A TEVÊ A CORES
Havia mudado há pouco tempo para o nosso bairro, mas propriamente para nossa rua, uma família oriental, que vimos descobrir serem japoneses. O bairro não era território nipônico. Havia apenas o Seo Shigueo que era dono de uma tinturaria ali próxima e portanto elemento bem aceito pelos excelentes préstimos à comunidade local. Assim, essa família tornou-se uma coisa exótica, uma raridade no meio de tantos portugueses, italianos, árabes e seus descendentes.
De tanta curiosidade, eu e meus amigos, crianças ainda, começamos a nos interessar pela presença da família oriental. Será que têm filhos? Será que são crianças como nós ou são guerreiros implacáveis dos incas venuzianos, que vivem lutando contra o Nacional Kid (leia-se Nationaro Kido)?
Enfim, a presença daquela família aguçou a curiosidade geral. O que estariam eles ali fazendo? Seriam espiões em prol dos interesses de outros bairros, especialmente o da Liberdade? Estariam eles ali recolhendo amostras do solo, ou talvez, vendo os serviços públicos disponíveis para copiar, como bons piratas asiáticos?
Nossa angústia aumentava à proporção de nosso insucesso na obtenção de informações sobre os intrusos. Nada chegava a nós. Tanto nós como a turma da parte baixa da rua não conseguíamos acesso a nenhum vestígio de atividade nociva da família.
A única coisa que sabíamos é que saiam de manhã de casa para o trabalho e só retornavam à noite, como todas as famílias por ali faziam. E ao retornarem a sua casa, ligavam a televisão, como todos costumávamos fazer.
Mas algo estranho havia naquela casa. A luz que víamos, que traspassava a porta de vidro bolinha da sala, que da rua percebíamos irradiada da televisão, era diferente. Era colorida.
Falavam na época que nos países adiantados as transmissões de tv já eram em cores. Estados Unidos, França, Alemanha e Japão, diziam, já dispunham do sistema.
Então matamos a charada. Eles, como bons...
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Havia mudado há pouco tempo para o nosso bairro, mas propriamente para nossa rua, uma família oriental, que vimos descobrir serem japoneses. O bairro não era território nipônico. Havia apenas o Seo Shigueo que era dono de uma tinturaria ali próxima e portanto elemento bem aceito pelos excelentes préstimos à comunidade local. Assim, essa família tornou-se uma coisa exótica, uma raridade no meio de tantos portugueses, italianos, árabes e seus descendentes.
De tanta curiosidade, eu e meus amigos, crianças ainda, começamos a nos interessar pela presença da família oriental. Será que têm filhos? Será que são crianças como nós ou são guerreiros implacáveis dos incas venuzianos, que vivem lutando contra o Nacional Kid (leia-se Nationaro Kido)?
Enfim, a presença daquela família aguçou a curiosidade geral. O que estariam eles ali fazendo? Seriam espiões em prol dos interesses de outros bairros, especialmente o da Liberdade? Estariam eles ali recolhendo amostras do solo, ou talvez, vendo os serviços públicos disponíveis para copiar, como bons piratas asiáticos?
Nossa angústia aumentava à proporção de nosso insucesso na obtenção de informações sobre os intrusos. Nada chegava a nós. Tanto nós como a turma da parte baixa da rua não conseguíamos acesso a nenhum vestígio de atividade nociva da família.
A única coisa que sabíamos é que saiam de manhã de casa para o trabalho e só retornavam à noite, como todas as famílias por ali faziam. E ao retornarem a sua casa, ligavam a televisão, como todos costumávamos fazer.
Mas algo estranho havia naquela casa. A luz que víamos, que traspassava a porta de vidro bolinha da sala, que da rua percebíamos irradiada da televisão, era diferente. Era colorida.
Falavam na época que nos países adiantados as transmissões de tv já eram em cores. Estados Unidos, França, Alemanha e Japão, diziam, já dispunham do sistema.
Então matamos a charada. Eles, como bons orientais, tinham esse equipamento. Deviam ser os únicos no Brasil com tv colorida.
A notícia se espalhou pela rua. Talvez pelo bairro todo. Tínhamos um vizinho japonês que possuía a fantástica tv em cores
Todo mundo da vizinhança, quando passava pela calçada, tentava espreitar sala a dentro para ver a novidade, mas só viam o sombreado colorido na porta de vidro. Notávamos até a presença de pessoas que não costumavam circular por aquele pedaço, com certeza, atraídas pelo fato. Mas ninguém alcançava o intento de ver as imagens nítidas do aparelho. Achávamos até que seus proprietários, os nipônicos, procuravam ao máximo ocultar o fato, dificultando nosso olhar indiscreto.
Até que uma noite, quando voltava para casa, ao olhar para aquela porta que sempre atraia nossa atenção, percebi que se encontrava meio aberta. Era a grande chance Me aproximei do portão externo, me agachando para não ser descoberto e pude ver com meus próprios olhos.
Por um instante não pude acreditar. Fixei o olhar para não me enganar. Tinha que testemunhar aquilo. E o que vi?
Um televisor marca Emerson, móvel de madeira, com quatro pés palitos, nos moldes dos modelos da época, com uma folha de celofane listrada de várias cores na frente da tela, dando o efeito luminoso colorido à imagem.
Era essa a alta tecnologia japonesa que todos imaginavam já a disposição de nossos novos vizinhos. Da papelaria diretamente para o televisor deles
ANDRAUS E JOELMA
Tenho por princípio só falar de coisas boas. E penso que o espírito deste site, e ele tem mostrado isso, é fazer as pessoas reviverem seus passados, em épocas distantes, para uns mais para outros menos. E é através destes relatos que temos trazido à tona as boas recordações da vida, pois como diz o saudoso poeta: “Recordar é viver”.
Sempre que surge uma oportunidade falo do site para meus amigos. E outro dia inclusive, fui almoçar com um deles, que há muito não via, desde os tempos de escola.
Como ele trabalha na prefeitura naquele prédio do Andraus e eu também trabalho no Centro, coincidentemente, próximo ao Joelma, combinamos de nos encontrar em algum restaurante em algum ponto intermediário para almoçarmos e colocarmos os assuntos em dia.
Nesta fase da vida, a sugestão só podia ser de nos encontrarmos em um restaurante. Já houve tempo em que nos encontraríamos em algum barzinho, mas agora estamos mais para restaurante mesmo. Mas melhor assim. Imagine se marcássemos em alguma sala de espera de consultório médico
O José Carlos, esse velho amigo, continua igual. Tá certo que graças ao Grecin 2000. Mas continua alegre e espirituoso. Me falou de a quantas anda a vida e eu também lhe passei o relatório. Horário correndo, afazeres a cumprir no turno da tarde, pedimos o cafezinho e a conta. Daí me dei por conta que trabalhávamos em locais marcados pelas maiores tragédias de São Paulo: os incêndios do Andraus e do Joelma.
Não vou aqui ficar recordando o que foi isso, apesar daquelas dramáticas cenas estarem ainda muito nítidas na minha memória. E o Zé também se esquivou de falar sobre. Mas acabei lembrando do Ìndio, gerente do estacionamento onde eu deixo meu carro, na Rua Alvaro de Carvalho, em frente ao Joelma.
Certa vez, perguntei ao Índio se ele se lembrava daquele trágico dia. Lógico, me respondeu de pronto, e que jamais esqueceria aquelas cenas todas, que passou a me contar. Sua riqueza de detalhes na descrição das coisas que vira era impressionante. E a medida que ia falando, parece que eu via a transmissão da tevê, forma pela qual acompanhamos em casa aquele triste episódio.
Como disse não quero relembrar essas cenas aqui. Mas com certeza, faz parte do acervo de imagens das grandes tragédias que a revelia mantemos em nosso cérebro, como a mais recente do(s) dia(s) 11 de setembro, essa em especial, fruto da bestialidade e do escárnio da mente humana, e que pedimos a Deus que nunca mais tenhamos outra igual.
Num certo momento da descrição dele, eu, já enfastiado e agonizado de relembrar tudo aquilo, o interrompi. E perguntei qual tinha sido a cena mais impressionante ou sobrenatural que ele tinha visto naquele dia. Na verdade a pergunta tinha um fundo de curiosidade minha, sabendo que ele era descendente direto de índios e sempre me manifestara sua crença em ritos e princípios espirituais indígenas e conceitos afros incorporados. Ele então me disse de ter visto no meio daquele caloréu todo, das labaredas que saiam pelas janelas do prédio e a aflição das pessoas, um homem de camisa social branca de mangas arregaçadas e gravata de nó afrouxado, calmamente fumando um cigarro, com uma perna apoiada no parapeito de uma janela, o paletó sobre essa perna, olhando e aguardando sua vez de ser socorrido pela escada Magirus do Corpo de Bombeiros.
Diante desse relato, eu tornei a perguntar o que ele achava que era aquilo, aquela impavidez daquele homem se distinguindo no meio de tanto desespero. Ele não titubeou para dizer que aquilo era “corpo fechado”. E me disse que aquele homem fora salvo.
Na visão do Índio, com todo o meu respeito, era impossível aquele homem agüentar aquela caloria do incêndio se não tivesse uma proteção espiritual.
Contei esse fato ao Zé Carlos, meu amigo, também na curiosidade de saber dele se no prédio em que ele trabalha, o Andraus, corre alguma história de almas que voltam aos locais de suas tragédias ou coisa parecida.
O Zé muito reticente não quis fazer grandes comentários. Apenas disse que as pessoas que ficam após o horário, faxineiras e vigias, às vezes, ouvem coisas. Talvez ouçam realmente, ou talvez seja fruto da imaginação. Mas o próprio Zé, meu amigo, professor universitário, me disse que já presenciou um fato intrigante.
O décimo oitavo andar do prédio já de bom tempo está desocupado. O Zé, por algumas vezes já vira o elevador parar naquele andar, sem que ninguém o tivesse chamado ou apertado o botão dezoito no painel. A porta se abre mostrando o andar todo escuro e desocupado e se fecha em seguida, como se desse tempo suficiente de alguém entrar ou sair do elevador.
Perguntei ao Zé como ele via aquilo. Ele preferiu deixar a resposta por conta de nossa imaginação ou de nossas crenças.
BOLEIROS
Boleiro é boleiro sempre, em qualquer campo, em qualquer lugar, com chuva ou com sol, com qualquer tempo. Sempre está correndo atrás de uma bola, quando não, o contrário, é a bola que corre atrás dele.
Tenho muitos amigos boleiros, mas um em especial, o Nelsinho, merece ter sua história contada, mesmo porque boa parte dela eu posso atestar, pois sempre batia uma bolinha com ele. Mas na minha pouca pretensão de ser um boleiro igual, nem me esforçava para chegava aos seus pés, melhor, às suas chuteiras. Minto, pretensão até tinha. Mas o bom Deus não me privilegiou com essa ferramenta, pois isso é um dom que vem com cada um.
Todo domingo de manhã a turma se reunia no campo do Juventude da Cidade Líder, lá pros lados de Itaquera. Eu, apesar de ser de outros lados, diga-se de passagem, bem do outro lado, de vez em quando dava as minhas caras por lá. Ou era convidado ou me fazia convidar, só prá poder bater uma bolinha com eles.
Na verdade, a bola era o de menos, pois, como disse, nunca tive esses dotes exigidos ao bom desempenho dentro das quatro linhas. O que me atraia mesmo era a conversa da turma, aquelas horas de entretenimento, de bate-papo e, sobretudo, daquele líquido cor de ouro: a cerveja. Aliás, a medida que a cerveja rolava, ou melhor descia redonda como uma bola, o bate-papo fluía mais descontraído, indo desde o futebol, o time predileto de cada um, até os últimos fatos políticos, acompanhados dos mais abalizados comentários e críticas radicais, de fazer inveja ao Boris Casoy. Daí pode se inferir a temperatura de nossas conversas, felizmente resfriadas pela cerveja sempre bem gelada.
Mas voltando aos boleiros, a várzea, e o Juventude era um claro exemplo dela, é pródiga nesses amantes despojados da prática mais rudimentar do futebol. Despojados de tudo, de fardamento (como diria meu avô), de condição física dos jogadores, de condições adequadas de gramado (grama? aonde?), de rede em bom estado de conservação (sempre muito furada e remendada), de trave pintada e bem conservada, de marcação a cal, de baliza nos escanteios etc. Mas, em compensação, sobrava disposição do pessoal para o jogo e geralmente muita gente apinhada nas laterais do “gramado”, acompanhando os lances cômicos nas divididas de bola ou na corrida desembestada do ponta-de-lança (posição inexistente no futebol atual, mas ainda de destaque na várzea).
A disposição da turma era tanta que raramente não havia um ou dois jogadores machucados no final das partidas. Mas daí, tinha a semana inteirinha prá se recuperar para a próxima rodada, no próximo fim de semana. E lá estavam eles totalmente recauchutados para novos machucados, através de tratamento próprio, receitas caseiras e da mão santa do Seo Manoel, massagista do time, que lembrava um pouco o Mário Américo, eterno anjo-massagista da seleção brasileira.
O Juventude era sempre composto pelos mesmos jogadores, mas todo domingo o desafiante era um diferente. Eram times igualmente desprovidos de tudo, como o Juventude. Era o Benfica da Vila Maria, o Independente, o Democratas, o Acadêmicos, o Aliança, o XV (em romano) de Novembro, o 7 de Setembro, o Sporting – repararam como time de várzea tem sempre os mesmos nomes, Corinthians, por exemplo, deve ter uns quinze por aí.
Vinham de outras vilas com muita disposição para a disputa e a rodada de cerveja garantida por quem perdia. Parece que disputavam a hegemonia territorial, quem era o melhor do pedaço. Daí a turma se matava em campo. Tudo por beber de graça, digo, às custas do time perdedor. E às vezes era o Juventude, mas geralmente era o convidado, pois no campo do Juventude, o árbitro fazia o resultado. A menos que o adversário fosse visível e infinitamente superior. Mas isso raramente acontecia, pois a diretoria, encabeçada e composta exclusivamente pelo João Negrão, sabia escolher os adversários, geralmente bem mais fracos, e modéstia a parte, o Juventude era bem mais time.
O João Negrão não era só diretor não. Era também tesoureiro, técnico, preparador físico, roupeiro e pai dos jogadores. Dava conselhos, recomendava namoro, emprestava dinheiro e cobrava disciplina de cada um, dentro e principalmente fora do campo. Se soubesse que algum daqueles seus pupilos tinha saído da linha durante a semana, no domingo a bronca era inevitável. Nem escalava o cidadão para o jogo. Ele era um grande anjo da guarda de todo mundo. Com sua sabedoria e à sua maneira era sempre muito ouvido e respeitado.
Mas a turma ultimamente já andava meio cansada de jogar sempre com os mesmos times. Era aquela mesmice e o nosso grande “manager”, o João Negrão, sacando essa desmotivação geral, numa brilhante tacada de marketing, resolveu estreitar o relacionamento com alguns amigos cariocas, que também comandavam o futebol periférico por aquelas plagas. Entrou em contato com um deles, um tal de Marechal que chefiava um time chamado Ameriquinha, de Engenho de Dentro. Seria um grande confronto Rio-São Paulo do futebol de várzea, como sempre soe ser, na rivalidade interestadual dessas duas unidades da federação.
O João reuniu todo o time e comunicou que no próximo final de semana iriam disputar uma partida contra um dos mais fortes clubes do futebol carioca e que, pela importância da partida, seria necessária uma preparação físico-tática durante a semana, fato novo para todos, já que eles nunca haviam treinado.
A notícia foi recebida com muito entusiasmo, pois quase ninguém dali houvera tido a chance de conhecer o Rio. Mas, ao mesmo tempo, houve um protesto geral pela novidade do treino. Muitos jogadores alegavam que não era necessário treino nenhum, visto todos ali se conhecerem de longa data, de saberem as “mumunhas” de cada um e que o time era muito bem entrosado, etc e tal. Mas o manager, como um grande dirigente déspota, não abriu mão de sua posição, principalmente pelo fato de que haveria a presença de um meia-direita novo na equipe, um tal de Adauto, que segundo ele, o João, seria a solução para os problemas de armação de jogadas, de falta de criatividade e de combatividade do meio de campo.
Todo mundo ficou quieto, pois quem ousaria contestar as decisões do todo-poderoso João Negrão, inda mais em véspera de viagem pro Rio. Mas pairava uma dúvida no ar. Quem era esse tal de Adauto, que ninguém nunca ouvira falar? Será que era esse cracasso todo? E na opinião geral, o Nelsinho, que não era lá nenhum Gerson, tampouco um Zidane, bem que dava conta do recado.
Discussões e dúvidas a parte, a semana transcorreu com muita ansiedade e expectativa. Todo mundo queria jogar no Rio. Só o Nelsinho é que estava meio cabisbaixo e muito p. da vida, mas fazer...
O tal de Adauto até que deu as caras por lá e até que tinha pinta de boleiro, e daqueles convencido, arrogante e presunçoso. Pouco ou quase nada conversou com a turma e nem chegou a treinar junto. Só ficou de fora observando o time.
Na sexta-feira, às onze da noite, o ônibus encostou na “sede” do clube, carregou todos os jogadores e tralhas e zarpou rumo ao Rio. O jogo seria no domingo pela manhã, onze horas, mas a turma não podia perder a oportunidade de conhecer a Cidade Maravilhosa, e assim teriam o sábado todinho prá isso.
E assim foi....Corcovado, Pão de Açúcar, Aterro do Flamengo, Copacabana, Leblon, Ipanema, Tunel Dois Irmãos, Barra, e muita gente já perguntando do Maracanã. Esse era inevitável. O Maracanã, templo maior do futebol, local de muitas glórias e craques. Dúvido que houvesse ali alguém que não tivesse ao menos sonhado um dia jogar no Maraca.
Depois de rodar a cidade em seus pontos turísticos, inevitável era um banho de mar, até prá tirar a uruca, curar da manguaça e energizar a turma pro jogo no dia seguinte. E quase todos entraram na água. Menos o tal do Adauto, prá não se misturar, lógico, e o João Negrão que tinha que controlar a turma e os horários.
À noite, ficaram sabendo que não havia um local reservado para dormir, afinal a verba era pouca. Passariam dormindo à noite no próprio ônibus. Muitos optaram, a revelia do João, passar a noite em algum boteco, já lá próximo ao local do jogo, no Engenho de Dentro. O João, apesar de preocupado, não teve como evitar isso e confiou nos seus pupilos, que eram afeitos a essas noitadas de farra e jogos na manhã seguinte. O time parece até que rendia mais.
Dia seguinte, a grande partida. O campo não era muito diferente daquele do Juventude. Nada de grama, nada de marcação, rede tão furada quanto, nada de nada. Nada que fizesse a turma estranhar. A ansiedade aumentava até a hora do jogo. Coração batendo forte, cada vez mais.
Desceram todos já vestidos do ônibus e caminharam rumo ao campo. Havia uma grande e inóspita torcida local, que recebeu-os com muita vaia. O time do Ameriquinha era muito parecido a todos os adversários do Juventude. Nelsinho inconformado, sentou-se no banco de reservas e olhava com desdenho práquele tal de Adauto, que lhe roubou o lugar.
Juiz apita, começa a partida. Já quase dez minutos de bola rolando, bola ia, bola vinha e nada acontecia. O Adauto ainda não tinha tocado na bola. Como um jogador de meio de campo não participa do jogo? Boa pergunta. Os jogadores e o banco de reservas começam a olhar meio esquisito prá aquilo.
Finalmente, primeiro lance do Adauto, lançamento pro lateral direito, um chutão sem direção prá fora do campo. João Negrão diz pra todo mundo que ele ainda está frio.
Segundo lance do “cracasso”, bola dividida com o meia do Ameriquinha, falta na entrada da área do Juventude. Por sorte o jogador deles era ruim e na falta cobrada a bola passou longe do gol. Mas a turma começou a pegar no pé do tal do Adauto e do João Negrão.
E aí foi se sucedendo uma porção de divididas e passes mal feitos pelo tal Adauto. Todo mundo começou a perceber que ele não entendia nada do negócio. E o João Negrão já sem desculpa. Até que saiu o gol do time adversário. Um a zero pro Ameriquinha.
Acaba o primeiro tempo e até que o um a zero estava de bom tamanho, pelo deficiente futebol apresentado pelo Juventude. O Ameriquinha já merecia estar ganhando de mais. E a turma no barracão-vestiário passou a reclamar com o técnico a presença do Nelsinho no lugar do Adauto.
O juiz chama para o início do segundo tempo. Os dois times entram em campo com as mesmas formações.
Oito minutos de bola rolando, escanteio para o Ameriquinha. Bola içada na área, o Adauto não sobe, o zagueiro do Ameriquinha cabeceia e gol. Dois a zero.
Todo mundo olha pro Adauto, olhares de recriminação. O cara não jogava nada. Olham pro banco de reservas clamando providências ao João Negrão, que imediatamente chama o Nelsinho para o aquecimento. Dá-lhe as instruções, ao pé-do-ouvido (tipo, vai lá e mostra o quê você sabe). Adauto é finalmente substituído.
O Nelsinho entrou com vontade, tanto que na primeira bola, colocou o ponta-de-lança cara a cara com o goleiro. Só não foi gol por capricho. Mas o time não era mais o mesmo. A saída daquele elemento estranho e principalmente a entrada do Nelsinho, deu outra dinâmica ao grupo, que já esboçava uma reação.
Terceira jogada do Nelsinho, lançamento para a direita, cruzamento da bola na área, cabeceio entre zagueiros e gol. Dois a um.
