Projeto Belo Horizonte Surpreendente
Depoimento de Vera de Assis
Entrevistada por Lucas Torigoe
Belo Horizonte, 17 de setembro de 2019.
PCSH_HV819 ___rev
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Fernanda Regina
Revisado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Qual o seu nome inteiro, Vera? O...Continuar leitura
Projeto Belo Horizonte Surpreendente
Depoimento de Vera de Assis
Entrevistada por Lucas Torigoe
Belo Horizonte, 17 de setembro de 2019.
PCSH_HV819
___rev
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Fernanda Regina
Revisado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Qual o seu nome inteiro, Vera? Onde você nasceu e em que data?
R – Vera Lúcia Ferreira de Assis Gomes, nasci aqui em Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais, no bairro Prado. Nasci em 24 de julho de 1952.
P/1 – Você nasceu em que hospital?
R – Nasci em casa.
P/1 – Em casa?
R – Nasci em casa porque não deu tempo de ir para o hospital. Diz a mamãe que eu nasci de espirro.
P/1 – Como é que é essa história aí?
R – Ela estava grávida de mim, sou a terceira de seis filhos... Então, ela estava grávida e fazendo o serviço normal, minha mãe sempre foi muito boa parideira, não teve problema de saúde nenhum. Então ela estava lá trabalhando e tudo, quando foi lá para as 10 horas da noite, ela tomou um banho, foi deitar, aí deu fome e ela começou a comer umas bananas... Aí, papai e mamãe se chamavam de filho e filha. Ele disse: “Filha, filha, não come essas bananas que você vai passar mal”. Ela falou: “Não, não estou sentindo nada não”. De repente, ela começou com uma dorzinha aqui, dorzinha alí, e ela não quis falar para ele porque achou que estava passando mal por causa das bananas. (Risos). E ficou escondendo, escondendo... Quando ela viu que começaram as contrações, ela falou “Filho, acho que a Vera vai nascer”... Vera não, não é? Não sabiam meu nome... Ela disse: “Acho que o neném vai nascer e corre, vá chamar a parteira, não vai dar tempo de eu ir para o hospital, não”. Aí ele e meu tio, que estava passando uns dias lá em casa, saíram correndo. Quando chegaram, eu já tinha nascido. Mamãe disse que ficou quietinha esperando, aí a parteira chegou, já fez todos os trampos alí, cortou o cordão umbilical e disse: “Nossa, que menina bonita!” Me chamou de linda. Disse que tinha cara de menina inteligente, perguntou se ela podia dar um nome. A mamãe falou assim: “Eu já tenho uns nomes aqui”. Ela tinha relação de uns seis, sete nomes...”. A parteira disse: “Ah, mas coloca Vera Lúcia, é nome de menina inteligente”. E mamãe colocou, em homenagem a ela, Vera Lúcia. Por isso que eu chamo Vera Lúcia. Não deu nem tempo de eu chegar, foi rapidinho. Acho que é a cabeça miúda. (Risos)
P/1 – E qual é o nome inteiro da sua mãe?
R – Modesta Ferreira de Assis.
P/1 – E como é a família dela, a família de Assis?
R – A família de mamãe?
P/1 – É.
R – O nome dela de solteira é Modesta Ferreira Lessa. A família do pai dela é de Diamantina, ele era festeiro, o nome dele era João Ferreira Lessa. Era festeiro, ferramenteiro também, trabalhou na Estrada de Ferro. Era fazendeiro... E ele gostava muito de fazer aquelas quermesses também, na época de Nossa Senhora. E mamãe nasceu nessa família festeira, levava a filharada toda - só mulheres eram nove. E mais os quatro homens. E levava todo mundo para a festa, não podia ficar sentado não, tinha que dançar. E a mãe dela é Elídia de Araújo Lajes, de Conceição do Mato Dentro. Meu avô foi para Diamantina, saiu de Diamantina foi para Conceição, casou, tinha quatro, daí ele ficou viúvo e casou com vovó, já levando quatro filhos. E mamãe é filha mais velha de Elídia de Araújo Lajes. E mamãe pegou só o sobrenome do vovô. E aí eles tiveram acho que... 14 filhos. Mamãe é a filha mais velha dela.
P/1 – Ele era ferramenteiro então?
