Movimento dos barcos: crônica de minha aposentadoria
Vou sair sem abrir a porta
E não voltar nunca mais
Por Angelo Brás Callou
Jamais passou pela minha cabeça que um dia me aposentaria da UFRPE. Nunca contei os dias trabalhados, almejando este momento de despedida. Só hoje fiz as últimas contas, quando o barco atracou no porto e retirei da embarcação todos os meus pertences. Mas o diário de bordo dessa travessia fica com o comandante da instituição.
Tudo o que escrevi (monografia de graduação, dissertação de mestrado, tese de doutorado, conferência e memorial de concurso público para professor titular, relatório de pós-doutorado, relatórios de licença capacitação, livros acadêmicos e de crônicas) está à disposição na biblioteca da UFRPE. Guardei alguns desses exemplares no depósito legal da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, no blog CyberExtensão e alguns escritos no Museu da Pessoa. Eles foram fundamentais na minha formação de professor, pesquisador e extensionista, que, ao lado de tantos outros textos acadêmicos, brasileiros e estrangeiros, me ajudaram na prática docente, dialogada com aproximadamente 4.560 alunos, em 9.120 horas-aula, ministradas na graduação e na pós-graduação, em 39 anos, dois meses e três dias de vida universitária, hoje encerrada.
Talvez a razão de eu nunca me atentar ao tempo de atuação profissional se prenda ao fato de ter assistido, ainda muito jovem, ao filme Chuvas de Verão (1978), de Cacá Diegues. A sétima arte, como toda arte em geral, ajuda a expandir a nossa compreensão da sociedade e de nós mesmos. Aprendi ali o que é melancolia e constrangimento. A festinha de aposentadoria do personagem principal do filme (vivida pelo grande ator Jofre Soares) é emblemática nesse sentido.
Devo ter recalcado a contagem do meu tempo na UFRPE, para não passar por uma situação similar ao Chuvas de Verão. Talvez também por isto tenha ultrapassado, em mais de quatro anos,...
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Movimento dos barcos: crônica de minha aposentadoria
Vou sair sem abrir a porta
E não voltar nunca mais
Por Angelo Brás Callou
Jamais passou pela minha cabeça que um dia me aposentaria da UFRPE. Nunca contei os dias trabalhados, almejando este momento de despedida. Só hoje fiz as últimas contas, quando o barco atracou no porto e retirei da embarcação todos os meus pertences. Mas o diário de bordo dessa travessia fica com o comandante da instituição.
Tudo o que escrevi (monografia de graduação, dissertação de mestrado, tese de doutorado, conferência e memorial de concurso público para professor titular, relatório de pós-doutorado, relatórios de licença capacitação, livros acadêmicos e de crônicas) está à disposição na biblioteca da UFRPE. Guardei alguns desses exemplares no depósito legal da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, no blog CyberExtensão e alguns escritos no Museu da Pessoa. Eles foram fundamentais na minha formação de professor, pesquisador e extensionista, que, ao lado de tantos outros textos acadêmicos, brasileiros e estrangeiros, me ajudaram na prática docente, dialogada com aproximadamente 4.560 alunos, em 9.120 horas-aula, ministradas na graduação e na pós-graduação, em 39 anos, dois meses e três dias de vida universitária, hoje encerrada.
Talvez a razão de eu nunca me atentar ao tempo de atuação profissional se prenda ao fato de ter assistido, ainda muito jovem, ao filme Chuvas de Verão (1978), de Cacá Diegues. A sétima arte, como toda arte em geral, ajuda a expandir a nossa compreensão da sociedade e de nós mesmos. Aprendi ali o que é melancolia e constrangimento. A festinha de aposentadoria do personagem principal do filme (vivida pelo grande ator Jofre Soares) é emblemática nesse sentido.
Devo ter recalcado a contagem do meu tempo na UFRPE, para não passar por uma situação similar ao Chuvas de Verão. Talvez também por isto tenha ultrapassado, em mais de quatro anos, o tempo regulamentar da aposentadoria.
Foi nesse sentido que escolhi a estrofe da belíssima canção Movimento dos Barcos, de Jards Macalé e Capinam (1971), como metáfora da minha despedida: sair sem abrir a porta. Sair em silêncio, se possível na ponta dos pés, para fugir do guaraná e dos bolinhos metafóricos, que oferecem aos aposentados.
Dos 19 aos 68 anos, vivi nesta instituição, como estudante, como o primeiro presidente do diretório acadêmico do curso de Engenharia de Pesca, como bolsista de mestrado Capes/UFRPE (na modalidade recém-formado), como professor auxiliar I, concursado, até alcançar a categoria de professor titular, por concurso público, aos 51 anos.
