itapeva, Nova Campina. Aquele lugar, Deus que me perdoe, eu passei bastante coisa, mas ali foi pior.
P - Nova Campina?
R - É. Fica perto de onde? De Itapeva.
P - De Itapeva.
R - O cinturão da fome. Problema absurdo com plantação de eucalipto que drenam toda a água do solo da região. Nem agricultura de subsistência dá certo ali. Eram cinco mil pessoas na cidade, era uma cidade ridícula de pequena e era um curral eleitoral de um ditador. Esse homem não era prefeito, ele era vice-prefeito, foi deposto. Ele era delegado da polícia federal e tava envolvido em escândalos absurdos. Então lá era o refúgio dele, ele tá procurado, ele não podia assumir cargo político nenhum, mas ele era o coronel dali. Então eu tive que ir pra lá pra segurar um ano esse homem pra Orsa poder fazer todo o trabalho dela e depois sair. Foi bem difícil porque lá era um lugar muito frio, as crianças lá... A gente via gente cortada de machado, porque eles brigavam, como era tudo lenhador, eles brigavam com um machado na mão, coisa simples, né? Aqui você briga com uma coisinha, um copo. Lá é machadada. Vi um cara cortado assim, vivo, parecia que eu tava meio... Eu olhava pra ele e falava: “Nossa, será que eu tô meio vesga?”. Porque você via o osso meio, sabe, estranho. Muito estranho. O chão da casa das pessoas era de terra, de terra batida e eles dormiam com um fogão a lenha dentro de casa. Então eles acordavam todos pretos de fuligem porque era a única coisa que esquentava o ambiente.
P - E a turma vivia de trabalhar na...
R - Vivia de qualquer coisa. Muita prostituição infantil lá. Droga eles faziam. Eles faziam uma meleca, uma farofa pra cheirar. Nossa Senhora, eu não sei como é que eles aguentavam. Eu tinha um aluno meu, o Euller, que ele dormia no mato e eu descobri que o vô dava pinga pra ele na mamadeira pra ele ser homem, porque o homem tem que beber pinga desde cedo. E esse menino tinha nove anos, ele dormia no mato. Ele se desenhava de costas. Muito sério. E daí foi muito difícil. Foi nessa época que o meu pai adoeceu. Aí a gente já tava mais próximo, tudo, era Deus no céu e meu pai na terra. Acho que era meu pai no céu agora também. A gente estava muito próximo, então meu pai me ligava todo santo dia pra saber como é que eu tava. Nessa época ele descobriu que tava com câncer no fígado.
P - Morando em Campinas ainda?
R - Morando em Goiânia.
P - Em Goiânia.
R - Papai morava lá. Eu fiz esse trajeto todo e depois que eu saí começou a me respeitar mais, porque ele falou: “Pô, minha filha mulher com dois filhos faz o que eu não conseguia fazer sozinho”. Mais uma... Sabe quem que fala de Guiratinga? Sabe o cara zoiudo que tem na Zorra Total?
P - Sei.
R - Que trabalha com aquela Lady sei lá o que? Que tem aquela franja...
P - Lady Kate.
R - Aquele cara é de Guiratinga. E de vez em quando lá ela fala de Guiratinga por causa dele. Ele é super gay, né? Ele é irmão de um ex-namorado meu lá, de um advogado. Arco Verde.
P - Gente tem um... Vamos lá. Daí você tava contando de Nova Campina, Roberta.
R - Ah, então, Nova Campina foi essa história toda e eu tinha que morar na cidade porque politicamente era interessante. Itapeva era muito mais agradável, muito mais legal e do lado. Mas se eu fosse morar lá eu tava desconsiderando a cidade que eu falei que eu ia trabalhar. Então politicamente não era legal. Eu tinha que ficar lá. Não tinha nada, nada. Eu tava dormindo, eu morava numa casinha novinha, tudo, mas eu morava ali naquela casa e aí eu escutava de madrugada assim: “Mó...”. A mulher: “Jesus, o que é isso?”. No Mato Grosso era tucano comendo mamão, né, clec clec clec clec, me acordava. Ali era aquele: “Mó”. Eu falei: “Gente, o que é isso?”. Olhava uma vaca imensa embaixo da minha janela. Aí eu tocava a vaca, fiquei a noite inteira tocando a vaca, a vaca não saía. No dia seguinte meu filho falou: “Pô, mãe. Você e a vaca, não? Vou te falar. Vocês dão trabalho”. Eu sempre tive assim, eu mudava pra todos os lugares. Até hoje assim, se precisar mudar eu mudo, só que eu vou antes, arrumo todo o ambiente de casa pros meus filhos, pra eles não terem muita diferença. Então eu arrumo o quarto deles do jeito que era nas outras casas, deixo tudo ajeitado, escola, tudo. Quando tá tudo pronto eles vêm. Até agora era assim, agora meu filho vai fazer 18 anos não vai precisar mais, né?
P - E aí você tava contando que nessa época seu pai teve câncer.