R – Ferramenteiro, festeiro e fazendeiro.
P/1 – E como eram essas festas que ele fazia, você sabe? Você ouviu falar?
R – Sei. Inclusive muita coisa que eu aprendi de folclore e tudo foi com mamãe, porque ela adorava dançar, papai também. Então, os tios de mamãe dançavam catira em todas as festas de família que tinha. Era lindo, ela adorava, achava lindo catira. Nós até fizemos catira uma vez no nosso grupo. E vovô fazia essas festas da fazenda, que virava a noite toda, chamava os forrozeiros, os tocadores de viola das redondezas, iguais àquelas festas do interior mesmo, não é? E deixava todo mundo dançar, mas sob vigilância dele. E a minha mãe conta que eles não podiam ficar sentados quietos num canto, não. Se qualquer um chamasse para dançar, tinha que dançar, senão era desfeita. Ele só não obrigava a dançar com o pessoal que já estava tonto, bêbado, aí ele não obrigava. Ele mesmo não deixava, chegava perto da pessoa, já não deixava chamar mais. Ele era um homem muito respeitado no lugar, muito respeitado, falavam que com as filhas de João, ninguém mexia, ele era bravo. (Risos)
P/1 – E sua mãe faz o quê? O que ela fazia quando conheceu o seu pai, você sabe?
R – Mamãe, quando ela conheceu papai, já tinha ido a Belo Horizonte, porque... Depois eu falo de papai, não é?... A mamãe veio para Belo Horizonte para estudar e trabalhar, porque ela passou com dez lá, a professora dela quis trazer de todo o jeito, ela veio para estudar e depois ficou só trabalhando mesmo. E começou a trabalhar em uma casa antiga de modas, ela sabia costurar, porque ela morou na cidade com a madrinha dela. Para estudar... Então ela aprendeu muita coisa de costura, de alta-costura. Mamãe criou a gente, junto com papai, fazendo as roupas, as costuras, enxoval de batizado, aqueles todos plissados, lindos e maravilhosos... Vestidos de noivas, enxovais maravilhosos... Nossas roupas todas eram feitas, até grandinhos ela fazia as nossas roupas.
P/1 – Ela costurava?
R – Costurava muito para fora. Tinha cliente em São Paulo, Rio, Bahia e em Minas Gerais, tudo... Aqui em Belo Horizonte nem se fala, quando era época de dezembro era muito pesado para ela, mamãe era muito guerreira, muito trabalhadeira. Com seis filhos dava conta de tudo e ainda dava conta das roupas de formatura, de casamento, de tudo o ano inteiro. Eu era o braço direito dela, ajudava a bordar, ajudava a colocar as miçanguinhas naqueles tecidos assim todos de brocal.
P/1 – Ela fazia encomenda então?
R – Fazia encomenda.
P/1 – E seu pai, qual o nome dele?
R – Edmundo Gonçalves de Assis. Nascido em Ponte Nova, filho de Francisco de Assis Ferreira e Zita Gonçalves de Assis. O vovô era de São Sebastião do Rio Preto, em Minas. Foi para Ponte Nova fugido de casa (risos); ganhou uma surra. Naquela época, os filhos apanhavam muito, não é? Disse que nunca mais voltava para casa. Conheceu vovó, casou, papai nasceu lá... Aí, ele foi criado lá em Ponte Nova, em Palmeiras, estudava, jogava futebol, depois resolveu ser padre. Ele e mais dois irmãos foram para São Paulo, em um colégio salesiano, para ser seminarista. Os dois saíram primeiro e ele ficou por último. De repente, ele viu que não era bem isso que ele queria, o que ele queria mesmo era uma família. Saiu lá de São Paulo, em Lavrinhas, e veio para Belo Horizonte. Aqui ficou lá no Calafate, perto da igreja São José do Calafate... E conheceu mamãe e lá se casaram.
P/1 – E seu avô e sua avó faziam o quê? Por parte de pai?
R – Por parte de pai? A vovó trabalhava em casa mesmo, era doceira. Aqueles doces cristalizados todos ela fazia, enchia os potes lindos assim, maravilhosos. Toda vez que a gente ia passear lá, a gente trazia aqueles potes cheios. E vovô trabalhava lá no canavial, na época que canavieira ela tinha ainda os de açúcar, ele trabalhava no canavial. Arrendou uma terra grande lá e trabalhava com isso.