Mais quatro, cinco lances, Nelsinho mostrando qualidade, se aplicando como nunca. Falta na entrada da área. Quem vai bater? Nelsinho, lógico. Chute de três dedos, com efeito, meia distância. Bola colocada no canto esquerdo superior do goleiro. Golaço....Dois a dois.
O tal do Adauto diminuiu no banco de reservas e até saiu pro barracão prá se trocar.
Juiz olha o cronômetro. Quarenta e cinco minutos. Placar de bom tamanho. Ninguém ganha, ninguém perde. Garantia de um churrasco harmonioso com confraternização entre as equipes. E o nosso grande Nelsinho, consagrado
Rolou muita carne, muita cerveja e até um pagode bem animado. Já era hora de tomar o ônibus de volta prá Sampa.
Todos entraram muito alegres, não sei se pelo passeio ou se pelo resultado da partida. O único que não participou da farra foi o Adauto, que foi a viagem inteirinha sentado na cabine do motorista sem contato com ninguém. E o Nelsinho era o jogador mais festejado.
Bem, fiquei sabendo dessa história contada pelo Nelsinho, meu grande amigo boleiro, e confirmada pelos demais jogadores do Juventude. E quando do meu primeiro encontro com o João Negrão, fiz questão de lhe perguntar aquilo que todos queriam saber e ele não revelou a ninguém: Qual o motivo da escalação daquele tal de Adauto, um verdadeiro perna-de-pau.
O João Negrão relutou em responder. Mas depois de quase uma caixa de cerveja e umas boas doses de pinga, me chamou de canto, conversa de pé-de-ouvido e me disse:
- Sabe o que é? O pai do menino é meu “cumpadre” e me pediu prá escalar o filho no jogo.
- É mas até ai.., quase comprometeu, né- eu observei.
- Eu sei – ele retrucou, e continuou – é que o “cumpadre” era o dono do ônibus.
- Ah, já entendi.
Esse é o João Negrão, xará do João Havelange. Os dois grandes managers do futebol. Um do internacional, o outro da Cidade Líder.
CANDIDATOS
Mais uma eleição chegando. E a cidade, que já é um verdadeiro caos visual, esta sendo emporcalhada com tamanha quantidade de cartazes e faixas dos candidatos. E não adianta a mídia, jornais, rádios e tevês, implorarem para que se preserve a cidade. Não adianta fazerem campanha na tevê para eleger o candidato mais porco, o maior poluidor, coisa e tal. A voracidade pelo voto sobrepuja esse clamor. E todos os meios de divulgação do ignóbil cidadão a ocupar a tão almejada cadeira pública são disputados com todo o afinco.
Não perdoam absolutamente nenhum espaço livre, tais como muros de terrenos, out-doors, postes de iluminação, grades de viadutos. E se o logradouro público é de grande fluxo de pessoas, aí sim é que a disputa torna-se incontrolável. É faixa sobre faixa. Mal colocam uma, em seguida há outra turma de outro candidato para fixar a sua. E com tudo isso, quem sofre somos nós, com toda essa porcalhada enfeiando nossos bairros.
E parece que quanto mais anônimo o cidadão, mas ele se utiliza desse meio de divulgação. Prá nossa tristeza, são nomes totalmente desconhecidos que nada tem a acrescentar no debate político e na defesa dos interesses da coletividade, numa falsa representatividade popular. Fazem da vida pública, uma maneira de traficar influência em benefício próprio, exclusivamente.
Mas se esse é o lado nebuloso da coisa, há o lado picaresco. Picaresco tanto pela total falta de consistência do pretendente ao cargo, como pela própria forma de protesto contra essa bandalheira geral, essa imagem denegrida que a classe política passa para nós, réles eleitores, embasada nos casos de corrupção e malversação do erário, fatos constantes nos noticiosos.
Nas eleições de 1959, São Paulo teve um literalmente forte candidato à vereador: um rinoceronte. È, rinoceronte e com nome curioso: o Cacareco. Tão forte que foi o mais votado entre coincidentemente 450 candidatos. Cento e cinco mil eleitores sufragaram o seu nome. Era o voto protesto na figura de um dos maiores membros do reino animal. Era a projeção do imaginário popular confiante num animal desse porte para combater os problemas de grande porte da nossa cidade: transporte coletivo, problema habitacional, favelas, lei de zoneamento, escolas e creches, problemas esses jamais resolvidos pelos vereadores bípedes, totalmente desacreditados junto ao povo. Era o contraponto aos demais candidatos, verdadeiras antas, que nada fazem por seus eleitores.
Na década de 80, o Rio sofrendo da mesma vicissitude paulistana, também lançou seu candidato do reino animal. Desta vez, um primata: o macaco Tião. E a semelhança de nosso Cacareco, teve a mais expressiva votação: quatrocentos mil votos. Sua simpática imagem de símio sorridente, com aquela boca cheia de dentes, despertou no eleitorado a confiança na solução dos problemas daquela cidade.
Talvez esses dois representantes do reino animal, se eleitos fossem em seus respectivos municípios, tivessem feito boa figura no meio dos elementos do reino político. Talvez representassem o eleitorado com mais dignidade e comprometimento que os muitos vereadores assentados nas duas Câmaras Municipais. E quem sabe, até tivessem propostas políticas de defesa do meio ambiente, o Cacareco com algum plano de recuperação do Tietê e de proteção dos nossos mananciais hídricos, preservando matas ciliares e nascentes de rios e o Tião com a despoluição da Baía da Guanabara.
Ainda lembro de outros candidatos. Alguns que se aproveitaram de suas popularidades como artistas, radialistas e jogadores de futebol. Desses, alguns conseguiram o almejado lugar e de alguma forma até contribuíram no processo político. Mas a grande maioria...
Lembro do Biro-Biro. Conhecia tudo dentro de campo, mas no campo político foi uma nulidade. Lembro do Éder Jofre, brilhante boxeador campeão do mundo, mas que durante seu mandato não desferiu nenhum golpe contundente na briga pelo interesse público.
Se esses eram populares e conhecidos, alguns outros são verdadeiros anônimos, mas pela uso de eficientes táticas de marketing acabam se tornando igualmente famosos. Por exemplo, os que adotam slogans esdrúxulos, ou simplesmente uma frase de efeito. Quem consegue esquecer do MEU NOME É ENEAS, ou do Eymael o democrata cristão, com aquele jingle de irritar até freira.
E este ano então, não será diferente. Sei até que o Bozo já se lançou candidato. Essa simpática figura, senhor absoluto no mundo circense, mas que, se eleito for, é capaz de transformar a nossa egrégia casa parlamentar num picadeiro. E querem saber seu slogan: Palhaço por palhaço, votem no verdadeiro
Talvez ele esteja certo, infelizmente
CASAMENTO DO KOBA
São Paulo é uma cidade de muitas colônias. E alguns bairros têm marcas profundas da presença delas. O bairro da Liberdade talvez seja o que se mantém mais caracteristicamente marcado, no caso, pela colônia nipônica.
Apesar dessa certa demarcação territorial das colônias, algo mágico aconteceu em São Paulo. Alguns bairros não se caracterizaram pelo domínio de um ou de outro povo. No bairro onde nasci e cresci (Pinheiros), por exemplo, não havia a dominância de nenhuma etnia. A minha rua era uma verdadeira torre de babel. Conviviam ali, italianos, portugueses, espanhóis, árabes, israelenses e alguns japoneses.
Um deles foi um grande amigo de infância: o David Kobayashi. Pela nossa grande amizade eu o chamava-se de Koba.
Eu e o Koba éramos carne e unha, caniço e samburá, sushi e sashimi. Onde ia o Koba, lá estava eu junto. Éramos mais que amigos, éramos irmãos.
Estudávamos em escolas diferentes, mas sempre no lazer estávamos juntos. Futebol, ele palmeirense, eu são paulino, mas íamos ver o Santos do Pelé. Cinema, ele ficção científica, eu comédia. Mas íamos ver épicos.
Até que a família dele mudou-se do bairro. E como tudo em São Paulo é distante, nos afastamos. Mas a amizade continuou, como toda boa amizade. Nos falávamos de tempo em tempo por telefone. E às vezes nos encontrávamos. Aniversários nossos e de outros amigos.
Programas em comum. Ele conheceu novos amigos, eu continuei com os da rua. Mas mesmo assim, continuamos amigos.
No fim do colegial o Koba foi aprovado no vestibular para veterinária, no interior, Jaboticabal. Eu continuei por aqui na Capítal, trabalhando e estudando também. Ele morava em república e solidificou novas amizades. Eu cultivei também novos amigos na faculdade, todos metropolitanos. O Koba tinha amizades de vários cantos. Nem por isso ficamos menos amigos, mas nos encontrávamos raramente.
Ele enfim se formou e eu também. Cada um na sua atividade. Ele, atrás de trabalho, prá mais longe acabou indo. Continuamos nos comunicando, mas nunca mais nos encontramos.
Embora há uns quinze anos sem vê-lo, acompanhei-o todo esse tempo, até que ele conheceu sua cara-metade. Coincidentemente uma moça daqui da Capital. E me convidou para seu casamento. Eu já estava casado.
Sábado determinado, dezenove horas, dia acabando, noite chegando, igreja cheia, casamento do Koba e sua noiva, por mim desconhecida. Ao chegarmos à igreja, eu e minha mulher, pelo tempo que não me encontrava com meu amigo, não reconheci ninguém. Nem mesmo os familiares dele, lá presentes eu reconheci. Também há tanto tempo sem vê-los pudera. As novas amizades dele também não as reconheceria mesmo. Muitos japoneses na igreja. A noiva, a exemplo do Koba, soube, era nissei. Portanto, nada excepcional tanto japonês na igreja.
Ficamos então, eu e minha mulher, isolados e resignados num canto aguardando os noivos entrarem. De repente, olho pro altar e vejo o Koba lá postado ao lado dos padrinhos, no lugar do noivo que aguarda ansioso pela noiva. Tanto tempo não o via. Até que não mudou muito Parece o mesmo de sempre Diferente de mim, que ando com a minha miopia cada vez mais acentuada. Cada vez enxergando menos.
Tocaram-se os primeiros acordes da marcha nupcial e a porta da igreja se abriu para a entrada da noiva. Caminhou ladeada do pai, suponho, até o altar, onde vi o Koba recebê-la como um presente. Prestei atenção a toda a cerimonia, que me comoveu bastante. Estava ali meu grande amigo de infância, Kobayashi. Me emocionei de vê-lo casando. Grande Koba
Cerimonia encerrada, os noivos se encaminharam para o salão lateral da igreja para os cumprimentos. Eu e minha mulher fomos praticamente carregados pela multidão nipônica que seguia naquela direção. Entramos então na fila, levados pelo fluxo de pessoas. E ali íamos caminhando passo a passo na direção dos noivos para os cumprimentos.
Umas cinco pessoas para chegar ao noivo, reparo no Koba e vejo como está diferente. Aguço o olhar e de repente vejo que está bem diferente. Caio em mim e saio rápido da fila, puxando minha mulher pelo braço. Ela, surpresa, me pergunta se não vou mais cumprimentar os noivos.
Eu rápido e nervoso respondo.
- Lógico que não. – continuo – não é o Koba
- Então quem é? – ela pergunta.
- Ah sei lá. Japonês é tudo igual – respondo meio aturdido e envergonhado da situação.
Saio rápido e sem graça do salão da igreja, puxando minha mulher pelo braço e na calçada dou de cara com o verdadeiro Kobayashi, que chegava para o seu casamento que seria após aquele que eu havia presenciado e até me emocionado.
Dou-lhe um grande abraço saudoso e conto-lhe a confusão de horário que eu fiz. Por instantes damos umas boas risadas, como nos velhos tempos. Como dois grandes amigos.
Faz tempo isso. Famílias constituídas, não mais nos encontramos. Quem sabe você leia essa mensagem e podemos novamente nos encontrar. Mas desta vez, trocarei de óculos.
CONSOLAÇÃO
Tenho que admitir que, boêmio que sou, nunca gostei de acordar cedo. Mas isso vem desde os tempos de menino, quando ainda não era tão fã da noite. Na época era pura obrigação e talvez seja essa a razão. Tinha que acordar todos os dias às seis da matina para ir à escola. Morava em Pinheiros e estudava no Centro. Às vezes, a cama gostosa que estava e o cansaço do dia anterior me faziam perder a hora. E era uma correria só. Trata de tomar banho rápido, colocar o uniforme e correr para o ponto de ônibus, esperando que este viesse ligeiro e o trânsito até a cidade estivesse bom. Fiz isso durante onze anos de escola.
Depois veio a fase do trabalho, onde igualmente tinha que acordar cedo, não mais às seis, mas sim às seis e meia. Você pensaria, que grande diferença, não Meia-hora de cama a mais pela manhã é uma diferença e tanto.
Algo em comum houve nessas duas fases da minha vida: o local. Tanto a escola como o meu trabalho foram e continuam sendo no centro da cidade. Fui morar em outros bairros, já mudei um par de vezes, mas sempre meu destino final foi o Centro. E nesse tempo todo, invariavelmente, tive e tenho que passar por uma das mais antigas vias públicas de São Paulo: a Avenida da Consolação.
Hoje cedo indo novamente para o trabalho, passando por aquela avenida, pensei quantas vezes passei por ali. Como já disse, desde a minha infância, ela tem sido meu caminho. Então, seguramente uma dezena de milhar de vezes. Considerando ida e volta, duas dezenas. Vinte mil vezes. È muita coisa É um número abstrato quase Um cidadão que passa pelo mesmo local, em sua vida, esse tanto. Quantas horas, dias gastei nessa avenida. Talvez um ano somando tudo, ou dois. Se eu contar prá alguém, acho que não vai acreditar. Mas é real
Como essa avenida já fez tanto parte da minha vida E com certeza, não só da minha, mas da vida de milhares de pessoas diariamente De milhões de pessoas, de pessoas de passagem que nem moram aqui. Dos moradores da Zona Oeste que trabalham no centro ou nas outras regiões de São Paulo. De gaúchos indo para o Rio Grande. Do povo do interior à caminho das rodovias (Anhangüera, Bandeirantes, Castelo Branco, Rondon, Washington Luis). De alguns apostadores do Jóquei Clube De todos estudantes do Mackenzie e da Faculdade Piratininga. De muitos estudantes da USP. De alguns estudantes da PUC. De professores e funcionários indo para as faculdades. De todos vestibulandos do Anglo. De muitos outros vestibulandos. Dos corregedores da Polícia Civil. Dos membros do Conselho Regional de Medicina. Dos bombeiros do 2º GB. Dos executivos à caminho dos bancos da Paulista. Dos empresários rumo à sede da Fiesp, também na Paulista. De outros empresários indo para seus escritórios na Paulista ou na Faria Lima. Dos são paulinos da zona leste rumo ao Estádio do Morumbi em dia de jogo. Dos corinthianos em dia de jogo no Pacaembú. Dos palmeirenses rumo ao Parque Antártica. Dos doentes em direção ao Hospital das Clínicas. De outros doentes indo para o Einstein. Dos médicos e assistentes que trabalham em algum dos dois hospitais. Dos alunos da Faculdade de Medicina. Dos médicos que dão aula na faculdade. De famílias indo visitar seus mortos no Cemitério da Consolação. De outras famílias visitando os seus no Cemitério do Araçá. De mais outras famílias indo ao Cemitério São Paulo. De cães doentes indo ao Hospital Veterinário da USP. Dos cinéfilos às salas do Belas-Artes. Dos mesmos cinéfilos à sala da UOL em Pinheiros. Dos antigos boêmios que iam ao Bar Riviera. De outros pouco menos antigos boêmios que iam aos barzinhos da Henrique Schaumann. Dos novos boêmios em busca de algum bar da Vila Madalena. Dos corredores da São Silvestre. Dos repórteres que cobrem a São Silvestre. De consumidores atrás de lustres para suas casas. Do pessoal que trabalha na Serasa. Dos inadimplentes que têm seu nome na Serasa. Dos hóspedes do Hotel Dan e do Paulista Center Hotel. Dos outros hóspedes dos recém-inaugurados Formule One e do Hotel Jaraguá. De advogados apressados rumo ao Tribunal Regional do Trabalho. De estagiários de direito indo para a Defensoria Pública da União. Dos alunos da academia de Jiu-Jitsui e do curso de dança de salão. De fregueses do Sujinho. De fregueses do Mestiço. De pessoas passeando pela cidade. Ou até mesmo de pessoas sem destino apenas passando por ali.
Arrisco até o palpite de que, pelo menos, cada habitante de Sampa já passou por ela uma centena de vezes. No mínimo. E quantos carros e ônibus passam por dia só para transportar toda essa multidão
Eu mesmo, de tanto passar pela Consolação, lembro de ter passado de todo jeito. De carro, como faço atualmente. Mas já passei muito de bonde, na minha infância. De taxi, quando não tinha carro e estava atrasado para algum compromisso. Passei de bicicleta, sem presa, à lazer nos fins de semana. À pé, com menos presa ainda no fim de semana, ou voltando do trabalho, prá me distrair e esfriar a cabeça.
Como essa avenida é importante Que artéria fundamental ela é para a circulação da cidade. Até me faz pensar porque não ela e sim a sua vizinha transversal recebeu o título de “a mais paulista das avenidas”.
Muita injustiça, não Até tento uma explicação. Talvez porque não tenha o glamour da outra. Talvez porque o poderio econômico que definiu a votação tem sede na sua rival. Ou talvez por ela não estar tão embelezada e com vasos floridos em seus postes de iluminação.
Pode ser também, por não ter querido ou podido acolher os manifestantes de todos os momentos, de grevistas reivindicando melhores salários a torcedores de clubes de futebol comemorando algum titulo, e agora, até mesmo mostrando tolerância em receber os adeptos de outras preferências sexuais, na tal parada gay.
Há ainda os que consideraram a possibilidade da inclusão de uma terceira competidora, uma prima mais nova das duas outras avenidas, aliás bem mais nova: a 23 de Maio. Poderiam dizer que ela é muito mais importante para a cidade, pelo fato de receber um fluxo bem maior de carros. Poderiam dizer que liga a zona norte à zona sul. Poderiam dizer que é dela que fazem as imagens para a televisão em dias de congestionamento. Mas essa importância se restringe a isso. Seria muita petulância dessa nova contendora, com base nesses atributos, pleitear para si esse honorário título. Como pode uma avenida tão insípida querer para si isso. Como pode uma via que só recebe carros e não apresenta nenhum sinal de vida em suas calçadas, querer isso. Como pode essa via com tão pouca história brigar por esse título. E repare que até mesmo as edificações que ela abriga lhe dão as costas.
Continuando nas razões da preterição da nossa querida avenida, tento entender que culpa teve ela de ter recebido uma estação reservatória de água e um cemitério. De ter borracharias e oficinas mecânicas ao invês de museu, estações de rádio, linha de metrô, antenas de televisão, sedes de bancos, livrarias finas e lanchonetes modernas.
Acho que não foi por opção dela. Ela foi na verdade compelida a isso, contingência natural de sua topografia. Fosse ela mais regular, menos sinuosa e mais plana, a todos acolheria com prazer e tenho certeza que esse título seria dela.
De qualquer forma, sobra-lhe o consolo de ser a assistente direta da sua arqui-rival. No fundo acho até que se consola de ser sua melhor vizinha. Se consola de ser sua melhor confluência quando o trânsito aperta.
Portanto, não é à toa esse nome: Consolação.
NA CALÇADA DA FAMA
São Paulo é realmente uma cidade fantástica.
Um dia, um colega de trabalho, retornando do almoço, nos disse que tinha acabado de ver a Kim Bassinger num restaurante. Nós todos do escritório começamos a caçoar da notícia.
- E ela, te pediu um autógrafo? – um perguntou
- Ela pediu teu telefone? – outro retrucou
Ele insistiu que era ela mesma. Estava à mesa com um sujeito que parecia o pai da Mônica, o Maurício de Souza, no “Gato que Ri”. Que estória mais inverossímil A Kim Bassinger, aquela louraça de Hollywood, aquela boca sensual, numa mesa almoçando com o pai da Mônica, aquela dentuça, num restaurante chamado “O Gato que ri”. É brincadeira
Dia seguinte, estou eu logo cedo no escritório folheando o jornal, quando uma pequena nota numa daquelas colunas sociais que costumamos ver rapidamente, trazia a informação da presença de uma glamorosa atriz que estaria interessada em levar o “Parque da Mônica” para os EUA. Nossa petulância caiu por terra e nosso colega pseudo mentiroso se vangloriou do fato de tê-la visto, exigindo nossa retratação.
Daí passei a pensar que só numa cidade como São Paulo, de repente a gente acaba se deparando com esses verdadeiros símbolos que vivem habitando nossos sonhos.
Lembrei então, do caso de um outro amigo, o Armando, que teve uma passagem muito curiosa. Se eu disser que ele, pessoa comum como eu, cantou simplesmente com o Frank Sinatra, ninguém acreditaria. Mas é verdade Aconteceu no 150 Night Club, no Maksoud. Acho que foi a primeira vez que o Frank Sinatra vinha ao Brasil. Lá pelas tantas, naquela maravilhosa apresentação do “The Voice”, o Armando cheio de coragem e uísque, pediu ao Frank que cantasse uma música do início de sua carreira. Frank Sinatra se surpreendeu com o pedido, dizendo não se lembrar da letra. Então, convidou o Armando para cantar a música. Ele, sem pensar duas vezes, subiu ao palco e fez o Frank se recordar, iniciando a canção. Logo estavam os dois cantando. Frank Sinatra fazendo a voz principal e o Armando a segunda voz. Mas por instantes o Armando, com toda a emoção do momento e todo aquele uísque ingerido, acabava tomando o lugar da atração. Final da música, foi só aplauso, pro Armando é claro
Eu mesmo me recordo de ter passado por essas situações. Uma vez estava na feirinha do Masp olhando uns relógios antigos, quando reparo ao meu lado ninguém menos que o Kenny Rogers. Até olhei para o lado dele para ver se estava com a Dolly Parton. Mas não, estava só. Logo que saiu da banca onde estávamos, o rapaz ao meu lado me perguntou se realmente era ele. Se não fosse era muito parecido. Mas logo veio a confirmação. Uma senhora mais efusiva se aproximou do ídolo e o cumprimentou. Logo a notícia se espalhou pela feirinha. E lá se foi o sossego do nosso artista. Era um tal de lhe pedirem autógrafo.