R - Nessa época meu pai ligou pra mim um dia, ele ligava todo dia, pra falar de tudo. Ele era sozinho lá e eu era sozinha ali. Aí ele ligava pra mim e falava: “Escuta...”. Eu falei: “Oi, pai, você tá bom?” “Ah, tudo bem. Eu liguei pra te falar uma coisa. Eu acho que eu vou ter que operar” “Como assim você vai ter que operar? Operar do que?”. Ele falou assim: “Lembra-se daquela história...”. Ele foi cuidar do dente e por uma hemorragia que ele teve na boca ele viu que ele tava com hepatite. Minha mãe tava viva ainda, ele teve hepatite B. Eu fui cuidar dele. Era muito engraçado porque tudo que eu fazia ele não gostava, ele reclamava de tudo. Meu pai falava: “Puta que pariu...”. Magrinho, sabe? Magrinho, bocudo. Ele era muito besteirento, ele falava muito palavrão. Uma pessoa muito divertida. Muito brava, mas muito divertida. Eu fiquei cuidando dele. Aí ele começou a tomar um remédio, começou a fazer um tratamento, parou de beber. Porque ele bebia, todo dia ele ia lá, abria a latinha, ficava chapadinho e ia dormir. Ele teve que parar com a bebida. Isso pra ele acho que foi muito difícil, né? Pesou. Jogador de futebol, imagina. Papai era terrível. Na época do futebol eles tomavam uma injeção, muita gente na época morreu, que chamava Glucoenergan, que era uma vitamina que dava mais força muscular e deixava os caras ligadões. Eles tomavam no braço e isso ia agulhinha de bracinho em bracinho. Ele contraiu hepatite C e não sabia. Quando deu a B, deu alarde, mas quando foi ver... Ele fez um ano de tratamento com remédio e disse que parou de beber, depois eu descobri que era mentira, que ele não parou totalmente de beber. Aí ele deu câncer no fígado, hepatite C, cirrose hepática, câncer. Quando eu vi a foto, ele falou: “Vamos comigo no médico?”. Eu falei: “Não vai fazer nada aí”. Ele falou: “Não. Mas a médica falou...” “Não faz nada. Vai fazer transplante? O que é isso? De onde saiu esse bendito desse transplante uma hora dessas. Não faz nada, vem pra São Paulo, vem pra Campinas. Eu vou dar um jeito, eu vou arrumar uma consulta aqui”. Aí liguei pra uma amiga minha pra chorar as pitangas, porque eu fiquei desesperada, né? Liguei pra minha amiga pra chorar, pra Viviane, ela falou: “Roberta, eu trabalho no departamento de hepatite da Unicamp. O meu médico que trabalha aqui comigo é o maior especialista no assunto. Traz seu pai pra cá”. Aí o papai fez os exames e trouxe. Quando o médico botou no computador assim o fígado do meu pai, meu pai tava assim, prestando atenção em tudo. A hora que ele botou o fígado do papai, olhou, eu olhei e fiz assim pro médico. Porque não tinha espaço, não tinha nada que não tivesse tomado já pelo câncer. Eu olhei pro médico, fiz assim. Ele abaixou a cabeça e continuou explicando pro meu pai, meu pai assim. Papai não tava entendendo nada, nada. Eu falei: “Pronto, fudeu”. Dois. Fudeu. “Não tem jeito, o que eu vou fazer?”. Aí eu fiquei em pânico porque eu tinha uma vó de 80 e poucos anos, meu pai morreu, eu nem sei direito a data, eu acho que foi em 2004 que ele morreu, 2005 que ele faleceu. Eu morava em Itapeva, então eu deixava os meus filhos sozinhos com os vizinhos, porque eu sempre tive muita sorte com o povo, e voltava toda hora pra acompanhar meu pai. Eram oito horas de ônibus, não tinha carro. E daí ainda uma época minha casa foi assaltada, ficava sozinha, ligaram pra mim: “Assaltaram sua casa, levaram tudo”. Eu falei: “Tudo bem, eu posso resolver isso depois? Porque eu tô com meu pai na UTI”. Era esse nível assim. E tava pra ser mandada embora do serviço também, porque fechando o projeto lá não tinha aonde me colocar aqui. Então tava tudo nesse pé, tudo assim Matrix. Devidamente suspenso. Aí eu só cuidava do meu pai. Então eu ia pra lá toda hora e o meu médico me chamou um dia, ligou pra mim e falou assim: “Olha, senhor Adalton, o senhor veio dirigindo?”. O papai falou assim: “Vim.” “Tudo bem. O senhor sente alguma dor, alguma coisa? O senhor já tá tossindo sangue?”. Papai falou: “Pô, que é isso? Você quer me ferrar? Que raio de pergunta é essa? Se eu já tô? Claro que não”. Aí saiu puto da vida e aí foi fazer uma biópsia pra saber se o câncer era maligno ou benigno. Do jeito que tava tomando não podia ser benigno, já dava pra ver que não, mas fez pra tirar a dúvida. Ele fez o exame e ele foi embora pra Goiânia. Aí o médico me ligou e pediu pra eu voltar de Itapeva: “Você pode vir aqui tal dia semana que vem porque eu preciso conversar com você”. Eu sentei, falei assim: “Pois não, doutor?”. Ele falou: “Olha, eu sei que você tá cansada da viagem, você descansou?” um médico lindo “Você descansou tudo?”. Eu falei: “Descansei”. Ele falou assim: “Seu pai vai morrer. Não tem o que fazer. Ele vai morrer e o que a gente pode fazer é com uma angio não sei o que, a gente prolongar a vida dele. Aí cabe a você tomar essa decisão de pra quem você vai contar, se você vai contar pra ele ou não e todas as decisões do tratamento dele”. Eu falei: “Não. A decisão do tratamento dele quem vai ter é ele, mas eu não vou contar pra ele que ele vai morrer. O que eu vou fazer? Vou falar o que pro meu pai? Que ele vai morrer?”. Aí o médico falou assim pra mim... Eu falei: “Não vai morrer. Vamos fazer o seguinte? Vamos fazer o transplante. Eu tenho o mesmo tipo de sangue que ele”. Ele falou: “De maneira nenhuma eu vou comprometer duas pessoas da mesma família”. Ainda meu pai tava lá, ele falou assim: “Doutor, não dá pra fazer uma vez antes?”. O doutor falou assim: “Transplante? Eu não quero fazer”. O médico falou: “A gente descarta essa possibilidade e tal”. Daí eu insisti na época, eu não sabia, eu falei: “Não, pai. Eu dou um pedaço do meu fígado pra você”. Ele falou: “Seu eu não quero. O seu tá todo fodido, você bebe mais do que eu. Não quero o teu. O dela eu não quero, doutor”. Falou bem bravo assim. E me xingava até no consultório. Aí o médico pegou e me falou isso depois: “Olha, não adianta fazer transplante. Você falou aquela vez, eu não quis ser muito enfático, mas não dá pra recuperar o fígado do teu pai. Não dá, não tem como, tá muito machucado. Espanta-me a força que ele tem porque já era pra ele tá sentindo muita dor”. Eu falei: “Meu Deus do céu, o que eu vou fazer?”