Projeto CTBC Telecom
Depoimento de Francisco José Sobrinho
Entrevistado por Luiz Egypto de Cerqueira e Norma Lúcia da Silva
Uberlândia, 30/05/2001
Entrevista número: CTBC_HV058
Realização: Museu da Pessoa
Transcrição por Neuza Guerreiro de Carvalho
Revisado por Luiza Gallo Favareto
P/1 – Boa tarde Francisco.
R – Boa Tarde.
P/1 – Para começar eu gostaria que você dissesse seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Francisco José Sobrinho. Nasci em Gurinhatã. Fui registrado em Gurinhatã, mas nasci em Ituiutaba.
P/1 – A data?
R – 21 de novembro de 1961.
P/1 – Gurinhatã?
R - Gurinhatã, Minas Gerais.
P/1 – O nome de seu pai e de sua mãe, por favor.
R – Meu pai, Balduino Bezerra da Silva e minha mãe Maria da Cruz Silva.
P/1 – Qual era a atividade de seu pai?
R – Papai em princípio tinha uma pequena fazenda com máquina de arroz, de beneficiamento, e armazém de estocagem. Depois ele vendeu e mudamos definitivo pra It.
P/1 – E a sua mãe?
R – Minha mãe sempre foi do lar. Costureira também.
P/1 – Você conheceu seus avós?
R – Conheci.
P/1 – Os quatro?
R – Os quatros.
P/1 – Lembra-se do nome deles?
R – Meu avô paterno Manoel Vicente da Silva, morava em Natal, no Rio Grande do Norte. Minha avó materna Severina Estelita de Araújo, também mora em Natal. Meu avô paterno Major Luciano Cardoso, minha avó materna Luiza Amâncio de Souza.
P/1 – Seus avós paternos. A atividade deles qual era?
R – Meus avós paternos, ele era um pequeno sitiante no Rio Grande do Norte. Tinha um pequeno sítio. Ele era do comércio também em Currais Novos. E meus avós maternos eram fazendeiros.
P/1 – O seu avô nordestino chegou a lhe dizer porque ele veio para cá?
R – Meus avós lá do Norte, continuam, continuaram morando no Norte. Os meus avós maternos moravam em Ituiutaba, que já faleceram.
P/1 – E seu pai então, qual foi a razão que o fez migrar?
R – Segundo ele, o...
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Depoimento de Francisco José Sobrinho
Entrevistado por Luiz Egypto de Cerqueira e Norma Lúcia da Silva
Uberlândia, 30/05/2001
Entrevista número: CTBC_HV058
Realização: Museu da Pessoa
Transcrição por Neuza Guerreiro de Carvalho
Revisado por Luiza Gallo Favareto
P/1 – Boa tarde Francisco.
R – Boa Tarde.
P/1 – Para começar eu gostaria que você dissesse seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Francisco José Sobrinho. Nasci em Gurinhatã. Fui registrado em Gurinhatã, mas nasci em Ituiutaba.
P/1 – A data?
R – 21 de novembro de 1961.
P/1 – Gurinhatã?
R - Gurinhatã, Minas Gerais.
P/1 – O nome de seu pai e de sua mãe, por favor.
R – Meu pai, Balduino Bezerra da Silva e minha mãe Maria da Cruz Silva.
P/1 – Qual era a atividade de seu pai?
R – Papai em princípio tinha uma pequena fazenda com máquina de arroz, de beneficiamento, e armazém de estocagem. Depois ele vendeu e mudamos definitivo pra It.
P/1 – E a sua mãe?
R – Minha mãe sempre foi do lar. Costureira também.
P/1 – Você conheceu seus avós?
R – Conheci.
P/1 – Os quatro?
R – Os quatros.
P/1 – Lembra-se do nome deles?
R – Meu avô paterno Manoel Vicente da Silva, morava em Natal, no Rio Grande do Norte. Minha avó materna Severina Estelita de Araújo, também mora em Natal. Meu avô paterno Major Luciano Cardoso, minha avó materna Luiza Amâncio de Souza.
P/1 – Seus avós paternos. A atividade deles qual era?
R – Meus avós paternos, ele era um pequeno sitiante no Rio Grande do Norte. Tinha um pequeno sítio. Ele era do comércio também em Currais Novos. E meus avós maternos eram fazendeiros.
P/1 – O seu avô nordestino chegou a lhe dizer porque ele veio para cá?
R – Meus avós lá do Norte, continuam, continuaram morando no Norte. Os meus avós maternos moravam em Ituiutaba, que já faleceram.
P/1 – E seu pai então, qual foi a razão que o fez migrar?
R – Segundo ele, o Nordeste estava ficando... Devido à seca, e então ele resolveu procurar outras terras, e como o Triângulo Mineiro na época era um grande celeiro de nordestinos, ele migrou à procura de serviço.
P/1 – Ele chegava a comentar com você como que foi essa viagem? Como foi a mudança?
R – Olha, as histórias que ele conta é que ele sofreu bastante, ele ainda era jovem, estava com dezenove anos quando ele veio. Ele sofreu muito, porque a vinda do Nordeste pra cá era muito demorada. Era em pau de arara e era muito sofrida. Ele vinha no caminhão com muitas pessoas e ele falou que era coisa terrível.
P/1 – E ele se estabeleceu em Uberlândia?
R – Não. Ele se estabeleceu em Ituiutaba.
P/1 – A história que ele contava de como ele se fixou no local. Tem lembrança disso?
R – O que ele sempre nos contou é que quando ele chegou lá em IT, existia uma fazenda que estava precisando de muitas pessoas pra trabalhar na roça. E foi nessa fazenda, que era justamente a fazenda do meu avô. Ele foi empregado durante muito tempo, até casar com minha mãe. Aí pouco tempo depois ele comprou uma pequena fazenda também, com a ajuda do meu avô, onde ele começou a nova vida dele.
P/1 – Ele conheceu sua mãe na fazenda onde ele trabalhava?
R – Onde ele trabalhava. O curioso é que meus avós detestavam nortistas. E minha mãe casou justamente com um nortista.
P/1- É assim mesmo. Amor não vê a origem das pessoas. Me diga uma coisa: vocês são em quantos irmãos na sua casa?
R – Nós somos oito naturais e uma irmã de criação.
P/1 – E você chegou a morar nessa fazenda onde seu pai tinha essa máquina de arroz?
R – Morei. Nós moramos, que eu me lembre foi durante seis anos, até mudarmos em definitivo pra Ituiutaba.
P/1 – Como é que era essa fazenda? Como era o nome dela e como era a casa onde vocês viviam?
R – Isso já tem muito tempo. A fazenda chamava Fazenda Pratinha. A casa onde nós morávamos tinha cinco quartos, cozinha. Ela era uma parte de alvenaria outra de pau a pique. Ela era muito boa. Nós tínhamos um campo de futebol. Tinha lá na nossa fazenda, na fazenda do papai tinha uma represa. Plantávamos de tudo, mas quem plantava era papai e o pessoal. Abacaxi, melão, arroz, feijão macaco, o feijão nordestino. Tinha plantação de todos os tipos de verduras e legumes, porque era terra muito boa. Foi uma época excelente.
P/1 – Você e seus irmãos tinham algum tipo de obrigação? Ajudavam de alguma forma a vida de seu pai?
R – Não. A única coisa que ele queria que a gente fizesse, desde pequeno, era estudar. Na minha infância, desde quando eu comecei a ler e a escrever, o que eu sempre gostei foi ler. À medida que eu fui crescendo, eu ganhei um guarda roupa próprio, onde eu podia guardar meus livros. Dos meus livros eu só fui me desfazer depois quando eu já estava com quase trinta anos.
P/1 – E a sua primeira escola, foi lá na escola de fazenda?
R – Foi lá na fazenda mesmo. Fiz até o terceiro ano o primário lá.
P/1 – Alguma professora que tivesse marcado a sua lembrança? Como era o nome dessa primeira professora?
R – A primeira professora chamava... Chama, Arlete, Arlete Gonçalves. A minha segunda professora foi... Joviana? Uma nordestina. Um nome diferente. Ela era muito brava. E a terceira professora na fazenda foi a Eunice.
P/1 – E essa garotada aí, como se divertia? Como era?
R – Na escola, ao lado tinha um campo de futebol. Então a gente começou a cabular e em todas as horas do recreio, depois da aula era sempre jogar bola. Mas era bem longe de casa. Eram doze quilômetros de casa.
P/1 – Ia e voltava todo dia?
R – Todos os dias. Nós íamos a cavalo. Eu, meu irmão e mais dois vizinhos. Mas eram todos os dias. Todos os dias.
P/1 – Quanto tempo demorava essa viagem?
R – Era rápido, quarenta minutos. Não era longe não. Pela época, doze quilômetros assim: era seis de ida e seis de volta. Bem entendido. Não era em seguida. Eram seis pra ir e seis pra voltar.
P/1 – Em que turno vocês estudavam?
R – Nós estudávamos na parte da manhã. Porque na parte da tarde o sol era muito quente na época. Estudar de manhã era mais... De manhã cedo, antigamente, na nossa fazenda, nós estudávamos... Nossa aula começava as nove horas e ia até uma hora da tarde. É diferente de hoje em dia, começa às sete e vai até as onze.
P/1 – E vocês saiam de casa a que horas?
R – Nós saíamos às sete horas.
P/1 - Café (saltado?)
R – Não. Tudo tranquilo.Tinha que ir lá, porque tinha que ficar reforçado.