Em outra ocasião, eu estava sentado num daqueles barzinhos da Benedito Calixto, num sábado de feirinha, quando passou por mim uma tremenda mulata, alta, esguia, linda, com outras duas moças, igualmente belas e altas. Sentaram-se e pediram água em mau português. Notava-se que eram turistas. Na hora não identifiquei a moça, que tinha um rosto um tanto familiar. Já a vi em algum lugar. Dia seguinte li nos jornais que se tratava da Naomi Campbell, que viera para o Grande Prêmio Brasil de Fórmula I.
Com essas e com outras é que percebemos como é incrível esta cidade. Até brinco com um amigo de Bambuí, Minas Gerais. Esses ícones circulam por aqui como cidadãos comuns. De repente estão ao nosso lado, fazendo compra, almoçando, passeando. Lá em Bambuí, duvido que ele tenha uma chance dessas. Isto é São Paulo
NOMES NAS ELEIÇÕES
Mais uma vez me sinto atraído a falar em nomes. Sempre tive interesse de saber a origem das denominações e o porquê dos nomes e apelidos das pessoas. E no caso agora das eleições, essa curiosidade se aguçou mais ainda. Mesmo porque tem surgido alguns casos muito pitorescos no afã de cada candidato fazer-se lembrado, visando nosso precioso voto, mesmo intencionados a nos desprezar e nos esquecer depois de eleitos.
È até natural que os candidatos procurem visibilidade e reconhecimento maiores possíveis nessa feroz disputa por um assento na casa legislativa da nossa municipalidade (bonito isso, parece até político discursando).
Para isso, tentam aproveitar ao máximo sua exígua aparição na telinha, tão mínimo tempo que até já virou motivo de piada. Também pudera exibir a plataforma política, se é que eles têm alguma, de 1214 candidatos não é mole não. Assim a coisa fica cômica mesmo. Aparece a cara do sujeito, o seu número de candidato e mal acabamos sabendo seu nome ou seu popular pseudônimo. O mesmo acontece no mar de faixas e banners (antigamente era cartaz) espalhados pelos postes de iluminação e pelos gradis de viadutos em todos os cantos da cidade.
E é lógico, que nesse vendaval de imagens, faixas, cartazes, digo banners, que nos deixam totalmente atordoados, certos candidatos conseguem algum destaque e até a fixação de seus nomes, que é o objetivo real.
Assim, demonstrando o sucesso desses candidatos passo aqui a relacioná-los:
Tem os candidatos que por serem eternos desconhecidos, já são conhecidos. Exemplo disto é o Eymael, que não é a matriz, mas sim a filial na figura do Eymael Jr. Tem o Artur Alves Pinto, o Erasmo Dias, o Wadih Mutran (que apesar do nome, nada faz contra o excesso de multas de trânsito e que também tentaram associá-lo a algumas mutretagens). Tem também o Arselino Tatto, cujo slogan deveria ser: todo cidadão tem direito a uma tatuagem e a um piercing, o William Woo (o candidato wow dos coreanos) e a Miriam Athiê, que mesmo depois de tanta denúncia, continua com seu lacinho no cabelo, sem ser laçada penalmente.
Tem aqueles candidatos que são ou foram populares em suas atividades profissionais, portanto procuram tirar proveito dessa notoriedade. Neste gênero, talvez os que mais se destacam são os da espécie esportista. Assim, tem o Ademir da Guia, grande craque do Palmeiras (mas só no Palmeiras). Deveria focar sua campanha em obras viárias, afinal é da Guia. E se o Ademir satisfaz a grande massa palmeirense, na disputa, não pela bola, mas por uma cadeira na Câmara, ele vai encontrar um grande adversário (pela altura – 1,90m – não pelo futebol), o Dinei, que diz representar a pátria corinthiana. Espero que, se eleito, tenha mais competência do que tem como jogador.
Em outras modalidades esportivas tem o Pampa, consagrado no volêi. Apesar de Pampa, é candidato aqui mesmo em Sampa. E pelo nome, esperamos que dê boas cortadas nas verbas desviadas das obras públicas. Do judô, vem o nosso ídolo Aurélio Miguel, dizendo que vai brigar por nós na Câmera (que seja Digital, 4 ou 5 megapixels, com zoom óptico). E tem também uma tal Nádia Campeão, não sei em que modalidade olímpica. Com tanto concorrente atleta, se realmente a competição poliesportiva pela vaga pegar fogo, a ESPN pode enviar a Soninha (candidata pelo PT) prá comentar.
Outra categoria bem distinguida é a dos candidatos-satélites, aqueles que giram na órbita de um grande astro. Pegam carona na popularidade do artista, tentando transformar essa proximidade em votos nas urnas. Por exemplo, os advogados do Ratinho. São tantos que deveriam constituir um partido, o PAR (Partido dos Advogados do Ratinho). Fica aqui a minha sugestão para que as maquiadoras da Hebe e os cabeleireiros do Sílvio se lancem igualmente candidatos com partidos próprios. Assim poderíamos ter o confronto do PAR com o PMHC (Partido das Maquiadoras da Hebe Camargo), ou com o PCSS (Partido dos Cabeleireiros do Sílvio Santos). Já pensou o Boris Totsye Casoy ou o Clodovil moderando um debate dos três partidos na Rede Mulher? (Vai ter muito “café no bulê” e “bala na agulha” – autoria Ratinho e Zeca Pagodinho, by Lula).
Falando em Hebe, existem alguns candidatos que se utilizam do artifício de terem nomes semelhantes ao de algum artista, e assim se divulgam, confundindo o eleitorado. A própria Hebe tem uma homônima candidata. Tem também um tal de Raul Cortez, não o nosso iluminado ator, mas sim um apagado já vereador que tenta a reeleição.
Mas se esses todos são conhecidos, ou por meios próprios ou através de terceiros, existem aqueles ilustres anônimos, que de alguma maneira, em geral descambando para o hilário quando não até para o ridículo, conseguem seu intento: a notoriedade em prol do voto. No pedestal mais alto do pódium, medalha de ouro indubitável, estão os candidatos do PRONA, começando pela Dra. Havanir, com voz e entonação de consumidor de xarope de rouquidão reclamando nervoso do preço do remédio. Daí segue os fantoches do teatro dos horrores: o tal do Malek, o Eng. Faria Lima (nada a vez com nosso saudoso ex-prefeito, que deu nome à avenida) e a Senhorita (nessa idade?) Cássia.
Já a medalha de prata está sendo disputada por uma leva de candidatos igualmente medíocres tais como: Ursão (11188 – espero que não seja um amigo urso), Pititico (com pouca verba para a campanha), Jacaré do Gás (40680 - esse tá com o gás todo na Zona Sul), Jonas Camisa Nova (14322 - o candidato da renovação do guarda-roupa), Pateta (43666 – o candidato autêntico), Tagarela (23456 – disposto a falar bastante por você), Rubinho (13699 – cansado de político ligeiro, vote em Rubinho), Flavinho (o candidato do samba, da cerveja e da balada), Afonso Camelô (sempre um produtinho barato, para bem servir), Baratão (22123 – concorrente direto do Afonso Camelô), Tobias da Vai-Vai (esse vai dar samba), Timóteo (cantor-camelô, atacando agora prá vereador), Purê (11100 – de preferência de batata, mais saboroso e nutritivo), Claudio Peixe (compõe uma boa dupla com o Purê) e a Perereca (cheio de engolir sapos, vote em Perereca).
Outro fato que desperta a atenção é a diversidade profissional. Tem candidato de todo ofício e ocupação. Mas nessa miscelânea uma categoria tem se destacado: a dos médicos. Tem tanto doutor de branco disputando a vereança, que até daria para montar um hospital na Câmara, com todas especialidades inclusive com as terapias alternativas (acupuntura, shiatsu, homeopatia, etc). E se essa turma não operar direito, só resta apelar mesmo para os pastores e bispos evangélicos candidatos. São também tantos que é capaz de fazerem a vigília dos 213 pastores na mesma sede parlamentar, no Viaduto Nove de Julho. E se mesmo assim nada disso funcionar, taí o Zé do Caixão, também candidato, prá acabar de enterrar os resultados.
Bem, se esses são os candidatos a vereador, que diremos dos candidatos a prefeito. Começando pelo nosso velho Malufão (o bom prefeito). Faz lembrar os dois personagens perfilados ao lado de Cristo crucificado (o bom e o mau). E tem o Serra, que é do bem. A Marta, nem se fale, já tá na boca do povo. A Erundina, o Paulinho (lutando pelo emprego, pelo menos o próprio de prefeito), o Chico Rossi (que a família o ajude, pelo menos deve contar com o voto dela) e os outros, tais como a Havanir (já mencionada), que não é de Havana, nem casada com o Fidel, mas com outro barbudo, cujo nome é ENEAS, que ninguém até hoje sabe a que veio. O Canoas que entrou num barco furado. O Penna, que dá pena de ver pela sua luta pelo meio ambiente no Partido Verde (um dia amadurece). O João Manoel, mais um mané na disputa. O Levi Fidelix, tão rápido é esquecido como o Aerotrem (que ninguém viu e nem vai ver). E o Travesso, que não vai fazer nenhuma travessura de tão desconhecido que é. Os que eu não mencionei, que me desculpem, pois nem lembrei deles mesmos.
Assim, nas nossas cabeças de pobres eleitores, fica a dúvida em qual candidato menos ruim votar. E a conclusão a que chego, é que certo mesmo está o Sr. Osmar Lins, auto-medicado e que lhes diz – Com tanto candidato cara de pau, peroba neles (em vez de Botox, né não Dona Marta).
NOMES
Tá com paciência prá ler essa? Então vai....
Voltando para São Paulo de uma viagem ao interior, de repente reparei no caminhão à minha frente na estrada. Não propriamente no caminhão, mas sim no nome da empresa gravado na caçamba do veículo: Transportadora Sopro Divino.
Fiquei imaginando como deveria ter surgido aquele nome. Talvez o dono fosse alguém muito religioso que já esteve ao pé da morte, ou melhor, com o pé na cova. Ou talvez tenham sido os filhos que sugeriram esse nome, aguardando a hora fatal, já de olho na polpuda herança patrimonial do fundador da empresa.
Isso me fez pensar o que leva as pessoas a escolher nomes, tanto de pessoas físicas como de pessoas jurídicas (como meu filho me perguntou outro dia se pessoa jurídica era o mesmo que advogado). Mas realmente é curioso como nos inspiramos para batizar filhos e empresas.
Coincidentemente, há pouco tempo li uma entrevista num jornal com um senhor chamado Comunista. Dizia ele na entrevista, que o nome havia sido inspiração de seu pai em homenagem a filosofia de Max. Falava também das situações pelas quais passou em função do nome. Não bastasse ele ter esse nome, ainda batizou os filhos, o primeiro de Jaurez (pronuncia-se Jorré), nome de um personagem de “Les Miserables” de Victor Hugo, o segundo de Chancy (nome tirado de outro livro) e o terceiro de Jorancy, mistura abrasileirada dos outros dois primeiros.
Lembrei então de que tive um vizinho evangélico, que, de tão religioso, batizou os seus filhos todos com nomes bíblicos. Pela ordem cronológica, Ezequiel, Ezequias, Raquel e Ananias. Daí fui lembrando de outros casos.
Deu em jornal de Goiânia, o nascimento de gêmeas no dia de finados, cujo pai batizou-as de Finaldina e Defuntina. Essa é de morrer
Outro caso curioso de nomes exóticos e que também saiu em jornal é o do pai fanático por futebol que batizou os filhos com os nomes de Rivelino, Jair e Gérson. Isso porque só teve três filhos. Se tivesse mais, possivelmente Clodoaldo, Pelé e Tostão receberiam as merecidas homenagens também.
Mas pior ainda, foi o pai que quis homenagear os mesmos três jogadores batizando um único filho. Assim ficou Riveljairerson. Apesar de impronunciável, salve a seleção de 70, por unanimidade a melhor de todas.
Nas disputas pela preferência do nome paterno ou materno, conheci uma moça chamada Wangail, mescla de Wanderley com Abgail, seus pais. Assim, em casa ninguém brigou. Nesse mesmo critério, tem aquele popularizado pela nossa grande marron Alcione, mescla de Alcides com Ivone. Tenho um amigo, cujos pais de nome Geraldo e Odete, batizaram a filha, irmã do meu amigo, de Geraldete. Esse meu amigo, inclusive, levando-se em conta o critério, iria se chamar Oderaldo, mas por bem registraram-no como Murilo para combinar com o nome do outro neto, Berilo (pedra semi-preciosa). E os casos de dúvida de qual nome escolher? Entre Elsa e Elena, que tal Elselena. Ou entre Elisa e Ângela, que tal Elisângela.
Em matéria de criatividade, tem aquele deputado que se chama Onaireves. Tente ler de trás prá frente. Seria Severiano? Dentro desse critério, tenho um amigo cuja tia chama-se Adnaloy (com y, por favor). Parece até nome de algum composto de liga leve. Mas não, é Yolanda ao contrário. E o quê me diz de Olegna? Parece nome de bailarina russa. Mas nada mais é que a brilhante inversão do nome Ângelo. Uma amiga, dona de um laboratório de análises clínicas disse-me ter recebido solicitação de exames de dois médicos: Dr. Aidan e Dr. Odracir, respectivamente Nádia e Ricardo
Falando em deputado, quantos políticos de nomes exóticos. Amazonino Mendes, só podia governar o Amazonas mesmo. Tem o Sigmaringa Seixas, digníssimo senador, que não é do Paraná. E o Sepúlveda a quem Pertence?.
Tem também os pais que homenageiam seus ídolos nacionais e internacionais. Na primeira categoria (nacionais) quantos filhos de nomes Robertos e Erasmos Carlos. Vanusa então, vixe Na segunda categoria (internacionais), os Maicol são muitos, embora ultimamente em desuso, em função dos problemas de pedofilia. Desse nome já vi inclusive algumas variantes como Maikel e até Maicon (jogador desse time aí que se diz seleção brasileira), com as diferentes grafias, tanto com i como com y.
Se o assunto é artista internacional, a mesma amiga daquele laboratório atendeu a pacientes chamados Clark Gable dos Santos e Katelyn Soares (dá vontade de pedir autográfo). Outro artista internacional, personagem de seriado, inspirou o nome Magaiver Silva. E tem até aquele corredor de Brasília, o Tom Mix da Costa. Outro dia vi um Ivan Dame Araujo (deve ser lutador de jiu jitsui).
Falando em esportes, o futebol é um campo profícuo dessas curiosidades. Lembra daquele sempre capitão da Lusa, o Oliúde (não esquecer de acentuar o u). Ou o artilheiro do Guarani, o Credence. Mas se esses jogadores lhe são desconhecidos, você deve ao menos conhecer o mestre Didi (o Folha-seca), cujo nome era Deuscoredes Maximiano. No Palmeiras há uns quinze anos havia um goleiro de nome Fiordemundo Marolla, conhecido por esse sobrenome. Não são apelidos esportivos. São nomes mesmos, registrados em cartório.
Tem ainda os nomes decorrentes de anglicismos. Vi uma vez um tal de Valdisnei (qualquer semelhança com Walt Disney é mera coincidência). Esse poderia até se casar com a Madeinusa ou com a Letys Gou Pereira.
Outro dia em uma festa conheci um sujeito chamado Bacco (com dois cês, por favor) de Oliveira. De Oliveira? Devia ser de Videira, né não? Ironicamente só o vi beber refrigerante a festa toda. E nessa linha de deuses e personagens épicos, quantos Ben Hur por aí. Deparei até com um tal de Waterloo Napoleão de Souza.e um Genghis Khan Camargo.
Falando em Camargo, sabe o nome real do Zezé? Mirosmar, poético, apesar do erro de concordância nominal. Mas, não obstante a poesia do nome, melhor chamá-lo de Zezé de Camargo mesmo e ele que continue fazendo suas poesias musicais.
Em se tratando da classe artística, lembra-se do romance da Suzi Rego com o Paulo Cesar Grande. Pena que acabou só em namoro. Mas se tivessem tido algum filho ou filha, como ficaria o sobrenome?
Até aqui tratamos apenas dos nomes. Mas quantos pais de “brilhantes inspirações” aproveitaram a dobradinha nome-sobrenome para formular “criações geniais”, que inclusive já fazem parte do anedotário. Ai vaí: Um Dois Três de Oliveira Quatro, Baião de Dois da Silva, Flávio Cavalcante Rei da Televisão Brasileira, Chevrolet da Silva Ford (deve ser mecânico), Rodometálico de Andrade, Oceano Atlãntico de Sá, Oceano Pacífico de Sá (seu irmão), Magnésia Bisurada do Patrocínio (pai publicitário), Magnúncio Torres, Nacional Futuro Provisório, Diva Gina dos Santos (essa é de doer), Luz do Sol Clemente (divino), Universo Cândido (singelo), Pacífico Cordeiro (hum, sei não), Koala Castro (que bonitinho), Mijardina Pinto (tem que matar o pai). Bem, da família Pinto, nem vale a pena falar dos Décio, Armando, Inocêncio, Descêncio, Crescêncio etc.
Se no campo das pessoas físicas - que meu filho não me pergunte se pessoa física é um sujeito materialista - a coisa é abundante, no que diz respeito a pessoas jurídicas, São Paulo é pródiga em exemplos, com as mais diversas fontes inspiradoras.
Uma das fontes mais utilizadas, principalmente para o ramo alimentício (bares, restaurantes, padarias e similares), são os títulos e personagens de novelas. Na rua em que eu morava em Pinheiros, tem até hoje um bar chamado “Meu Rico Português”, nome de antiga novela da Tupi, estrelando Sérgio Cardoso no papel do luso Manuel Maria.
Nessa categoria (alimentícia), é infindável o número de panificadoras “Minha Deusa”. Acho que cada bairro tem pelo menos uma.. Fico imaginando a Vera Fischer embrulhando pãozinho quente no balcão e o Nuno Leal Maia fazendo troco no caixa. Acho que eu compraria uns 20 pães todo dia, lógico pela nossa eterna Miss Brasil, essa maravilhosa deusa.
Noutra ocasião vi uma lanchonete de nome “Saramandaia”. Apesar de estar com fome, lembrei-me da Dona Redonda. Talvez o hambúrguer de lá tivesse muita gordura e como preservo meu colesterol bom (HDL, me disse a tal amiga do laboratório) procurei outro local para a refeição.
Ainda nessa mesma categoria, quantas panificadoras com nome de santa existem? Talvez se justifique o fato por esse ramo ter sido dominado pela grande e religiosa colônia portuguesa, que procurou referendar essa intensa devoção. Assim temos panificadoras N. Sra de Fátima, N. Sra da Conceição, Sta. Catarina etc. Um empresário mais criativo e igualmente religioso denominou seu estabelecimento de “Restaurante Santo Gostinho”, ou seria Santo Agostinho.
Em outros segmentos comerciais, lembro que na Vila Maria há uma borracharia que se chama “Borracharia Carga Pesada”. Já pensou no Antonio Fagundes trocando o pneu do carro do cliente com o auxílio do Stênio Garcia. Nenhuma mulher, nem mesmo as independentes convictas, iria querer estragar as unhas tentando tirar a roda.
Aliás, no ramo de auto-peças, penso que os títulos dos seriados são mais adequados. Tem um posto de gasolina no Tucuruví chamado “Auto-Posto Irmãos Coragem”. To vendo o Claudio Marzo de frentista. Será que iria vender gasolina adulterada para a Janete Clair, a grande mestra das estórias de adultério nas novelas?
Passando pela Av. Pirajussara (canalização do córrego) vi outro posto que se chamava “Pantanal”. Sábia escolha para um estabelecimento que no tempo das chuvas fica inundado. Seu dono até poderia lançar uma promoção: “Abasteça pelo menos 20 litros e ganhe uma lavagem do seu veículo com a Cristiane de Oliveira, de camiseta molhada”.
Na sub-categoria seriados americanos (anos 60/70, meus amigos mais novos devem estar perdidos no espaço), quantos auto-postos “Chaparral” e “Bonanza” existem por aí? A família McWright, de Bonanza, deve ter deixado a “Fazenda Ponderosa” no Arizona para administrar alguma distribuidora de combustíveis. Espero que pelo menos recolham o ICMS e mantenham o tiroteio de preços baixos com a concorrência..
Na Lapa, no início da comercialização dos aparelhos de telefonia móvel, havia uma loja cujo dono resolveu homenagear a si próprio e ao seu ator de novelas preferido, além de referendar o seu ramo de atividade. A loja chamava-se “Edson Celulares”. Imagino que se ele atuasse no ramo de academias de natação e sua mulher se chamasse Claudia, possivelmente batizaria seu estabelecimento de “Claudia Raia 4”.