. A minha vó de 90 anos, 92 hoje, na época me ligava e ficava assim: “Rô, onde que você tá filha?”. Eu já tava andando, porque eu fico nervosa eu saio andando. Eu tava andando lá por Campinas, nas avenidas que não têm ponto de ônibus, você só tem que andar, não tem jeito. Aí eu andando a Norte Sul assim, ela falou: “Volta pra casa filha, volta pra cá. Vem conversar comigo. Eu imagino que você deve estar desesperada”. Minha vó é espírita. Aí eu voltei. Olhei bem pra cara dela assim e, é muito difícil você tá com essa informação na mão. Eu olhei pra cara da vó e falei: “Vó, o meu pai tá muito mal. A gente vai ter que ser muito forte porque ele vai ter que ficar aqui pra fazer tratamento. Tudo bem?”. Ela falou: “Lógico. Minha casa, meu filho, você é minha neta preferida. Lógico que pode”. Daí meu pai começou a fazer o tratamento. Ele veio, deu tchau pro meu irmão, se despediu de todo mundo em Goiânia, deixou serviço, bebeu um pouco, fez uma gracinha com o povo e veio. Não veio dirigindo dessa vez. Eu acho que ele já tava sentindo alguma coisa e não falava. Aí ele fez a angio, quimioterapia que pega... Eles abrem um cateter, como se fosse um cateter, abre uma artéria e coloca o veneno dentro do fígado e fecha. O do meu pai não deu pra fechar, tava tão deflagrado a parede do fígado que isso vazou, então envenenou ele. Ele ficou muito mal depois disso, mas eu corria com ele assim. No dia que ele fez esse negócio ele teve uma hemorragia absurda. Ele sentou, tinha um ponto e o fígado não... Como é que chama? Ele não coagula o sangue. Então ele não podia fazer movimento e era teimoso pra burro, era duro segurar ele, ele sentou assim pra falar no telefone. Ah, a hora que ele sentou assim começou a jorrar sangue. Eu olhei pra minha vó, pra ela não ficar no meio, falei: “Vó, vai lá, vó. Vai lá na farmácia comprar gaze. Pai, corre pro banheiro, vai pro chuveiro”. Meu pai ligou o chuveiro, mas a artéria tava fazendo... Ele ia perder todo o sangue em cinco minutos. Eu falei: “Vó, corre”. A vó correu. A hora que minha vó correu eu saí correndo atrás, falei: “Põe uma toalha pai, vai descendo”. Ele pegou uma toalha de banho, botou aqui na abertura, na virilha e eu saí correndo passando por cima de carro na Moraes Sales, parecendo andando assim, em cima de carro. Peguei um táxi falei assim: “Forra. Forra o táxi”. Mas tudo assim, rapidão. Peguei, o levei, consegui botar ele no hospital, eu falei: “Pai, você tá bem?”. Ele falou: “Hum”. Como quem diz: “Pergunta filha da puta. Claro que não, claro que eu não tô bem”. Aí pegou e corremos pro hospital. Chegou no Samaritano, o povo já me conhecia porque eu dei vários escândalos lá cuidando dele, eu fiquei acho que umas duas horas com a mão assim em cima do corte porque a médica não aguentava. Não coagulava, a gente tinha que segurar aqui. Aí ele olhou assim pra mim, papai era triste comigo, ele olhou assim pra mim e falou assim: “Se eu soubesse que você ia ser tão importante na minha vida, eu tinha te ajudado mais”. Eu entrava assim embaixo de maca, ele foi pra UTI depois disso e eu não conseguia notícia. Eu tava ficando histérica já. Eu falei: “Olha, eu sou boazinha, eu sou educada, eu entendo os médicos, mas não dá”. Eu peguei e me escondi embaixo de uma maca e fui \ pra UTI. A hora que chegou a UTI eu saí e fiz assim: “Oi!”. Acho que o Wellington, eu vou falar pro Wellington Nogueira, eu vou tirar seu trabalho.
P - Doutora da alegria.
R - É. Meu pai falou: “Puta que pariu. Até aqui. Doutor não pode entrar aqui, o que ela tá fazendo aqui?”. Me delatou, você acredita? Aí eles falaram assim: “Só porque você coube nesse lugar a gente vai deixar você ficar, mas você vai embora, tá?”. Falei: “Tá bom”. Eu fazia massagem no pé dele. O aniversário dele ele passou no hospital, levava bolo. Eu saia pra fora, chorava, chorava, chorava... Colocava colírio e voltava rindo assim com ele pra ver, sabe, pra ele não sentir tanto. Ele não sofreu nada. Nem ele nem minha mãe. Nenhum dos dois.
P - A gente que fica é que sofre mais.
R – É. Eu tava pra ser mandada embora do serviço porque graças a Deus tava fechando também. Eu fui a maior apaga luz da Fundação Orsa. Porque aquela história assim, o último apaga a luz. Eu sempre apaguei a luz. Eu sempre apaguei a luz. Meu pai falava assim: “Ih, você vai apagar a luz desse também”. Tirava sarro, né? Eu avisei a Orsa, falei: “Olha, meu pai tá muito mal. Vê aí o que vocês vão fazer, vocês vão me mandar embora ou não vão, porque eu tenho que decidir a minha vida, pra cuidar dele, pra ver o que vai fazer. Meu pai tá morrendo, eu quero ficar com ele”. Ela falou assim: ”Ai, Roberta, quem que tá te mandando embora?” “Esse imbecil desse Mathias aí” que era um pulha que trabalhava. Pulha. Se ele ler isso... Que trabalhava na Orsa. Tadinho, ele era bonzinho, mas eu não gostava dele. Ele falava assim: “Eu tento ser chefe da Roberta, mas ela me manda pra tudo quanto é buraco”. Tadinho, ele sofreu também. Aí eu falei: “O Mathias tá me mandando embora”. Ela falou: “Não. Ele não falou com a gente.” a Jussara: “Você continua admitida e ninguém vai te mandar embora. Você vai trabalhar em São Paulo na Vila Madalena em um projeto em parceria com a Aprendiz [Cidade Escola Aprendiz]”. Eu falei: “Ah, legal. A Vila Madalena tem um monte de bar, eu vou poder afogar as mágoas, todas”. Mas aí nesse dia eu fiquei sentada na sarjeta em Campinas, na Francisco Glicério porque foi no dia que eu fiquei sabendo que tinham roubado minha casa, no dia que meu pai tava na UTI e falaram que eu não ia ser mandada embora. Eu fiquei sentada acho que uma meia hora, sem chorar. Falei: “Meu Deus do céu, o que é isso? O que virou minha vida? Ter que mudar de novo, pra São Paulo agora”. Aí eu fiquei três dias fora e meu pai ligando todo dia: “Você vem embora? Você tá vindo? Você tá vindo?”. O dia que eu cheguei ele tava meio estranho, eu senti um cheiro forte de fora da casa. O mesmo cheiro que eu senti na minha casa quando minha mãe morreu. Eu falei: “Vó, tá cheirando morte de novo. Cadê ele?”