P/1 – Então o seu pai veio para cá para Belo Horizonte, quis ser padre...
R – Ele foi ser padre em São Paulo, daí desistiu... Desistiu, veio para Belo Horizonte, ficou morando perto da igreja São José do Calafate, mamãe também morava lá, e lá eles se conheceram. Ele era Irmão Mariano. Da Congregação Mariana, que ele ficava... Tinha o Coral de lá também, tocava violão, então as meninas ficavam doidas na época, não é? (risos) Aí, eles se conheceram e começaram a namorar, tinha várias meninas querendo-o, mas ele escolheu mamãe. E mamãe tinha tido um namorado antigo lá na época dela, na fazenda, que veio atrás dela uma vez. Mamãe já estava namorando com ele, eles foram em uma festa, aparece esse moço lá, esse namorado dela... Quando chegou lá, ele falou assim que ela tinha que escolher: ou um ou outro. Ela, na janela, falou assim: nem um nem outro. Bateu a janela, deixou os dois lá fora (risos) e os dois começaram a discutir lá, o outro foi embora e papai insistente, insistente, ganhou...
P/1 – Casou?
R – Casou com mamãe.
P/1 – E como é que é você nessa escadinha, então?
R – Eu sou a terceira. São quatro homens e duas mulheres.
P/1 – Como é que é essa escadinha? O nome deles?
R – José Renato, Márcio, Vera Lúcia, Marlene, Edmundo e João Bosco. Seis.
P/1 – Seis então?
R – É. Seis. Duas mulheres. Nós duas somos do meio, cercadas pelos homens tomando conta de nós, porque tomavam conta, viu? Podia nem ir à esquina (risos).
P/1 – Você nasceu em casa? Nasceu nesta casa em que a gente está ou não?
R – Não, nasci no Prado. Nesta casa nasceram só os dois menores - o João Bosco e o Edmundo, que tem o mesmo nome do papai.
P/1 – Você morou em Prado até que idade?
R – Quatro anos de idade.
P/1 – Você se lembra de lá?
R – Lembro alguma coisa. É engraçado... Para você ver como criança tem memória, não é? Eu vim para aqui com quatro anos e meio, mamãe disse que nessa época foi pouco depois do meu aniversário, que ela estava no portão assim comigo, eu pequenininha, passou um senhor com a menininha comendo pipoca, aí o moço falou assim “Dá uma pipoquinha para ela”. Falei: “Não, obrigada”. “Não, pode aceitar”, mamãe falou. “Pode aceitar”. Eu peguei a pipoca e comi. E isso mamãe lembra, mamãe fala comigo que eu tinha quatro anos de idade e lembro disso. E lembro da nossa mudança para cá também, quando comprou este lote aqui. Na mudança eu chorei muito, não queria mudar de jeito nenhum, queria ficar lá escondida na porta, para não me acharem, não queria me mudar não. Mas depois eu vi que era quintal, me acostumei e tudo. Gostei demais.
P/1 – Esta casa aqui onde a gente está, qual é o endereço dela, a região? Você pode falar para a gente?
R – Endereço? Rua Guaíra, número 102, bairro é Caiçaras, região noroeste daqui. Região noroeste de Belo Horizonte.
P/1 – E quais são as primeiras lembranças que você tem daqui? Da sua infância aqui? Como é que era?