Alguns outros nomes tornaram-se verdadeiros clássicos da literatura da Junta Comercial. Quem não se lembra de “O engenheiro que virou suco”. Um nome bastante significativo em plena Av. Paulista, próximo ao prédio da Fiesp, casa dos maiores empregadores do país, ironicamente. Além de descrever com precisão a trajetória profissional de seu proprietário, esse nome denunciava a já existente crise no mercado de trabalho nos anos 70. Hoje, com o agravamento da crise de desemprego ele, o proprietário, deve até ter montado uma rede de franquias.
Alguns exemplos de estabelecimentos que levaram o nome de seus fundadores e se tornaram verdadeiras referências. Exemplo notório é aquela lojinha tipo brejó que começou em uma garagem. Era a loja DASLUcias. Preciso dizer no que se transformou?
E o Seo Girz, quem não comprou alguma geladeira ou televisor com ele? E ele nem pergunta – Quer pagar quanto? Não lembra? E se falarmos em “G. Aronson”. Lembrou, né. Pena que com os solavancos do mercado, nas montanhas russas dos planos econômicos, o Seo Girz tenha penhorado o Aronson e permanecido só com o G. Não confundir com aquela rede de Sex-shop, “Ponto G” e nem com a “G Magazine”.
Por outro lado, o patrício do Seo Girz continua forte e saudável como nunca. Também pudera com o nome que batizou seu comércio, homenageando nossos queridos migrantes daquele estado nordestino, terra de Gal, Gil e Caetano. Que tremenda sacada de marketing Viva a Bahia
Se esses exemplos são notórios, outros além de notórios são curiosíssimos. Que dizer de “Casa dos Machos”. Quanto preconceito, não? Uma loja de ferragens tradicional da Florêncio de Abreu com um nome desses?
Isso mais lembra uma pet-shop chauvinista, clube do Bolinha de cães e gatos, onde cachorras (carioquês) e gatinhas são proibidas. Quando criança me divertia (falta de ter o que fazer) ligando prá lá só prá ouvir a telefonista atender e falar o nome da loja: Casa dos Machos, pois não? Como podia ter uma telefonista mulher?
Falando em bichos, tem aquele restaurante do Arouche, “O Gato que Ri”. Muito simpático esse nome. Logo na entrada do estabelecimento encontra-se a foto do bichano sorridente. Mas penso que esse nome seria mais adequado para uma clínica odontológica de felinos, especializada em implantes dentários.
No começo da São João tem uma loja de artigos de caça e pesca chamada “Ao Elefante Esportivo”. Simpático nome. Seu dono poderia franquear o nome para outras atividades. Por exemplo: confecção masculina para homens gordos: “Ao Elefante Social” ou “Ao Eleganfante” (Elegante + Elefante).
Outro consagrado e secular estabelecimento comercial cujo nome enaltece outro personagem do reino animal é o “Ao Veado D’Ouro”. Não é carro alegórico de parada gay, não. Quem já não comprou alguma fórmula manipulada lá? Até seu fundador virou nome de avenida: a Henrique Schaumann.
Bem, esses são alguns nomes que me lembro e que exemplificam a farta inspiração dos cidadãos desta urbe. Com certeza muitos outros existem na Grande São Paulo.
Se você lembrar de algum, ligue para o nosso 0300 (cada ligação apenas R$ 0,27 mais impostos) e concorra a um valioso brinde de um dos nossos patrocinadores: a “Casa das Calcinhas”.
PS. Vai aqui um grande abraço ao meu amigo Marquinho e aos seus primos Hermosilo, Aristeneto, Aristocléia e Cleotária (conhecida como Cléo,ainda bem), lá de Bambuí, MG e aos vendedores da Perfumes Oruam (Mauro, ao contrário) e da Ailiram de Marília, SP.
O ESCRITÓRIO
O trabalho naquele escritório era entediante. Ficava num prédio velho no centro da cidade, travessa da Brigadeiro Luis Antonio. Minha sala tinha uma janela que dava de frente para outro prédio velho; esse residencial. Da minha escrivaninha eu olhava pela janela as pessoas no prédio da frente na sua rotina de vida. Me sentia o James Stuart naquele filme “Janela Indiscreta”. Só faltava o binóculos, mas nem precisava, pois as distâncias entre prédios era mínima. E aquela janela do meu escritório era bem indiscreta mesmo.
Como era curioso ver a intimidade das pessoas expostas ali. Algumas acordavam no final da manhã e eu imaginava os hábitos noturnos delas. Acordavam distraídas em seus trajes íntimos noturnos, se espreguiçando em frente a janela. Algumas tomavam um susto quando davam de cara com a gente, no nosso prédio do outro lado da rua. Outros acho que até faziam meio de propósito mesmo, tipo desafiando nossos desejos ou caçoando da nossa condição de escravos do trabalho.
Uma contumaz debochadora da nossa reles condição de laboriosos empregados era a loirinha do sétimo andar. Loira Loreal claro, claro QI negativo, mas e daí Compensava pelo estonteante bronzeado do seu corpo e de suas curvas. Se postava na janela sempre lá próximo ao meio-dia, com aquela cara de cansaço noturno mas de satisfação completa, provocadora naquele babydoll sumário e transparente, possivelmente comprado na Vitoria Secret. As nossas colegas de trabalho achavam aquilo um acinte contra a boa e puritana moral reinante naquele escritório. Uma verdadeira transgressão aos bons costumes dominantes. Mas no fundo acho que era dor de cotovelo mesmo.
Em contrapartida, elas, as mesmas colegas de escritório, eram tolerantes em relação à bichinha do quarto andar, que aparecia também na janela, sempre logo após o almoço. Também se exibia num babydoll, coisa horrorosa, possivelmente comprado numa ponta de estoque das Lojas Marisa.
Acho que deviam até combinar os horários para não roubar a audiência uma da outra, apesar de terem públicos muito bem definidos. A loira antes e a bichinha depois do almoço. Aquela figura ali, grotesca, parecida com o Lacraia que nem existia na época, era bastante indigesta, pelo menos prá nós machos. Mas a turma se esbaldava de rir.
Havia apartamentos que passavam o dia todo fechados. Seus moradores deviam ser pessoas trabalhadoras como eu, que pegavam cedo no batente, ou talvez esses apartamentos estivessem abandonados esperando algum novo inquilino de hábitos noturnos excêntricos.
Um apartamento particularmente me chamava a atenção. Era de uma moradora que punha um tapete de pele de vaca, ou seria de boi, toda malhada para tomar sol. Devia ser o máximo de zelo que tinha com aquele tapete e talvez com o apartamento. Enfim, cada um a sua maneira ia levando...inclusive eu, matando o tempo olhando por aquela janela, que mais era uma vitrine da vida de cada um.
No final do ano, como de praxe, era um tal das altas autoridades do escritório, diretores e gerentes, não meu caso, receberem presentes de Natal. Prá quebrar a rotina, resolvi mandar um pseudo presente para uma dessas autoridades, o gerente de marketing da empresa.
Ele tinha uma secretária espalhafatosa, quarentona e solteira, tipo bem peruona, e claro eficientíssima, que por acaso, morava naquele prédio da frente.
Passei numa quitanda próxima e comprei uma melancia grande de 13 kg. Coloquei-a numa caixa de papelão, reforcei com jornal para que não balançasse dentro da caixa e pedi para uma coleg, com mais habilidade que eu e mais bom gosto, para embrulhar com papel e fita de presente. Uma caixa linda. Pedi para que deixasse na portaria do prédio em atenção ao ilustre cidadão.
O porteiro de pronto ligou para a secretária, que, na sua curiosidade, resolveu ela mesma pegar o “presente”. Só que pelo peso, não conseguindo carregá-lo, pediu auxílio ao boy. Chegou ao andar toda esbaforida, extasiada com o embrulho e ansiosa para saber o que seria. Aliás, pelo alarido todo dela e pelo belo embrulho do “presente”, todo mundo no andar, acho que até do prédio todo, ficou curioso de saber o que seria. Todos queriam ver o pacote aberto.
- Acho que é um televisor. Pelo tamanho só pode ser. Seu fulano, que presentão Posso abrir pro senhor? Quem será que mandou? Deve ser alguém muito especial, hein? Deixa sua mulher saber– perguntava ela, ansiosa. Mais ansiosa que o próprio destinatário do presente.
Autorizada pelo chefe, se pos à tarefa de abrir a caixa. E tal sua surpresa e frustração ao ver a melancia, que por um instante, na imaginação deles, deixava de ser um televisor. E já que a programação da tevê anda mesmo um abacaxi, de repente é melhor ganhar uma melancia, que ao menos será deglutida por mais pessoas, não é mesmo
Bem, apesar da frustrada presenteação, todos do andar acabaram comendo da melancia. Foi uma lambuzeira só
E acho que acabaram desconfiando da autoria da brincadeira, pois eu que almejava uma promoção naquela empresa, acabei não sendo promovido nunca. E nunca soube se pelo presente daquele Natal, que frustrou as expectativas do meu chefe ou se pelo fato de eu ficar matar o tempo olhando a vida dos outros por aquela janela.
Depois de um tempo, eu saí da empresa sem a promoção. Mas, naquele Natal, eles ficaram com um presente que, se não encheu os olhos, pelo menos encheu a barriga.
O JUIZ GOLEADOR
Preconceitos a parte, sempre achei que mulher não entende nada de futebol. Só se ligam no assunto em época de copa do mundo, quando é inevitável, todo mundo se liga mesmo. Daí elas até ensaiam alguns comentários, tipo “o técnico poderia escalar aquele jogador do Flamengo, bronzeado de sol, lindo, um deus grego”. Ou “porque não colocam aquele goleiro com aquelas pernas maravilhosas” - lembram-se do Leão, esse mesmo que hoje é treinador.
Mas como toda regra tem suas exceções, as que entendem, entendem muito. Muito mais que muito marmanjo metido a técnico e que vive acompanhando o esporte pelo rádio e pela tevê e que perdem as suas noites de domingo nas inúmeras mesas redondas de futebol. Taí o exemplo da Soninha da ESPN. “Êta moça porreta”, como diria o Nildo, porteiro do meu prédio e grande torcedor do Náutico de Recife. “Essa conhece e muccccho”, completaria ele.
Mas naquele domingo preguiçoso, de 1983, depois da tradicional macarronada na casa do sogrão, pensei em me esticar no sofá me preparando para o típico e necessário momento da sesta. Ainda mais em se tratando de casa de espanhol, esse momento não pode faltar.
Meu sogro se acomodou no seu quarto, na sua cama. Nos outros quartos estavam as minhas cunhadas, de forma que sobrava apenas o sofá da sala. Mas, não só eu pensei na possibilidade de utilizá-lo. O outro genro do meu sogro, o meu concunhado (nome estranho, né não?) teve o mesmo pensamento. E foi mais rápido que eu. Filho da mãe Açambarcou o sofá todinho só prá ele puxar o seu ronco vespertino. Maldito, preguiçosão
Com todos os quartos da casa tomados e até o sofá ocupado por aquele folgadão, pra mim só me restou a cozinha e o quintal. Como, lastimavelmente não tenho dotes culinários, devo admitir, a primeira opção deixei de lado. Portanto, acabei indo para o quintal. E tive que pensar em alguma coisa prá fazer naquela região da casa.
Como o dia estava quente e meu carro já por quinze dias não via água, assumi àquela atividade muito praticada por nós paulistanos nos fins de semana, diga-se de passagem, politicamente incorreta nos dias de hoje, com essa escassez e baixa reserva dos mananciais. Mas na época não tínhamos esse problema. Então me pus de calção e sandálias de borracha (Havaianas, quem sabe faturo unzinho no merchandise). Retirei a mangueira do quartinho de arrumação, que por sinal, já houvera sido de empregada, em épocas de vacas gordas, e liguei-a à torneira do quintal. Preparei um balde com detergente e peguei a cera polidora e alguns panos de chão, daqueles feitos com sacos de farinha vendidos nos cruzamentos. Lógico que escolhi os melhores (dois eram novos) sem que minha mulher e as cunhadas vissem, afinal meu carango merecia esse trato. Me pus assim à nobre tarefa paulistana dominical.
Com o barulho do jato d’água na carroceria, minha mulher que estava no quarto que dava para o quintal, despertou e desceu solidária. Se dispôs a me ajudar. Como a atividade não exigia outro auxiliar, dispensei-a pensando em poupar suas energias, que ela bem necessita para a rotina da dura luta da semana. Mas, não a poupei de me fazer um cafezinho, como de regra, sempre servido com alguma bolacha, de preferência champanhe. Mas podia até ser maizena, ou quem sabe, se o dia estiver mais favorável, vem até um bolinho de chocolate, daqueles de fazer a gente lamber os dedos.
Ela já a postos na cozinha, com a água no fogão e o pó de café no filtro (Melita - dá-lhe merchandise), ligou o rádio. Era quase 4 da tarde, hora do futebol começar. Pedi-lhe então que sintonizasse alguma estação que estivesse transmitindo o jogo. Era Santos e Palmeiras, nenhum dos dois meu time.
Talvez nem dez minutos passados, ela apareceu na porta da cozinha e me avisou que o café estava pronto. Acabei de enxaguar todo o carro e parei para tomar aquele merecido cafezinho. Duas xícaras acompanhadas pela bolacha (não teve o bolo desejado nesse domingo), retornei à fase final do trabalho. Bastava apenas secar o carro e poli-lo.
Peguei a politriz do meu concunhado (pelo menos prá isso ele serve), que continuava dormindo nababescamente (tipo babando na fronha), lógico sem ele saber, pois tinha um ciúme doido da ferramenta. Liguei-a na tomada da área de serviço e puxei o fio até o carro.
O rádio da cozinha continuava ligado no jogo, mas o barulho da politriz me impedia de ouví-lo. Não me importei muito mesmo porque não era meu time jogando. Mas de qualquer forma queria saber o resultado do jogo do São Paulo, que, de tempo em tempo, a rádio informava.
Minha mulher permaneceu na cozinha ajeitando a louça do almoço.
De repente, apesar do barulho da politriz, ouvi o locutor gritar gol.
- Gooooooooooooooooooool, e é do......(o barulho da máquina me atrapalhou de ouvir o time).
Ato contínuo, perguntei meio ansioso prá minha mulher de quem foi o gol.
Ela por um instante se ligou na transmissão pra me dizer e daí:
- É do Palmeiras.
- Quem marcou? – perguntei
- Aragão – ela respondeu
- Quem? – tornei a perguntar, meio exclamado.
- Aragão – tornou a dizer.
- Aragão??? Magina, Aragão???
- Aragão, mesmo – tornou a frisar
- Que é isso??? Aragão é o juiz da partida – expliquei prá ela meio impaciente.
- É, mas é isso que o homem (o locutor) falou
- Ah, tá bom – me resignei pela ignorância esportiva dela.
Fiquei pensando, como podia mulher não entender nada de futebol, e me convencendo de que se interessam cada vez menos por esse maravilhoso esporte. Por essa atividade humana que o Juca Kfouri diz ser a mais importante das coisas desimportantes. Como pode, meu Deus
Bem, dia acabando, retornamos prá casa. Missão dominical cumprida. Visita ao sogro e carro lavadinho prá semana.
À noite, tevê ligada, prá variar no Fantástico (inda não tinha TV a cabo), tô deitadão no meu sofá, sem cunhado prá disputá-lo, tomando uma cervejinha, como requer o momento, me concentrando para mais uma semana de trabalho.
E lá vem o Léo Batista com o famigerado “Gols do Fantástico”. A quanto tempo vejo esse cara na telinha Primeiro aquela infinidade de jogos sem importância: Arapiraca 2, ABC 0; em Fortaleza, Ferroviário 2, Fortaleza 1, daí por diante. Chegou então o bloco de gols dos times do Rio e na seqüência os de São Paulo.
Como sempre o Léo foi dando os resultados e fazendo ligeiros comentários sobre a jogada do gol (bola cruzada da direita para o arremate certeiro de Cesar, etc). Na hora de falar do jogo “Santos e Palmeiras”, ele iniciou com um comentário diferente:
- Fato único aconteceu no Estádio do Morumbi, no jogo “Santos e Palmeiras”. O árbitro José Assis de Aragão, marcou o gol do Palmeiras, empatando o jogo aos 42 minutos do segundo tempo. A bola cruzada da esquerda para a pequena área do Santos, desviou no árbitro, tirando o goleiro da jogada.
Nunca tinha visto isso acontecer: um gol de juiz Não sendo eu santista, até que achei engraçado.
E não é mesmo que minha mulher tinha razão.
Grande Aragão Juiz goleador do Campeonato Paulista de l983.
O RESGATE DO MARECHAL
Ouvi outro dia no rádio uma notícia sobre um roubo que houve em Paris. Uma estátua de Rodin havia sido roubada de um museu. Por sorte, os ladrões foram surpreendidos mas mesmo assim acabaram fracionando a estátua em três partes e arremessaram-nas às águas do Rio Sena, para, livres do fruto do furto, poderem se evadir. As partes fracionadas, para o bem da arte, acabaram sendo localizadas por mergulhadores em locais diferentes do rio, podendo assim serem recuperadas e a estátua restaurada.
Isso me fez pensar como seria se o fato ocorresse em São Paulo. Imagine se a Estátua do Duque de Caxias fosse roubada daquele seu pedestal na Av. Rio Branco no silêncio da noite, fato “muito pouco provável”, pelos excelentes estados de conservação e patrulhamento da nossa cidade, em especial das estátuas (vide texto da Silvana, da semana passada). Imagine se na fuga os ladrões fossem surpreendidos por alguma viatura da PM e saíssem em rápida manobra em direção à Marginal. Imagine se essa viatura, no percalço dos meliantes, pedisse pelo rádio o apoio de outras viaturas próximas ao local.
Aos malfeitores, cercados por policiais de todos os lados, não restaria outra saída senão se desfazer daquela enorme carga iconoplástica e a opção seria lançá-la nas águas do Rio Tietê, dando-lhes assim maior liberdade para a fuga.
Destino dos meliantes a parte, concentremo-nos nas condições de resgate do nosso querido marechal, jogado naquelas fétidas e poluídas águas.
Nossos melhores mergulhadores do Corpo de Bombeiros seriam destacados para essa operação. Esses intrépidos homens passariam dias e dias submersos no negrume desse grande canal de esgoto. Pelo seu peso, a estátua possivelmente estaria fincada bem abaixo do lodaçal no leito do rio. E a própria negritude do bronze, escurecido pela ostensiva exposição aos raios solares deletérios e a maciça carga poluente da atmosfera, dificultaria sobremaneira a visibilidade e identificação do seu contorno.
Esse grupo destemido seria comandado por um experiente major, que tem em seu currículo vários operações de resgate, desde gatos escondidos nas altas copas das árvores, até mesmo de potenciais suicidas do Viaduto do Chá.
O major definiria a tática mais apropriada, que consistiria na remoção total de todos os objetos e dejetos encontrados em cada mergulho dos homens-rãs. E uma vez na superfície seria procedida a lavagem e a identificação de cada um desses objetos, para a reconstituição da imagem.
Ao final de uma semana de trabalho, a experiente equipe de mergulhadores finalmente conseguiria retirar a última parte da estátua, que na queda no rio, havia se esfacelada em várias.
Só que pelas péssimas condições de visibilidade da operação, acabariam também trazendo um monte de outras coisas. E aí o grande problema: a reconstituição.
Mas chamariam uma equipe de estudiosos que, com base em representações pictóricas da figura do nosso marechal no Museu do Ipiranga, se poriam à árdua tarefa de reconhecimento, selecionariam dos achados tudo que deveria pertencer à imagem. E assim, montariam aquele quebra-cabeça.
Acontece que pela insalubridade do rio e o alto teor de ácido em suas águas, o cavalo de bronze acabaria sendo dissolvido numa reação química. Nosso querido marechal também sofreria do mesmo processo, mas por ele estar vestido, o ácido somente atacaria suas vestes, deixando-o envolto em trapos. Seu rosto seria igualmente protegido pelas sua barba e cabelo, que se dissolveriam, mas manteriam intactas as suas funções faciais vitais.
E aos poucos a equipe iria restabelecendo a figura impoluta, apesar do estado depalperado e maltrapilho, do nosso maior militar. E pela crônica falta de recursos dos nossos órgãos responsáveis pela preservação do patrimônio histórico teriam que improvisar quanto à ausência desses componentes afetados, improvisando e aproveitando alguns dos outros objetos igualmente encontrados nos mergulhos.
Assim, o cavalo desaparecido seria substituído por uma carcaça de buggie, que por ser de fibra de vidro, resistira às intempéries e ao ataque das águas do rio. As vestes militares seriam trocadas por uma barrica, que depois de bem lavada constatar-se-ia ser de madeira nobre (carvalho), nada mais justo para uma militar de tão alta patente.
E lá estaria nosso marechal dentro daquela carcaça de buggie, vestido com a barrica, com a barba e o cabelo farfalhados encobertos por um capacete de moto, igualmente de fibra de vidro retirado do rio e com seu braço esquerdo estendido para o alto, do lado de fora da janela do carro, caracteristicamente aclamando a vitória, no caso o seu resgate daquelas inóspitas águas do Tietê.
Aí alguém se lembraria da espada do marechal que deveria ser recolocada na mão do braço estendido. E tratariam novamente de chamar os mergulhadores para que a procurassem no leito caudaloso do rio. Perda de tempo, pois jamais achariam a tal espada. Esta já houvera sumido em outro roubo, há muito mais tempo.
PARAIBA EM SÃO PAULO
“Fale sobre a importância do Vale do Paraíba” – esse foi o tema de um dos provões do ensino médio, prática adotada para aferir a qualidade das escolas e de seus alunos.