. Eu olhei pra ele, ele me olhou, deu um sorriso e não falou mais, comigo não conseguiu. Eu liguei pra minha prima, falei: “Olha, ele tá muito mal”. Ela falou: “Tira ele daí.” minha prima é enfermeira “Tira ele daí que ele vai ter uma parada cardiorrespiratória aí”. Eu falei: “Tá. Eu vou esperar mais um pouco porque ele tá teimando que não quer ir”. Ele falava comigo todo atrapalhado, ele não tava entendendo mais porque ele não tava tendo oxigenação já. Eu nunca fiz nada de curso de enfermagem, nunca fiz nada. Eu olhei assim, ele tava meio estranho, eu falei: “Pai, vamos embora? Vamos pro hospital?”. Ele fez assim pra mim. Quando ele fez assim eu fui erguer ele pra pôr a calça dele, ele fez assim e desmaiou. Morreu. Ele começou a virar o rosto, aquela baba da boca e o olho virou. Aí minha vó de 92 anos vendo tudo aquilo, eu falei: “Vó, senta”. Minha vó, no dia que meu pai teve hemorragia, ela caiu de cara no chão. Ela tava tão nervosa com tudo aquilo que ela não se segurava, então ela caía. Então eu ficava cuidando durante o dia da minha vó, que não tava com o braço bom e do meu pai à noite porque ele não dormia. Ficava num sofázinho do lado da cama dele na sala. Não dava pra dormir. E pensando nos meus filhos lá em Itapeva sozinhos, tava assim, uma bagunça. Até no dia que a minha vó caiu, meu irmão tava comigo no telefone e eu explicando: “Du, papai teve uma hemorragia...”. Porque eu tinha que dar notícia pro meu irmão que tava lá em Goiânia. “Du, papai teve uma hemorragia, tá na UTI, mas tá bem. UTI é bom porque cuida bem da pessoa, tem tudo o que precisar. Então ele tá no melhor lugar”. Eu tava falando com ele, seis horas da manhã a gente escuta: “Pá”. Eu olhei minha vó com a cara no chão, eu falei: “Du, depois eu te ligo”. E desliguei o telefone. Ele ligou de novo e falou: “O que tá acontecendo aí?”. Histérico porque era tanta coisa, não tem onde acontecer mais nada. Você acaba de falar isso faz “puf”, aparece uma coisa ruim. Aí eu tive que correr com a minha vó pro hospital. Meu pai internado e eu com a minha vó no hospital. Tudo bem. Nesse dia, no dia que ele morreu ela já tava com o braço ruim, eu falei: “Senta aí’. Ela foi lá, pois a mão nele e falou: “Ai, Rô, foi embora”. Eu falei: “Não foi. Não foi. Dá o telefone”. Liguei pro 193, eu fiquei com o telefone aqui, peguei o meu pai, montei nele, comecei a fazer a massagem cardíaca nele e respiração boca a boca e falava com o cara. Eu falei: “Quanto tempo que vocês vão chegar aqui?”. Ele: “Como é que ele tá? Tá assim, tá assado?”. Eu falei: “Eu tô fazendo massagem assim, assim, assim. Ele falou assim: “A gente chega em cinco minutos”. Eu falei: “Não dá. Tem que ser em três. Ele não vai chegar”. Fazia a massagem nele aqui. Aí eu peguei e lembrei que falaram que Cristo quando foi crucificado, o que pegou muito além de toda dor e todo o flagelo dele, foi porque ele ficou com os braços assim e isso comprimia o pulmão, isso apertava o pulmão dele e ficava difícil de respirar. Aí eu peguei, deitei o braço do meu pai aqui, olhava pra ele, fazia massagem assim, com o braço dele em mim pra abrir mais, expandir o pulmão e falava: “Pelo amor de Deus pai, não morre. Não morre. Fala comigo, olha pra mim. Olha, você tá me ouvindo? Você vai sair daqui vivo, você tá ouvindo? Não entrega, não deixa, não dorme. Olha pra mim, olha pra mim”. Aí o médico chegou. A hora que o médico chegou, não acharam a veia dele, deram oito injeções de adrenalina no meu pai, aquelas enormes assim. Ninguém achava... eu falei: “Dá aqui”. Peguei o braço dele, amarrei e eu só não botei a agulha porque a moça tirou de mim, mas ele saiu com vida. Aí eu olhei pra ele e falei: “Viu teimoso? Era pra você ter ido pro hospital antes”. Ficou lá um tempão, não conseguia hospital e ele lá atrás fazia assim pra mim, ele só falava: “Rô. Rô”. Só isso. Eu falei: “Não vou deixar o meu pai aqui. Vamos levar pro Santa Edwiges, lá tem”. Chegou no hospital, eu tava sozinha de novo, com a roupa dele, sentada assim esperando amanhecer pra pegar o ônibus pra ir pra minha vó. Aí eu fiquei sentada ali esperando. Foi amanhecendo o dia, a minha prima que tava cuidando dele até então, nesses três dias, ela falou: “Ah, Roberta, não dá pra cuidar. Ele não aceita ninguém, só aceita você. Que bom que você chegou, eu vou dar uma saída”. Quando ela voltou, eu já tava no hospital com ele. Aí eu liguei pra todo mundo, liguei pro meu tio, falei. Aí o médico falou assim: “Ele vai ser entubado. Traz fralda, traz coisa pra ele, tudo”. Eu fui comprar fralda sabendo que não... Comprei o sabonete que ele gostava porque meu pai era podre de chique. Isso os dois tinham, meu pai e a minha mãe eram podridésimos de chiques. Eu não sou um terço, nem trabalhando na Daslu eu consigo ser chique. Eu trabalhei, né? Até ontem eu tava na Daslu. Daí eu peguei e fiquei lá esperando, fui pra casa. Cheguei lá, falei: “Vó, papai tá entubado, tá mal”. Ela fez assim: “Eu sei”. E ficou quietinha assim. Deu sete horas da manhã eu dei um pulo da cama, falei: “Morreu”. Às dez horas eles ligaram: “A gente queria falar com alguém da família”. Vou eu de novo. Eu entrei no hospital, já fui direto no quarto da UTI. Eu os vi cobrindo o meu pai. A moça: “Não. Sai daqui. Você não pode ficar aqui”. Eu falei: “Não posso por quê? Quero ver meu pai. Cadê? O que aconteceu? Ele morreu, né?”. Ela falou assim... Aí veio o cara, isso é horrível, né? Veio o cara falar: “Olha...”. Eu encostei na parede assim, esperando e minha prima do meu lado. Minha prima é deste tamanho assim. Ele falou assim, infelizmente o coraçãozinho dele não resistiu, ele não aguentou... morreu. Eu fiquei puta da vida. Minha prima veio assim pra me abraçar eu falei: “Não rela em mim. Nem encosta em mim senão eu vou morrer de... Vou ficar mole”. Eu falei: “E agora? O que eu vou fazer? Com quem que eu falo? Porque a minha mãe foi assassinato, eu tive que... Briguei com os outros, eu chamei a polícia. Quem que eu chamo? Vou chamar a polícia pro meu pai?”. Ele: “Não. Agora é só você ir na SETEC [Serviços Técnicos Gerais] que a gente vai fazer um laudo, tudo”. Eu sentei no mesmo lugar que eu sentei pra falar da minha mãe, com a mesma atendente. Ela falou: “Você já veio aqui, né?” “Eu vim de novo”. Fui lá, enterrei os dois no mesmo lugar.