P/1 – Como era o café da fazenda?
R – Lá não tinha nada de especial. Todo dia tinha biscoito, pão de queijo. Não existia pão na época pra nós lá. Era sempre isso. Era tudo bolo, todos os dias. Minha mãe era sempre... Sempre foi bem caprichosa.
P/1 – E com chuva? Como é que fazia com chuva?
R – Do mesmo jeito. Tinha capa. Eu tinha que pôr capa. Era obrigatório porque não podia faltar nas aulas.
P/1 – Tinha algum animal? Um cavalo que você se lembra, algum foi o seu preferido?
R – Não. Papai tinha bastante, então não tinha... Todos eram domesticados, então não tinha problema nenhum.
P/1 – Você disse que depois do terceiro ano, mudaram-se para Ituiutaba. O que é que motivou essa mudança?
R – Porque a mamãe não queria mais morar na fazenda. Ela queria morar na cidade porque nós éramos... Papai tinha muitos filhos e precisava educar todos. Na cidade. Por isso que mudou pra cidade.
P/1 – Quantos irmãos mesmo?
R – Nós somos oito, mais uma irmã de criação. Somos nove.
P/1 – Então a ideia básica era tudo movido pra educação dos filhos. É isso que eu estou entendendo? E como é que foi essa mudança pra IT.
R – No início foi muito difícil pra adaptar, porque as amizades eram diferentes. A gente apanhava muito dos outros mais velhos porque eles achavam que a gente era da fazenda e era bobo. E muitas vezes era mesmo, porque não podia brigar, porque se brigasse o pai batia. E se a gente apanhasse, batia do mesmo jeito. Então o primeiro ano foi muito ruim. Aí depois enturmou...
P/1 – A família foi inteira pra Ituiutaba?
R – Fomos, todos nós.
P/1 – E a casa em que vocês moravam, como era?
R – A casa em que nós morávamos era uma casa normal. Só que ela era menor do que a que tinha na fazenda. Ela tinha só três quartos e a gente dormia todos mais apertados. Mas era muito boa. Tinha dois pés de mangueira muito farturento, que dava muita manga na época das mangas, e uns pés de laranja. Tinha um pomar excelente. Era muito bom.
P/1 – E seu pai veio fazer o que em IT?
R – Aí papai foi trabalhar de... Comprou um caminhão. Aí foi quando eu não gostei.
P/1 – Por que?
R – Porque tinha que viajar com ele. Quando eu já estava maior, eu tinha que viajar com ele. Eu não gostava. Mamãe queria que os filhos estudassem, papai queria que os filhos trabalhassem de motorista. Aí eu não gostei.
P/1 – Mas não era legal pra um garoto, viajar, sair?
R – Na época fui pro Mato Grosso, fui pro Pará, fui pra São Paulo... O lugar mais longe que eu fui a São Paulo, foi em Bauru. Fui pra Belo Horizonte. Na época eu era jovem. Fui pra Brasília, e várias cidades. Mas eu não gostava porque era cansativo. É cansativo. O negócio de motorista é cansativo. Aí eu já tinha quatorze pra quinze anos e eu acompanhava papai, eu não gostava. Sempre que tinha folga na escola a gente tinha que viajar e eu tinha que acompanhar o papai, porque era obrigação minha ajudar ele também.
P/1 – Que tipo de mão você dava pra ele? Que tipo de auxílio, de ajuda você dava nessas viagens?
R - Quase todinha, eu dirigia. Quando não podia, quando ele sabia que os lugares eram impróprios para menor dirigir, eu ficava conversando com ele, principalmente à noite pra ele não dormir, pra aproveitar o tempo.
P/1 – Quatorze anos você já dirigia?
R – Dirigia.
P/1 – Que caminhão que era?
R – Mercedes. onze-treze. Cara chata, com motor de onze-treze.
P/1 – Que tipo de carreto que vocês faziam?
R – O que aparecesse, o que coubesse no caminhão a gente carregava. Mas o que a gente mais transportava era milho, e pro lado de São Paulo, principalmente Araras e Olímpia e Conchal, era mandioca. Pra Royal Fleischmann.
P/1 – E a volta, vinha batendo lata ou...
R – Não. Sempre a gente procurava uma coisinha. Todos os motoristas sempre com esse negócio; pra não voltar sempre tem que trazer qualquer coisinha. Era obrigatório trazer alguma coisa, pra não perder o frete da volta. Pra não perder o petróleo. E foi em Mato Grosso que a gente mais levava. Papai levava muito pro lado de Mato Grosso e Amazonas, era bebida, pinga, e sabão. E na volta trazia madeira ou soja.
P/1 – Certo. Agora, o fato de você não gostar, você chegava a comentar com seu pai que não queria?
R – Muitas vezes. Eu falava com mamãe. Com papai não falava não, que ele ficava emburrado comigo. Porque eu era o filho mais velho, então eu tinha que ir tinha que dar exemplo pros mais novo. Mas não gostei.
P/1 – Isso não atrapalhava seus estudos, não?
R – Não porque era sempre na época que eu estava de férias. Sempre eu tinha que ir na época de férias. Na época de estudo não. Na época de estudo eu estudava na parte da manhã, lá em IT, que o colégio ficava a uma quadra de casa, cinquenta metros de casa. Era uma das melhores coisas que tinha. Saia de lá e ia jogar bola.
P/1 – A diversão principal era o jogo de bola?
R – Era jogar bola. Quando não tinha nada pra fazer. Depois das tarefas, era jogar bola. Esse era das minhas coisas prediletas.
P/1 – E você não tinha uma obrigação, uma responsabilidade qualquer pra com os outros seus irmãos, alguma coisa da casa?
R – Em casa eu tomava conta. Eu ajudava mamãe a chulear. Ela costurava, então eu chuleava, pregava botões, cuidava dos mais novos, passava. Quando ela fazia ____, eu passava. Ajudava minha irmã mais velha que era minha irmã de criação. Tudo o que ela fazia, a metade era dela, a metade era minha, porque a quantidade de filhos era muito grande. Mas foi uma época muito boa.
P/1 – E a sua mãe mantinha uma produção de costuras com a ajuda dos filhos?
R – Sempre foi. Sempre demos total apoio pra ela. Ela queria que a gente aprendesse também, porque é uma coisa que muitas vezes faz bem pra gente, porque, se a gente for aprender a fazer uma comida, fazer uma coisa pra todo mundo, a gente está engrandecendo. Eu aprendi a cozinhar desde pequeno. A hora que ela fazia quitanda, também eu tinha que fazer. Então eu fui aprendendo de tudo. Até costurei, mas...
P/1 – Foi desenvolvendo as habilidades. E nos seus estudos o senhor continuava lá em IT durante esse período mesmo nas aulas e nas férias?
R – Até a oitava série, normal..
P/1 – Nessas viagens você não passava nenhum tipo de sufoco, assim?
R – Tivemos alguns contratempos.
P/1 – Por exemplo?
R – Uma vez o caminhão acabou o freio. Caminhão carregado, cadê o freio? Nós estávamos vindo de Capinópolis. E não sei como, só quem machucou foi só um rapaz que estava conosco, porque ele caiu fora do caminhão e machucou mais. Foi só um corte. O caminhão capotou. Mas o resto, só arrancou... Como ele era Mercedes cara chata, conseguiu arrancar uma parte, e soltou. Mas nós não machucamos. Eu não machuquei, papai só machucou o braço, eu, graças a Deus, não tive nada, mas o rapaz quebrou uma perna. E outra vez quando o caminhão acabou o freio novamente, nós estávamos numa descida. Papai conseguiu jogar eu no meio do mato. Aí como era um cerrado baixo, eu saí rasgando todo aquele cerrado, até parar. Eu também meti o caminhão no mato, porque eu não dei conta de segurar, porque tava correndo muito (risos). Mas isso aí não foi… Foi só gozação.
P/1 – Quer dizer que pra você foi normal? (risos).
R – Foi, porque do jeito que eu fiz isso aí, todo mundo caiu de pau em mim, porque eu estava correndo e não dei conta de segurar o caminhão. Aquilo lá pra família foi uma verdadeira piada.
P/1 – E seu pai?
R – Papai ainda deu uma bronca daquelas. Aí foi que eu desisti. Eu desisti e eu vim pra Uberlândia justamente por causa disso. Foi nessa época que eu peguei e desisti. Falei: “Não vou mais.”
P/1 - Até porque você estava com o caminhão capotado.
R - Eu andei, e era esquisito. Dá um desespero muito grande, porque tudo acontece muito rápido. Vai acontecer. Quando você pensa que vai acontecer, já aconteceu. É coisa muito rápida. Você não tem o que pensar na hora. Você só tem que tentar, ver o que realmente vai acontecer e tentar livrar, porque não tem como. O que aconteceu lá, aconteceu e pronto. Não tem como você ficar pensando: “Ah. Eu vou sair daqui pra não acontecer”. Não tem jeito.
P/1 – Isso gerava um prejuízo grande pro negócio do seu pai. Ele era independente?
R – Era independente. Foi até que ele teve que vender porque não teve condições mais, porque depois de roubarem o caminhão, aí conseguiu recuperar ele, pegou vendeu. Falou assim: “Nunca mais vou mexer com caminhão mais não.”
P/1 – Como foi esse episódio do roubo?