Desde o dia em que desci do ônibus, ao lado da Biblioteca Central, para realizar minha matrícula, como calouro no Curso de Engenharia de Pesca da UFRPE, em 1974, me deparei nesta casa com muita gente do bem. Tenho boas lembranças dos colegas de faculdade, de meus professores e técnico-administrativos. Sou capaz de descrever momentos memoráveis, muitas vezes hilários, vivenciados naquele período.
Dez anos depois, já como docente, convivi e estimo até hoje com muitos colegas talentosos, comprometidos com o serviço público e com a universidade democrática, gratuita e de qualidade. Foram esses profissionais, professores e técnico-administrativos, que ajudaram a manter as universidades públicas gratuitas ao longo dos anos, ameaçadas pelas mãos do mercado, hoje cada vez menos invisíveis, sob o olhar complacente de muitos administradores.
Mas foram meus alunos e alunas que engrandeceram minha vida pessoal e acadêmica. Amadurecemos juntos, por assim dizer, pois me tornei professor de Extensão Rural e Extensão Pesqueira, aos 29 anos. Acompanhei, por alguns anos, a juventude deles ao lado da minha, com nossos erros e acertos, com nossas competências, com nossos esforços de superação, em processos de ensino-aprendizagem, com nossas esperanças e desesperanças, sempre pautado no respeito mútuo. Levarei muitas saudades deles. Tomara que tenham construído algum conhecimento a partir das minhas aulas, para que eu possa dizer que tudo valeu a pena. O poema Resíduo, de Carlos Drummond de Andrade, me traz uma esperança, quando leio: Se tudo fica um pouco, / mas por que não ficaria um pouco de mim? Paulo Freire me dá uma certeza, quando afirma que o Educador se eterniza em cada ser que ele educa.
Nesses anos todos de vida acadêmica, defendi princípios democráticos. Polemizei, errei inúmeras vezes, me desculpei, refiz caminhos. Nunca contrariei decisões democráticas coletivas, mas sem perder a crítica, jamais. Nunca furei greve de professores, mesmo vinculado a programas de mestrado; nunca faltei aula, por preguiça ou indisposição; nunca fui à reitoria solicitar algo pessoal.
Minto. Fui, sim. Uma única vez, para reivindicar um bilhete de avião Recife-Aracaju, para receber o Prêmio Nacional da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, pela minha tese de doutorado, na categoria Estudos Interdisciplinares. Nunca obtive resposta. Voei às minhas expensas. Naquele momento, mais uma vez, fez todo o sentido uma frase atribuída a Mahatma Gandhi: tudo o que você fizer na vida será insignificante, mas é muito importante que você faça, porque ninguém mais o fará. Por isto, faço aqui o meu último pedido, se vocês me permitem: não deixem a Extensão Rural desaparecer das universidades. Os estudantes precisam dessa disciplina para compreender o mundo rural e pesqueiro artesanal, para além dos preconceitos e estereótipos, que ainda grassam corações e mentes enviesados na nossa universidade. A ameaça é também interna. E é constante.
Nunca quis assumir cargos administrativos. Não por achá-los de menor monta, mas eles retiram nosso tempo de atividades para as quais nos preparamos tanto. Respeito os que enfrentam essas sobrecargas, muitas vezes cercados de incompreensões. Escapei de muitos desses convites, sobretudo daqueles que não eram ocupados por meio de eleição (como foram os casos de pró-reitor de extensão e de coordenador-geral dos programas de pós-graduação). Mas fui eleito vice-coordenador e coordenador do curso de Engenharia de Pesca, bem como de dois programas de mestrado, em quatro mandatos, além de vice-diretor do Departamento de Educação. Candidatei-me à vice-reitor, ao lado do talentoso professor Fabio Hazin, que prematuramente partiu, e me orgulho do programa que construímos, com colegas da chapa Mudar é Possível, em 2010. Era avançado demais para uma universidade que ainda reúne seus conselhos superiores às portas trancadas. Nossa proposta era a de escancarar portas e janelas da UFRPE.
Hoje, considero que pulei uma fogueira, por termos ficado em terceiro lugar no pleito e em primeiro entre os estudantes. Cheguei à conclusão de que assumir esses cargos em prol de uma universidade mais democrática é uma luta inglória. No fundo, as administrações superiores sempre ficam do lado do establishment. Althusser tinha toda razão, ao se referir às instituições de ensino como aparelhos ideológicos do Estado.