P - E você que contou pra sua vó?
R - Eu falei: “Vó...”.
P - Mas ela é espírita, né?
R - Pra ela tá tudo bem. Falei: “Deus te abençoe, porque você pensar desse jeito é ótimo, vai encontrar todo mundo”.
P - Roberta, mas aí veio uma grande mudança de vir morar em São Paulo depois disso?
R - Ah, então, aqui é uma coisa de louco, né? Eu achei que eu não ia dar certo aqui nunca. Porque eu falei: “Como é que eu vou ser articuladora num lugar desse?”. Eu vim trabalhar pra Orsa aqui... Ai, que bom que você faz essas perguntas, porque aí a gente sai do poço de lágrima. Ai, que beleza. Valeu. Foi assim, eu fui trabalhar na Orsa e a Orsa era do lado do Aprendiz. O Aprendiz... No fundo as duas casas não têm muro, tem um degrau. Eu fiquei tanto sozinha, eu falei: “Eu odeio ficar sozinha”. Eu ficava sozinha lá na Orsa, eu descia toda hora pra bater papo com o Gilberto. E eu sou engraçada, ele morria de rir. Eu falava mal do povo da Orsa, mesmo, porque o povo é muito ruim. Povo ruim de trabalhar pra caramba. Eu falava: “Mandei o projeto pra lá, não desenrola e tal”. Daí um ida ele virou pra mim e falou: “Vamos fazer uma coisa?”. A Orsa ficou enciumada com essa história com o Gilberto, e me levaram de volta pra sede e me deixaram confirmando telefone de instituição.
P - Nossa Senhora.
R - Aí todo mundo olhava pra mim e falava: “Ah, você tá aqui agora?”. Eu queria morrer aquela época, eu fiquei muito triste. Um dia o Gilberto ligou, eu tava chorando na capela da Orsa.
P - Mas o que você achou de morar em São Paulo? Você foi morar onde?
R - Osasco.
P - Osasco.
R - Porque o meu ex-amigo morava aqui. Quando ele foi mandado embora, ele voltou pra Campinas e desocupou o apartamento. Então eu entrei no contrato dele porque não tinha pra onde ir. Ninguém aceitava meu fiador. Imagina, meu tio tinha um flat na Avenida Paulista, a mulher queria que ele tivesse um apartamento em Osasco. Eu falei: “Você quer que ele venda o flat da Paulista pra comprar um apartamento em Osasco só pra ele ser meu fiador? Então eu entrei no contrato do Alexandre”. Já tava começando aula, meu pai tinha acabado de falecer. Minha mãe morreu dia 6 e o meu pai dia 18 de dezembro. Muito perto assim. Então toda aquela coisa de festa de mudança... Festa. Ninguém festou nada, né? Mas tinha que cuidar. Daí foi fácil porque eu fui pra Osasco. Na época foi bom porque eu tinha carro, eu fiquei com o carro do meu pai, então deu tudo meio que certo. A mobília eu peguei um pouco do meu pai, um pouco da minha mãe, fizemos um apanhado e é o lugar que eu moro até hoje.
P - Aí depois de conferir telefone lá na Orsa você voltou pra Vila?
R - Aí o Gilberto ligou: “Escuta, o que você tá fazendo aí?”. Eu falei: “Eu tô tão triste. Eu tô mal, eu quero sair daqui.” “Vem conversar comigo amanhã?”. Fui. Ele falou: “Olha, eu tenho um trabalho assim, eu vou te indicar pro trabalho com a Daslu”. Eu falei: “Não. Eu vou fazer o meu trabalho.” “Não. Esse não. Vai lá ser educadora comunitária pra trabalhar na favela do lado da Daslu”. Aí eu fui. Fiquei lá até ontem.
P - Que era um braço do Aprendiz?
R - Não. Não tinha uma parceria porque não dá pra ter uma parceria com a Daslu nos moldes que tá. Qualquer um sabe que fiscalmente mela toda parceria de qualquer um. Era difícil você falar de responsabilidade social quando tem sonegação de impostos. Mas o projeto, e por uma vontade cristã da Eliana, era muito legal pela disposição dela. Ela é uma mulher que eu admiro muito, porque ela é muito caruda, ela é muito guerreira. Ela faz, ela acontece, ela fala, ela vai à favela, ela participa das coisas. Então era um trabalho pra ela que eu fazia. Porque o pessoal da Daslu acho que nem se integrava muito. De uns anos pra cá que começaram a se juntar. Fiquei cinco anos nessa história. Então no começo eu era só da Daslu, desse braço, dessa indicação, e depois eu comecei a fazer... Eu sempre fazia trabalhos pra Aprendiz e hoje eu sou Aprendiz. Eu sou Aprendiz na vida, mas no trabalho também. E daí tô lá faz cinco anos com essa história toda.
P - Roberta, conta um pouco da sua ligação com o samba.
