Onde eu estava mesmo?
Por Angelo Brás Fernandes Callou
Não sei se acontece com vocês, mas todas as vezes em que vou procurar um livro nas minhas estantes, encontro outras coisas que chamam a atenção, e me disperso. Sempre foi assim. Estudo por dispersão, estradas vicinais. Não consigo ler um objeto apenas em si, destituído de relações com outros objetos e disciplinas, com a sociedade e comigo mesmo.
Tudo se relaciona, diz um dos princípios da dialética. E este parece ser o esforço hercúleo dos agroecologistas, para dar conta do campo interdisciplinar da Agroecologia. Arrisco dizer, entretanto, que a interdisciplinaridade só é possível quando começa em nós mesmos. Se não somos capazes de juntar lé com cré das nossas ações cotidianas, como seremos capazes de decifrar o mundo e modificar a sociedade, ou, numa escala plausível, o nosso entorno? É fácil encontrar pessoas, inclusive ostentando título de doutor, que não consideram, por exemplo, as árvores como seres vivos, pois as decepam por qualquer motivo fútil; existem as que jogam seu lixo na areia da praia, como um “direito cidadão”, pois pagam impostos para que outros façam a coleta por eles; e o que dizer dos que não usam máscara nos espaços públicos, contra a Covid-19, em plena pandemia?
Quando dava aulas no mestrado, lembro que saía do tema da sessão de maneira recorrente, indo muito além do que havia planejado. Não conseguia dessecar um texto com os alunos sem criar com eles, digamos, um hipertexto. Não perdia o fio da meada, embora, aqui e acolá, perguntasse: onde estávamos mesmo?
Nunca soube o que os alunos pensavam dessas estradas vicinais e quando me questionava se esta era uma estratégia pedagógica aconselhável para o alargamento do conhecimento, tinha dúvidas. Mas, quando recordava as aulas de Termodinâmica Técnica, do professor Albani Thomaz, na graduação, continuava a agir da mesma maneira. Professor Albani...
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Onde eu estava mesmo?
Por Angelo Brás Fernandes Callou
Não sei se acontece com vocês, mas todas as vezes em que vou procurar um livro nas minhas estantes, encontro outras coisas que chamam a atenção, e me disperso. Sempre foi assim. Estudo por dispersão, estradas vicinais. Não consigo ler um objeto apenas em si, destituído de relações com outros objetos e disciplinas, com a sociedade e comigo mesmo.
Tudo se relaciona, diz um dos princípios da dialética. E este parece ser o esforço hercúleo dos agroecologistas, para dar conta do campo interdisciplinar da Agroecologia. Arrisco dizer, entretanto, que a interdisciplinaridade só é possível quando começa em nós mesmos. Se não somos capazes de juntar lé com cré das nossas ações cotidianas, como seremos capazes de decifrar o mundo e modificar a sociedade, ou, numa escala plausível, o nosso entorno? É fácil encontrar pessoas, inclusive ostentando título de doutor, que não consideram, por exemplo, as árvores como seres vivos, pois as decepam por qualquer motivo fútil; existem as que jogam seu lixo na areia da praia, como um “direito cidadão”, pois pagam impostos para que outros façam a coleta por eles; e o que dizer dos que não usam máscara nos espaços públicos, contra a Covid-19, em plena pandemia?
Quando dava aulas no mestrado, lembro que saía do tema da sessão de maneira recorrente, indo muito além do que havia planejado. Não conseguia dessecar um texto com os alunos sem criar com eles, digamos, um hipertexto. Não perdia o fio da meada, embora, aqui e acolá, perguntasse: onde estávamos mesmo?
Nunca soube o que os alunos pensavam dessas estradas vicinais e quando me questionava se esta era uma estratégia pedagógica aconselhável para o alargamento do conhecimento, tinha dúvidas. Mas, quando recordava as aulas de Termodinâmica Técnica, do professor Albani Thomaz, na graduação, continuava a agir da mesma maneira. Professor Albani ministrava aulas, nem um pouco entrópicas, ao enriquecê-las com comentários sobre sua experiência estudantil na União Soviética e sobre literatura. Por sugestão dele, li a grande obra de Nikos Kazantzákis (1883-1957), Zorba, O Grego.