R – Nós nos mudamos para aqui tinha o barracão dos fundos. Era mato de um lado, tinha casas no lado de cima, mato na frente, ali tinha um campinho, onde tem aquela casa de dois andares. E aqui papai foi logo... Passou um tempo e ele já foi logo construindo aqui dentro. E para nós era uma festa, porque mamãe não deixava a gente brincar assim na terra, mas aqui era tudo terra na época, nós começamos a brincar. Mamãe começou a criar galinha, cuidar de tudo assim, plantar horta, não é? E papai começou a construir esta casa. Para mim eu tenho o maior amor por esta casa aqui, porque eu vi a construção dela. Fez alicerces assim com aquelas pedras imensas, essa casa aqui é muito forte. Pedras... E depois eu lembro dos moços empurrando as britas grandes, empurrando lá dentro e fazendo aqueles caixotes do lado. Depois que tiravam as caixas todas, a gente brincava correndo em cima dos alicerces. Enquanto não subiam as paredes, todo mundo brincava aqui. E depois, quando começou a subir as paredes, eles jogavam aqui caminhões e caminhões de areia, a gente subia nas paredes e pulávamos na areia, brincando (risos). Eu era levada. Aqui tinha pé de fruta, só de abacate eram três qualidades. Tinha pé de manga, tinha pé de mexerica, limão, além da horta que mamãe plantou. E eu subia nas árvores, eu era bem moleca, eu subia para brincar, não tinha medo de nada, gostava de ficar equilibrando, entendeu? E como tinha alguns espaços do lado de fora dos lotes, tinha um circo que ficava lá do lado de lá da minha casa, tinha o circo que ficava ali onde é aquela pracinha, que era um lugar limpo. E eu era pequena, gostava de ver o circo, tudo o que faziam eu queria fazer em casa. Então eu começava... Eu chamava de envergar, fazia ponte, elas subiam em cima da mesa assim. E eu tentei subir, caí algumas vezes, me lembro... Depois, no trapézio, eu queria me pendurar nas árvores, me pendurava nos pés das árvores de abacate e ficava empurrando para lá e para cá, para lá e para cá. E cantando. Eu gostava de cantar, cantar, cantar... Um vizinho até falava: “Verinha só vive feliz, só vive cantando”. Um dia, eu resolvi subir, eu era pequena, fui no pé de mamão, só que o pé de mamão não aguenta peso, ele é oco, não é? (risos). Eu subi e eu já sabia que ele era oco, só que fui segurando no tronco dele e coloquei minhas pernas assim, juntas, e me pendurei, fui soltando o braço devagarinho. Quando eu soltei o braço devagarinho, eu bati com as costas no chão: Páh. Mamãe ouviu aquele baralho e falou: “O que isso?”. Saí sem voz, agachada (Imitando voz falhada) (risos). Teve que me carregar, colocaram a cama para fazer massagem, médico não ia sempre, não é? Eu fiquei assim, não conseguia levantar o corpo e não conseguia falar. Essa foi uma das ‘levadices’ minhas. Tinha eu e meu irmão, não é? O Mundinho, o Edmundo, ele é o Mundinho, o mais novo... Eu tanto ajudava mamãe a tomar conta dos meninos, porque eu era mulher e mais velha, aí tinha que ajudar em tudo... Tanto quanto também fazer minhas ‘levadices’ de criança. A gente amarrava uma corda no pé de uma árvore, no pé de outra e tudo que o pessoal do circo fazia, nós dois tentávamos... Andar na corda bamba assim, e caía e levantava, caía e levantava. Ele era mais esperto que eu, caía menos, ele ainda dava saltos, me ensinou a dar saltos, não consegui (risos). Era muito divertido. O circo ia embora, eu pegava a serragem e colocava debaixo, achando que a serragem era para amortecer a queda, era só o pessoal do ____ [15:43]. Eu achava que a serragem amortecia, por isso que eu não tinha medo de cair. Achava que, se eu caísse, não fosse... Eu não caia fácil também não, era esperta.
P/1 – Do que você gostava do circo? O que tinha no circo, na época?
R – Trapézio. Dança. Aquela dança das meninas que colocavam aqueles saiotes atrás, todos cheios de babados. Rumbeira... Tipo rumbeira. E elas dançavam assim (cantando). Mamãe, mexe e vira, me pegava dançando em frente ao espelho, com o lençol preso aqui (risos), colocava o lençol preso e dançava em frente com a blusa amarrada para fazer a dancinha, crente que estava igual. Eu gostava disso. Um dia, pedi a mamãe para comprar um tecido para mim, estampado, tipo o delas, mamãe comprou, ela perguntou: “É para fazer vestido?” Falei: “Não, é para eu dançar rumbeira”. “Que é isso, menina?” Eu fui, amarrei os tecidos todinhos para dançar. Para você ver como é que é, sempre gostei dessas coisas, desde pequenininha.
P/1 – Você falou do circo. Você se lembra das primeiras vezes que foi ao circo como foi?