R - Ah, então, isso é legal. Isso faz pouco tempo. Com essa história do Gilberto, o Gilberto todo mundo que chega à Vila fala assim pra mim: “Olha, vai lá conhecer”. Porque eu tenho que saber de tudo que acontece de cultura, educação na Vila pra poder articular os parceiros. Eu fui. Eu cheguei vi um povo de chapeuzinho branco, uns homens tudo bem vestidos, umas mulheres com umas saias, tailleurzinho... Falei: “Ai, gente. Oi”. Eles foram pro café Aprendiz. Eu olhei e falei: “Tudo bom? Eu só vim aqui dar um beijo em vocês porque vocês são tão bonitos”. Dei um beijo em todo mundo e saí. E o Kolombolo [Kolombolo Diá Piratininga] tinha acabado de chegar à Vila Madalena a convite do Guga e da Gisela pra hospedarem a casa que o Guga comprou. Então eu comecei a fazer essa parceria Kolombolo - Aprendiz pá pá pá. Só que aí eu comecei a gostar e eu tava tão triste da minha vida essa época. Tava muito... De vez em quando eu tinha umas depressões fortes. Não sei por quê. Umas coisas eu ficava mal. Eu falei um dia pra Lígia: “Lígia, eu não aguento mais, eu quero ser passarinho. Vocês não tem aula de canto pra eu aprender a cantar?”. Porque eu gostava de cantar em Campinas pra minha mãe, tudo, cantava em caraoquê, sabe? Nunca fazia nada muito assim. Tava ali perto, mas nunca tava envolvida mesmo do jeito. Ela falou: “Olha, o Renato precisa de pastora”. Falei: “Cacete. Que merda é essa de pastora? Vou carregar ovelha? O que é isso?”. Ela falou assim: “Pastora do samba, pra você cantar. Vai um dia na praça. Vai um dia na praça”. Aí eu demorei uns três meses pra ir. Três encontros que tiveram não fui porque tava morrendo de vergonha. Aí eu comecei a ficar coragem, né? Fui ao bar primeiro, tomei a pinguinha, voltei e falei: “Vamos lá ver qual é que é essa de pastora”. Eu sentava, todo mundo cantando o samba paulista. Eu não gostava de samba e nem sabia o que era samba paulista. Eu vi o Gudin, mas achava que era MPB. Vanzolini, pra mim tudo era MPB. Samba era coisa menor. Aí eu comecei a ver que não era tão assim, comecei a me interessar. O Renato é um apaixonado. A Lígia é um doce que recebe a gente, que acolhe. E o Renato é um apaixonado que passa pra todo mundo tudo que ele quer. Então ele me encheu de CD e eu comecei a ouvir e a decorar, porque eu ficava mascando chiclete na roda, né? Não cantava nada. Minha voz não saia. Aí o Renato montou um projeto que chama Cafeína, que é um pessoal do “Grazie a Dio!” que queria fazer um dia de samba lá no Grazie e ele me chamou pra ir. Falei: “Olha que legal. Vamos lá”. Eu nunca tive medo de nada, né? Desafio, vamos lá ver qual é que é. Aí eu comecei no Grazie, no começo eu cantava meio escondida porque eu cantava no meio de duas pretas lindas de morrer. A Jô não tão preta, mas a Mônica que é linda e a Jô. Você fala delas você faz assim. E eu ali no meio, gordinha, aquela cara de pau. Aí eu comecei a gostar da história, comecei a me empolgar. E as pessoas começaram a gostar. Então alguém que escutou a minha voz falou: “Nossa, que voz bonita que você tem. Você canta direitinho, que legal”. Aí eu comecei, falei: “Ah, então vamos investir”. Daí começaram a me chamar pra um monte de coisas. A gente foi pro Grazie pra ficar um mês, a gente ficou cinco. Claro que em quarta-feira feira com jogo de futebol é duro, né? É muito difícil pra você competir. Então foi caindo o público, foi caindo o público, caiu. Aí a gente saiu. Até sair de lá eu já tava mais confiante na história da música, tudo.
P - E hoje você canta?
R - É, então.
P - Você é pastora?
R - Eu sou cantora. Pastora, cantora. Às vezes eu tenho show, eu faço solo. Tô gravando um CD. Que eu ganhei um monte de música, parecia... O povo: “Ai, você não quer ouvir essa música?”. Eu achei tão legal e assim, eu fiquei ouvindo muito a história do pessoal, a minha história tem partes que são muito tristes e tem história de gente que é muito mais triste que isso, sabe? Gente que sofreu muito mais, que tem mais vida do que eu. Pastou muito e que ainda pasta. E daí você fica vendo como é que você faz pra melhorar um pouco isso? Se eu conseguir gravar alguém, sei lá, que dê sucesso, que faça, que toque duas, três vezes pra ele ganhar um Ecad [Escritório Central de Arrecadação], né? E assim, dar voz pra essas pessoas ou dar possibilidade delas serem conhecidas. Eu queria muito ser porta-voz disso, mais do que compositora. Porque minhas letras são assim, tudo muito...
P - Você escreve também?
R - Eu componho também, mas eu não gosto tanto. Eu gosto mais das músicas dos outros. Eu aprendi muito com essa história do samba, porque tem muita coisa de Campinas, eu que não sabia que existia. Eu nem sabia que Campinas era terreiro de samba. Claro que era, porque tinha um monte de barão, os escravos todos, né? Então assim, você começa a recuperar a sua vida, a história da tua cidade com a história dos outros aqui. Eu não fiquei sabendo que o meu vô de Presidente Prudente, o filho de cangaceiro, morreu aqui na rua do Aprendiz? Vou contar essa história. Eu fui ver uma história de uma menina que foi impedida de estar no projeto Guri porque tinha mais de 30 anos. Mas ela disse que tem Síndrome de Down e a gente achava que era um absurdo isso, ela ser impedida de tá no Guri por uma idade... É uma coisa pra se pensar, mas assim, coisa da inclusão e tudo. Mas pô, era na mesma calçada da casa dela, não custava a deixarem ficar. O Gilberto fez várias matérias sobre isso, intitulou Aula de Surdo, que era a aula que ela tinha e Surdo de também de vida, fisiologicamente falando. Aí eu fui lá falar: “Olha, deu certo. Com toda essa campanha que a gente fez você vai ser readmitida no Guri. Você vai voltar a ter suas aulas”. A menina me agradeceu e me convidou pra entrar pra tomar um café. Quando eu entrei pra tomar um café na casa dela, na casa do senhor Sérgio, na rua do Aprendiz, tinha uma moça lá de Presidente Prudente. Ela falou: “Roberta, você trouxe alegria aqui pra casa, menina. Porque a Fernanda tava tão triste, agora ela tá mais feliz. Essa minha amiga vai voltar até feliz pra Prudente, sabendo que isso se resolveu”. Falei: “Ah, você mora em Presidente Prudente? Eu tenho parente lá. Na verdade não é Prudente, é Indiana que é do lado”. Ela: “Eu sou de Indiana”. Eu falei: “Ah, então você conhece o meu vô”. Ela: “Quem é seu vô?” “Seu Moacir Dantas.” “Seu Moacir, lógico. Você sabe que ele faleceu?”. Eu não sabia. Aí liguei pro meu tio, falei um monte pro meu tio, falei: “Seu pai morre e você não me avisa?” “É, mas ele não deixou nada.” “Mas não quero saber de herança. É da minha família, preciso saber quem que tá vivo, quem que não tá. Como é que morre alguém e ninguém me fala?”. Aí eu rompi com o meu tio. Fiquei um ano rompida com ele. A gente voltou a se falar agora no final do ano. Cheio de amor.
