Considerações em torno do memorial de Laura Susana Duque Arrazola para professora titular da Universidade Federal Rural de Pernambuco
Por Angelo Brás Fernandes Callou
Sou um leitor de memórias. E já me perguntei inúmeras vezes por que aprecio tanto esse tipo de literatura. O que sempre me ocorre como resposta é uma frase de Clarice Lispector, em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. É que eu gosto de ver as pessoas sendo.
Um homem ou uma mulher sem memória, já escrevi isto em outro lugar, é um ser em processo permanente de mortificação. Não à toa, Félix Guattari escreve, em As três ecologias, sobre os impactos da degradação do meio ambiente na subjetividade humana. Ao inundar uma cidade, para construção de uma represa, por exemplo, toda uma memória – a escola, a igreja, a árvore de todos os dias, as relações de vizinhança, o lugar onde se sepultou os entes queridos – é destruída sem que se observe que esta memória é constituinte da condição humana.
Quanto mais excluído for esse sujeito na sociedade, mais tem sido a busca em negar ou apagar a sua memória. Assim acontece com os indígenas, os negros, as mulheres, os camponeses e camponesas, os pescadores artesanais e as mulheres pescadoras, os pobres, o diferente. Laura reafirma esses processos de apagamento do outro, a partir da sua própria experiência. Diz ela, na página 14 do seu Memorial: “Chego a Bogotá e passo a viver com meus 18 anos a experiência do racismo sem ser negra nem ter cabelos cacheados, pois eram lisos e louros (sem tingir). Assim passei a vivenciar a exclusão racial, tão dolorosa para as etnias e raças consideradas inferiores e eu era. Ridicularizavam nossos gestos, modos de falar, o tom da voz. Lembro de dizerem que ´fedíamos´.” (p.14-15)
É chocante esse depoimento de apagamento da memória, neste caso cultural e suas implicações subjetivas, entre outras vivenciadas e descritas por Laura, pois apresenta as...
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Considerações em torno do memorial de Laura Susana Duque Arrazola para professora titular da Universidade Federal Rural de Pernambuco
Por Angelo Brás Fernandes Callou
Sou um leitor de memórias. E já me perguntei inúmeras vezes por que aprecio tanto esse tipo de literatura. O que sempre me ocorre como resposta é uma frase de Clarice Lispector, em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. É que eu gosto de ver as pessoas sendo.
Um homem ou uma mulher sem memória, já escrevi isto em outro lugar, é um ser em processo permanente de mortificação. Não à toa, Félix Guattari escreve, em As três ecologias, sobre os impactos da degradação do meio ambiente na subjetividade humana. Ao inundar uma cidade, para construção de uma represa, por exemplo, toda uma memória – a escola, a igreja, a árvore de todos os dias, as relações de vizinhança, o lugar onde se sepultou os entes queridos – é destruída sem que se observe que esta memória é constituinte da condição humana.
Quanto mais excluído for esse sujeito na sociedade, mais tem sido a busca em negar ou apagar a sua memória. Assim acontece com os indígenas, os negros, as mulheres, os camponeses e camponesas, os pescadores artesanais e as mulheres pescadoras, os pobres, o diferente. Laura reafirma esses processos de apagamento do outro, a partir da sua própria experiência. Diz ela, na página 14 do seu Memorial: “Chego a Bogotá e passo a viver com meus 18 anos a experiência do racismo sem ser negra nem ter cabelos cacheados, pois eram lisos e louros (sem tingir). Assim passei a vivenciar a exclusão racial, tão dolorosa para as etnias e raças consideradas inferiores e eu era. Ridicularizavam nossos gestos, modos de falar, o tom da voz. Lembro de dizerem que ´fedíamos´.” (p.14-15)
É chocante esse depoimento de apagamento da memória, neste caso cultural e suas implicações subjetivas, entre outras vivenciadas e descritas por Laura, pois apresenta as “sutilezas” do preconceito racial, cultural, estrutural, entre tantos outros, nas sociedades contemporâneas. Assim se refere Boaventura de Sousa Santos: “Os poderosos e envolventes processos de difusão e imposição de culturas, imperialísticamente definidos como universais, têm sido confrontados, em todo o sistema mundial, por múltiplos e engenhosos processos de resistência, identificação e indigenizaçăo culturais.” Com isto, Laura, quero dizer, ampliando a emblemática frase que usei de Clarice Lispector, que a escrita de um Memorial, neste caso um memorial acadêmico, é também um registro, fundamental, em última instância, na luta contra qualquer tipo de uniformidade cultural.
Em um memorial, marcamos, pelo registro escrito, nossa trajetória pessoal e intransferível, nos diferentes processos de apropriação subjetiva e coletiva do mundo. Por isso, escrever um memorial não é tarefa fácil, como muitos imaginam, pois os documentos, como diz Paul Veyne, não falam por si mesmos. É o memorialista quem dá sentido a eles e a seu modo, se demorando mais em uns do que em outros, à medida que vai retirando eles do baú do tempo. Mesmo que em todo memorial acadêmico encontremos teses, dissertações, artigos, pesquisas realizadas, aulas etc., a maneira como alcançamos esses resultados, o enfrentamento, os percalços, as linhas retas e sinuosas, nos distingue uns dos outros. Esta é, a meu ver, a parte interessante de reconstrução da memória. Com isto, exponho aqui as minhas primeiras curiosidades sobre o seu Memorial: foi um texto difícil de escrever? Que lições você tirou no processo de remembramento? Houve temas que você não quis enfrentar? Como foram as idas e vindas de temporalidades na memória?