R – A primeira vez a gente era muito pequeno. Eles estavam lá e eu e meus irmãos passamos debaixo da lona. Quando chegamos em casa, apanhamos. A mamãe perguntou: “Onde é que você estava?” “No circo”.“Quem deixou?” Aí nós apanhamos, levamos uma surra caprichada. Da outra vez, papai levava a gente, colocava lá sentadinhos, esperava, trazia... Única vez que eu entrei... Primeira vez que entrei foi assim, mas depois a gente entrou, todo mundo aqui em volta ia, então a meninada toda ia, tinha aquela sessão infantil e todo mundo ia. Eu vi também, aqui perto teve aquela tal de... Com a motocicleta, aquela roleta... Eu ficava muito impressionada com aquilo, aquilo lá eu tinha medo de ver, não gostava de ver, realmente. Até hoje eu sou muito impressionada com coisa assim muito forte, que tem muitos riscos de vida e de violência, não gosto de nada disso, nunca gostei. Acho muito arriscado essas coisas. É a única coisa que eu não gostava do circo.
P/1 – E você gostava das roupas do pessoal do circo?
R – Das roupas, das danças, dos cantos, dos palhaços, eram muito engraçados... Do trapézio, acho que uma das coisas que eu mais gostava era o trapézio e a dança. O trapézio era lindo, às vezes eu me imaginava lá fazendo, por isso que eu brincava na árvore, ficava de galho em galho (risos).
P/1 – E a rua Guaíra, como é que era?
R – Não tinha asfalto, aqui era terra. Chovia, a gente brincava na enxurrada, a gente brincava de andar na enxurrada, era gostoso. Fazíamos barquinhos de papel e colocávamos nas poças d’água. Não tinha poluição, não é? Mas era terra vermelha. Não tinha poluição e a gente ia brincar, quando parava a chuva era assim. Mas a meninada toda brincava aqui, da rua, as mães ficavam do lado de fora, conversando e contando ‘causo’. Minha mãe era muito brincalhona, era muito alegre, do mesmo jeito que era rígida, era brincalhona também. Então ela ficava brincando, a meninada toda vinha para cá, mamãe não gostava que a gente fosse brincar na casa dos nossos amigos, minha casa ficava cheia de gente. Então aqui a gente brincava de boneca, aniversário da boneca, os homens brincavam junto também, eram os pais, os padrinhos, o padre... Era tudo. A gente brincava de celebrar a missa, eu montava um altar e fazia hóstia de papel. Como a gente ia à missa todo domingo - todo domingo tinha que ir mesmo - então a gente sabia a missa de cor. A gente celebrava a missa brincando, os meninos lá brincando. Nos aniversários das bonecas, todas as meninas traziam as bonecas, a gente pegava flor do mato em volta, varria o terreiro varridinho, colocava os caixotes, mamãe dava umas toalhinhas para a gente cobrir tudo assim, fazia as caminhas das bonecas, os meninos também ajudavam a carregar e a montar tudo... A gente brincava assim como se tivéssemos uma família. “Papai vai trabalhar, dá tchau para o papai”, e tal... Brincávamos como se fossemos uma família, os homens brincavam nesse sentido, todos com uma pureza tão grande daquela época que tinha, e era muito legal, sob os olhos de minha mãe. E mamãe fazia queijadinha, era um doce muito gostoso, levava coco e queijo, ela fazia para o nosso lanchinho, não é? Então, os aniversários das bonecas sempre eram aqui. Dança também, eu era muito ligada à dança, eu ensinava às meninas balé, crente que eu sabia dançar balé. Acho que eu nasci em uma época difícil, porque papai, assim, naquela época não era igual agora, que oitava, terceiro ano, ainda tem escolas gratuitas... Depois da quarta série, pagava escola para todo mundo. E ele pagava escola para seis. Como naquela época eu ia estudar balé lá no centro da cidade, pegar dois ônibus... Eram dois ônibus. Como ela ia levar um para uma escola, outro para outra? Então a gente estudava todo mundo perto e balé não tinha perto de casa, balé não tinha, ginástica não tinha. Eu falo que se eu tivesse nascido hoje, eu ia participar de tudo: ginástica rítmica, balé, dança de tudo quanto é jeito, dança folclore, clássica, tudo eu ia querer fazer, porque é o que eu sempre gostei. Quando era criança eu queria ser artista, então eu cantava, montava palco debaixo do pé de manga, tudo assim... Eu pegava os pés de madeira, pegava o martelo de papai e pregava, colocava os microfones. Os microfones eram uma latinha de massa de tomate, colocava cordão, barbante, e aquilo ali era o meu microfone. Ali eu cantava, esgoelava (risos). Cantava, mas cantava e dançava, decorava todas as músicas e cantava. Às vezes, mamãe chegava na janela e me via cantando. Chegou um dia, mamãe e papai, da janela, e disseram: “Sabia que você estava dançando de frente ao espelho”. Eu estava com o fio da enceradeira, a enceradeira parada e eu cantando e dançando. Tudo para mim servia de microfone: era o do liquidificador, o da enceradeira, o da máquina de lavar, tudo servia de microfone. Aí, as minhas colegas começaram a namorar, eu falei assim: “Eu não vou namorar, porque eu não quero casar, eu quero ser artista e se eu casar, meu marido não vai me deixar ser artista”. E fiquei assim muito tempo, não namorava não, nem fui artista, e fui casar bem mais velha (risos). E a coragem que eu não tinha, não é? De sair de casa. Naquela época, não era qualquer um que podia ser artista.