P - Roberta, você falou que você virou macumbeira...
R - Eu virei por causa do samba. Voltei.
P - Foi por causa do samba?
R - Então, não. Porque na minha casa, eu contei já, que tinham mulheres que recebiam uns negócios meio estranhos lá. Além de todos que elas recebiam, recebiam outros estranhos. E eu sempre tava no meio porque a minha vó era de candomblé, eu ouvia muitas cantigas e tinha muita coisa em casa. Eu sempre vi muita coisa, assim. Eu acho que até por isso que eu sou tão ligada, que os mortos da minha família sou eu que levo, outros sempre param comigo. Aí eu vi que eu sou filha de Iansã, Matamba, né? No candomblé Bantu. E a gente tem, né, Iansã tem muita ligação com os mortos e tal. E daí isso me agradou a lenda, as histórias, sabe? E pelo samba, pelo Renato, eu comecei a me aproximar de novo. Eu tenho um monte de coisas pra resolver com isso, um monte de coisa. Toda hora alguém fala pra mim, isso em todas as religiões, católica, evangélica, tudo o povo fala pra mim: “Você tem muito que trabalhar pra Deus” E eu acho que eu tenho mesmo.
P - Mas você lembra assim, a primeira vez que você foi no terreiro mesmo, que você falou: “Nossa”?
R - Eu não lembro a primeira vez que eu fui na minha vida, porque eu sempre tava envolvida. Então tinha. Eu me lembro de terreiros que eu fui perto da minha casa. Eu vinha muito pra falar com as crianças. Eu fazia xixi na cama até 15 anos. Eu tava namorando o Júlio Beiço, a minha mãe falava: “Eu vou contar pro Júlio Beiço que você faz xixi na cama”. Imagina. Aí eu ia, pedia pra Santa Izildinha: “Não me deixa mais fazer xixi na cama que eu tô com vergonha”. Imagina. Vergonha isso. Conta isso pro público. E daí eu não lembro assim porque eu sempre... É muito... A Umbanda. O candomblé é novo.
P – Foi presente sempre na sua vida.
R - Muito. E assim, muito assim. Tanto é que eu fiz uma música que é um ponto, que eu não sei aonde que é o ponto e aonde que eu botei letra, sabe? Porque virou uma coisa só. Maior legal. Na roda sempre dá muito gás assim. E eu tenho assim, eu tenho que ter alguém que me governe. Que sejam os espíritos então.
P - Canta um trechinho da música que você fez.
R - Ai... Minha vó veio pra cá e ela começou a cantar pra moça bonita e ela fala assim: “Que moça bonita, o que veio fazer, com flor no cabelo cheirando a dendê? Que moça bonita, o que veio fazer, com flor no cabelo cheirando a dendê? Trabalhar, trabalhar. Eu vim desmanchar. Trabalhar, trabalhar. Desamarra nó. Desamarra nó”. E virou ponto assim, porque ela era um ponto mesmo de macumba. Aí eu botei mais coisinhas e a gente canta na roda. Mas aí você agrada um pouco o povo, porque pra passar tudo que eu passei eu preciso de... Pra mim assim, eu acho que eu preciso de ajuda.
P - E hoje você vai, tudo.
R - Ai, eu devia ir mais. O povo sempre me cobra, mas... Até afundei na cadeira. Eu tinha que ir, né? Mas eu tinha que raspar a cabeça e tudo. Eu não sei ainda se eu tô pronta pra isso.
P - E seus filhos, Roberta?
R - Meus filhos são um capítulo a parte assim. Porque os meninos são... Eles são fogo. O Felipe tem 12 anos, vai fazer 13. Ele tem um olho verde e uma cara que ninguém consegue não gostar do menino. Sabe aquelas carinhas do gatinho do Shrek? É o Felipe. Ele consegue tudo que ele quer. Menino esperto, inteligente, bonito, sabe, de presença assim, um cara firmeza. Louquinho, tira sarro de tudo, brincalhão. Anima qualquer festa sozinho. O Henrique já é mais resguardado, mas é um amor assim, é um homem. Tá namorando agora, então eu tenho nora.
P - Ele tá com 18 anos?
R - Vai fazer 18. Jogador de futebol, tá jogando no Barueri. Antes era Campinas aí naquela transação toda ele veio pro Barueri.
P - Igual o avô.
R - Isso aí a família... O Felipe ficou no São Paulo cinco anos, pequenininho. Vamos ver se ele volta agora pra algum time. Mas também ele quer ser gastrônomo, não sei se ele vai ser jogador de futebol. Eu não queria, não. Já pensou se alguém xingar o meu filho e eu tiver no campo? Que eu vou fazer? Eu vou descer... Eu vou bater no juiz... Vou ser aquelas mulher espetaqueira.
P - E eles moram com você?
R - Moram. O Henrique ficou um ano em Campinas, porque ele tava jogando lá. Mas é como se tivesse aqui. Foi muito difícil porque eu sou muito... Eu não fico... Não é que eu seja muito controladora, mas eles gostam de mim. Eu sou muito mais legal. Eles têm que ficar comigo. E é muito mais legal ficar comigo, não é? Eu não tô sendo modesta. Eu tô sendo também arrogante, mas qualquer um quer ficar comigo. Meus filhos querem ficar comigo, lógico. O pai deles quer ficar comigo. Vem morar todo mundo junto, né? Mas os moleques são muito legais. O Henrique tava doido pra voltar. Claro, pelos amigos, pelo condomínio e pela namorada. Mas porque em casa a gente fala de tudo, não tem... A gente não tem briga, tirando quando eu tô meio atacada que eu... Ontem eu quebrei o pau com o Felipe, depois eu chorei, pedi desculpa. Não tem problema na minha casa. Eu não tenho namorado pra pegar no pé e pra me encher o saco. Porque é isso que parece, você só arranja namorado que não dá certo. Eu sou curva de rio, sabe? Tudo de galho ruim, essas coisas assim, para ali na curva. Então eu só tenho curva de rio. Não dá certo porque eu canto, o povo tem ciúmes, sei lá o que é. Então não tem briga com ninguém. Vizinho, não tenho muita amizade com vizinho. Tenho com alguns, mas eles me deixam quieta. Então não... É legal, os meninos ficam bem comigo lá.