R – Quando roubaram ele, já morava aqui em Uberlândia já. Roubaram em 82. Papai tinha acabado de chegar com o caminhão carregado, carregado uma carga de pneu e de óleo numa fazenda. E como papai mandou fazer um sistema de tirar o câmbio do caminhão, nesse dia ele não tirou. Ele ia viajar de madrugada. Falou assim: “Eu vou dormir só três horas, então eu vou deixar o caminhão, vou deixar o câmbio aqui na porta de casa”. E ele deixou. Só que ele dormiu e ninguém lá em casa... Eu já morava aqui em Uberlândia. Ninguém ouviu o pessoal roubando o caminhão. Como o caminhão era a Diesel, basta por um prego na chave de ignição e você liga ele. E ele não tinha tirado o câmbio. Então foi até fácil pra eles. Foi achar lá em Goiânia, todo depenado. Aí o prejuízo. Ele teve que pagar os pneus, o óleo. Teve que pagar a delegacia pra poder retirar de lá, porque era em outro estado, tem que arrumar uma burocracia enorme. Teve que repor tudo o que tinham roubado o do caminhão novamente. E aí foi a gota d'água.
P/1 – Nesse meio tempo, o que motivou a mudança da família de Ituiutaba pra Uberlândia?
R – Não, não. Foi só eu que vim pra cá. Nessa época, quando eu vim pra aqui, porque quando eu estava com dezesseis pra dezessete anos, eu tentei.. Fiz curso de… Na Aeronáutica, na Escola Preparatória. E passei em tudo, quando eu estava me preparando pra ir embora, mamãe não quis deixar eu ir. Ela achou que eu ia sofrer muito. Ia eu e meus primos. Meus primos ficaram tanto que hoje eles são oficiais. E eu não fiquei. Eu falei pro papai: “Também em casa eu não vou ficar, porque se eu não posso fazer o que eu quero. Tudo do jeito que mamãe quer?” Eu falei: “Só tenho que fazer o que ela quer? Aí eu não vou melhorar nunca.” Aí eu tinha que acompanhar papai quando eu estava de folga. Aí, mamãe queria que eu trabalhasse também. Aí eu ajudava em casa, tinha que trabalhar e estudar também. Aí eu falei assim: “Eu não aguento também não.” Peguei e falei: “Vou sair de casa.” Aí eu peguei e resolvi vir pra Uberlândia. Vim aqui em 79. Fiquei uma semana aqui, gostei daqui. Aí voltei lá em casa, peguei minhas coisas e em outubro eu vim direto.
P/1- E em Ituiutaba você já tinha algum trabalho formal, fora esse trabalho com seu pai e com sua mãe, ou não?
R – Na época que eu vim pra cá, em 79, eu trabalhei, fiquei seis meses na CAMIG, lá em Ituiutaba.
P/1- Foi seu primeiro emprego?
R – Meu primeiro emprego.
P/1 – O que você fazia lá?
R – Era chefe do pessoal da limpeza. Mas ninguém gostava muito de mim não. Por que? Porque eu era enjoado. Muito detalhista.
P/1 – Dá um exemplo disso pra nós, por favor.
R – Se é pra fazer alguma coisa é pra fazer bem feito, tem que fazer bem feito da primeira vez. E muitas vezes o pessoal não aceitava, porque eu era um garoto, e fiquei mandando em gente velha. Gente bem mais velha do que eu. Eles não aceitaram. O pessoal começou… Porque tinha que limpar, o escritório, pra mim tinha que limpar o escritório bem limpado. Se não era pra deixar as máquinas sujas lá onde o pessoal trabalhava, depois do horário tinha que limpar tudinho, pra mim, tinha que ficar tudo bem limpo. Então o pessoal não aceitava, da maneira como eu falava com eles, que tinha que ser daquele jeito. Se eu achava que estava sujo, falava: “não vou voltar mais.“ Tenta de novo”. Aí eles não me aguentaram, fizeram minha rescisão. Porque era muito contra um.
P/1 – Como é que você conseguiu esse emprego?
R - Quem conseguiu foi o papai. Papai conseguiu pra mim porque como ele trazia algodão, puxava algodão pro pessoal lá, ele já tinha conhecimento com todo mundo. Ele conseguiu pra mim.
P/1 – A empresa era uma empresa de...
R – Algodoeira.
P/1 – Algodoeira.
R- A CAMIG.
P/1 – Devia ter uma boa sujeira lá pra limpar?
R-Tinha. Na época de produção, nem se fala, porque o algodão, ele solta muita pó. Ainda mais a terra dele, da maneira que quando o pessoal vai trabalhar com as sacas, vai arrastando e vai juntando. Então quando chega lá, na medida que vai batendo os algodões que vai jogando a saca que também precisa ser batida porque pra fazer a limpeza dela a sujeira aumenta muito mais.
P/1 – E era uma equipe grande que cuidava dessa limpeza?
R-Tinha bastante pessoas. Tinha quatorze, umas quatorze pessoas. Era por setores. Tinha uma pessoa responsável pra limpar o escritório, outras pra limpar... Ficava mais na parte de banheiros, outra na sacaria... O pessoal dividia.
P/1 - A partir do momento que você decide sair da sua casa, qual foi a reação dos seus pais?
R - Ninguém gostou. Que eu ia bater cabeça, que eu não ia aguentar ficar sozinho... Então na época que eu vim morar, morei seis meses com uma tia minha. Depois papai mandava dinheiro pra mim enquanto eu não arrumava serviço aqui. Mandava dinheiro. Papai ajudava muitas despesas com a familiar, que era tia dele. Eu pagava a metade do aluguel e metade do armazém. Aí minha tia chegou e falou pra uma vizinha: “Ele é enjoado demais, ele gostava que a roupa seja assim, assim, assim, assado, não gosta de comer isto, não gosta de comer aquilo, e não ajuda nada em casa. Eu falei: “Tá errado. Eu pago a metade. De tudo o que gasta, só eu pago a metade. Como que eu não ajudava”. Aí chegou no final do ano, mamãe tinha mandado um dinheiro pra mim que era de uma venda que eles tinham feito de uma vacas que nós tínhamos. Aí eu tinha mais um pouquinho de dinheiro que eu tinha trabalhado numa firma aqui em Uberlândia, na Finotti. Era mixaria. Peguei e aluguei uma casa. Aluguei uma casa e fui morar sozinho. Eu sabia cozinhar, lavar, me defendia e não precisava me incomodar com ninguém.
P/1 – Aqui em Uberlândia o primeiro trabalho que você conseguiu qual foi?
R – Na Finotti, uma fábrica de móveis.
P/1 – O que você fazia lá?
R – Eu trabalhava no torno. No torno de madeira.
P/1 – Já tinha aprendido mexer com torno ou veio aprender aqui?
R – Vim aprender aqui. Foi na marra. Falei: “Não sei não.” “Mas é assim, então faça”. Em quatro meses lá, já montava e desmontava o torno. E não era a minha função.
P/1 – Só um instantinho que nós vamos trocar a fita.
P/1 – Francisco, você estava no momento em que decide declarar independência. E vai morar sozinho. Mas sozinho?
R – Sozinho. Eu e Deus.
P/1 – Onde você alugou essa casa?
R – No bairro (Martelina?), perto de onde eu moro hoje em dia mesmo.
P/1 – Desculpa, qual é o bairro?
R – (Martelina). Ficava pertinho de casa. Tinha um rapaz que trabalhava na CTBC, ele era pedreiro e falou assim: “Olha, tem uma casa pra alugar.” Ele já era conhecido. Falei: “Então, se puder…”, “Não, então eu te alugo ela”. E eu fui morar.
P/1 – Como era essa casa?
R – Não era uma casa de fundo, a meia água. Tinha só um quarto, uma sala e cozinha. É lógico, um banheiro e uma areazinha de trabalho. Foi o suficiente pra morar três anos.
P/1 – Mobiliário?
R – Comprei tudo. Tudo o que precisava dentro da casa eu tinha.
P/1 – E você continuava trabalhando lá na Finotti?
R – Saí da Finotti e fui trabalhar na CTBC.
P/1 – Como é que você chegou na CTBC. Como foi seu ingresso na CTBC?