P/1 – Em quem que você se espelhava para ser artista, na sua época?
R – Eu cantava música da... Na época da jovem guarda, não é? Na época da jovem guarda eu cantava música da Wanderléa, da Martinha, que cantava “Vieram me contar que você diz que não me quer” (cantando). Depois tinha Wanderléa, músicas do Roberto Carlos mesmo, músicas do Wanderley Cardoso, aquela assim: “Parece que eu sabia...” (cantando). Eu decorava todas as músicas e falava que ia em um programa de calouro. Nunca fui em um programa de calouro. Fui uma vez quando eu estava em um grupo de jovens, que teve um programa bairro contra bairro, aí o meu bairro foi e eu fiz uma encenação junto com outro colega nosso, do grupo de jovens. Nós cantamos aquela música: “Não se vá, eu já não posso suportar essa minha vida de
amargura” (cantando). Só que fizemos isso vestidos à antiga, minha colega arrumou um chapéu de penacho antigos, dos anos 20, arrumei uma roupa toda... Tenho até a foto, depois eu pego para você ver... Nós fomos lá e eu ganhei dez em tudo, todos os jurados me deram dez. Todos os jurados me deram dez, aí o meu parceiro teve uma nota nove e meio, o resto dez também. O nosso grupo ganhou o bairro contra bairro. Na outra vez, nós fizemos a mesma música com o teatro, porque a gente tinha um grupo de teatro também, no grupo de jovens de que participava... Fazia A Bruxinha Que Era Boa, e eu era a Bruxa Chefe, então, toda vestida de bruxa e ele era o Bruxo Belzebu Terceiro e eu a Bruxa Chefe. Nós fizemos essa música, a encenação dessa música nas cidades vizinhas, vestidos de bruxa e bruxo. Era muito divertido, a meninada gostava demais. Teve um episódio muito legal... Nós fomos apresentar lá na igreja e todo mundo achava que fazer história de bruxa dentro da igreja não dá certo. Resolvemos fazer no salão de festas da igreja, onde tinha sempre os bailes de domingo. Não coube todo mundo, ficou todo mundo apertado, custou controlar a meninada. Aí eu entrei em uma hora errada, a gente tinha que entrar falando assim (encenando a voz), eu fui e poft, bati no chão, bati meu lado no chão e isso aqui ficou roxo mais de meses. Saí mancando, saí encenando, fiquei falando assim (encenando a voz), saí encenando porque eu entrei na hora errada mesmo, de verdade (risos). A meninada riu, brincou, tomaram minha vassoura e ficaram batendo em mim com a vassoura, eu corri lá para dentro, ai que dó, gente. Falei: “Agora você entra direito, na sua hora certa” (risos). Foi muito divertido esse dia, era muito divertido, hoje eu tenho saudades. Tenho muitas saudades.
P/1 – Você canta um pouquinho dessa música que me falou?
R – Não se vá?
P/1 – É.
R – (Cantando). Esqueci essa parte. Mas essa parte do “Não se vá” era o rapaz que falava, e eu respondia essa outra parte. (Volta a cantar). Aí cantava num tom bem alto, não é? Que a minha voz hoje não vai dar conta de cantar.