P - Roberta, e o que você acha que é a coisa mais importante pra você hoje? As coisas que você mais valoriza?
R - Os meninos, meus filhos, meu irmão... Eu sou muito ligada com família assim, né? Eu tava vendo agora, tudo que eu falo, eu falo da minha família. E eu vivo sozinha, mas assim, eu tenho uma cobrança porque eu sou muito, eu acho que eu sou muito o esteio da minha família e o que sobrou dela assim, porque a minha família foi bombardeada. Mas assim, eu tento segurar um pouco a onda de todo mundo. Só que agora eu não tô segurando mais. Depois da morte do meu pai que eu fiquei mais molona. Então o povo tá, o povo me vem carinhar um pouco porque eu não dou mais conta de carregar ninguém. Então eu tenho eles, meu irmão, meus sobrinhos, a Ana Clara, o Eduardinho, minha comadre, a Divina. Porque meu irmão fez família lá, né? (término da parte 1)
P - Roberta, o que você acha que você tem de sonho hoje? Pro futuro?
R - Eu não sei. Até um tempo atrás eu pensava em ter uma pousada, um lugar bem legal. Sabe aquelas donas de pousada bem legais, classudas, que chega descalça e fala: “E aí gente? Beleza? Tudo bom?” recebe o povo. Eu gosto disso, isso me agrada. Mas eu não vou ter peito pra isso, de grana e acho. Eu gasto muito, eu não guardo nada, eu sou um relaxo. Eu prezo muito os meninos, meus filhos. Eu tô entrando numa paranoia de que eu tô ficando velha e que eu posso perder o emprego e não vou ter pra onde correr. Eu tô meio em pânico esses dias eu não sei por quê. Eu vou ver se eu melhoro. E essa coisa da música, eu não sei. Eu gosto de ser cantora, eu acho tudo... Eu acho que eu não sou tudo aquilo que o pessoal fala, sabe? Tem muita gente falando muita coisa boa. Eu acho legal, me massageia o ego eu estar envolvida, mas eu tô no Kolombolo não só pela música, que é um lugar que eu posso cantar, que eles me chamam, que eles gostam de mim. Mas é por causa de família, pra eu ter aquele... Eu preciso estar acolhida em algum grupo, sabe? Eu fico muito mal quando eu não participo de nada, ou quando ninguém me chama. Sou virginiana, eu gosto de aparecer. Não aparecer em público, pro povo, mas aquele grupo, eu tenho que estar dentro de algum grupo. O Kolombolo pra mim é isso.
P - Conta um pouquinho o que é o Kolombolo.
R - O Kolombolo é um grêmio recreativo de resistência cultural que existe há nove anos. Foi fundado em 2002. Existe há muito tempo, já. E trabalha praticamente com o resgate de toda cultura popular paulista, principalmente o samba paulista. Ó o discurso, você viu? E assim, tudo que compõe geneticamente o samba paulista tem no Kolombolo. Futebol de várzea, marchinha, cordão carnavalesco, que é diferente de escola, trabalha com Velha Guarda. Então o que eu ouvi de senhores como Toniquinho Batuqueiro, que eu chorei três dias indo pra lá. Ele falava assim: “Você só traz essa mulher aqui pra chorar?”. Porque eu fiquei emocionada de conhecer ele. A história do senhor Carlão do Peruche. Essas pessoas saberem o meu nome e falar: “Oi Roberta”. Gente como o Renato. O cara sabe o meu nome, ele é meu amigo assim, sabe? Ele anda lado a lado. O Renato Dias. O Renato no palco é uma coisa absurda com o Sinhô Preto Velho. Ele é um cara que saiu do rap, ele foi pro samba e tem uma ética absurda no trabalho, ele e a mulher dele, a Lígia. Então eu os tenho como padrinhos. O Kolombolo busca trazer tudo isso à tona de volta com maior claridade possível. Os CDs da Velha Guarda, a gente tá lançando 12 CDs pela Velha Guarda. Esse ano vai sair o meu. Além desses 12 que estão saindo, que já saíram quatro, tem o meu, tem do Zé Maria, tem do Toinho, Marco Antônio e mais um que tá gravando... E o Quique que tá gravando agora. Tudo gente que é nova no samba, mas que... Ou outros que não são tão novos, mas que nunca gravaram, precisam gravar. Então é legal estar nesse meio. Não da escola de samba, porque eu não gosto do modelo de escola de samba. Sou uma apaixonada pela Vila Maria, mas pela história da Vila Maria, pela história do senhor Dito Caipira que era campineiro. Não pela organização da escola de samba, não pelo jeito que eles tratam as mulheres no samba. Tanto é que eu quero fazer um projeto só das mulheres do samba. Não pro jeito que eles colocam a Velha Guarda como se fosse nada. Imagina, o seu Dito Caipira, o cara pagava aluguel da quadra e não pagava aluguel da casa dele. Aí ele era despejado e tinha que ficar mudando. Ele morou na Vila Maria inteira. Hoje em dia o pessoal da escola nem sabe quem é ele. Bota ele numa mesa do lado do banheiro. Absurdo essas coisas. O Kolombolo é isso, ele dá essa possibilidade de você conhecer e participar de uma coisa legal.
P - Roberta, mais alguma coisa que queria deixar registrado que a gente não te perguntou ou você se esqueceu de falar?
R - Eu tenho certeza que tem um monte, mas eu acho que foi dito o que precisava ser dito desse jeito. E agradecer os meus filhos porque são eles que me dão força pra tá aqui, porque provavelmente eu não estaria mais.
P - O que você achou de contar a sua história? Como que foi essa experiência?
R - Muito louco. Eu tô tonta. Eu tô meio zureta. Eu quero sair daqui e parar num lugar e beber um monte de cerveja assim, pra chorar. Eu vou pra casa chorar porque nem eu aguento a minha história, é muito triste.
P - Imagina. Sua história é linda, Roberta.
R - Muita história triste, mas ao mesmo tempo é muito legal porque, eu vou falar, eu tive muita sorte na vida. Com tudo isso que aconteceu eu tive muita sorte. Eu agradeço todo dia pelo que eu tive. Se não fosse tudo isso eu não ia ser a pessoa que eu sou hoje. Não sei se é grande coisa, mas...
P - Roberta... A gente que agradece. Eu acho que cada um aqui pessoalmente, que escutou a sua história no Museu da Pessoa e todo mundo que vai poder escutar, porque é uma história muito bonita, você pode ter certeza disso.
R - Obrigada. Obrigada a paciência.
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