O tema devia ser explorado em toda sua profundidade, exigindo do aluno um conhecimento de geográfica física e social. Era isso exatamente que se esperava. Mas, a criatividade humana é espantosa e a ignorância mais ainda.
Um determinado aluno desenvolveu o assunto da seguinte maneira: O Vale do Paraíba é muito importante (básico). Com a “ imigração”, essa categoria de pessoas, os paraíbas, passou a ter uma certa dominância em nossa cidade. Tanto é assim, que os trabalhos mais simples estão nas mãos deles. São pedreiros, serventes, domésticas, porteiros de prédio e até zeladores. Por isso é que eles são conhecidos como mão-de-obra. E como recebem o salário apenas no final do mês, o vale, que vem na forma de antecipação salarial no décimo quinto ou no vigésimo dia, acaba representando uma contribuição significativa para que eles possam “salvar” suas dívidas e continuar com crédito na praça, podendo fazer mais compras através de novas dívidas e assim movimentar a roda da economia....
Apesar do amontoado de besteira e da frustração na expectativa de desenvolvimento do tema proposto, existe alguma luz de razoabilidade no texto.
Paraíba foi a terminologia adotada para denominar nossos queridos migrantes dos estados do Nordeste. Aliás, é um termo mais utilizado no Rio. Possivelmente em função do grande fluxo de pessoas que vinham do Estado da Paraíba e talvez pelo pioneirismo deles. Mas o termo acabou se estendendo aos migrantes dos demais Estados da região do polígono das secas.
Em São Paulo os migrantes nordestinos passaram a ser denominados de baianos. E apesar dessa diferenciação terminológica, ambas formas ensejam uma certa dose de preconceito, ou como querem alguns, seria um jeito carinhoso de tratá-los.
Não estou aqui para avaliar essa dicotomia, mas sem dúvida nenhuma, a presença deles foi e continua sendo marcante no desenvolvimento de nossa cidade. Foi através do suor do trabalho deles que a cidade se agigantou, como auferiu nosso digno aluno no seu texto. Foram eles na qualificação de pedreiros e serventes que construíram nossos prédios, avenidas e viadutos. Foram eles na qualificação de domésticas que nos auxiliaram nas tarefas do dia-a-dia e até na educação de nossos filhos.
E aqui fizeram suas vidas na esperança de um futuro melhor. Uma história que se repete como as histórias dos nossos avós e pais, de regiões mais longínquas, mas igualmente forasteiros, igualmente cheios de sonhos e ilusões.
E igualmente aos nossos antepassados, alguns venceram materialmente se tornando empresários e até doutores. E muitos aqui casaram, igualmente com outros migrantes, ou até com outros daqui mesmo. E aqui constituíram família, aqui criaram seus filhos, paulistanos iguaizinhos a nós todos. Muitos chefes de famílias com filhos empresários, com filhos doutores, todos paulistanos.
E lembro bem de um deles, que é meu amigo: o Dominguinhos. Esse autêntico paraibano de Campina Grande que há vinte anos “peleja” em São Paulo. Não veio prá cá fugido da seca, não. Veio por essas vicissitudes da vida. Como ele mesmo diz, veio prá cá como poderia ter ido prá outro canto. Aliás, nem foi sua vontade, preferia ter ficado em sua terra natal.
No começo relutou em aceitar a cidade, que como ele fala, asfixiava, sufocava. Foram três, quatro anos lutando na esperança de voltar. Lutanto contra a saudade. E enquanto relutou em ficar, sua vida não andava.
Até que desencanou. Pensou, já que não tem jeito mesmo, vou fazer aqui a minha vida. E assim foi, casou-se e teve seus três filhos aqui.
Hoje, pergunte ao Dominguinhos se ele quer voltar.
- Só se for de férias e por pouco tempo, pois não consigo ficar longe daqui por mais de uma semana. Aquilo lá é muito pacato – é a resposta dele.
Essa é a Grande São Paulo. Uma cidade gigante que a todos acolhe. Uma cidade única A cara do Brasil com a cara de todos os brasileiros. Mineiros, gaúchos, nordestinos e estrangeiros. Peões e empresários. Alunos e professores, nas lições da vida
PERSONAGENS NOS RÓTULOS
Outro dia lembrei do frasco de Toddy. Era de vidro âmbar com tampa metálica de rosca. Esse vidro nos serviu num trabalho escolar, na confecção de um “barômetro”, trabalho esse que, de tão bem feito e interessante, acabou sendo exposto na feira de ciência da minha escola, para nosso orgulho e vaidade.
Lembro bem que no rótulo do Toddy havia a figura de um garoto com um bonézinho meio esquisito, mas muito característico. O garoto expirava saudabilidade, como devia ser em um produto achocolatado recomendado para adolescentes em fase de crescimento. Parece que queria nos dizer: “Tome Toddy é ficarás assim como eu, forte”. Hoje, penso, que aquele garoto era até meio gorducho, pouco anabolizado e meio careta, inda mais com aquele bonézinho (se ao menos fosse um boné da Naique, ou da Ribóque), uma figura que não faria o mínimo sucesso nos tempos atuais, possivelmente determinando o fracasso de vendas do produto nas gôndolas dos supermercados, com baixo “market share” (segundo meu professor de Marquetim).
Daí comecei a lembrar de outros ilustres personagens nas embalagens dos produtos.
Parece que era uma prática bastante comum a colocação de figuras de pessoas nos rótulos. Eram esse personagens que passavam credibilidade e confiança para os produtos, afinal ainda não havia as novelas da Globo, o Antonio Fagundes prá recomendar as compras de Natal no Shopping Ibirapuera, a Ana Maria Praga com aquele montaréu de produtos Nestlé ou o Cid Moreira (a voz de Deus personificada), prá oferecer um plano de salvação espiritual em fascículos semanais nas bancas, com uma fita de VHS (agora também em DVD) dos salmos bíblicos.
Lembro-me bem daquela imagem de um homem de cabelos longos e brancos, que meio sorridente, metia um certo temor, envolto que estava naquela bata negra cheia de babados e chapéu preto, nas caixas da “Aveia Quaker”. Parecia estar rindo para as crianças, obrigando-as a tomar aquela goroba misturada no leite. Era a figura de um tutor de colégio interno nos impondo aquela dieta rígida para podermos suportar o martírio das intensas sessões matutinas das aulas chatas de latim. Não sei o quê significava aquele sarcástico sorriso dele.
Mas desse aí eu escapei. Porém, não teve como fugir daquele outro estampado no vidro de um fortificante, de gosto ruim que doía, à base de fígado de bacalhau, a tal da “Emulsão de Scott” Eu, que nem sabia que bacalhau tinha fígado, hoje judio do meu com outro tipo de Scotch: o uísque. Mas aquele homem no rótulo, carregando um baita peixe nas costas, era outro martírio para as crianças, vítimas das mães crédulas dos cartazes afixados nas farmácias e nos ônibus, preconizando os benefícios da “santa” emulsão. Nós, crianças raquíticas, que como todas, de todos os tempos, inclusive as atuais, detestávamos comer verduras e legumes, tínhamos naquele rótulo a nossa projeção. Era como se estivéssemos ali, no lugar do peixe, sendo arrastados pelo homem para o calabouço, caso não nos submetêssemos a ingestão de tão “palatável” líquido.
Mas se por um lado, esses eram esquisitos ou atemorizantes, tinha uma dupla estampada em outro produto, que era muito amistosa. Eram tipo assim...parceiros, digamos. Primeiro, porque tinham a nossa idade e se vestiam como a gente: moleques. Segundo, porque o produto onde eles apareciam, que já na época era politicamente incorreto, nos atraia por essa incorreição e até mesmo por serem feitos da mais fina iguaria infantil, o chocolate. Estou falando dos Cigarrinhos Pan.
Aqueles dois garotos no rótulo dos cigarrinhos, eram como se fossem nossos amigos. Ali estampados, parece que estavam nos oferecendo o cigarrinho meio que escondido dos nossos pais, pois fumar era coisa de adulto, pelo menos naqueles tempos. E era uma coisa assim, tipo...ser cidadão de primeira classe, coisa de empresários - não com a conotação que a palavra tem hoje, sempre presente nas colunas policiais. Existia inclusive uma versão “flip top” , reforçando ainda mais esse charme. E os dois garotos, ali na embalagem, parece que estavam nos convidando para essa transgressão, oferecendo o produto e um local meio amoitado para o consumo, longe da vista dos grandes. Eram parceiros mesmo...
Tinham ainda os personagens femininos. Lembro bem da embalagem de uma farinha de trigo onde aparecia uma senhora, a Dona Benta. Parecia-se com nossa avó nos aguardando na porta da cozinha de casa, chamando-nos para saborear um delicioso bolo de chocolate, recém-saído do forno, exalando aquele característico aroma, logicamente feito com a tal farinha.
Tinha também aquela menina, digo, moça, na lata do leite condensado. Parecia uma campesina do interior de Santa Catarina, com aquele traje típico tirolês, conforme os costumes da imigração local. Parecia que tinha acabado de ordenhar uma maravilhosa vaca leiteira suíça, com a preciosa matéria prima para a produção do saboroso leite condensado.
Tudo isso já faz tempo, e como tudo se transforma, fico pensando como estariam eles...
Dona Benta, de tão famosa com os bolos de chocolate, acabou fazendo um curso no Sebrae e montou uma confeitaria. Mas não parou por aí. Resolveu virar consultora para assuntos de culinária do programa “Mais Você” e por conselho de um amigo, com o dinheiro dos negócios, comprou terras pros lados de Goiás, onde, sem aguardar a medida provisória do governo, plantou soja com sementes transgênicas. É líder da UDR (União Democrática Ruralista) local e pretende lançar-se candidata a deputada federal por aquele Estado nas próximas eleições.
A moça do leite condensado cansou-se da vida campestre. Veio para São Paulo, onde, um dia passeando num Shopping Center, foi descoberta por um olheiro de uma agência de modelos. Começou desfilando para confecções do Bom Retiro até galgar uma carreira internacional, ajudada por um famoso jogador de futebol. Está hoje morando em Tóquio, mas vive em Nova Iorque, Londres e Paris, fotografada para capas de revistas. Semana passada foi vista de férias nas Ilhas Maldivas na companhia de um grande astro de Hollywood (vide fotos na última edição da Caras). Resolveu ter uma produção independente. Está grávida de três meses. Especula-se que o pai da criança seja um cantor sertanejo famoso ou um dono de um canal de tevê (deu na Contigo).
O homem da Aveia Quaker é dono de um templo evangélico e uma rede de rádio e televisão, gozando da imunidade tributária, fazendo a maior grana, tanto assim que acabou montando uma super academia de musculação nos Jardins, onde vende fartamente produtos à base de carnitina, sem receita médica, para aumento da massa muscular dos seus associados. Dizem inclusive, que é dono de um time de futebol no interior do Estado e já ajudou a eleger três deputados federais e um senador pelo Rio. Ah, ia me esquecendo; tem também uma rede de bingos espalhada pelo sul do país e é patrono de uma famosa escola de samba carioca.
O pescador do “Emulsão de Scott”, cansado de carregar os peixes nas costas, hoje está aposentado, vivendo em Porto Seguro, onde tem uma frota de escunas, levando turistas para passeios na orla das maravilhosas praias da região. Mas não se afastou totalmente do negócio. Como havia se juntado a uma nativa, teve um filho de nome Jefferson Washington que, hoje com 22 anos, é dono de um outro negócio iniciado pelo pai: uma fábrica de produtos à base de Ômega 3, substância retirada do óleo do fígado de bacalhau, comprovadamente eficaz pelo FDA no tratamento da artereosclerose.
Já os nossos queridos amigos dos “Cigarrinhos Pan”, infelizmente...
Um, não satisfeito apenas com o consumo de cigarros, foi atrás de outras experiências e acabou se engendrando no uso de drogas diversas. Começou com o álcool, passando depois para outras mais pesadas. Teve seu final triste, com uma overdose. Que Deus o tenha
O outro, assustado com tudo isso pelo que passou seu grande amigo, se engajou numa ONG de auxílio e recuperação de drogados. Mas infelizmente não conseguiu se afastar do cigarro. Tanto que sofre de um crônico enfisema pulmonar, que vira e mexe o leva ao hospital. Como gastou todo o dinheiro ganho na publicidade dos cigarrinhos em noites e noites de esbórnia com as mulheres, hoje não tem como pagar um plano de saúde. Assim vive às voltas nas filas do SUS, rogando por um atendimento médico digno.
Quanto ao nosso roliço garotinho “Toddy”, de tanto preconizar o consumo do achocolatado, hoje está sofrendo de obesidade mórbida. Pesa cerca de duzentos e vinte quilos. É fiel adepto dos produtos Herbalife. Já fez todos tipos de dietas (Dr Atkins, South Beach, da lua, etc). Vive comprando os aparelhos de ginástica anunciados no Polishop, tais como Abtronic, Bodyshape, etc. Já passou 6 semanas no Spa de Sorocaba. Freqüenta semanalmente as reuniões dos “Vigilantes do Peso”. Toma Xenical de oito em oito horas. Massas e pizza nem pensar, se muito uma fatiazinha da de escarola. Já fez quatro lpa (lipoaspiração) e está com cirurgia de redução de estômago marcada para o mês que vem.
PIZZA E CHURRASCO
São Paulo é uma cidade de muitas cores e matizes. De muitas fragrâncias e aromas. Notoriamente conhecida como uma das capitais gastronômicas do mundo, temos na nossa cidade a influência de todos as cozinhas. Desde a mais trivial caipira do interior do país até a mais exótica culinária asiática.
Nessa diversidade toda é inquestionável o domínio da cozinha italiana, justificável pela forte presença da colônia. São tantas as cantinas e pizzarias na cidade que até arrisco dizer que o número delas em São Paulo é superior às existentes em todas as grandes cidades da Itália. Chegamos a ter o luxo de apresentar uma rua praticamente só de cantinas: a treze de maio. Essa rua, aliás, é o pedacinho mais italiano de São Paulo. Considerando ela e as demais ruas da região, poderíamos dizer que estaríamos num bairro napolitano, com a Igreja da Achiropita, os típicos sobradinhos e as bandeirinhas entre os postes dando todo o ar da caracterização.
Capítulo a parte merecem as pizzarias. O número delas é cada vez maior. Pizzarias de todas categorias, chiques, finas, mais informais, populares. Pizzarias americanas. Pizzarias que vendem pedaços. Pizzarias agregadas à churrascarias. Pizzarias rodízios. Pizzarias delivery, com suas frotas de motoboys uniformizados. Pizzas nas padarias. Aliás a pizza é presença essencial no balcão da padaria disputando o espaço da vitrine com a coxinha e a torta de frango.
E sobre a variedade de pizzas, nem se fale Encontramos pizza de tudo. Desde as mais massudas e cobertas, os calzones, até as de massa fina. De pizzas tradicionalmente salgadas às doces de chocolate, morango e banana. Desde as pizzas de todos tipos de queijos até as de vegetais como escarola e rúcula. A diversidade é tanta que até encontramos pizzas híbridas, para agradar ao paladar de outras colônias, como por exemplo, a portuguesa, que curiosamente não leva bacalhau. Mas esse é um assunto já superado. Dia desses encontrei o bacalhau incorporado ao cardápio das pizzas em uma pizzaria da Vila Mariana.
Acho que o paulistano é fanático por pizza. A pizza tem a cara do paulistano: fácil de fazer, rápida de servir, informal e prá todas as horas. Ela é a síntese do paulistano, da nossa pressa, da nossa informalidade, da nossa falta de cerimonia. E arrisco a dizer, com quase certeza, que as melhores pizzarias do mundo estão aqui em Sampa.
Mas se essas foram as influências externas que sofremos, tempos recentes surgiram outras influências, desta feita de ordem interna: dos nossos conterrâneos lá do sul, os gaúchos. Trata-se do churrasco.
Se a pizza é a cara do paulistano, o churrasco é um símbolo nacional. Há muito deixou de ser exclusivo de nossos irmãos sulistas. Ele está presente em todas as estradas do Brasil, mesmo porque os gaúchos rodam por todas as estradas. Acho que eles trataram de disseminar esses seus hábitos e costumes e alguns foram muito bem incorporados às outras culturas regionais. Não dá mais prá dizer que o churrasco é coisa de gaúcho. Virou até verbo: churrasquear. Um verbo que requer uma verdadeira técnica, uma arte. Outro dia vi na tevê que até já criaram curso de churrasqueiro.
E já repararam o sem número de churrascarias? Li em alguma reportagem que já são mais de 200 espalhadas pela cidade. E garanto que conhecedor do Rio Grande do Sul e até mesmo correndo o risco de comprar inimizade com meus bairristas amigos gaudérios, as churrascarias daqui são muito melhores que as de lá.
Mas quando falamos de churrascaria automaticamente associamos o assunto ao rodízio. A origem do sistema rodízio é um tanto controversa. Porém, existe uma versão que acabou virando folclórica. Dizem os estudiosos que um certo dia em uma churrascaria de estrada, o garçon no desespero de atender a casa cheia, acabou trocando os pratos dos clientes. Quem pediu picanha, recebeu maminha. Quem pediu cupim, recebeu alcatra e assim por diante. O dono da casa, com o caos instalado, no afã de amainar a ira geral da clientela, resolveu sabiamente servir as mesas com porções de todos tipos de carne. A solução, que agradou a todos, foi de pronto aprovada. Assim estava institucionalizado o sistema, hoje, de reconhecimento até internacional.
Uma das primeiras churrascarias rodízio aqui na nossa cidade foi a Roda Viva. Era um verdadeiro passeio turístico de domingo ir à Roda Viva provar a novidade do rodízio. As famílias enchiam seus carros e seguiam para a Via Dutra, para o festival da carne, que, na época, era uma grande novidade. Não quis arriscar quanto tempo ela existe. Acho que foi inaugurada com a própria Dutra. Mas outro dia, resolvi voltar ao local com um grupo de amigos. Está lá até hoje. O garçon nos informou que ela já completou mais de quarenta anos de existência. Não tem mais o mesmo apelo, foi superada por muitas outras ali mesmo nas proximidades, nas marginais do Tietê, mas continua viva, na roda dos rodízios.
Uma churrascaria que fez época foi a Rodeio, na Haddock Lobo. Foi talvez, a primeira churrascaria fina de Sampa. Muito sucesso e dinheiro para seus donos. Até o genial W/Brasil Olivetto, em depoimento a este site, falou das comemorações corinthianas nela. Por conta disso, deve ter ido pouquíssimas vezes lá. Falou de seu dono, mas esqueceu de outro importante personagem que lá havia: o Ramon, um dos mais simpáticos maitres de São Paulo. O Ramon era a cara da Rodeio. Até parecia que o dono era ele. E nesses tempos gordos de carnes gordas (sem cem porcento light) a Rodeio chegou a receber em suas instalações mais de vinte mil cabeças humanas por mês atrás das tenras partes das cabeças de gado. Continua lá atendendo a seus fiéis clientes (de todos os times, inclusive os da Fiel como o Olivetto). Mas deixou de ser novidade. Disputa o espaço com outras churrascarias finas, como a Barbacoa, etc. E outras igualmente confortáveis e de preços mais realistas.
No Brasil, todo mundo churrasqueia. È o churrasco do clube no encerramento do campeonato de futebol dos veteranos. È o churrasco da inauguração da nova sede da associação dos amigos do bairro. È o churrasco de confraternização da firma no final do ano. É o churrasco de lançamento da nova linha de produtos da empresa. É o churrasco de posse do novo secretário de esportes. É o churrasco do casamento da filha do seu José. É o churrasco da eleição do novo síndico do prédio. É o churrasco da inauguração do puxadinho do Miguel Falabela.
E quem pode constrói uma churrasqueira no seu jardim, ao lado da piscina ou no quintal, ao lado da área de serviço, perto do tanque e da máquina de lavar. Quem não tem churrasqueira, vai mesmo com latão de 200 litros cortado. O importante é churrasquear.
E que belo hábito social é churrasquear. Penso que é uma das atividades de maior sociabilidade que existe. Desde os tempos pré-históricos. Desde que o homem aprendeu a fazer fogo, a dominar o fogo. Não requer grandes planejamentos nem elaboração. Basta reunir um bando de amigos, se cotizar, comprar a carne (que tenha pelo menos picanha e costela), algumas ou muitas latinhas de cerveja (pode ser até das marcas preferidas pelo Zeca Pagodinho - depende quem paga mais) e carvão. Não esquecer de frango, especialmente coraçãozinho, e refrigerante para as mulheres e as crianças. O resto é só complemento, a salada, a farofa e a sobremesa.
Se quisermos medir o tamanho da popularidade do churrasco, basta perguntarmos a qualquer gringo que nos visita as palavras que incorporou ao seu vocabulário. Constataremos que, ao lado de bom ddia, obrrrrigado e caipirrrrinha, churrrrrascaria é uma delas,. Até lembro de um americano que levei certa vez a um rodízio para acertarmos um negócio. Depois de experimentar três caipirrrrinhas ele se assustou com a quantidade de carne que lhe era impingida, sim impingida, no prato. Final das contas, de tanta carne servida, não deu tempo de discutirmos negócio nenhum. Mas com as três caipirrrrrinhas, o negócio foi mais que fechado. Só com uma condição: sempre que ele vinha ao Brasil supervisionar o andamento da nossa parceria, ele me exigia também “supervisionar” algumas “churrrrrascarias”.
ROLDAN
Sempre que eu passava por aquela esquina, por mais que me eximisse, acabava arriscando um olhar. Mesmo que de canto de olho, tinha que ver se ainda estava naquela janela.