P/1 – E seu pai e sua mãe cantavam em casa também?
R – Cantavam. Papai conquistou mamãe de uma certa forma assim. Tinha o coral Congrego Mariano, inclusive os Congregados Marianos cantaram no casamento dos dois, foi uma coisa linda, maravilhosa. E ele tocava violão e fazia seresta, ele fazia seresta para ela e tudo. Conquistou mamãe desse jeito, papai era seresteiro, minhas cantigas de ninar foram de seresta. Eu vivia no colo do papai e papai cantava aquelas músicas, eu aprendi essas músicas antigas todas, do Nélson Gonçalves, Vicente Celestino, essas músicas todas assim de que ele gostava... “Amo-te muito”, tudo. Ele cantava comigo no colo e eu cresci ouvindo essas músicas. Depois ele foi participar de um grupo de seresta, que ele solava divinamente, a coisa mais maravilhosa, mas ele não sabia acompanhar, resolveu aprender a acompanhar com a professora. Entrou na escola, conheceu um monte de gente, fez um grupo de seresta e todo aniversário dele, que era 14 de junho, ele fazia aqui e era feito com essa turma toda: bandolim, cavaquinho, violão, viola, pandeiro, assim... Vinham os amigos dele da igreja, porque ele era Ministro da Eucaristia, não é? Vinha todo mundo para cá e fazia esse aniversário dele. Ele era devoto de Santo Antônio quando era pequenininho, tinha uma caminha de Santo Antônio do lado, que ele morava na cidade com a avó dele e tinha uma caminha de Santo Antônio do lado. Onde ele ia, essa imagem dele acompanhou a vida toda, está lá em cima, ali ele fez um oratório para Santo Antônio quando ele vivia aqui. E ele conquistou desse jeito.
P/1 – Você se lembra dele cantando em casa?
R – Muito. Sempre cantava. Ele gravou fitas e mais fitas. Depois ele pegou essas fitas - na época das fitas de cassete - e mandou passar tudo para CD, e deu um CD para cada um dos filhos, da gravação dele. Cantava aqui, cantava na rádio América, que hoje é TV Horizonte, cantava também todo o programa do Professor Belfort, que era 23:30 que começava, até 00h. Ele cantava lá, eles viajavam, inclusive. Aqui nos fundos foi que começou a quadrilha, a festa junina foi aqui nos fundos de quintal.
P/1 – A gente vai chegar lá, calma.
R – Vai chegar lá, por isso que eu parei.
P/1 – Sua mãe cantava, eu imagino?
R – Mamãe também cantava e a voz dele era muito parecida com a minha. Mamãe cantava, mamãe dançava, os dois... Aprendi a dançar valsa com eles, eles que me ensinaram a dançar valsa. Papai e mamãe dançavam muito. Eles eram pé de valsa, os dois gostavam. E nós todos aqui em casa gostamos dessa área musical, de dança, muito bom.
P/1 – Como era o dia aqui nesta casa quando vocês eram pequenos, com todo mundo junto? Era muita gente, você falou, não é?