Foi a ausência, talvez, dessa “interdisciplinaridade subjetiva”, ou de consciência crítica, como se refere Paulo Freire, que possibilitou a proliferação de bolsominions, com seus discursos fascistas, ou dos negacionistas, o outro lado da moeda, que lotam os bailes sem máscaras, ao lado da minha prisão domiciliar, de dias e dias de isolamento social, embora sejam eles a cometer o delito.
Enquanto procurava nas minhas estantes O Poço e o Pêndulo, conto de Edgar Allan Poe (1809-1849), que já vinha de outra dispersão, como veremos, dou de cara com meu Diário do Alvalade (bairro de Lisboa), há cinco anos fechado. Por alguns momentos, Allan Poe ficou esquecido no meio do caminho.
O diário é um grosso caderno, em encadernação vintage (comprado na centenária e simpática Papelaria Fernandes, no Largo do Rato, na capital portuguesa, para anotações de minha pesquisa Cinema e Pesca, desenvolvida, inicialmente, na Universidade Nova de Lisboa). Relendo suas páginas, vi que não escapei também de trilhar caminhos diversos. Observei trechos de pesquisas que desenvolvi em jornais portugueses, na Hemeroteca Municipal de Lisboa, sobre o golpe jurídico-político de 2016 no Brasil; das viagens realizadas Europa adentro; de restaurantes e seus menus; das cidades de Portugal, que visitei; das canções folclóricas portuguesas – tão singelas; dos desenhos em guardanapos de papel, para futuras aquarelas, sei lá mais o quê; além, claro, das resenhas que fazia dos artigos lidos, pertinentes ao estudo, e de comentários pessoais aos filmes assistidos. Reafirmei para mim mesmo que há sempre pontos de contato em meio às aparentes dispersões. São eles, a meu ver, em última instância, que constroem os melhores caminhos do conhecimento.
Mas, a julgar pelas exigências atuais das universidades públicas e institutos federais de educação para que os professores preencham e assinem o PIT (Plano Individual de Trabalho) e o RIT (Relatório Individual de Trabalho), dificilmente teremos, daí por diante, docentes capazes de trilhar caminhos vicinais do conhecimento, de tão ocupados que estarão em esquadrinhar sua vida diária, por turno do dia, semelhante àquelas anotações que fazemos quando nos submetemos à Monitorização Ambulatorial da Pressão Arterial (Mapa). Desenterraram essa forma de planejamento, já experimentada no passado, como se nos últimos trinta anos o mundo não tivesse encontrado novas formas de gestão e de avaliação universitária. Na verdade, os objetivos do PIT-RIT são meramente produtivistas e de controle burocrático, e político, sobretudo, da atividade docente, agora sob a mão invisível dos softwares das tecnologias de informação e comunicação. Se há críticas à Capes quanto aos critérios produtivistas nas avaliações dos programas de pós-graduação no país, ao menos esses critérios não se voltam para a avaliação do professor individualmente, mas para o conjunto das atividades produzidas por eles, pelos alunos e pelas universidades, em que os programas estão ancorados.
Assim, o caráter estritamente individual do PIT e do RIT se transforma em máquinas de moer professores, homens e mulheres, de adoecê-los, de ceifar sua criatividade e seu livre pensar, sem que se observe uma palavra sequer sobre as condições oferecidas pelas instituições, para desenvolver o seu trabalho. Nenhuma. O professor passa a ser, neste formato, seu próprio empreendedor, tal como deseja impor o neoliberalismo brasileiro à população economicamente ativa do país, instituindo uma concorrência desigual entre os cidadãos, numa sociedade já inumanamente desigual; ao tempo em que solapa as organizações de representação dos trabalhadores. Tudo que é coletivo desmancha no ar. O sucesso ou o degredo do professor depende exclusivamente de seu desempenho, não das universidades e institutos de ensino superior. Estas se escondem covardemente por trás do PIT e do RIT.
O PIT-RIT é uma pá de cal em cima das iniciativas coletivas de produção do conhecimento, tão bem-sucedidas e desejadas mundo afora, inclusive no Brasil. O PIT e o RIT são bedéis caquéticos de controle virtual quantitativo na educação superior, numa releitura burra e burocrática do livro 1984 de George Orwell, nas universidades, em pleno século XXI.