E bem naquela esquina, talvez na mais importante de São Paulo. Cantada em prosa e verso pelo grande poeta “Caetano Velloso”. Bem na Ipiranga com a São João.
Bendita, ou maldita, imagem, naquela janela do segundo andar. E tanta coisa prá se olhar naquela esquina, eu tinha que cismar com aquela placa na janela.
Quando passava de ônibus, o tempo de observação era mais curto. Torcia pro farol abrir rápido e o ônibus largar, deixando a imagem prá trás. Se dava a sorte de ir sentado no ônibus e ainda do mesmo lado daquela calçada, tinha um melhor controle daquela perturbadora situação. Podia medir a intensidade do ataque visual. Mas mesmo que estivesse de pé, com o coletivo cheio, não me esquivava de me esgueirar entre os passageiros para ver a tal placa.
Quando passava à pé por ali, rumo a minha escola na Praça da República, é que era um martírio. Me sentia muito mais vulnerável que no interior do ônibus. Sentia o coração acelerado, não só pela tensão daquele encontro, mas também pela própria velocidade que eu imprimia aos meus passos, pelo meu esforço físico, tentando reduzir o tempo de exposição àquela imagem deletéria.
Às vezes, cruzava rápido a rua, mesmo com o sinal vermelho para mim, reles pedestre, até correndo o risco de ser atropelado, sempre na tentativa de evitar o olhar fulminante daquela figura desenhada na placa.
Aquela imagem me era instigante demais. Um homem de corpo musculoso, exibindo seu bíceps ultra hipertrofiados. Figura de meio corpo. Não lembro se tinha bígode, pois a musculatura chamava tanto a atenção que ofuscava o restante. Nem lembro direito da sua fisionomia na verdade. Aquele bíceps se acentuava. E compunha a placa de identificação do estabelecimento localizado naquele prédio. No segundo andar dele. Andar inteiro: o Instituto de Fisiculturismo Roldan.
Tempos depois, tentei buscar na ciência, as razões do meu perturbado comportamento. Qual a causa daquele mal-estar? Por que tanta insegurança diante de uma simples placa? Na busca por essa resposta, procurei me consultar com uma amiga, estudante do curso de psicologia, ciência apenas engatinhando na época.
Depois de um certo constrangimento em expor o meu caso e a custa de muito diálogo em noitadas de bar regadas com muita Brahma (ainda brasileiríssima), abri meu coração. Relatei aquele fato que me atormentou durante bom tempo da minha tenra adolescência e que ainda se fazia presente em meu subconsciente.
Ela, como boa consultora aprendiz de psicoterapeuta, e melhor amiga e companheira de cervejada, me ouvia atentamente. Observava todos os detalhes da minha narrativa. Não perdia nenhum gesto sequer, procurando entender não apenas minhas palavras, mas também minha linguagem corporal e expressões faciais. Fazia uma rápida leitura gestáltica para poder melhor analisar o meu caso.
Eu, ansioso por uma abalizada opinião, constantemente a interpelava. Ela se negava a formar um juízo com base em relatos superficiais, coisa de psicólogo, eu pensava Então várias sessões de terapia informal foram feitas no intuito de descobrirmos a causa daquele meu trauma pueril.
Depois de muitas conjecturas, em mais uma noite à mesa daquele nosso bar-consultório, parecia finalmente que minha amiga conseguia desvendar a chave de tamanho mistério. E se para mim, aquilo era uma equação intrincada, para ela a razão desse comportamento era uma coisa muito evidente.
Após dissertar sobre as últimas teorias e tendências da psicologia moderna, após me dizer dos mais modernos avanços e descobertas da ciência sobre a fisiologia do cérebro, sua explicação veio contundente em resposta aos meus anseios.
Muito simples, segundo ela. Eu via naquela imagem da placa, aquele atleta imóvel, ali incansável, fitando os transeuntes com seu ar de superioridade, um padrão a ser seguido. Eu que era franzino, esquelético, magro e alto, quase uma figura quixotesca. Eu que era submetido a uma dieta super calórica rigorosa com muita batata e massas. Eu que recebia uma suplementação vitamínica com muito suco de abacate batido com leite e açúcar a esmo. Eu que tomava um frasco de óleo de fígado de bacalhau e de biotônico Fontoura por semana. Eu que não havia jeito de encorpar, como dizia minha mãe, me atormentava inconscientemente com aquela imagem.
Com a brilhante análise da minha amiga psicóloga, chegando à identificação das causas profundas desse meu infortúnio, mesmo tardiamente descobertas, procurei reverter essa situação. Dias depois, me matriculei em 3 cursos de atividades físicas que eram graciosamente oferecidas aos alunos da faculdade: remo, karatê e capoeira (coisas muito semelhantes por sinal). Passava mais tempo na raia olímpica e no tatame, que nas salas de aula. Conseqüência disso: um nariz fraturado, um ligamento de tornozelo rompido e quatro depês prá fazer no semestre seguinte.
Mas pelo menos as sessões de terapia no bar-consultório da minha amiga psicóloga serviram para dissipar aquela imagem, aquela sombra perturbadora, do meu subconsciente e para desenvolver-me fisicamente: a proeminente musculatura da barriga.
Salve a Psicologia e principalmente a Brahma Que diga o Zeca Pagodinho
SAUDADE DA TERRINHA
Quando criança via sempre a mesma cena. Ao chegar alguma carta, alguma notícia pelo rádio, alguém que viesse de lá, era sempre a mesma coisa. Batia aquela saudade no peito dos meus pais, que fazia com que uma lágrima de canto de olho sempre vertesse.
Bem, devo lembrá-los que eles, como bons portugueses, sempre tiveram esses laços profundos de ligação com sua terra natal, fato característico de todo imigrante, creio eu, independente de donde tenha vindo. E ali no meu pedaço, éramos cercados de imigrantes: sírios, japoneses, alemães, espanhóis e italianos, principalmente.
Havia inclusive um casal recém chegado de Israel, que eu achava que fosse apenas um nome próprio (lembrava-me de um governador de Minas – Israel Pinheiro), até vir saber ser um país relativamente novo, que tinha uma bandeira branca e azul com uma estrela. E eles tinham um filho, pra minha sorte, de nome Yossef, que vim descobrir ser meu xara, na língua dele: José.
Viramos bons amigos, apesar das dificuldades de linguagem. Mas, crianças têm sua linguagem universal, sem barreiras e preconceitos. A linguagem dos gestos, da fraternidade, da amizade, do companheirismo, das brincadeiras, da cumplicidade. E nesta cumplicidade fizemos muitas traquinagens. Coisas de moleques: rojão no rabo do gato, batata no escapamento dos carros estacionados na rua, caixa de papelão fechada cheia de pedregulho no meio da calçada (alguém chuta e machuca o pé ou tenta levar embora achando que é coisa boa). Empinamos pipa. Jogamos pião e bolinha de gude. Andamos de patinete e carrinho de rolemã. E no meio da rua, que não tinha carro pra atrapalhar, batemos taco e jogamos muita bola: as tais peladas dos moleques.
Hoje vejo as crianças, em nada lembram as dos nossos tempos. Aliás, quase nem as vejo nas ruas. A não ser nas periferias das grandes cidades ou em outras cidades menores do interior do país. As brincadeiras não são mais as mesmas. Estão todos vidrados no computador, nos videogames, nos gameboys. São mini-surfistas com suas camisetas coloridas, seus bermudões e seus tênis Naiques. São cibernéticos, com seus celulares com fotografia e o eterno walkman no ouvido (agora falam de um tal de I-pod, pode?). Freqüentam Lan-houses e passeiam nos shopping-centers onde comem seus Big-Macs.
Mas não estou aqui para falar da minha infância, muito menos para traçar comparações, afinal os tempos são outros mesmo. Até eu me modernizei. Estou agora na frente deste meu computador escrevendo. Um avanço e tanto para quem chegou a usar uma Remington e teve inclusive aulas de datilografia. Estão rindo? Mas, hoje posso me gabar de saber teclar com os dez dedos. Pelo menos essa ganhei do meu filho. Em compensação não sei nada de Flash nem de Photoshop e nem tenho um site, como ele. Mas deixa pra lá. Afinal ele quando abriu os olhos já deu de cara com um monitor. Eu, o primeiro que vi foi um televisor de um vizinho. E eu já tinha lá meus sete, oito anos.
Mas estou aqui para falar sobre saudade no geral, tanto as dos meus bons tempos de infância, quanto a saudade que meus pais sentiam de sua terra natal. E esse sentimento, neste momento, me acomete de um modo um pouco diferente, pois afinal estou fora da minha cidade gozando de tão merecidas férias, eu acho, embora meu patrão não concorde.
É curioso, nós que vivemos em São Paulo, no agito do dia-a-dia, com as idiossincrasias desta megalópoles, que não é diferente de outras iguais do mesmo porte, ficamos malucos pra sair de férias, De fugir disso tudo. Do trânsito caótico, dos milhões de carros circulando com seus motoristas neuróticos, melhor, psicopatas se xingando mutuamente. Das filas dos caixas dos bancos - loguinho me livro delas - pois vou pra fila dos idosos; mas daí a fila passa a ser outra: a do INSS. De esquecer o custo de vida, o aluguel, o supermercado que insiste em aumentar os preços em índices insensíveis à percepção dos economistas que comentam a inflação nos jornais e os institutos de pesquisa que nunca captam essas variações para mais. Acho que economista não faz supermercado. De esquecer da escola dos filhos, do material da escola dos filhos (puxa, tem que comprar livro novo todo ano? No meu tempo – lá venho eu com essa mesma lenga-lenga - era pro curso inteiro: o do primário, o do ginásio e o do colégio).
É isso mesmo A gente fica doído pra sair desse turbilhão todo. Dessa nossa rotina neurastênica. De poder ao menos ter uns quinze diazinhos de férias em algum canto mais tranqüilo. De preferência em alguma praia pra poder desfrutar o verão. O sol (leve protetor solar), o mar, a areia. A sombra de um coqueiro, numa mesinha com amigos, jogando conversa fora, tomando uma cervejinha. Ver as crianças brincando na areia, fazendo bolo de areia, jogando areia na sogra (que maldade - ela que não me leia).
Até que bate a tal da saudade. Não é que a gente consegue ter saudade de São Paulo. Com todos os seus problemas. Com todos os nossos problemas de urbanos, paulistanos.
To sentindo falta da poluição, agora no verão, dos alagamentos na cidade. To sentindo falta do Geraldo Nunes falando dos 114 kms de congestionamento e do trânsito parado na Marginal do Tietê, entre o Viaduto da Vila Guilherme e a Ponte Grande – melhor opção para quem vai ao Centro é a Radial Leste...
Será que é a cidade ou sou eu, típico paulistano, que já não vivo sem essas neuroses?
AMIGO EM HOLYWOOD
Dizem que a sorte só bate uma vez na nossa porta. Talvez seja verdade. Eu, por exemplo, tenho um amigo que é prova cabal disso: o Cleber.
Eu e ele estudamos juntos na mesma escola. Findo o curso colegial cada um seguiu seu destino. O Cleber era um exímio desenhista e possuía um profundo gosto por artes, tanto assim que resolveu se dedicar a essa atividade. E foi fazer faculdade de Belas Artes.
Durante sua formação manifestou especial interesse por esculturas, principalmente em bronze e se aprofundou no assunto. Tudo que dizia respeito a fundição era com ele mesmo. Sempre que nos deparávamos com alguma estátua, tratava logo de explicar o processo de produção da peça e a analisava com bastante critério.
A questão é que, como todos sabemos, viver de arte por aqui é uma verdadeira arte. Quantos talentos vemos desperdiçados. Quantos geniais artistas plásticos vivem marginalizados, por falta de todo o tipo de apoio e reconhecimento, principalmente o financeiro. E o Cleber era mais um exemplo vivo disso.
Como vender sua arte era uma coisa muito difícil, ele procurava outros meios de sobrevivência.
A última vez que eu o vi, que lá já se vão uns quinze anos, foi em sua casa atolado no meio de caixas e caixas de massinha de modelagem. É, exatamente, essas massinhas de criança fazer bichinhos. Eu até brinquei com ele sobre isso dizendo que ele estava voltando à infância. E ele tratou de me explicar que tinha que se virar de alguma forma. Estava fazendo exatamente bichinhos de massinha modelada para vender nas feirinhas de artesanato da cidade. E uma dessas feirinhas era a do Shopping Iguatemi, onde uma mão amiga lhe cedia espaço em uma barraca para que ele pudesse faturar algum vendendo aquela sua “produção artística”.
Confesso que saí da casa dele, aquele dia, triste com isso, afinal sabia do talento dele e nada podia fazer para ajudá-lo. Como disse, aquele foi nosso último encontro.
Tempo passou, acho que uns dez anos, encontrei a mãe dele na rua e inevitável quis saber do Cleber, no que ela me disse:
- Pois então não acabei de visitá-lo nos Estados Unidos.
Rápido, fiquei pensando o quê ele estaria fazendo por lá. Pensei; deve ter abandonado as artes e viajado como imigrante ilegal, trabalhando de garçon em algum restaurante ou mesmo na construção civil como ajudante de pedreiro e foi preso pela polícia de imigração e a mãe foi visitá-lo na cadeia. Ou será que está no calçadão da Time Square vendendo os bichinhos de massinha??
- Lembra dos bichinhos de massinha que ele estava fazendo? – ela me perguntou.
- Engraçado Tinha acabado de pensar neles.
- Pois é Ele estava num domingo na banca daquela amiga dele lá no Iguatemi, quando uma mulher parou para ver o trabalho dele, lhe deu seu cartão e foi embora pedindo para que ele ligasse durante a semana. Ele foi olhar o cartão; a mulher era da TV Cultura. Ele não teve dúvida; tratou logo de ligar na segunda-feira pela manhã. Marcaram de ele ir até lá, onde ela expôs o projeto que tinha. A emissora ia produzir uma série de filmes de animação educativos com bichinhos de massinha e o trabalho dele se encaixava perfeito nisso. Pela primeira vez o Cleber viu um dinheiro certo no final do mês. Bem, fizeram cinco curtas-metragens que percorreram o mundo em festivais de filmes de animação e um dos filmes foi premiado. Esse filme premiado foi parar nos estúdios do George Lucas.
- Como? George Lucas???? – eu perguntei admirado
- É Esse mesmo O da Guerra nas Estrelas E não é que um dia tô eu em casa toda sossegada quando toca o telefone e um sujeito destramela a falar todo enrolado, eu corri chamar a Belinha (irmã do Cleber) prá ver se ela entendia e ela até que falou algumas coisas com o gringo. Daí fiquei sabendo que os gringos queriam falar com o Cleber sobre o trabalho dele.
- Olha, vai ouvindo. – ela continuou - Eu nem me agüentava em pé de tanta tremedeira e nervosismo. Quando o Cleber chegou em casa e a gente contou prá ele, ele quase teve um troço. Bom, aí ele resolveu ligar praquela mulher da Cultura e ela lhe disse que tinham ligado dos Estados Unidos querendo o telefone do artista que tinha feito as modelagens na massinha. Bom, moral da história: o Cleber acabou tendo um convite prá trabalhar com os gringos no tal do estúdio do George Lucas já faz cinco anos e hoje está se especializando em animação por computação gráfica participando da equipe que produz esse monte de efeitos especiais dos filmes.
Fui embora pensando nisso tudo. Isso é que eu chamo literalmente de conto de fadas Ou sei lá, podemos tirar uma lição disso: faça as coisas com amor, mesmo que seja um bichinho de massinha
A você Cleber, meu grande amigo artista, um forte abraço Os bichinhos de massinha sabiam do seu talento
VIOLÊNCIA URBANA
Passando de carro pelo ponto de ônibus, avistei uma velha amiga que há muito não via. Imediato, pensei: Que estaria ela ali fazendo se tem carro? Será que o carro quebrou? Será que resolveu aderir ao Passa Rápido da Marta, pois agora o busão na faixa exclusiva tá bem mais ágil que o carango na pista e meia que sobrou da Rebouças? Ou será que...?
Bem, resolvi parar e oferecer carona. De repente ela vai para o mesmo lado que eu e dou uma de bom samaritano, não é mesmo Mas acho que no fundo era curiosidade prá saber o que houve com o carro.
Ao parar, todos no ponto me olharam, menos quem interessava: ela. Todo mundo ficou me olhando, tipo desconjurando, achando que era um paquerador barato motorizado oferecendo carona prás marias-gasolinas. Daqueles que até buzinam quando passam, saca
Apesar da vergonha com todo aquele povo me olhando, continuei insistindo. E nada Êta mulher difícil, sô Tomei coragem e pedi ao rapaz que estava bem na beira da calçada para lhe chamar. Ela, então meio assustada me reconheceu e se aproximou do carro.
Num rápido cumprimento, abri a porta e disse-lhe que entrasse, oferecendo-lhe carona.
Depois dos assuntos preliminares, tipo: Como vai sua mãe, suas irmãs, o papagaio, etc..., fui direto ao assunto.
- O que você está fazendo aqui no ponto? Sempre passo por aqui e nunca te vejo Onde está seu carro? – desatei eu.
- Calma, vamos por partes. Já faz quatro meses que estou a pé.
- Como assim?
- É, faz quatro meses que fui roubada.
- Puxa vida - Me admirei. E continuei. - Mas quem em São Paulo não foi, não é mesmo? Eu mesmo já fui roubado três vezes. Já me levaram três carros. Dois, nunca apareceram. O terceiro, foi muita sorte. Mas também esse tava em péssimo estado de conservação. Achei até que tinham roubado prá desmanche. Mas tava tão ruim que acho que ficaram com medo de que desmanchasse antes de chegar à oficina e resolveram abandonar do jeito que pegaram.
- É, mas o meu era novinho Tinha retirado ele da concessionária nem fazia um ano. Estava lindo, tinha até equipado ele, com som e tudo mais....E eu já até havia escapado de outro roubo anterior. E do mesmo ladrão.
- Tá brincando O mesmo cara
- É, o mesmo
- Mas como você sabe que era o mesmo? Você reconheceu ele?
- Reconheci. Acho, quer dizer, tenho certeza, que ele estava me estudando. Da primeira vez, eu estava chegando em casa voltando do trabalho, parei para abrir o portão, quando vi um vulto atrás do poste. Daí entrei rápido com o carro na garagem e foi o tempo justo de correr prá dentro de casa. Mas daí ouvi uma voz no portão gritando: - É Sheila, você não perde por esperar
- Como assim. O cara falou o seu nome?
- Foi. Ele gritou do lado de fora de casa. Ele sabia o meu nome e o horário que eu chegava em casa.
- Tá brincando
- Olha, vai ouvindo. Daí, fiquei cismada uns dois meses, que nem dormia direito. Só pensava naquele cara. Procurei até um amigo da polícia e pedi uns conselhos. Nada que a gente não saiba. Aquelas coisas de cautela, de ficar esperta, olhando prá tudo que é movimento estranho, de fazer caminho diferente todos os dias, de tomar cuidado especial nos sinais, de não parar no caso de batida atrás no carro. Essas coisas ai.... Até que num sábado à tarde, estava eu voltando do mercado, tirando as compras do porta-malas, distraída, apareceu alguém. Logo reconheci aquele cara. A fisionomia dele não me tinha saído da cabeça. Ele me apontou a arma e foi logo pedindo a chave e falando que tinha me avisado.
- Deve ter sido horrível
- Horrível? Não ficou só por aí, não Ele começou a me perguntar se eu era evangélica e se não tinha namorado. Você sabe que eu sempre gostei de usar cabelo comprido, mas não tem nada a ver. Daí comecei a ficar com muito medo que ele me seqüestrasse e sei lá mais o que. A gente ouve tanta coisa por aí. E ele continuou insistindo na pergunta. Até que respondi que não. Só pensava no pior. Achei que a minha vida ia acabar ali mesmo. Até que resolvi falar prá ele se ir, que ele já tinha a chave do carro na mão, que me deixasse em paz. Acho que ele me ouviu e foi embora.
- Bem, Sheila. Inda bem que você está aqui para contar isso tudo, não é mesmo
Bom, com toda essa história, fizemos o percurso de ponto de ônibus lá perto de casa até o trabalho dela e nem percebi o trânsito piorado na Rebouças pelo tal túnel da Marta. Parei o carro e a Sheila desceu se despedindo. Daí, falei-lhe que se quisesse eu poderia lhe dar carona para voltar prá casa, no que ela educadamente agradeceu e recusou dizendo que já tinha carona para voltar.
Então, segui em frente na avenida pensando na história dela. Pensei no tempo em que a gente se chocava com essas coisas. Infelizmente estamos perdendo a sensibilidade, estamos nos embrutecendo. Esses fatos tem sido tão constantes que não mais nos sensibilizam, não é mesmo É a tal da banalização daquilo que deveríamos tratar com seriedade. Daquilo que nos deveria preocupar, mas ante nossa impotência, só nos resta mesmo é minimizar a coisa e nos resignar.
E pensei mais – Quem será que lhe dá carona de volta prá casa? (Desculpe minha curiosidade). Será que é alguém do trabalho? Ou será que é o ladrão do carro, que sabia até o nome dela e queria saber se ela estava namorando?
Bem, se for, pelo menos esta história terá um final feliz. Sorte a dela, talvez. Perdeu o carro, mas arrumou um namorado e motorista.
E se realmente forem se casar, por favor, não me convidem para padrinho, pois estou com meu orçamento comprometido nas prestações de um carro novo, com seguro anti-roubo.
A MÃE DINAH VAI DISCAR NO “LIGUE DJÁ”.