R – Foi até curioso. Assim que eu saí da Finotti, sai no mês de janeiro, eu fiquei uns dias, passei uns dia lá em Ituiutaba, e voltei. E meu pai falou assim pra mim: “Se você não arrumar serviço lá novamente, você vai voltar pra vim trabalhar comigo de novo”. Então falei pra mamãe, vou voltar depressa lá na Telefônica - na época a gente falava Telefônica. Na Telefônica, disseram que estão precisando de gente. Eu cheguei um dia lá no Talentos Humanos, que na época falava Departamento Pessoal, era na João ______(?), 620. Eu cheguei lá tinha uma fila enorme de gente pra fazer ficha. Isso foi no mês de fevereiro. Não custava nada preencher uma ficha, então vamos preencher. Eu cheguei lá e quem era do Departamento Pessoal era seu Armando, dona Noêmia, a Marina e o Cícero Penha. Do Departamento Pessoal eram só esses aí. Eu cheguei lá e seu Armando falou pra mim: ”Você vai fazer ficha?” Falei: “Vou”. “Então preenche aqui.” Preenchi tudinho, aí ele olhou e falou: “Só tem um serviço lá na fazenda do Seu Alexandrino.” Falei: “Onde fica essa fazenda?” “Fica lá pro lado do aeroporto.” Falei: “Então fica perto de casa.” Ele falou “Você não vai perder ter jeito de arrumar… Não vou te arrumar esse serviço lá não.” ”Falei: “Por que? To precisando de serviço.” Ele falou: “Você não pode, de jeito nenhum.” Você tem uma letra muito bonita. Você tem o primeiro grau completo. Lá você vai entrar no meio de um brejo. Você vai acabar com as suas mãos lá.” Falei: “Preciso do serviço, senão tenho que voltar pra casa lá em IT”. Aí ele falou: “Não, não vou te arrumar isso aí.” Aí tinha um pedreiro lá e falou assim: “Seu Armando, eu garanto esse rapaz aí.” “Mas como Severino você não conhece ele.” “ Mas olha aí. Tem cara de nortista. Esse eu garanto que esse aí vai ficar.” Aí falou: “ Você garante mesmo?” Falou: “Garanto. Pode ficar tranquilo.” E tinha cada negão forte lá na fila. Nós éramos doze pessoas preenchendo a ficha pro mesmo serviço. Eles precisava de muita gente porque o pessoal estava fazendo canalização daquele rego que tem lá, daquele pequeno córrego que tem lá, e a drenagem daquele solo todinho. Aí não sei se... “Eu não conheço, não sei nada, nunca vi, mas vou enfrentar. Aí falou: “Pode começar hoje, depois do almoço.” Eu falei: “Não, primeiro tenho que ir lá em IT avisar a minha mãe e o meu pai, dizer que arrumei um serviço”. Aí ele falou assim: “Mas amanhã você começa cedinho então.” Aí falei: “Mas onde que é. Pra onde que é?” falou: “Vai subir uma caminhonete daquele senhor que está de pé é o seu Artur Pires. Você diz que vai com o pessoal lá pra fazenda. Foi lá, me apresentou seu Artur Pires, que carrega de manhã cedinho, pegava o pessoal aqui, saia retornando pra levar lá pra fazenda. Ele falou: “O senhor passa, sabe onde que é o Rodoviário Caçula?” “Então você me espera pra baixo do trevo que eu vou passar lá tal hora. Eu cheguei lá bem cedo. Aí o caminhão cheio de gente. Todo mundo que tinha feito inscrição tava indo. Aí no mesmo dia eu fui lá em IT, voltei, pra começar a trabalhar cedo. Isso foi no dia onze. Dia doze que eu comecei. Dia doze de fevereiro de oitenta. Aí nós chegamos lá. Aí os outros já ‘descrençaram’ de mim. “Você não vai aguentar de jeito nenhum”. Aí o meu futuro chefe disse: “Aqueles ali vão aguentar” Uns cara bem fortão. Disse: “Então vamos ver né? Vamos ver quem tem mais determinação.” Aí cheguei lá e ele pra sacanear falou assim pra mim: “Tá vendo aquela marreta ali? Você pega ela lá e vai quebrar esse paredão aí tudinho.” Falei: “Tudo bem”. Peguei a marreta. Parece que ele não foi muito com a minha cara, porque ele não gostava muito do outro pedreiro porque o outro pedreiro era muito mandão. Aquele rapaz que garantiu que eu ia ficar lá. Ele me deu uma marreta lá e nem luva ele não me deu. Eu já cheguei lá, já cheguei batendo. Comecei, trabalhei o dia todinho e quando chegou a tarde minha mão estava cheia de sangue. Então os caras falaram assim: “Então amanhã você não volta” . Falei: “Volto” Aí comecei. Aí eu trabalhei uma semana. Durante essa primeira semana, que foi de terça ou quarta feira, quando chegou no final de semana só restava eu e mais três. Quando foi na outra semana, quinze dias depois só tava eu. Todo mundo foi embora. Foi uma época muito boa. O mais engraçado foi no dia do meu pagamento. Eu cheguei pra receber na primeira semana, aí o sujeito falou: “Não. O senhor não tem pagamento ainda não.’ “Mas porque que não tem?” “Porque nós não fizemos o seu contracheque ainda, porque você pode não aguentar a trabalhar a semana que vem.” Aí eu fiquei uma semana sem receber, que a gente recebia toda semana. Toda sexta feira a gente descia aqui no Departamento Pessoal e pegava o contracheque. Já havia um dinheiro lá dentro, tudinho no envelopinho. Aí eu cheguei, fui na outra semana e ele falou assim: “Agora você vai receber as duas semanas, você aguentou. Mas nós não vamos registrar sua carteira ainda”. Falei: “Mas que danado. O povo está encrencando comigo” Eu quase bati no Cícero. Porque não podia não acreditar na gente. Aí passou e foi me registrar no dia primeiro de março. Trabalhei quinze dias, mais de quinze dias sem carteira registrada porque não confiavam em mim.
P/1 – E acabou restando apenas você daquele grupo todo?
R – Do grupo de doze pessoas acabou sobrando eu. Era treze comigo. Os outros doze, todos foram embora. O que ficou mais, ficou uma semana.
P/1 – E você permaneceu lá fazendo o que?
R – Trabalhava na… Durante um ano nós fizemos a galeria e a drenagem. Depois nós passamos para a construção da casa dele.
P/1 – Na Granja Marileuza?
R – Na Granja Marileuza. Era uma mansão mesmo. A mansão dele. Aí nós terminamos o nosso serviço e fomos fazer o serviço de lá, nosso serviço era... O meu serviço depois era trabalhar… Tinha que fazer esse paredão. Quem conhece lá já viu que é tudo cercado de uns paredão de concreto, e tudo passou na nossa mão lá. E então nosso serviço era fazer aquilo lá, tanto ________ quanto ao redor da granja lá.
P/1 - Aí o seu tempo de lazer. Como é que você despendia esse tempo de lazer? No final de semana...
R - Não tinha muito. Porque lá era assim. Nós entrávamos às oito horas da manhã e saíamos às cinco e meia. O almoço também era lá. Não tinha como almoçar na cidade, em casa. Trabalhávamos aos sábados das oito até às dezesseis horas também. Seu Alexandrino não tinha esse negócio. Todo sábado tinha que trabalhar, porque ele queria mudar pra casa dele também. Então a gente trabalhava direto. Só tinha um pouquinho do sábado e o domingo pra descansar.
P/1 – O que você gostava de fazer no domingo, como lazer?
R – Era jogar bola.
P/1 – Sua paixão.
R – Quando não estava jogando bola, estava lendo.
P/1 – O que você gostava mais de ler?
R – Sempre gostei de tudo quanto foi parte de Filosofia. Quando era mais novo, eu tinha a coleção completa do Tex Willer. Quando eu fui apanhando mais idade, eu comecei a ler mais coisas de Filosofia e Psicologia. Porque quando eu parei de estudar, quando eu vim pra Uberlândia, que papai fez de tudo pra eu estudar, eu saia de lá da Granja Marileuza e chegava em casa às seis horas da tarde estourado. Aí eu fui... Também não dava. Aí durante muito tempo eu fui enrolando, enrolando e não estudei. Mas eu tava sempre lendo. Jamais eu parei de ler. Porque a minha vontade era fazer... Se eu voltasse a estudar era fazer ou Educação Física ou Psicologia.
P/1 – E nessa casa, sozinho, você cuidava da sua roupa, fazia comida e tudo?
R –Tudo. Eu só pagava pra lavar, mas passar eu que passava.
P/1- Nunca quis morar com colegas?
R – Não, porque eu via muitos exemplos na época. Via pessoas que moravam sozinhas ou só com um parceiro. Em casa tinha várias pessoas, sempre tinha problema. Então como eu sempre fui precavido pra não ter problema... Eu não bebo e não fumo. Não gosto de nada de jogo de azar. Então o que eu fico fazendo? Prefiro morar sozinho. Porque aí eu evitava problema de bebida, evitava problema de fumo, que também eu não gosto de maneira nenhuma. Então eu preferi morar sozinho.
P/1 – Francisco, nesse tempo de construção da casa da granja, o Seu Alexandrino era muito presente lá? Estava sempre lá?
R – Todos os dias. Eu tinha uma filosofia: quando ouvia um barulho lá em cima, na descida da... Ou então via um reflexo, era a Veraneio que estava descendo. Aí todo mundo... Aqueles que estavam parados arrumavam um jeitinho de fazer alguma coisa, que mesmo ele não enxergando de longe... Mas o Waldemar Júlio (ou Júnior), que estava sempre com ele, que era quem andava com ele pra baixo e pra cima sempre dava o toque: “Tem gente parada.” Aí ele comparecia. Mas todos os dias, sem falta, ele percorria todos os canteiros de obras dele. Onde tinha gente trabalhando ele estava lá, presente, pra ver como estava acontecendo. Era todos os dias.
P/1 – E ele deixava recomendações? Como era o comportamento dele na obra?
R – Não. Ele não deixava recomendações. Simplesmente ele queria que fizesse as coisas da maneira como ele achava que tinha que ser feito. Muitas vezes ele pegava no pé mesmo. Isso era fatal, não tinha jeito. Era sempre exigente. “É assim que eu quero e assim que tem que fazer”. Se estivesse feito tinha que desfazer pra fazer do jeito como ele queria. Se ele chegasse: “Ah, mas não foi essa...” “Foi assim que o senhor pediu.” “Mas eu quero que muda.” “Mas o senhor pediu pra fazer do jeito...” “Eu estou te pagando pra fazer. Então faz.” Com ele não tinha esse negócio, tinha que fazer. A opinião dele, do jeito, da maneira como ele achava.
P/1 – Teve algum (entrevero?) com você que tivesse ficado marcado?