O exemplo mais atual são as exigências burocráticas, de vigiar e punir professores, por meio dos esdrúxulos Plano Individual de Trabalho e Relatório Individual de Trabalho (PIT e RIT), impostos aos professores, combatidos pela Aduferpe e por muitos colegas nos departamentos acadêmicos. Ficarei livre espero que, para sempre , dessa medida autoritária, que jamais imaginei me defrontar no final da minha carreira acadêmica. Isto é, esquadrinhar, sob as penas da lei, o meu dia a dia de professor, ao correr das horas, pela manhã, à tarde e à noite. O trabalho intelectual de um pesquisador-professor-extensionista universitário ficou reduzido a um galpão de fábrica, sem direito à Enquete Operária de 1880, de Karl Marx, que revelaria o quão debilitado, explorado e vigiado se tornou o ofício do professor universitário. Confesso que vivenciei esses últimos momentos como o ridículo da vida, pois nem todas as cartas de amor, de que fala álvaro Campos (Fernando Pessoa), conseguem ser tão ridículas quanto o PIT-RIT.
Cheguei à conclusão de que a luta e as mudanças institucionais e da sociedade só são possíveis por meio dos movimentos sociais. No nosso caso, pela Aduferpe, cuja história sou testemunha ocular, desde a criação do movimento docente na UFRPE, em defesa da universidade pública, gratuita, democrática, laica e de qualidade. Reivindicações que jamais devemos esquecer, sobretudo em tempos tão antidemocráticos (ou fascistas?), como os vivenciados nesses últimos quatro anos. Vou me manter filiado à Aduferpe. Sempre. Pois sempre serei professor.
Não mereço nenhum destaque pelo que realizei na Universidade (claro!). Na verdade, procurei apenas cumprir minhas obrigações de servidor público. Honrei o meu salário. E dele viverei o resto da minha vida!
Terei muitas lembranças das coisas simples da UFRPE, que se tornaram uma espécie de poesia em mim: os animais que, em outros tempos, pastavam pelo campus, a lembrar as manadas de bois que cruzavam minha cidade, na infância; as árvores, como o jambeiro, em frente ao DLCH, irresponsavelmente ceifado, porque atapetava o chão de púrpura com suas flores, na primavera que alegria aquilo me dava; assim como o sapotizeiro, no Departamento de Pesca, que, tantas vezes, estudante, presenteei minha mãe com a fruta adocicada dessa fruteira, que não existe mais; das acácias, dos paricás, das embaúbas, dos jambolões, dos jitós, dos espatódeas, que compõem o Bosque Paulo Freire, do Departamento de Educação.
Eu tentei, podem acreditar, garantir a conservação dessas árvores e das quinze mudas plantadas com meus alunos de Engenharia Florestal e de Engenharia de Pesca. O Bosque Paulo Freire, agora institucionalizado, por iniciativa das professoras Fátima Brandão e Maria Helena Lira, diretora e vice-diretora, respectivamente, manterá viva as árvores do Bosque e a memória do Patrono da Educação Brasileira. Prestei ali minha homenagem, ao lado de muitos colegas, pois foi com o Mestre que aprendi a dimensão social, política e humana do ofício de ensinar-aprender. Não acredito em professor que não tenha lido Pedagogia do Oprimido.
Estou completamente consciente de que amanhã serei uma página virada na UFRPE. Isto aconteceu com todos os que me antecederam. E é necessário que seja assim, pois as coisas, para resgatar a continuidade, têm que desaparecer, diz Ciro Marcondes Filho, espelhado em Georges Bataille.
Coloco-me, portanto, a partir de agora, no desexistir da vida acadêmica. Volto à vida comum, dos sem nomes, dos sem titulações, dos sem láureas. Ansioso estou por essa nova existência, alusiva àquela de quando se é jovem e se tem um futuro pela frente. Quem sabe sairei por aí cantarolando a clássica canção francesa La Belle Vie, de Sacha Distel.
Por onde pretendo começar? Inicialmente, vou mergulhar no mar do Pina. Depois, quem sabe, me submeterei a um treinamento para alfabetizar adultos. Escreverei crônicas também sobre a UFRPE? é muito provável, pois são tantas as histórias que vivenciei. Continuarei a aquarelar? Sem dúvida. Ler livros, sempre meu porto seguro. Mas minha maior vontade mesma, merminha, é colocar uma mochila nas costas e viajar por dentro do Brasil.
Por enquanto, só tenho uma única certeza, levarei todos vocês no melhor lugar das minhas recordações acadêmicas.
Com um abraço fraterno,
Angelo Brás Fernandes Callou.
Praia do Pina, Recife, 16 de janeiro de 2023.
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