Em 35 anos de vida acadêmica, nunca me perguntaram, por exemplo, que livros eu li fora da minha área de conhecimento, ou quais museus ou exposições de arte visitei e, sobretudo, que reflexões teci nessa dispersão para enriquecer minha prática docente e de pesquisador. Com o PIT e o RIT, a esperança disto um dia acontecer se esvai. Fica também sem chão a lei que desobriga professores a pagar bilhete cheio em atividades culturais ou artísticas, remetendo essa forma de conhecimento apenas ao nível do entretenimento. A transdisciplinaridade, por seu turno, almejada por muitos de nós, de ir além dos aspectos cognitivos do ensino-aprendizagem para desenvolver outras formas de construir conhecimento e de fazer educação, considerando as percepções subjetivas, por exemplo, diante de uma obra de arte, nossas emoções, nossos sentimentos, nossos aprendizados nas práticas solidárias, abordados, tanto por Pierre Weil, quanto por Roberto Crema, nos princípios da transdisciplinaridade – a Ecologia do Ser, a Ecologia Social e a Ecologia Ambiental –, se distanciam por um fosso quase intransponível imposto pelo PIT-RIT. Só Deus sabe o que virá depois! De sorte, cada dia estou mais distante da porta pela qual entrei aos 29 anos na universidade, com o sonho de ajudar os processos de redemocratização do país. O PIT-RIT é mais um retrocesso imposto à já combalida vida universitária.
Onde eu estava mesmo?
Não possuo O Poço e o Pêndulo. Apelei, então, à rede mundial de computadores, diante da urgência que sentia da leitura dessa obra. Acabo de lê-la.
Cheguei ao conto de Poe, a partir do que venho acompanhando sobre Julian Assange, jornalista australiano, que publicou documentos que revelam, entre outros fatos, crimes de guerra dos Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão. Refugiado na Inglaterra, as autoridades americanas querem a cabeça do jornalista a todo custo. Recentemente, uma juíza britânica impediu sua extradição para a América. Carol Proner discute o que está por trás dessa decisão.
Mas a melhor síntese desse processo é a matéria do jornalista Pepe Escobar, “A Saga Assange: praticar o verdadeiro jornalismo é criminalmente insano”. Respeitadíssimo no jornalismo internacional, Escobar põe a nu todas as intrigas do caso Assange – sórdidas, diga-se de passagem –, e dá aula de jornalismo, “para quien lo queira”, como dizia minha avó materna. A certa altura do texto, faz alusão a O Poço e o Pêndulo, associando-o à saga Assange, como uma espécie de reescritura do conto de Poe. Como deixar de lê-lo?
Edgar Allan Poe descreve em detalhes o suplício de um homem, condenado à tortura pela inquisição espanhola, nas masmorras escuras de Toledo. Para o leitor que não alça voos a partir do que lê, ficará preso à interpretação “stricto sensu” de um dos períodos do Santo Ofício, nos séculos XIII e XIV, na Idade Média, ou na versão mais aterrorizante, do século XV ao XIX. Coisas do passado, dirão, pois ninguém vai mais à fogueira ao discordar das práticas cristãs da Igreja Católica. Não é o caso de Escobar.
A tortura impetrada pelo Santo Ofício, ao homem não nominado por Poe, é da ordem das possibilidades ilusórias de fornecer saídas para escapar das torturas e, consequentemente, da morte. A primeira possibilidade é a de evitar cair num poço profundo da masmorra sem qualquer réstia de luz, na qual o condenado foi jogado, sem saber da existência deste precipício. Por meio do tato, faz medições da sala e se defronta com o poço, evitando-o. Os burocratas da tortura remetem então o contestador dos dogmas da Igreja a uma sala, onde é amarrado com cordas de couro, sem nós, com apenas um braço solto. Do teto alto da sala, desce lentamente uma grande lâmina que, em movimentos pendulares, busca atingir o pobre homem, ao menos que consiga, a tempo, se desbaratar das cordas que o imobilizam. Lambuza, então, as amarras com a comida que lhe foi fornecida, cujos ratos famintos trituram os alimentos e as cordas ao mesmo tempo, safando-se da ceifa.
Por fim, remete-o novamente às masmorras com o poço, momento mais dramático do conto. Agora são as paredes que se movimentam em sentido horizontal, umas em direção às outras, deixando apenas como alternativa o esmagamento ou a queda eterna no poço profundo.
O PIT e o RIT, creiam, serão, lentamente, imperceptivelmente, o poço e o pêndulo na vida do professor sob o governo atual. Se nada fizermos, coletivamente, as paredes se movimentarão.
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