À medida que você vai reconstruindo o seu percurso, trazendo pessoas e situações, ao tempo em que vai refletindo sobre elas, o leitor, sobretudo aqueles que lhe conhecem há mais tempo, como eu e muitos outros aqui nesta sala, somos levados a ir com você, mas também, ouso dizer, de o “abandonar”, pois seu texto nos enreda nas nossas próprias memórias, a partir dos fatos abordados. As questões de gênero, do feminismo, suas implicações cotidianas, sobretudo quando trata da importância da sua família, democrática, e a importância de seu pai, em particular, ao tratar os filhos, homens e mulheres, com direitos e perspectivas profissionais futuras iguais, me levaram de volta a um livrinho, lido na juventude, chamado Mulher objeto de cama e mesa, de Heloneida Studart. Tomei ali a minha primeira dosagem de semancol nas questões de gênero. Desta obra à peça Uma casa de bonecas (1879), do extraordinário dramaturgo norueguês, Henrik Ibsen, foi um salto instantâneo. Entretanto, senti falta de uma reflexão teórica do papel do homem, a exemplo da importância de seu pai, num contexto patriarcal, como a região que você viveu na Colômbia, para o avanço teórico nas questões de gênero, a partir do seio familiar. Conheço várias mulheres que tiveram e têm um protagonismo social e político diferenciado, feminista ou não, a partir de famílias que se voltaram para uma educação não patriarcal.
Ainda nesse tema, conheci a professora Elza Marques, quando era estudante de graduação, a quem você se refere no Memorial, como pioneira no debate e na pesquisa de gênero na UFRPE. Lembro-me, perfeitamente, da luta de Elza, e de muitas de suas colegas no Departamento de Economia Doméstica, às quais você se uniu mais adiante, para inserir essa temática numa Universidade arraigada, historicamente, à cana-de-açúcar, e, portanto, ao patriarcalismo açucareiro. Você descreve seu empenho coletivo e individual, por meio de pesquisas, ensino e extensão, na sua trajetória acadêmica. Na sua opinião, em que a UFRPE mudou objetivamente em relação às mulheres? O que há, ainda, a ser transformado?
Interessante ler, no Memorial, sua trajetória como socióloga, em diversos países, sua convivência com os contextos sociais excluídos, tão similares aos nossos, revelando para o leitor a importância da ação e da opção política profissional. Você e professor João Bosco Pinto (do qual fui aluno, num treinamento sobre Extensão Pesqueira) seguiram e ensinaram à luz de uma pergunta-chave formulada por Paulo Freire. Isto é, de que lado você se coloca profissionalmente, do lado do oprimido ou do lado do opressor? Laura fez sua trajetória acadêmica ao lado de mulheres e homens oprimidos do contexto latino-americano.
Nesse capítulo do Memorial, é descrito, ainda que brevemente, o cenário político de alguns países da América Latina, varridos pelas ditaduras, nos anos 1960-1980. A convivência de Laura com exilados políticos é abordada de maneira parcimoniosa, ainda que interessante, que o leitor fica, por assim dizer, carente de mais informações. Este momento histórico, pessoal, político, generoso de acolhimento de exilados políticos, na sua casa com João Bosco, só Laura poderá detalhar. Por isso, reafirmo aquela observação inicial, de que um memorial é um registro contra a uniformidade cultural e política. Quem sabe, um dia, Laura amplie esse momento importante da sua trajetória e das pessoas com as quais ela e João Bosco conviveram naquele momento, como diz o poeta, infeliz da nossa história.
Achei admirável a maneira gentil, amorosa e profissional, como você se refere ao Departamento de Economia Doméstica, hoje Ciências do Consumo, e a seus pares. Também me envolvi nessa passagem do seu Memorial. Conheci de perto muitas professoras de Economia Doméstica e trabalhei com muitas delas durante anos da minha passagem pela UFRPE. Inclusive, com você, Laura, o que foi um privilégio e tanto. Considero o Departamento de Economia Doméstica o melhor departamento acadêmico da UFRPE, pois, talvez, o mais atento, e sempre foi assim, às questões cruciais da sociedade. Você demarca essa importância, mais que merecida, revelando alguns nomes, inclusive das que já partiram, mas que deixaram um legado aos que acreditam na relação de aprendizado mútuo entre universidade-sociedade.
Para concluir, cito um trecho do livro de Norberto Bobbio, O tempo da memória (Editora Campos, 1997) que você pode comentar, se quiser. Diz ele:
“Já é tarde demais para entender tudo que gostaria de ter entendido, e que me esforcei para entender. Dediquei uma grande parte de minha longa vida à leitura e ao estudo de uma infinidade de livros e papéis, utilizando até os menores espaços de um dia, desde jovem, “para não perder tempo” (...). Hoje alcancei a tranquila consciência, tranquila porém infeliz, de ter chegado apenas aos pés da árvore do conhecimento. (p.53)
Recife, 6 de abril de 2023.
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