Dizem que se conselho fosse bom não se dava, se vendia. Mas tem uma categoria de pessoas que, contrariando essa premissa, fatura alto exatamente dando conselhos. São os consultores. Notaram como essa casta profissional tem crescido
Outro dia tinha uma reportagem no jornal sobre os caras mais bem pagos no ramo da consultoria e das palestras. E lá estavam os já consagrados autores de livros de auto-ajuda (o Lair Ribeiro, o Shiniashiki etc) e também um certo Davi que tem uma banca de marreteiro no Rio, mas que virou palestrante em grandes empresas, falando sobre bom atendimento aos clientes e coisa e tal. Ele tem faturado alto por exatamente ensinar as técnicas primárias da cortesia e da atenção com o consumidor, coisas tão básicas, que precisam ser lembradas, pois os grandes conglomerados, na sofisticação e complexidade de suas estruturas, acabaram se esquecendo delas.
Mas faturar alto dando consultoria e palestra é sempre uma opção de vida bastante atraente, prá quem tem algo a dizer, ou melhor, a vender pro outros. Tenho inclusive um amigo que não vê a hora de se aposentar. Ele que trabalha em área financeira desde pequenininho, está só esperando o tempo de serviço para poder realizar seu sonho de vida, de dias mais tranqüilos, desfrutando do merecido descanso na praia, longe da neurose do trânsito, da fumaça e do agito de São Paulo. E lógico, com toda a experiência profissional acumulada, faturando um dinheirinho, ou dinheirão, como consultor de empresas. Nada mais justo, sabendo de sua grande competência.
E chego mesmo a pensar que todos nós precisamos de um conselheiro. Ora para nossos problemas pessoais, ora para decisões que envolvam grana. Quem não recorre a uma opinião amiga sobre alguma decisão pessoal. Quem não recorre aos palpiteiros das colunas econômicas dos jornais para fazer alguma aplicaçãozinha. Ou melhor, quem não os consulta para saber sobre a melhor opção entre o cheque especial - que nosso digníssimo presidente recomendou não usá-lo, como se desse - ou empréstimo de agiota, visando saldar alguma dívida, que todos nós, medianos cidadãos da classe média, não conseguimos liquidar.
E haja variedade de conselheiros. Outro dia andando de carro pela marginal do Tietê, vi um sujeito ao lado de uma fogueira no canteiro da pista, logo na primeira hora da manhã, sinalizando para os caminhões que ali passavam. Era um “Chapa”, oferecendo seu serviço de orientação para os caminhoneiros que vêm à nossa cidade entregar suas cargas em locais por eles desconhecidos. Não deixa de ser um tipo de conselheiro, e penso que esse tipo só existe em nossa cidade.
Juro que a primeira vez que vi isso, achei bastante curioso e o fato me fez pensar como as pessoas se viram para sobreviver nesta selva de pedra. E o “Chapa”, diferente do meu amigo que já está com seu burrinho na sombra, é um exemplo vivo dessa luta, mas igualmente com uma atividade de orientação e consulta.
Outro tipo de consultor muito difundido na nossa cidade é o previsor do futuro, o vidente. Quem não se sente atraído em saber o que acontecerá em sua vida. Nessa modalidade então a variedade de técnicas é muito ampla. Tem os que se utilizam das cartas, os tarôs, as runas, os jogadores de búzios, os leitores de mãos, os leitores da cabala etc. Prometem adivinhar todo tipo de coisa. Desde a possibilidade da obtenção de um emprego, até a sorte no casamento ou a compra da casa própria.
E nessas épocas de eleição, eles, os videntes, tomam especial importância. Qual o candidato a cargo público que não se utiliza dos conselhos de uma vidente ou de um pai-de-santo? E daí surgem todos na tevê, cada um procurando fazer o seu melhor dando as tendências para o eleitorado. Lembro inclusive que uma de nossas mais ativas futurólogas eleitorais, que vivia aparecendo no programa do Gugu, a Mãe Dinah, andou fazendo um montão de previsões que, lógico pela quantidade, até algumas se confirmariam. Mas sei que parte da sua credibilidade foi por água a baixo, assim como a do próprio programa do Gugu.
Acho até que a Mãe Dinah anda tentada a discar aquele 0800 do “Ligue Djá” para saber se o Walter Mercatto pode lhe dar uma mãozinha prevendo dias melhores.
De qualquer forma, se a Mãe Dinah anda meio sumida, tenho um ligeiro palpite de que estão preparando espaço para novos adivinhos, afinal ninguém abre mão de um conselho, por mais absurdo que seja.
OUTDOOR DA METAL LEVE
Sempre que eu passava ali pelo Parque do Ibirapuera, próximo ao prédio do Detran, me ajeitava no ônibus para ver melhor aquela placa gigante que hoje chamaríamos de cartaz, ou melhor ainda, outdoor. Aldór, em bom sotaque americano, mascando “chiclet”.
Aquela placa era fascinante. Não era estática, daquelas só de desenhos, figuras e letras que eu, ainda não alfabetizado, não compreendia os significados. Ele tinha movimento. Elementos que se moviam sincronizadamente, como os presépios que eu via na cidade na época de natal. Acho que era a única na cidade com essas características que prendiam a nossa atenção.Não me lembrava de outra parecida em parte alguma. Aquela placa gigante era especial.
Eu não sabia o que ela anunciava. Só sei que, na minha ótica infantil, gostava de ver aquela coisa que parecia uma colher entrando num balde gigante, naquele movimento de ida e vinda.
E ficava pensando como poderia ser aquilo. Possivelmente havia dois homens super-gordos atrás da placa, numa prancha tipo gangorra, que, ora um ora outro, subiam e desciam, em movimento alternado, fazendo aquela super-colher se movimentar na parte da frente da placa. Apesar de uma explicação aceitável para os meus quatro/cinco anos, mesmo assim continuava inquieto com essa suposição, pois afinal, sempre que eu passava por ali, a colher estava em movimento. E como era possível “aqueles homens” nunca descansarem, nem pararem prá fazer suas refeições e nem mesmo prá tomar um cafezinho ou fazer xixi.
Com o tempo, fui entendendo que, na verdade, o movimento não era causado por nenhuma força humana e sim por um mecanismo elétrico, chamado motor, que acionava eixos que faziam a colher se movimentar.
E com o tempo também, depois que deixei de passar de ônibus por ali, pois meu pai já havia comprado um carro, passei a entender que aqueles elementos na placa, não eram uma super-colher em um balde. Era sim um pistão, importante componente do motor dos automóveis. Isso significava que naquele carro do meu pai, recém comprado, havia daqueles componentes, não daquele tamanho, lógico. E aquela placa era alusiva ao mais importante produto de uma empresa chamada Metal Leve, um dos maiores fabricantes brasileiros de auto-peças.
Meu avô me dizia que conhecera o fundador da Metal Leve, Seo José Mindlin, quando ele ainda tinha uma oficina mecânica na Vila Buarque. Segundo meu avô, ele, o Seo Mindlin, de tanto consertar motores de carros, que na época eram todos importados, acabou fabricando alguns componentes desses motores. E uma das peças mais importantes era o pistão, iniciando assim a industrialização dessa peça e plantando a semente de um grande negócio e uma grande empresa.
A exemplo da placa, essa história contada por meu avô me era fascinante. O início de uma atividade industrial que nascera do brilhantismo, da abnegação, do engenho e criatividade de um empreendedor. Um típico exemplo da industrialização do nosso Brasil caboclo. E esse foi o caminho que trilharam muitos outros empreendedores de nosso país, principalmente da nossa São Paulo. Nomes que hoje estão no Panteão da Indústria, como Arno, Lorenzetti, Bernardini, Zanini, Chofi, etc. Nomes que revelam suas origens. Nomes de profundo significado no nosso desenvolvimento econômico.
Todavia o crescimento da cidade fez com que os poucos terrenos baldios escondidos por essas placas descem espaços às novas construções e a novos negócios. E assim, aquela fascinante placa da minha infância sumiu. Saiu dali do Ibirapuera. Ela, que anunciava um importante produto, componente do motor maior do desenvolvimento industrial, o automóvel, não anunciou que se mudaria de endereço. Eu, dessa forma, fiquei sem seu paradeiro.
Tempos depois, já grande, quando pude comprar um automóvel e andar por essas estradas, São Paulo a fora, um dia, sem querer, tive a feliz oportunidade de dar de cara novamente com aquela placa que muito me fascinava na infância.
Lá estava ela, do mesmo jeito, com aquela colher e o balde gigante da minha memória infantil. Só que com outro nome e em local mais distante: na Rodovia dos Bandeirantes. Seguiu o exemplo de mudança de local das próprias indústrias, que foram expulsas pelo crescimento de nossa cidade para outras paragens mais adequadas e menos hostís.
E por um instante tive uma estranha sensação de alegria e tristeza ao mesmo tempo. Alegria de revê-la, funcionando do mesmo modo como a via nos meus tempos de menino, mas tristeza de revê-la com outro nome. Um nome estrangeiro de difícil pronúncia. Difícil como a palavra outdoor.
APOSTA
Tem gente que é louquinha para fazer uma aposta. Apostam de tudo, desde quem vai ganhar o campeonato de futebol, a quem vai ser o artilheiro da rodada, quem será o próximo astro de Hollywood a se separar, qual vai ser o próximo a casar, etc. Apostam até com quantos anos de idade a Hebe e o Silvio vão deixar a televisão.
Eu, que sou avesso a apostas, dessa vez me senti tentado a fazer uma. E até seria uma grande barbada. Ganhar essa seria como tirar pirulito da boca de criança ou empurrar bêbado ladeira abaixo (velhas essas hein). Não tinha erro
E fui instigado a apostar. O outro contendor, meu adversário, era um amigo, eterno otimista, sempre esperançoso por melhores tempos, pelo aprimoramento do ser humano como ente perfeito. E eu, eterno descrente, reclamão, que nunca acredito que as coisas possam melhorar, tinha tudo para levar essa.
Acabei apostando e me ferrei.
Também, quem poderia acreditar que nada aconteceria ali. Tremenda área de exposição, convidando, pedindo, clamando para alguém colocar ao menos sua assinatura, mesmo que fosse daquelas totalmente irreconhecíveis como os hieróglifos na pedra de Rosetta ou de inscrição rupestre em alguma caverna perdida no interior do mundo.
Aquele tremendo paredão que sempre estivera lotado de pichações, numa bela semana me aparece todinho pintado de azul calcinha, no caso mais adequado denominarmos azul celeste, mesmo porque é o nominativo certo da cor e principalmente nesse caso que é para lembrar mesmo o céu.
Aquele paredão do Cemitério da Consolação apareceu todinho pintado desse azul celeste como pano de fundo para algumas inserções decorativas, a princípio não identificáveis, mas que com o concluir da obra, mostraram-se ser nuvens. Não sei de extratos cúmulos ou cúmulos nimbus. Talvez os Vernisi (Narciso ou Celso – pai ou filho) possam nos esclarecer. Enfim, era a decoração celestial que se configurou ali naquele muro.
Apostei que não passaria uma semana para ver aquele muro, contumazmente riscado, com novas inscrições selvagens, agora sobre aquele fundo azul imitando o céu.
É, mas nada aconteceu Talvez por serem representações celestiais isso tenha espantando os pichadores (não grafiteiros, pois grafite é outra coisa) de plantão. Esses abomináveis seres das trevas urbanas, que surgem das escuridões das vielas mal patrulhadas. Se aproveitam dos vazios urbanos, das desprotegidas fachadas, do repousar dos habitantes da urbe, para inserirem esses rabiscos toscos, que alguns cientistas sociais tentam qualificar como arte cosmopolita, ou até mesmo achar embasamento em alguma linguagem mesosóica helenística. Eles haveriam de dar as caras, ou melhor dar suas pinceladas (espreizadas), naquelas límpidas paredes.
Lembro que apresentada a obra, todos os transeuntes se surpreenderam com aquilo. Alguns acharam bastante decorativo. Outros, de tremendo mal gosto. Outros mais, indiferentes. Eu mesmo, confesso, achei algo um tanto fantasmagórico. Algo que me remontava para os desenhos do Gasparzinho, ou até mesmo para um outdoor gigante do filme Ghostbuster. De qualquer forma, muito melhor que a sujeira pré-existente e sempre presente naquele muro.
Achei até que a pintura estava incompleta, aguardando a inclusão de querubins e serafins - alguém me explicou a diferença entre eles, mas esqueci – com harpas e trombetas para receber os que por ali se adentravam. Mas não. A obra com aquele azul calcinha, digo celeste, com as nuvens estava definitivamente concluída.
E não é que já se passaram mais de seis meses e aquela parede continua incolume. Nenhum rabisco, nenhum palavrão, nenhuma jura incontida de amor, nenhum recado da Gaviões, nenhuma mancha da Mancha. Nada de nada
Quebrei a cara Dei com a cara no muro Perdi a aposta e assim tive que pagar um almoço no Sujinho (como era o muro antes), quase do lado do cemitério, para esse meu amigo otimista. E aí pensei: Será que as coisas estão mudando ou é apenas uma conspiração dos fantasmas a favor do meu amigo?
DO PIER LAPA AO PIER PENHA
Achei muito interessante o exercício que a Carmen outro dia realizou, com base num cartão postal antigo. Ela retornou ao mesmo local focado no cartão, procurando o mesmo ângulo e posição e tirou uma nova foto. Fantástico o resultado e a constatação da presença de muitos outros novos elementos ali. Novas construções, novo traçado da avenida.
Em resumo: pouca coisa em comum se vê nas duas fotos e ainda se não bastasse, ela quase foi atropelada pelo trânsito e quase teve seu equipamento roubado, apesar de ser um domingo.
Daí me lembrei que há um tempo tinha baixado em meu computador uma foto de Thomas Farkas, renomado fotógrafo paulistano e sócio-fundador da Fotóptica, que achei muito curiosa (vide ao lado).
Não dá prá acreditar A cidade ali retratada parece até alguma progressista urbe do interior que resiste ainda bravamente à modernidade e que procura a todo o custo manter viva ainda algumas tradições, como a das mulheres lavando roupa à beira do rio, mas já mostrando sinais de fraqueza ante o inevitável crescimento, pois ao fundo vêem-se alguns prédios presentes. Outra presença marcante na foto, aliás em primeiro plano, é a de um bote de madeira, coisa só vista ainda nos longínquos rincões.
É, não da prá acreditar mesmo que seja São Paulo. Sim, São Paulo na década de 40. Não dá prá acreditar mesmo que esse aí é o nosso Rio Tietê.
Na verdade, dá prá acreditar sim O quê não dá prá acreditar é no que ela, a cidade, e principalmente o rio, se transformaram. Não dá prá acreditar no nosso descaso com esse eterno caminho das águas paulistas, responsável indireto da fundação de nossa cidade. Não dá prá acreditar no que nós paulistanos fizemos com ele, transformando-o em uma imensa latrina, depositário de todos os nossos dejetos e objetos inúteis.
E pensar que essas águas (águas?) escuras e fétidas, um dia foram límpidas a ponto de servir para lavar as roupas dos habitantes desta cidade. E pensar que nessas mesmas águas foram disputadas regatas e competições de nadadores.
Lanço aqui dois desafios.
O primeiro: vamos exercitar nossa criatividade e imaginar o nosso Tietê novamente com águas claras e límpidas, acolhendo a embarcações, não apenas os botes de madeira do passado, mas outras tais como as modernas barcaças de passeio turístico como as do Sena em Paris, e quem sabe até jet-skys e lanchas com gente praticando esqui nos fins de semana. Nas margens do rio, ciclovias e pistas de cooper, cercadas de grama, canteiros de flores e árvores, com bancos à beira do rio para pesca, belvederes e boulevares em alamedas com bares e restaurantes charmosos, atraindo muitos turistas nos finais de tarde e fins de semana. Um pouquinho mais de imaginação e talvez o rio servindo, durante a semana, de via de transporte coletivo, carreando os trabalhadores paulistanos do Pier Penha para o Pier Lapa, ou numa integração com o Rio Pinheiros, deixando outra leva de trabalhadores no Pier Vila Olímpia e Pier Santo Amaro, em overcrafts velozes.
O outro desafio: se alguém quiser praticar o mesmo exercício que a Carmen praticou, de tirar uma foto do local, posso emprestar uma máscara de oxigênio, uma roupa de neoprene, um par de botas de borracha, dois litros de desinfetante e um GPS, infelizmente.
Boa Sorte
FALA SÉRIO, MERMÃO
Mais uma vez esta semana recebi um email de "humor". Desta vez, vindo dos meus amigos cariocas. Era uma foto de um maravilhoso por do sol no Corcovado contrastando com o céu carrancudo e cinzento de São Paulo e um texto dizendo: Os cariocas parabenizam São Paulo pelos 450.....(saltando algumas linhas, mais abaixo, continuava)....km de distância.
Fiquei meio indignado, prá não dizer outra coisa, mas sei do espírito sarrístico dessssses merrrrmãos cariocas, meus amigos. Porém, de qualquer forma, não me eximi de respondê-los, dizendo que 450 era pouco, devia ser no mínimo o dobro (900km).
Besteiras a parte, no fundo isso tudo é muito triste Acho que tanto o Rio como São Paulo, estão vivendo certos problemas comuns a todas as grandes cidades, como o trânsito, a poluição e a violência. Esta última, tem todo um capítulo especial, devido às dimensões incontroláveis, como constantemente vem sendo noticiado na mídia, exacerbado que foi pelas mazelas das administrações, que principalmente no Rio, foram desastrosas.
Acho que até São Paulo, se houvesse tido duas gestões Brizola, intercaladas com uma do Moreira Franco, um total de 12 anos de desmandos e populismos, onde bicheiros davam as cartas e traficantes comandavam as armas, não estaria tão diferente. E até que ponto estamos realmente diferentes?
Se não tívemos nossos Brizola e Moreira Franco, tívemos o Maluf, o Quércia e o Fleury, sem querer discutir as preferências políticas de cada um, mas que também pouco ou nada fizeram para coibir o crescimento da violência em nossa cidade. pelo contrário, desmantelaram as polícias militar e civil, agravando ainda mais o quadro.
Tanto nós como eles, os cariocas, temos nossos temores de sairmos as ruas, principalmente à noite, quando nos sentimos totalmente desprotegidos e desamparados. Mas embora vivamos essas tristes semelhanças, até entendo que para os meus amigos cariocas, esse estado de coisas talvez seja muito mais complicado. Eles que nasceram na Capital Federal, na grande cidade turística do Brasil, na terra da Garota de Ipanema, do poetinha Vinícius e do Tom, só têm que sentir toda essa transformação. Mesmo porque a Capital Federal mudou-se para o Planalto Central, a grande atração turística do momento é o Nordeste e todos esses grandes ícones se foram, ou por contingências naturais da idade ou porque se mudaram de lá, também.
Até a sempre "Garota de Ipanema", está atualmente mais para a "Coroa (linda até hoje, por sinal) de Moema". Soube que a Helô Pinheiro está morando em São Paulo. E nem mesmo o eterno playboy Jorginho Guinle foi tão eterno assim. Ele que abrilhantou as "noites cariocas" no seu Copacabana Palace, deve estar abrilhantando algumas festas no Céu nos salões de São Pedro, agora cercado de maior número de estrelas hollywoodeanas. E até seu Copacabana não é mais dos cariocas. Está nas mãos de grupo estrangeiro, até aí nada extraordinário, mas lhe falta aquele velho glamour, que só o Jorginho sabia impor.
O Rio sempre foi o centro das atenções. E nós paulistas sempre ouvimos falar que "carioca é que sabia viver". Eles tinham as praias na porta de casa e todos os bons espetáculos de teatro e grandes casas noturnas. Toda a vida cultural do Brasil acontecia no Rio. A Rádio Nacional era lá. A Globo era só lá.
Então prá eles, os merrrrmãos, é difícil perder essa condição hegemônica que carregaram por muito tempo. Eles que sempre nos viram como a locomotiva do Brasil, pois alguém tinha que trabalhar para poder pagar as contas das despesas deles. E pouco se lixavam prá isso. Sempre nos jogaram na cara que as nossas praias, além de menos pródigas em termos de belezas naturais, estavam a 4 horas de congestionamento, e que paulista passava o reveillon na estrada. Hoje perderam essa condição, e ironicamente são eles que se gabavam dessas coisas que estão passando por isso. Vide por exemplo que o carioca está freqüentando as praias da Barra, pois as da Zona Sul estão altamente poluídas (Leblon, Ipanema, Copacabana, etc). E prá chegar lá no pedaço eles é que agora pegam congestionamento. Fora o fato de terem que passar pela Linha Vermelha e Amarela, de repente, vestidos de colete a prova de balas, pois tá tudo dominado.
Quero deixar bem claro, que não tenho o mínimo prazer de escrever essas coisas, pois sempre gostei muito do Rio, achando mesmo que é muito mais bonito que São Paulo. E sempre nutri grandes amizades por lá, tanto de cariocas nativos como os meus amigos Marco Antonio, Pablo Mario e Maurinho, como de cariocas adotados como o Davi, a Débora, o Vinícius e a Jaqueline (gaúchos de nascimento, mas cariocas de coração). E torço mesmo para que o Rio supere todo esse mau momento e volte a ser a Cidade Maravilhosa, um título mais que merecido, pela benevolência que Deus teve com essas suas terras.
E quem sabe, num futuro muito breve, possamos continuar vivendo esse clima de rivalidade, mas de uma forma saudável, onde nossas diferenças sejam ambas positivas e que na soma delas, as duas cidades saiam ganhando e revalorizando o nosso Brasil tornando-o merecidamente "a terra abençoada por Deus e bonita por natureza", como cantava nosso Wilson Simonal, por sinal carioca radicado em Sampa, onde viveu e começou seu sucesso.