R – Ele sempre pegava no meu pé. Desde o início quando eu fui pra lá eu sempre gostei de trabalhar mais à vontade. Então como lá era na fazenda, a bota de borracha, tinha que usar bota de borracha que era obrigatório por causa do brejo, e eu trabalhava só de calção e todo mundo tinha o maior medo dele. Um dia ele chegou lá e falou pra mim assim, falou pro Nelson: “Nelson, o rapaz está pelado, Nelson.” Aí o Nelson me chamou e falou: “Veste a blusa de pressa”. Falei: “Senhor, eu não vou vestir, estou trabalhando. Eu gosto de trabalhar desse jeito, porque o suor me incomoda.” Passou. Quando foi alguns dias depois ele chegou lá de novo. Eu estava tirando barro pra fazer o berço da galeria. Ele chegou lá e falou assim pra mim: “Moço, corta o cabo dessa pá.” Era mais de dois metros de altura, eu tinha que ter uma pá com o cabo grande pra eu jogar lá longe pra não tapar o buraco que a gente fez, a gente estava fazendo o tablado e tinha que deixar aquele espaço pra gente trabalhar lá dentro. Então tinha que jogar de lá do buraco. Aí ele resolveu implicar comigo. Todo dia chegava lá e falava assim: “Moço, corta o cabo dessa pá”. Eu falei assim: “Seu Alexandrino, eu não vou cortar o cabo dessa pá, eu que estou trabalhando”. Passou uns dias e alguns dias depois ele chegou lá e de novo: “Moço, não cortou o cabo dessa pá?” Falei: “Não vou cortar, Seu Alexandrino”. Ele falou assim: “Então enche a pá.” Falei: “Eu não vou encher a pá. Se eu encher a pá eu vou ter que trabalhar o dia todo. Daqui a pouco estou cansado e não vai render.” “Eu estou te pagando.” Falei assim: “Não, não vou fazer Seu Alexandrino.” Você é um ladrão, se não faz o que eu mando é um ladrão.” Eu falei assim: “Seu Alexandrino, dá licença.” Peguei, sujei aquela pá cheinha de barro, enchi ela e joguei tudinho nele. Aí sujou o terno dele tudinho, aquele terno bonito. Ele estava com um azul bem clarinho, bonito até. Aí todo mundo... O Nelson pôs a mão na cabeça, correu lá, foi limpar o Seu Alexandrino. “ Muito bem, meu filho. Eu gosto de homem assim. Tem que ser desse jeito. Quem rebaixa é puxa saco, é ladrão.” Aí eu deitava e rolava. Eu chegava lá e ele não falava mais nadinha (risos). Passei um ano e meio lá e pouco tempo antes deu ser transferido de lá, um dia ele chegou lá... Ele sempre queria as coisas da maneira... Os pés de jabuticaba que tem lá na chácara, quando fui por lá, tinha fruto, tinha fruto. Tava até maduro já. E então ele chegou lá… Tava eu, o Joaquim Pires, nossa turma todinha, e o Waldemar junto. Como ele não achou ninguém pra encher as paciências, o primeiro que ele encontrou fui eu. Seu Alexandrino falou assim: “Moço, pra que você está arrancando os torrões dos pés?” Falei: “Não sou eu não Seu Alexandrino, é porque vai puxando o trator, cai.” Mas não é pra você me responder. Eu quero que você fale por que?” Falei: “Não sou eu. Vai lá falar com Waldemar Suza(?). O Suza que anda retirando.” “Não interessa, vou te mandar embora.” “Então me manda embora.” “Você não pode fazer isso, meu filho.” “Seu Alexandrino mas eu não estou fazendo nada.” Aí chegou: “Joaquim Pires, manda esse homem embora, manda esse homem. Não quero saber dele. Ele já passou dos limites comigo.” “Ah, deixa pra lá.” O Waldemar chegou: “O que é que foi?” “Esse homem aí, ele só faz as coisas que eu não gosto.” Aí viu que não tinha nada a ver comigo. O primeiro que ele enxergava na frente era o culpado (risos). Tem uma cena muita engraçada. A piscina dele, num mês só nós desmanchamos ela quatro vezes. Arrancamos todos os azulejos e fez tudo de novo. Se ele não gostava de um detalhe, tinha que arrancar tudo e refazer de novo. É a coisa que mais deu trabalho.
P/1 – A piscina?
R – A piscina, aquilo lá foi cruel.
P/1 – A que tipo de detalhes ele se apegava?
R - Muitas vezes o azulejo não estava da maneira como que ele queria. Queria o azulejo na diagonal, não queria paralelo às paredes. O sentido das lâmpadas. Teve uma vez que quebrar tudinho, a lateral tudinho pra mudar umas lâmpadas. Então ele estava sempre achando um detalhe que ele não gostava. Ele era assim. Ele gostava muito, porque ele era muito inteligente. Quando ele falava um negócio, ele podia falar: “Aquilo está certo.” Mas muitas vezes ele era insistente com uma coisa que ele queria que ele queria que fizesse da maneira como ele queria. A gente podia até estar fazendo daquele jeito, mas ele queria ter a opinião dele sobre aquilo alí. O que valia era o dele. Uma vez estava terminando um serviço lá, depois que estava tudo pronto ele chegou e falou assim: “Moço, eu não quero desse jeito.”
Aí o Nelson falou assim: “Seu Alexandrino, o senhor que pediu pra fazer assim.” “Mas eu não quero mais desse jeito. Eu quero que arranque tudo.” Nós tínhamos acabado de fazer. O cimento estava até molhado. Tivemos que arrancar tudinho, dispensava um dia de serviço pra fazer do jeito que ele queria. Depois de pronto ele chegou pra mim e falou assim: “Mas é assim que eu quero agora. Tá vendo, ficou mais bonito.” Falei: “Seu Alexandrino nós não fizemos nada, nós só mudamos o negócio cinco centímetros.” “Mas tá vendo aí a diferença.” A maneira como ele enxergava, porque tinha a visão que aquilo ali era o melhor pra todo mundo.
P/1 – Certo.
R- Porque ele era esperto. Uma vez teve um serviço pra fazer pra filhas dele lá, uma tubulação. Ele chegou pra mim e disse que queria que eu fizesse lá. Eu disse: “Eu não vou fazer.” “Você vai fazer.” “Não vou fazer. Se eu fizer e der errado o senhor vai falar que eu que fiz. Aí o senhor vai dar a bronca em mim. Eu não vou fazer.” Aí passou. Uns dias depois ele chegou lá e disse assim, pro Luis que era o sobrinho dele, pai do Darcy. “Luis, você já fez?” “Não, ainda não” “Então vamos lá fazer agora.” E aí a gente foi fazer e quebrou o cano. Ele falou tanto, falou tanto. Eu falei: “Seu Alexandrino, tá vendo? Se eu tivesse feito igual o senhor falou, tinha acontecido a mesma coisa.” “Mas não interessa, tô te pagando pra fazer. Falei: “Ta vendo, eu não vou fazer mais. Eu que ainda ouvi. Então eu sei que dá errado. Ele sabia que estava errado e o senhor queria que eu fizesse daquele jeito. Por que? Pra poder dar a bronca em alguém. Ele era sempre desse jeito.
P/1 - Acabou quebrando o que ali?
R – Um cano. O cano lá... Como lá era poço era artesiano, a água é muito forte. Então qualquer pancadinha que desse no cano, ele estourava. E eu já tinha visto acontecer em outras vezes lá mesmo, então eu já fiquei esperto. Falei: “Não faço.” Ele podia pedir, mas eu não fazia.
P/1 – E quando a casa ficou pronta?
R – Nem festa não fizeram. Por incrível que pareça. O pessoal trabalhou lá. Eu trabalhei um ano e meio lá. O pessoal trabalhou dois anos, nem festa fizeram pro pessoal que trabalhou lá direto. Porque era muito restrito. Doutor Luis sempre ia lá. Doutor Luis sempre foi muito legal. Então às vezes ele chamava o pessoal que guardava o vinho lá na adega lá. A gente tinha acesso a tudo, mas ninguém mexia porque era tudo contadinho. Então ninguém sabia que podia mexer em nada. Ele sempre chamava e dizia: “Vamos tomar um vinho aqui”. Ninguém ia porque... Devido ao respeito com ele. Porque se acontecesse qualquer coisa, era difícil pra explicar.
P/1 - Mas estava ficando bonito?
R – Não. Hoje em dia está bonito, porque está tudo bem floradinho, está muito bem arborizado. Mas antigamente eu não achava muito bonito não. Por dentro é muito bonita a casa. Mas por fora antigamente era feio. Eu achava.
P/1 – Muita pedra, muita madeira?
R – É, todas aquelas pedras expostas. Eu tenho fotografia que eu tirei lá do grupo lá de fora, quando a gente estava construindo. Particularmente eu não gostei muito. Por fora. Na época. Hoje está mais bonito. A arborização ao redor dela todinha. As pedras foram envelhecendo, então dá um aspecto mais bonito. Mas enquanto estava novo não era bonito.
P/1 – E a dona Maria ia lá também inspecionar, ver?
R - Não. Dona Maria raramente ia lá. Assim mesmo, ela ia lá só um pouquinho, acompanhar Seu Alexandrino, mas ele ficava lá e ela ia lá direto pra casa do caseiro, do Zé Carvalho. Ela ia direto pra lá e depois de lá ia embora.
P/2 – Chiquinho, mas você disse que vocês almoçavam. Como era? Vocês tinham que levar o almoço?
R – Tinha que levar e esquentar todo dia. Inclusive isso me deu um problema sério de estômago.
P/2 – Por que?
R – Mas depois o médico disse que devido a comida, como ela era esquentada na areia e ela formava a rapa por baixo e quando ficava fechada também, ela juntava um gás. E aquilo lá me deu um problema muito sério de estômago em mim, na época. Então eu parei de... Hoje em dia, comida esquentada assim, nunca mais.
P/1 – Como é que se esquentava na areia? Como isso funciona?
R – A gente fazia assim: a gente fazia o fogão, arrumava uma lata, e no fundo da lata punha bastante areia quando estava ali e fazia… Então punha todas as marmitas dentro da areia e ela conservava. E ali ela esquentava por completo, mas tinha esse problema. Mas era muito gostoso. A rapa fica muito gostosa esquentada na areia.
P/1 – Você mesmo preparava essa comida?
R - Não. No caso eu ia lá na casa da minha tia e minha tia preparava pra mim. Eu sempre fazia e quando eu não tinha ia lá buscar pra comer, porque a gente era vizinho assim. Morava meio quarteirão um do outro. Ela morava no início do quarteirão e eu morava no meio do outro quarteirão. Então quando eu não fazia em casa, ia lá e buscava dela.
P/1 - E o que você levava normalmente pra comer?
R – Arroz, feijão, macarrão, a minha comida predileta é feijão, macarrão e maionese. E era só. Uma carne, quando tinha carne de frango, que eu não gosto muito de carne vermelha.
P/1 - Tinha um tempo assim pra almoçar e descansar um pouco?
R – Tinha uma hora só. Geralmente nós nunca cobríamos esse horário de uma hora. Geralmente a gente terminava de almoçar, dava só um quilinho e já começava a trabalhar. O serviço tinha que render devido a inauguração, que eles queriam fazer a inauguração mais rápida possível. Então a gente tinha que sempre adiantar o serviço. Então o nosso almoço era almoçar, fazer um quilinho e trabalhar de novo.
P/1- E o transporte era Seu Alexandrino que dava?
R – Era. Quem fazia era o Joaquim Pires.
P/1 – E saindo da casa, o que você foi fazer?
R – Eu saí de lá antes de terminar. Foi três ou quatro meses antes de terminar a casa. Aí entrou um engenheiro lá na época pra fazer o acompanhamento da obra, e um dia cheguei assim e nós conversando, falou: “O senhor não precisa estar aqui até hoje. Vou arrumar um lugar pra você, melhor.” E foi na época que estava construindo o prédio da 232. Falou assim: “Vou te transferir de prédio e de lá vou arrumar uma outra colocação pra você, melhor do que essa que você faz. Você não merece ficar nisso aí. Aí eu fui transferido, fui transferido como servente, ajudante de servente, porque eu ficava mesmo e meu negócio era frisar. Você sabe que frisar é... Onde tem aquele tijolinho à vista, você fica limpando no meio deles pra ficar aquele vão ali. Então meu negócio era aquilo lá. Não fazia mais nada a não ser aquilo lá. Aí fiquei na 232 de… Foi julho, agosto e setembro. Em setembro eu fui pra portaria. Fiquei três meses na construção ali, que foi rapidinho o prédio. Aí consegui uma transferência pra portaria. Como eu era muito jovem, o Seu Wilson falou: “Não pode ficar aqui, porque aqui tem que ser uma pessoa mais velha.” Aí me arrumaram um lugar lá na limpeza, como chefe da limpeza. Mas também não me aguentaram. Ficaram só um mês comigo lá. Aí um dia o Seu Leonardo falou… Como eu cuidava lá da área da Algar, onde era a CTBC, eu comandava o pessoal da limpeza tudinho ali. Aí um dia ele falou assim: “Nós estamos precisando de alguém aqui no Almoxarifado”. Aí quando eu já estava ali na limpeza, todo dia estava Alexandrino lá dentro, olhando o serviço do pessoal lá. Ele falou assim: “Você quer vir trabalhar aqui dentro?” Eu falei: “Eu quero.” E mesmo quando foi no outro dia eu já estava de serviço novo”.
P/1 - Você encarava o Seu Alexandrino, hein?
R – Era a mesma coisa. Só que como o pessoal continuava sendo mais velho que eu, sendo a maioria todas mulheres, o serviço deles era a noite, eu trabalhava durante o dia e quando o pessoal ia à noite, eu vinha verificar o que o pessoal da noite que são os que tinham que fazer toda a limpeza completa. Então eu chegava lá e sempre via. Principalmente na sala de Seu Alexandrino, que tinha que ser tudo bem limpinho. A sala do Doutor Luís e do Seu Wilson tinha que ser tudo bem limpinho. Então eu chegava lá e olhava tudinho. Aí um dia, todo mundo começou a reclamar com o Cícero. Porque na época o Cícero era o responsável pelo TH, e eu o responsável pela limpeza toda, e do pessoal de limpeza, todos conhecidos. Aí começou a reclamar demais, reclamar que pessoal não estava gostando de mim. Eles não gostavam de mim porque no almoxarifado queria que ficasse tudo limpo. Mantinha o pessoal lá sempre bem limpinho. Tinha reservado duas pessoas só pra trabalhar lá. Aí como ele gostou de mim, então ele falou: “Então você quer vir, venha.” Então foi lá conversou com o Cícero. “Não, vou passar ele pro almoxarifado”. Eu não fiquei nem quarenta dias com o pessoal da limpeza, porque eles não me aguentavam.
P/1 – E aí, o que você foi fazer no almoxarifado?
R - A princípio eu estava ajudando o pessoal da distribuição. Na distribuição já trabalhava o José Antônio e o Carlos Borges. Eram os dois. Aí eu fui ajudar eles. Eu fui aprender o serviço primeiro. Eu via eles fazerem, até aconteceu um negócio engraçado. Como eu fui pra lá no início de dezembro de 82, aí eu cheguei lá um dia… Como era muito material que tinha pra trabalhar, as pessoas trabalhavam muito, mas muito mesmo, no almoxarifado, sempre tava vendo aquele monte de material, aquelas coisas miudinhas, os parafuso, os fechos, tudo coisa que era miúda, eu sempre mandava um pouquinho a mais. Eu pensava assim, comigo: eu tenho que mandar a mais porque se o cara perder uma quantidade, o cara tem ali. Principalmente porca e o parafuso. Eu mesmo não me dava conta que tudo era... Que na época era kardex, não tinha computador, era tudo kardex, a ficha que eles passavam pra mim era a ficha que eu rebatia no kardex. Aí quando chegou no final do ano, nos últimos dias de dezembro, nós fomos fazer o inventário, mas tudo deu diferença. Tudo o que era pequeno deu diferença. Aí cheguei pro Marcelo(?) e falei assim: “Marcelo, eu sei que ta dando diferença, porque toda vez quando tem coisa pequena eu estou mandando um pouquinho a mais porque se os caras perderem lá não vai parafusar uma torre. Cada torre vão três parafusos. Mas se eles perderem um, vai ficar faltando um parafuso? Então eu sempre mando um pouquinho a mais.” Tomei uma bronca. Porque não podia, porque era tudo controlado tudo certinho. Aí eu fui aprender. Eu tinha menos de um mês de almoxarifado. Aí eu fui aprender lá dentro. Tudo ali era contadinho, tudo arrumadinho. Mas era um negócio que acontecia e que a gente achava até engraçado depois.
P/1 - O Seu Alexandrino ia lá no almoxarifado com alguma frequência?
R – Ia. Todo dia ele dava uma passadinha lá pra conversar com o Augusto, com o Agostinho. Ia sempre uma horinha lá, principalmente de sábado. De sábado no almoxarifado nós tínhamos plantão. A gente tinha plantão devido Seu Alexandrino, porque virava e mexia, quando a Granja Marileusa não tava terminada ainda, por completo, sempre precisava de alguma coisa. Então ele ligava lá pro almoxarifado e falava pra gente assim: “Olha, eu quero que compre isso aqui”. Não interessava se fosse comprador ou não, tinha que comprar porque ele queria. Aí a gente já sabia. Faltasse alguma coisa ele ligava pro Osvaldo Oliveira. O pessoal do Osvaldo Oliveira já sabia do jeito que ele gostava e já arrumava as coisas pra nós. Muitas vezes ele ligava pra lá. “Quem está falando?” “É o Chiquinho”. “Seu moço, eu preciso disso aqui urgente, esse material aqui na granja.” “Mas Seu Alexandrino, não tem...” “Não interessa. Arruma, arruma. Dá um jeito.” Aí tinha que arrumar. Não tinha jeito. Ele falou... Todo sábado a gente fazia plantão. Isso até terminar a granja Marileuza. Depois acabou o plantão.
P/1 – Ele tinha um ódio (se a palavra é essa) visceral pelo desperdício. Ele não gostava...