O COMPRA-RROPA
Mana, lembra daquele senhor negro que passava vendendo frangos numa carroça puxada a cavalo? Percorria as ruas do bairro (Pinheiros), quiçá a cidade toda, que com altivez anunciava sua mercadoria do alto da carroça. Quanto frango nossa mãe comprou dele. Ela que era uma exímia exterminadora de aves para os assados que enfeitavam nossas messas nas datas especiais. Quanta pena eu tive dos penados que morriam depenados nas mãos de nossa mãe.
Mas tinha também, o "comprarropa", aquele senhor judeu, baixote de chapéu enterrado na cabeça, com um terno cinza surrado de tanto sol e qulômetros, que percorria à pé pelas ruas da cidade. Sua garganta era o único recurso de mídia que utilizava para propagar sua atividade, num sotaque típico e inconfundível.
Diferentemente, outro empresário informal das ruas da época, era o amolador de facas e tesouras, que utilizava um apito de notas escalonadas, ida e volta, doremi....miredó. Quanta fregresa cativava. É, na época éramos fregueses e não consumidores.
Tinha ainda o reparador de guarda-chuvas, que batia de porta em porta oferecendo seus préstimos. Tinha muito trabalho, pois não havia ainda os guarda-chuvas importados da China, dobráveis e descartáveis a cada tromba d′água. Os antigos eram resistentes, alguns passavam de geração a geração. Lembro-me de um guarda-chuva do meu pai que era patrimônio familiar. Minha mãe checava o seu retorno a cada uso emprestado pelos membros da família. Salve os chineses...
Mana, e aquele vendedor de bijou com o container cilíndrico às costas, que mais pareceia um tocador de atabaque. Alegria das crianças, terror dos pais.
São todos personagens de um tempo passado, da minha infância. Pequenos grandes heróis quixotescos vencedores da batalha diária da vida e nas ruas e vielas da Sampa da minha memória.
A eles o meu respeito e minha lembrança...
PREFEITO MAIS QUE PERFEITO
Tenho amigos que sistematicamente me enviam emails de humor. Faço parte do mailing deles. Esta semana recebi uma mensagem que, na verdade, era uma foto-montagem onde aparecia dois ex-prefeitos de São Paulo, parodiando uma recente propaganda de cerveja. Essa mensagem me fez pensar em nossos prefeitos.
Cada um procurou imprimir à nossa cidade as marcas de sua personalidade. Foi assim com Faria Lima, Figueiredo Ferraz, Olavo Setúbal, Paulo Mafuf, Jânio Quadros, Celso Pitta, Erundina e Marta Suplicy, dos que eu me lembre.
Meu pai sempre me disse que o maior prefeito que São Paulo já teve foi o Prestes Maia. Do nome identifico a avenida no Centro. Mas, me parece que foi o grande responsável pela cara da cidade. Foi dele o plano diretor que definiu as grandes vias públicas centrais. Ele definiu e os seus sucessores executaram. Rasgaram essas avenidas em suas gestões. Talvez meu pai realmente tenha razão. Deve ter sido o grande mentor do nosso urbanismo.
Do Faria Lima me lembro de algumas coisas, além da avenida que lhe dá nome. Foi um grande empreendedor. Tratou de modernizar algumas vias de acesso. Alargou-as com desapropriações. Foi o caso da Consolação. Me lembro que era uma via estreita por onde circulavam os bondes que iam de Pinheiros ao Centro. Passei muito por lá. Lembro que a cada gestão municipal surgia um novo símbolo. O do Faria Lima era uma pá de pedreiro com uma rosa. Bem representativo para os objetivos que visava. Dar um ar mais humano ao crescimento desenfreado desta cidade, já naquela época. Deixou saudade e é lembrado até hoje como um grande prefeito, apesar da baixa estatura.
O Figueiredo Ferraz deu continuidade à gestão do Faria Lima. A exemplo do seu antecessor era também engenheiro e impôs sua visão científica e racional à cidade. Tratou de tocar obras. Foi na sua administração que a cidade inaugurou o Masp na Paulista. Me parece também que fez uma boa gestão.
Olavo Setúbal era igualmente engenheiro mas com forte experiência na área financeira, visto ser oriundo de uma das mais fortes instituições bancárias do país, o Banco Itaú. Imprimiu sua visão econômica à administração. Foi em sua gestão que a periferia de São Paulo recebeu diversos recursos e novas avenidas. Canalizou alguns córregos, inclusive o Tamanduateí. Se não conseguiu, pelo menos deu um grande passo para combater os problemas das enchentes na cidade.
Depois desses, o que aconteceu foi uma sucessão de gestões polêmicas. Começando pelo Paulo Maluf. Prefeito biônico, sempre tentou impor sua visão mega à cidade. Mega-obras, algumas mega-necessárias, outras nem tanto. Mega-orçamentos e super-faturamentos. Foi dele o Minhocão que causou a estagnação de toda uma parte da cidade (vide o belo e esclarecedor texto de Carmem Lino de Mattos, neste site). Foi também no governo Maluf que São Paulo recebeu a avenida mais cara do mundo por quilômetro construído: a Águas Espraiadas (agora Roberto Marinho). Pertence a uma casta política de grandes realizadores de obras públicas e inerentes grandes escândalos: os fuscas presenteados à seleção de 70, a Paulipetro, o Frangogate, os precatórios. Dizem que já tem seu lugar garantido no paraíso. No paraíso fiscal.
Daí veio o Jânio. Ah, o Jânio Lembro bem da sua campanha, quando reativou a vassoura que varreria a bandalheira. Jânio sempre foi uma figura controversa. Uns o amavam outros o detestavam. Talvez seja mais lembrado pelas atitudes excêntricas na imposição da sua autoridade, como a que citou a Silvana, de parar o carro para advertir motoristas no trânsito e outras coisas parecidas. Tinha verdadeira admiração pela Inglaterra. Por isso procurou transformar São Paulo de modo a parecer com aquele país. Primeiro veio a idéia de construir túneis na cidade, a exemplo do existente sob o Canal da Mancha. Um sob o Ibirapuera. Na época muita gente protestou, dizendo ser desnecessária a obra e que traria a destruição das árvores do parque, pois afetaria as suas raízes. O outro, que levou seu nome, sob o rio Pinheiros, facilitando o acesso do Morumbi ao Itaim e daí para o Centro. Curiosamente era o itinerário da casa dele ao seu gabinete. Outra idéia de Londres foram os ônibus de dois andares, igualmente pintados de vermelho. Penso que ele imaginaria que a população de Sampa se sentiria britânica com essas obras.
Depois do Jânio, veio a Erundina. A primeira mulher, a primeira nordestina a comandar São Paulo. Jeitão de mãe. Deu seu ar maternal à cidade. Como era assistente social, primou em fazer uma gestão voltada para essa área. Surgiram então muitas escolas públicas e hospitais na periferia. Deixou sua marca registrada. Dizem alguns que até no logotipo da Casa do Pão de Queijo.
Daí na briga pela sucessão, o Maluf conseguiu eleger o seu afilhado Celso Pitta. Primeiro negro a governar uma grande cidade brasileira. Sua gestão passou em branco. O fura-fila que era uma das suas bandeiras, virou um furo de projeto. Acabou sendo lembrado pelos precatórios e pela ex-mulher, a Nicéia. Até hoje, em situação semelhante a do seu padrinho político, encontra-se às voltas com a Justiça.
Agora temos a nossa grande prefeita Marta. Como mulher vaidosa está impondo sua personalidade à cidade. Implantou o projeto Belezura. Deu um retoque geral na cidade. Maquiou avenidas. Fez um lifting nos prédios públicos. Está fazendo drenagem linfática para melhorar a circulação nas artérias da Faria Lima. Aplicou silicone nos bolsões de marreteiros. Fez cromoterapia nos calçadões do Centro e florais na Paulista. A cidade está uma beleza em dias de sol. Pena que quando chove, borra toda a maquiagem e acaba mostrando as rugas mal escondidas.
E agora, quem será o próximo "kaiser" da cidade? Quem se candidata?
PSIU
Fiquei pensando outro dia, quão privilegiadas são a Carmen e a Silvana por terem a possibilidade de ouvir o canto dos pássaros de madrugada, mesmo que sejam pássaros desorientados em seus ciclos biológicos, iludidos pelas lâmpadas de mercúrio.
Eu infelizmente não tenho essa chance. Primeiro por morar em apartamento em andar alto, onde dificilmente pássaro aparece, nem os desorientados com a altitude. Segundo por morar em uma região enfestada por bares e casas noturnas, que tranqüilamente afastariam todos os pássaros, até aqueles com deficiência auditiva.
Assim, a única sorte que tenho é de ouvir alguma canção tocada nesses bares e que me agrade o ouvido, mas, ultimamente, com o advento do techno só me resta ouvir aquele bate-estaca que dizem que é música. E não há Psiu (órgão fiscalizador do barulho noturno) que resolva.
Acho que todo morador do meu prédio, quiçá de todos os prédios da rua, tem o telefone do Psiu para esses eventuais, na verdade constantes, momentos. Tô até pensando em mandar fazer um lote de imãs de geladeira com o tal telefone para distribuir pela região. Quem sabe assim, com todos os moradores ligando no bendito órgão, o Psiu, conseguimos ter noites de sono total com um maior rigor no controle dessa poluição sonora, ou talvez, ao menos, nos mandem protetores auriculares.
Não bastante os órgãos municipais serem ineptos na sua atribuição fiscalizadora da coisa, outro dia, digo noite, acordei sobressaltado com um barulho infernal. E não era de nenhuma casa noturna, não Não era nenhuma criação de DJ lançando algum novo cantor pop, não Era simplesmente uma britadeira, bem às três horas da madruga Uma britadeira de uma concessionária de serviço público, portanto à serviço da própria prefeitura.
Olhei bem no relógio. Não, não pode ser A essa hora, às três. Não, o relógio deve ter parado e eu perdi a hora Mas abri a janela e o dia continuava noite, escuro. Nisso se sucedeu uma gritaria que vinha das sacadas de outros apartamentos. Era um tal de vizinho xingando. Uns xingavam o operador da famigerada britadeira. Outros resolveram homenagear a mãe de nossa digníssima prefeita. Mais outros proferindo impropérios para o Lula. Na gritaria geral acho que sobrou até pro Bush, presidente do país de origem da empresa que ganhou a concessão do tal serviço público.
Quando menos se percebeu, a metade do prédio estava se manifestando de forma espontânea, sincera e calorosa. Eu fiquei pensando como o ser humano se revela nesses momentos de total euforia. Quanta afabilidade e carinho Quanto civilismo Quanta educação Também pudera, às três da manhã, tem é mais
Mas, pouco adiantou o clamor geral. Não sei se por total descaso do pessoal da empresa concessionária ou se pela surdez infernal causada por aquele equipamento furador de asfalto e de tímpanos, que os impedia de ouvir nossa cordial manifestação.
Sei que a coisa só foi solucionada quando vi da sacada do meu apartamento nosso sequioso síndico atravessando a rua na direção dos laboriosos notívagos, acompanhado por uma viatura da polícia. Que grande poder de persuasão tem o nosso digno representante condominial Que argumentação irrefutável
Bem, pensei em voltar prá cama, mas aí já era cinco e pouco e logo teria que estar de pé para trabalhar, de modo que só me restou ligar para a portaria e saber se já tinham entregue o jornal e fazer o café.
Como o jornal ainda não tinha chegado, fiquei pensando que ele poderia trazer a seguinte manchete:
Tumulto e morte de madrugada: moradores exaltados matam operário e o enterram no buraco por ele próprio cavado
Salve e salvem os passarinhos insanos madrugadores das ruas da Carmen e da Silvana
PS. Por acaso, tem algum imóvel à venda por aí?
SADDAM E O JORNALEIRO
Na década de 70, a Rádio Jovem Pan preconizava nos intervalos dos seus noticiários, que São Paulo era a cidade que não podia parar. Isso foi uma máxima que sempre nos acompanhou e que nos fez realmente acreditar nessa constante necessidade de crescimento. Nós, paulistanos, tínhamos orgulho desse crescimento desenfreado. Tínhamos orgulho de, de repente, nos tornarmos a maior cidade do mundo. E parece até que buscávamos essa meta.
Tempos passaram e hoje até entendemos que esse crescimento deve ser desacelerado e controlado, tamanha dimensão a cidade tomou e principalmente no que diz respeito a seus problemas. Da falta de infra-estrutura viária, do deficiente transporte coletivo, obrigando a utilização dos veículos particulares, superlotando as ruas e avenidas, por mais obras que sejam feitas cidade afora.
Ao lado da problemática da malha viária e do trânsito, a questão da moradia é também de proporções descomunais. Por mais planos habitacionais que surjam parece que o deficit de habitações é ilimitado. Vem Cohab, CDHU, Cingapura, BNH, BNDS, um montaréu de siglas tentando resolver essa indissolúvel situação.
E se a coisa já vem de longa data, parece que nestes tempos bicudos de desemprego ficou muito pior. Vira e mexe surge alguma notícia no jornal, que a população de moradores de rua está aumentando. Às vezes, surgem casos curiosos, no fundo não fossem tristes, como o do sujeito que foi professor e que falava línguas, que foi compelido a deixar sua casa de aluguel e passou a morar na rua.
Se por um lado a solução de cima não chega, o povo aqui em baixo acaba tendo que usar de muita criatividade para achar uma saída. Uma delas
Uma das opções mais comumente usadas e que vem se arrastando por muitas décadas são os cortiços. De todas proporções, desde sobradinhos acanhados até verdadeiros edifícios-cidades, o caso do São Vito, o maior e mais famoso de todos.
Outra opção bastante comum é a ocupação de alguns espaços públicos para a construção de suas moradas. E um desses espaços mais utilizados são os baixios de viadutos. Oferece alguma vantagem, pois o telhado já vem pronto. É só colocar as divisórias, delimitando as áreas úteis atinentes a cada família. E São Paulo é pródiga em viadutos, e alguns deles já acolhem verdadeiras micro-cidades. Por exemplo, os viadutos do Glicério.
E haja criatividade. Agora recente, passando pela Av. Prestes Maia, na calçada quase ao lado do Ministério da Fazenda, daquele prédio do leão do imposto de renda, vi uns tapumes fechando a calçada inteira, se transformando em mais uma habitação. O tom do inusitado era um vaso com espadas de São Jorge (acho que prá espantar mal-olhado) bem ao lado do que seria a porta de entrada. E será que se instalaram ali por fazerem parte do MSR (Movimento dos Sem Receita).
A Esther, outro dia no nosso encontro, falou do caso da moradora de rua que acabou se instalando em um cano de esgoto. Lógico, daqueles enormes de concreto e ainda exposto, esperando sua utilização subterrânea. A vantagem é ter entrada e saída isoladas, ambiente arejado com ventilação. Isso é que é entrar literalmente pelo cano
Sobre o assunto, ontem vi no jornal um casal que mora em um Fusca. Puxa vida, poderia ser pelo menos uma Variant, um pouco mais ampla, com mais conforto. Ou quem sabe, se as condições melhorassem, talvez uma Kombi seria mais recomendável. Só não sei se o Fusca estava em condições de funcionamento. Assim, poderiam lançar o estilo "motorhomeless", ou "morador sem teto ambulante". E assim vai....
Mas como falei, volto a frisar, o fato seria curioso, se não escondesse esse grave problema social.
Tristezas de lado, lembro de um caso que o Jornal da Tarde mostrou a coisa de uns dois anos. Era um cidadão que morava em um buraco. Isso mesmo, um buraco de quatro metros quadrados (2x2m). Que bruta buracão Era mais propriamente uma caverna que um buraco. Isso em plena Av. Sapopemba. Fora escavado para abrigar seu próprio e exótico habitante.
Na reportagem apareciam as fotos do buraco-residência e do seu "proprietário", que se mostrava bastante feliz com a localização e com as instalações. Por sinal, nas fotos o local parecia bastante organizado, limpo e iluminado. As paredes eram revestidas com páginas de revistas (adiante entenderemos porque) e o piso era cimentado. De mobiliário havia a cama e umas prateleiras para arrumação. Seu morador, dono de uma banca da Av. Sapopemba, dizia na reportagem que, vendo sua situação ir para o buraco, atolado em dívidas, não viu outra saída senão ir literalmente para o buraco. Escavou então aquela toca debaixo do seu estabelecimento, a banca. Assim quando acabava sua jornada de trabalho na banca, ia para casa, debaixo da banca, no buraco.
O mais curioso é que ele que vendia jornal todos os dias, nesse dia da reportagem acabou virando a própria matéria-prima do seu produto principal. Fico pensando como será que ele reagiu, vendo-se numa das páginas. E seus clientes? Esses com certeza devem ter querido conhecer in loco o local. Um pouco de marketing, e ele poderia explorar o fato, pondo uma faixa na banca, tipo "Mais uma promoção do Jornal da Tarde: compre seu exemplar aqui e ganhe um par de ingressos para conhecer a toca do jornaleiro".
E como será que nosso ilustre vendendor de periódicos reagiu quando viu a foto do Saddam, em primeira página, estampada em todos os jornais, com aquela barba e cabelo de homem das cavernas, vivendo igualmente num buraco? Será que ficou irado em saber que além de não ser o único homem-tatu inda lhe deram muito menos destaque que para o Saddam que saiu em todos os noticiosos, não só nos impressos? Ou será que teria alguma crítica a fazer sobre aquelas instalações e sobre a técnica de construção, pois a dele parecia muito mais limpa e organizada que a do procurado ditador iraquiano?
Uma coisa é certa. O destino do nosso jornaleiro será muito mais tranqüilo que o do Saddam, que depois de perder seus palácios e sua toca está morando de favor e vendo o sol nascer quadrado sabe lá aonde.
VC VIU A UD
Um amigo me perguntou se eu havia ido à UD. Respondi-lhe que não e que nem soubera quando tinha acontecido, tamanho desinteresse.
Outro amigo nosso, ouvindo a conversa, completou que se quiséssemos ver o que havia de produto exposto na última UD, era melhor irmos à Rua Florêncio de Abreu que encontrávamos tudo.
Como assim, nas lojas? – eu perguntei
Não, no meio da rua mesmo. Nos marreteiros que vendem tranqueiras nas barracas na rua. Inclusive, tem um descascador de abacaxi fantástico Descasca e tira o miolo com o talo e tudo Produto típico da UD
Até pensei que fosse gozação dele. Mas não, ele falava sério. E realmente, passando pela Florêncio há mesmo esse marreteiro vendendo o tal descascador. Por sinal, deve ser o mesmo que a um tempo atrás vendia um desentupidor, demonstrando a alta eficácia do "aparelho" numa pia transparente ultra entupida com cascas de frutas. E não é que a coisa funcionava, pelo menos na mão dele, ali na frente de todo mundo. Vai saber, em casa....
Aliás, esses marreteiros são de um oportunismo ímpar. Basta o tal do Polishop anunciar mais uma bugiganga para emagrecimento, tipo "Abtronic", ou a espetacular escova giratória de cabelos "Hair-Stile", ou ainda as extraordinárias facas "Ginzu", naqueles famigerados anúncios de meia hora nos canais pagos, que esses rudimentares representantes do mais puro marketing, os camelôs, anunciam um "genérico" desses mesmos produtos no dia seguinte, por um décimo do preço. Isso é que é senso e rapidez de negócio.
E é impressionante como eles estão sintonizados na coisa. A esposa de outro amigo nosso não perde uma visitinha ao Centro para comprar alguma dessas maravilhosas engenhocas encontrada nesses marreteiros. Vai lá especialmente prá isso. E volta toda satisfeita pra casa com a aquisição. Mesmo que a coisa não venha a funcionar, o que é bem provável. Mas só o fato dela constatar que pagou bem menos que o preço anunciado, sente aquela sensação de alívio de não ter sido lesada por dez vezes mais.
Mas voltando a UD, lembro que nos primórdios do Anhembi na década de 70, foi uma das feiras mais populares e movimentadas, coisa que aliás até hoje é. Dizem que chega a receber perto de um milhão de pessoas. Mas no começo, ela era muito aguardada pelo grande público. Disputava essa primazia com o Salão do Automóvel. As duas grandes feiras do Anhembi.
Graças ao senso empreendedor de Alcântara Machado, São Paulo realizava essas feiras nos moldes das grandes exposições internacionais. E a UD tinha esse grande apelo de feira de inovação, de grandes lançamentos, de mostrar ao público o que a indústria tinha de mais avançado, de tecnologia nos produtos para facilitar a vida dos consumidores. E por isso aguardávamos ansiosos por ela.
Principalmente, o setor de eletrodoméstico aproveitava a UD para apresentar suas novidades. Novos modelos de geladeiras (ainda era geladeira), novos modelos de fogões, aspiradores de pó, rádios-eletrolas, etc. A Philips disputava com a GE o título de stand mais visitado.
Presença constante era a da Néstle com seu grande stand. De tão grande era um verdadeiro pavilhão. Bonecões vestidos de lata gigante de Leite Ninho circulavam pelo stand e farta distribuição de copos de Nescau. Todo mundo se espremia na fila pra levar ao menos uma miniatura de Leite Moça prá casa.
Hoje, apesar da grande visitação que a UD continua tendo, penso que se transformara em uma grande feira de bugigangas domésticas, encontráveis em qualquer marreteiro da esquina, sem nenhum demérito para esses abnegados batalhadores do dia-a-dia, mesmo que seu produto seja um grande "abacaxi", igualzinho ao descascador exposto na IUD (Inutilidades Domésticas).
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