R – Inclusive, lá na granja Marileuza, na época que... Em oitenta, 81, teve um frio muito grande naquela época. Chegou a cair uma geada por lá, que lá era uma baixada. Quando não tinha nada não tinha como trabalhar, nós tínhamos que desamassar prego. Desamassava os pregos todinhos, mandava pro almoxarifado e passava pras obras. Tudo era aproveitado, não desperdiçava. Tava lá… Quando a gente tava fazendo um serviço lá, o que dava pra aproveitar, se tava a marca dos pregos tudinho, devido as formas, ele mandava recortar, ou não dava pra pregar mais e aproveitava o restante pra uma coisa menor. Então era tudo sempre aproveitado. Ele falava assim: “Um clipe faz muita diferença. Se você achar um punhado de clipe, você não precisa comprar.” Ele realmente tinha sim uma visão muito boa do desperdício. O que não acontece hoje em dia. Realmente nessa parte, ele era muito categórico e muito inteligente, porque realmente sabia fazer aproveitar as coisas. Eu lembro uma vez, nós estávamos no almoxarifado e ele chegou com uma escada velha, toda amassada, dessas escadas caseiras. Aí ele chegou lá e falou com o seu Tião assim: “Tião, arruma aqui. Arruma aqui. Quero essa escada novinha. Eu achei lá no lixo. Ta vendo? Vou economizar.” E depois economizou, porque ficou com o pessoal da limpeza. Por que? Porque sabia aproveitar. Não era o recurso de dinheiro, mas sim de aproveitamento, porque era um negócio muito interessante. Você vai aproveitando e a medida que a gente vai aproveitando, a gente vai economizando. Muitas e muitas vezes eu chegava com um clipe que ele achava no chão e dava pro pessoal lá do almoxarifado. Chegava lá pra pro almoxarifado, chegava lá e falava pro Seu Leonardo: “Olha aqui, está vendo? Estão desperdiçando.”
P/1 – Francisco, esse almoxarifado era grande, era almoxarifado central da Companhia, não era? Como que funcionava o esquema lá?
R – Era. Nossa área lá era de 3500 metros quadrados de almoxarifado. Teve uma época que a gente tinha notícia que era o maior galpão que tinha em Uberlândia. Depois é que começou a aparecer galpões maiores, mas na época, na década de oitenta, era o maior de Uberlândia. Era estrutura enorme. Nós tínhamos mais de quinze mil itens em estoque. Nós trabalhávamos das oito, a maioria dos dias, até às 22 horas, 23 horas. Todos os dias.
P/1 - E como era gerado o controle de todo esse material?
R – A princípio, na época era kardex. Quando eu mexi lá era kardex.
P/1 – Como é que é kardex? Que tipo de controle era esse?
R – Kardex é aquele sistema de arquivo com várias fichinhas que você tem que colocar o nome, a quantidade de entrada e de saída, pra você fazer o controle era tudo manual. Tinha uma pessoa que estava por conta só de mexer com o kardex. Tinha outra pra tirar nota fiscal. O pessoal era escalonado pra poder trabalhar. Aí em 83, 84 passou a ser (Bul?), aí já passou pro computador.
P/1 – Bul? Era mais fácil.
R - É, do grupo.
P/1 – Vocês se adaptaram ao computador? Como que foi? Melhorou o trabalho?
R – Melhorou bastante porque agilizou mais. Nessa época eu continuava ainda na distribuição. Quando foi pra fazer a implantação do Bul, o José Antônio saiu da distribuição e eu fiquei na distribuição, no lugar dele e ele foi fazer a implantação. Foi em 83 mesmo. Aí onde eu peguei também e resolvi fazer uma coisa diferente. Na época, no almoxarifado, não tinha... E aonde chegava e tinha um cantinho, chegava e guardava aquele material naquele lugar. Não tinha lugar certo, não tinha nada determinado: aqui vai ser luva, aqui vai ser o querosene, aqui vai ser o tiner. Não tinha nada disso. Aonde chegasse e tinha um espaço, guardava. Daí eu peguei e falei assim: “Vou fazer diferente”. Peguei uma mesa, pus lá na frente, de frente a mesa de Zé Leonardo, e falei pro pessoal da recepção. “Todo material que chegar vocês entregam pra mim que eu guardo no lugar.” Na época, eu ainda não conhecia, mas eu tinha visto a máquina Rotex, uma rotuladora. Falei: “Eu quero uma máquina daquela ali”. Aí comecei a etiquetar todas as prateleiras, onde ia cada coisa. Hoje em dia você vai ao almoxarifado, no piso ainda tem muita marca que eu fiz, muito nome que eu escrevi. Então chegava lá: “Eu queria isso aqui.” Pronto. Então começou tudo... Porque no kardex não tinha locação, não tinha nada. Aí no computador começou a criar espaço pra locação. Quando saia a ordem de separação, já tinha lá a locação em local determinado. Então uma pessoa já ia lá. No início, um dia eles disseram: “Mas o que você vai fazer com isso aqui?” “Vou fazer isso aqui.” “Mas você é da distribuição.” “Mas eu não vou mais pra distribuição. Vou ficar aqui.” Aí foi a contragosto, ele chiou muito, mas não teve jeito. Eu acabei ficando lá, porque todo mundo achou uma maravilha do jeito que eu queria fazer. E ficou. Mesmo contra a vontade dele, mas eu fiquei fazendo o que eu queria.
P/1 – Você criou um método, né?
R - E assim, aos pouquinhos fui educando o pessoal, que o Seu Leonardo era assim: como ele era parente, ele achava que tudo que ele falasse tinha que ser cumprido. E realmente tinha que fazer as coisas também da maneira como ele achava. Uma vez ele falou pra mim assim, quando eu comecei a fazer ele falou: “Isso aqui vai dar errado” Uma semana depois falou: “Você tem que fazer desse jeito.” “Mas é desse jeito que eu estou fazendo.” “Ta achando que eu esqueci o que eu te falei aquele dia? Não esqueci não. Continuei do mesmo jeito”.
P/1 – Francisco, como é que funcionava? Era um almoxarifado central que recebia pedidos de todas as regionais? Saia tudo de um lugar só? Não era um processo meio complicado não? Muito gigante?
R – Não, não era.
P/1 – Como funcionava isso? Patos de Minas está precisando de porcas e pregos. Como é que ele faz?
R – Era tudo passado uma solicitação que eles tinha que fazer um planejamento anterior, e a gente escalonava as viagens. Por exemplo, quem ia pra Patos de Minas, então ia sair uma carreta pra Patos de Minas e Pará de Minas. Então deixava em Luz, Patos de Minas, Carmo do Paranaíba, Luz, Nova Serrana, Luz, chegar a Pará de Minas. Então a gente escalonava assim, a gente programava tudo o que ia naquela carga, a gente separava com antecedência, que também eu que arrumei os espaços tudinho, como era pra separar as cargas, que antigamente também não tinha. Nós fomos arrumando. Aos poucos. Então eles faziam o pedido e tudo saia daqui. Por que? Como a gente comprava pra todas as empresas do grupo, saia mais barato. Até vim o desmanche do almoxarifado. Foi a descentralização que acabou... Hoje em dia, quem é remanescente, sabe muito bem que não foi uma boa.
P/1 – Mas isso não economiza custo de transporte?
R - De maneira nenhuma. Acaba saindo mais caro, porque muitas vezes você compra uma coisa lá pra Franca. Você comprava aqui, mas hoje em dia tem um problema. Vai pra Franca, mas só que eles compram menos. Acaba saindo mais caro. Muita coisa, hoje em dia, nós chegamos à conclusão que acaba saindo mais caro. Por exemplo, hoje você compra cabos. Hoje em dia. Vem aqui pra Uberlândia, tem uma série de gastos pra depois você mandar de volta pro local. Antigamente você comprava tudo de uma vez só. Hoje compra, mas fica assim, naquele vai e volta. Também o planejamento é diferente. Os fios antigamente, a gente comprava o fio drop que é uma coisa essencial numa instalação, a gente comprava um milhão de metros, dez milhões de metros. Chegava lá várias carretas. Saia baratinho, porque a gente comprava muito. Hoje em dia, comprar mais barato sai mais caro.
P/1 – Certo. Me diga uma coisa. O fato de ter muitos itens diferenciados, não criava problemas de gestão desse estoque, de forma a dividi-lo melhor de acordo com a demanda? Porque o que me chama a atenção é o gigantismo desse almoxarifado. Como é que vocês conseguiam... E você está me dizendo que a descentralização foi ruim.
R – Pra quem lembra, a descentralização foi ruim. Não trouxe grandes proveitos igual eles queriam que fosse, na concepção deles. Mas na época era tudo... Nunca tivemos problemas. Tivemos assim, alguns casinhos, algumas coisas hilárias que aconteceu.
P/1 – Por exemplo.
R – Na época, na auditoria da Artur Anderson, nós tínhamos um colega nosso, um novato. Aí tinha dado diferença de dois rolos de fios. No universo de mais de mil rodas, é pouco, quase quinhentos mil metros de fios. Aí eu cheguei lá e falei assim: ”Felício, o Laércio escondeu dois rolos de fio”. Enquanto levava o pessoal da auditoria pra um lado e contava de um lado, o outro foi lá e tirou o negócio e escondeu.. Aí nós lá, todo mundo contando lá, e o Zé Antônio seguindo o rapaz lá da auditoria e mais o Marcelo, e eu fiquei de verificar se o pessoal não estava mexendo em nada e ajudando. Aí o Felício pega e fala: “Mas de novo. Ele está dando de esconder dois?” (risos) Então o negócio era assim. De vez em quando acontecia uns fatos que era até engraçado. Um negócio que tinha que ser sigiloso, o cara vai e fala na maior altura, pra todo mundo ouvir que tinha escondido. Mas nunca tivemos problemas assim. Inclusive até hoje, eu tenho guardado lá comigo vários inventários que nós fizemos, umas apostilas, tudo guardado. Depois podia ir até pro museu, porque hoje em dia não tem.
P/1 – Com essa recuperação do grupo, houve, portanto, essa nova configuração no almoxarifado. E você continuou fazendo o que, nessa sua trajetória?
R – Foi em 91 que acabou o almoxarifado, que descentralizou. No final de 92. Aí eu fui pro Departamento de Compras. Fiquei dois anos no Departamento de Compras. Não gostei de ficar trancado numa sala. A mesma rotina todo dia, as mesmas pessoas. Aí eu falei assim: “Não, quero ir pra outro lugar. Se tiver uma vaga em algum almoxarifado eu quero voltar pro almoxarifado”. Aí abriu uma vaga lá no 232 e eu vou depois pro 232. E aí acabou voltando todas as compras na época, voltou pro almoxarifado de novo. Tudo que tinha descentralizado acabou voltando pro almoxarifado. Um negócio que eles queriam acabar, acabou retornando. Mas eu não gostei. Fiquei dois anos lá em Compras. Era a coisa mais sufoco, ficar trancado dentro de quatro paredes, com as mesmas pessoas todo dia, todo dia.
P/1 – Cotando preço, levantando...
R – Meu serviço sempre foi esses dois e cadastro de itens. Não era minha sina ficar parado.
P/1 – Você conseguiu sair desse setor, de compras?
R – Saí, voltei pro almoxarifado.
P/1 – E esse almoxarifado é onde você está até hoje?
R – Bom, hoje em dia eu estou na (Price?). Mas eu fiquei… Até janeiro eu estava lá.
P/1 – Como é que foi essa transição. Você já não pertence mais aos quadros da CTBC?
R – Não, pertenço.
P/1 – Ah, sim. Então vamos falar… Vamos de novo nesse processo 232, que você foi pra lá tomar conta do almoxarifado.
R – Em noventa e… Pensando. Em 92, Cleide, teve o processo da qualidade não foi? Primeiro? Foi em 92.
Cleide - Com Mário Grossi?
R – Foi em 92 o processo de qualidade. Aí em 92 a Cleide também pode me ajudar aí, a CTBC teve um processo. Desde o início de 92 existe o controle de qualidade, o primeiro controle de qualidade da CTBC. Aí cada departamento tinha que escolher uma pessoa pra concorrer, e acharam que eu devia me inscrever. Olha, um tímido, calado. Foi há quanto tempo, Cleide?
Cleide – Bom, você foi escolhido no Talento Qualidade da CTBC. Foi o primeiro.
R – Foi em julho? Começou em julho, não?
Cleide – Teve a seleção no departamento, e de todos os indicados dos departamentos...
R – Foi tirando. Aí no fim sobrou... Tava eu, mais o Rogério Rufino. Tinha um de Itumbiara, o Zé Luis, de Batatais, Dionísio de Itumbiara, o Tércio de Patos de Minas, na época eu era de Frutal. Na época foi assim: A Companhia tinha que seguir o controle de qualidade. Na cotação teve vários processos. Eu acabei sendo eleito. Final de 92.
P/1 – O primeiro?
R – Primeiro.
P/1 – Como é que era? Quando começou essa cultura de qualidade na Companhia, como que isso chegou a você? Já tinha alguma experiência do trabalho, fazia bem feito?
R- Pra nós lá, eu participei de todos os cursos de qualidade que teve na CTBC, que era o CCQ da época, era o Círculo de Controle de Qualidade. A gente tava sempre procurando. Eu era o que menos falava, mas era o que mais procurava fazer. Então eu acho assim, que muitas vezes, falar demais também não resolve. Tem que pôr a mão na massa mesmo, chegar junto. Eu sempre procurei fazer o melhor. No almoxarifado eu sempre procurei fazer o melhor também. Então de tudo o que tinha lá, eu procurava economizar, procurava ajudar, procurava fazer da melhor maneira possível. Pra que? Pra fazer o negócio com qualidade mesmo. Aí o pessoal foi gostando da minha maneira de trabalhar também, onde me ajudou na época, nesse tipo de talento e qualidade.
P/1 – O que isso significou pessoalmente pra você, ter ganho essa...
R – Ah, foi uma satisfação muito grande. Eu cheguei até a chorar. (riso emocionado). Nós estávamos lá no Center Shopping, escutando o Brechó (Band?) “Você vai falar.” Não dei conta de falar. Aí sinceramente, foi... Aí o pessoal: “Você tem que conversar mais um pouco, tem que soltar mais.” Mas de que jeito? Eu nunca fui de conversar muito.
P/1 – Você está conversando bem. Isso mudou muita a cultura da empresa quando essa questão da qualidade começou a ser mais praticada?
R - É só entender. A gente viu, hoje em dia, que muita coisa melhorou. Muito, muito mesmo. Na época do Seu Alexandrino tinha qualidade também. Não é que não tinha, é que não era exposto. Hoje em dia o pessoal procura expor pra mostrar que tem qualidade. E o que dá lucro se fazia as coisas com qualidade, mas escondido. Realmente o pessoal viu que tinha que ter qualidade, mas hoje em dia, se tem qualidade, tem que exaltar essa qualidade. Antigamente não era exaltada a qualidade. Era uma coisa corriqueira, porque era uma coisa que a gente tinha que fazer. Então tinha que fazer com qualidade. E hoje em dia acha-se bonito falar: “Ah, estou fazendo com qualidade”. Sempre foi feito com qualidade. Assim eu penso. Sempre foi feito com qualidade, só que não era endeusada. A qualidade não era endeusada.
P/1 – Você diria que o seu pulo do gato estaria em você embutir qualidade em todos os processos, não apenas naquilo que você faz, mas aquilo que o outro faz, de todo mundo estar irmanado em torno do mesmo objetivo?
R – Claro, claro, porque muitas vezes só da pessoa ver que realmente está fluindo, ele melhora. Mas sempre tem as pessoas que acham que: “Não, isso aí não vai... Não tem futuro”. Nós tivemos sempre pessoas que têm essa visão. “É que não é desse jeito”. A qualidade realmente é no que ta fazendo.. “Eu estou fazendo isso aqui... Eu vou por essa cadeira aqui, arrumadinha”. Não é uma qualidade? É… Porque se você chega e joga ela, você vai estragar. Aquilo não é qualidade, Isso não é tratar com qualidade. Se alguém vê você fazendo aquilo, vai imaginar: “Se ele trata um negócio que não é dele desse jeito... Que futuro tem?!”.
P/1 – Como é que disso derivou essa sua inserção nesse Projeto do Cerrado, e _________?
R - Bom, isso aí o ______ chegou pra mim no primeiro dia de apresentação, ele falou assim: “Chiquinho, nós te chamamos porque você é a pessoa que... Uma das pessoas que conhece bastante de material da empresa. Você está acostumado a trabalhar com todos esses materiais, então você foi chamado pra ser uma pessoa escolhida, porque realmente conhece das coisas. Eu falei: “Muito bem, obrigado.” Então ele falou assim: “Se estiver realmente com vontade de participar, você pode falar.” “Claro que eu estou com vontade.” “Então você fica?” “Fico.” E estou até hoje, eu fui um dos primeiros a chegar lá.
P/1 – E o que consiste esse trabalho?
R - Não, isso aí foi da empresa que está sendo criada. Nós estamos criando ela, dando todos os passos certos, fazendo tudo como realmente a empresa deve funcionar. É uma questão de qualidade mesmo, funcionar com qualidade. Então a gente está fazendo vários levantamentos. O meu papel lá está sendo, tudo que as empresas têm que trabalhar, de material, de itens, e de fornecedores. Então o meu papel está sendo nesse sentido.
P/1 – Como você enxerga essa empresa daqui pra diante, pro futuro. Como você avalia o que vem pela frente?
R – Não é fácil estar dizendo isso, nunca sei. Trabalhando, trabalhando. Mas sem pensar nas consequências futuras.
P/1 – O que você diria pra uma pessoa que está chegando agora na CTBC, que está entrando agora na empresa. O que você diria pra ela?
R – O que eu gostaria que as pessoas fizessem, seria entrar com humildade, porque infelizmente muitas pessoas, hoje em dia, entram já vaidoso demais e muito cheio de si, sem um pingo de humildade. Isso não é bom. Até outro dia eu estava conversando com um colega nosso, que está há muito tempo na CTBC. Nós temos os mesmos pontos de vista. Hoje em dia as pessoas já chegam achando: “Eu sei de tudo”. E não sabe nada não. Não passou por nada que nós passamos na época. E muitos que na nossa época era muito cheio de si, não continuam na empresa. Nós ainda continuamos com a mesma humildade, ainda.
P/1 – Francisco, está OK. Agradeço bastante. Eu queria saber o que o senhor achou de ter dado esse depoimento pra nós. Como você se sentiu?
R – Quando eu tava vindo, até falei pra ______. O coração tinha disparado. Falei: “Será que eu vou dar conta de falar?” Então pensei: tudo tem a hora certa pra gente fazer as coisas. Tudo é programado. A gente nunca faz nada que não seja programado espiritualmente. Então a gente tem que agradecer e continuar.
P/1 – Mas sabe que você falou bastante bem. Muito obrigado Francisco. Obrigado mesmo. Pra quem se dizia caladão, até que se desempenhou muito bem. Falou uma hora e meia direto. Quando você falou do Seu Alexandrino, você falou sozinho bem uns quinze ou vinte minutos. Você percebeu ou não?
P/1 – Muito obrigado. A gente não tinha tido ainda essa visão de suprimento de materiais.
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