R – Muita gente. Oito pessoas: mamãe, papai e nós seis. Papai tinha dois empregos para dar conta de tudo. Trabalhava no Banco Hipotecário na época, que depois juntou com o Mineiro e virou Bemge; ele se aposentou no Bemge. Trabalhava na Academia de Comércio, lá na Floresta, depois virou Colégio Padre de Abreu. E ele se aposentou lá. Mesmo assim, depois que se aposentou, começou a mexer com um monte de coisa, ele não sabia ficar quieto, sempre foi muito trabalhador. E mamãe costurava. Mamãe quando casou, trabalhava na loja chamada Lojas Loop, uma loja muito chique, elegante, lá no centro da cidade. E tinha muitos ingleses lá, tinha uma senhora, inclusive, que era muito amiga dela, que a deixou costurar na máquina de costura dela, sabe? Mamãe grávida e ia costurar lá no bairro Serra, longe. Até papai comprar uma máquina para ela e ela começar. Eles dois que mantinham nós seis, éramos mantidos por eles. Era pesado. E mesmo assim, mamãe era muito cuidadosa com a gente. Antes do almoço, todo mundo tinha que tomar banho. Todo mundo tinha um aventalzinho bonitinho, que ela fazia para nós. Nunca nos sentávamos no chão com o prato na mão, sentávamo-nos à mesa e comíamos ali, não tinha essa de ficar escolhendo comida, não. Aí, comíamos sobremesa. Doce era só depois do almoço e depois do jantar, ou então em festinha. Tinha hora certa. Acabou, a gente escovava o dente e ela colocava a gente para dormir. Os que iam para aula, iam para aula, e os que não iam, não iam. Os horários eram diferenciados. Ela falava que cama era só para dormir, não deixava a gente ficar pulando em cama também não, era muito rígida. Mas assim... Quando papai chegava fim de semana, tinha vez que a gente ficava quase uma semana sem ver ele, aí dava saudade. Só quando eu estudava de manhã que eu o via levantando cedinho, preparava nosso café, fazia lanchinho para a gente levar, e ia para a aula. Ia a pé mesmo, todo mundo ia a pé, a escola é aqui perto. Ele participava da caixinha da escola, frequentava tudo, os dois sempre foram muito assíduos no trato na escola com os meninos, eram muito rígidos, verificavam nossos boletins. Se perdia nota, apanhava. Era assim. Mamãe olhava nosso caderno todo dia, quando a gente foi para o primário, não tinha... Só meu irmão que fez prézinho, nós todos já entramos direto no primário. Já sabíamos contar de 1 até 100, já sabíamos escrever o nome completo e olhar a hora. Às vezes, eu estava lá lavando roupa e mamãe falava assim: “Vera, olha a hora para mim. Onde está o ponteiro pequeno e onde está o ponteiro grande?” Então ela falava: “São tantas horas”. Foi assim que nós aprendemos. E ela mandava a gente desenhar os relógios, ela desenhou primeiro e a gente desenhava os outros, ela mandava marcar as horas todas, a gente entrava na escola sabendo um pouco. Para você ver a participação dela, com seis filhos, lavando roupa, passando, cozinhando, costurando, e mesmo assim tinha essa atenção com a gente.
P/1 – Ela cozinhava o quê? Do que você mais gostava?
R – Carne cozida na panela. Era muito gostoso, muito gostoso. Bife acebolado com batatinha frita. Verdura todas, porque ela tinha horta, não é? Nós crescemos com horta, comendo coisa da horta, criava galinha, comia os ovos daqui mesmo, não precisava comprar. Só comprava mesmo o que precisava, o resto papai trazia até da cooperativa. Porque era do Hipotecário e depois, do Bemge... E mamãe cozinhava almoço, jantar, café da manhã e café da tarde nas horas certas, não tinha essa de ficar beliscando o dia inteiro comida, não. Ninguém adoecia. Comida caseira, feita na hora, novinha, é difícil adoecer.
P/1 – E Belo Horizonte era outra coisa nessa época, não é?
R – Outra coisa. Belo Horizonte era frio. Muito frio. Mamãe lembra que quando nós moramos no Prado, a casa não era de laje assim, era de telhado. Quando eu nasci estava gelando, era mês de julho. 24 de julho. Muito frio. Aí, a mamãe amarrava bem a touca, porque ela disse que eu tirava tudo, que era agitada e tirava tudo. Mamãe amarrava a fralda no meu queixo para não pegar friagem no ouvido e dormia todo mundo juntinho para ficar quentinho. Ela colocava os meninos todos assim, juntinhos para esquentar. Porque era muito frio de noite. Umas senhoras idosas que moravam aqui acima da nossa casa, antes desse prédio aí, elas falavam que aqui amanhecia tudo branquinho a relva, de tão fria que era Belo Horizonte. Belo Horizonte, os antigos que falavam - e gente que sabe também, que estudou - era toda entrecortada de rios, todas essas avenidas que você está vendo aí eram rios, todas elas são. Eram rios e rios. Imagina a cidade toda cheia de rios, como não ia fazer frio aqui, não é? Era gelado, isso aqui era gelado. E montanhas...
P/1 – Mas era tudo perto também. Aqui no bairro você fazia tudo a pé, não é?
R – Era tudo pertinho. Escola perto, igreja perto, tudo pertinho. E, para brincar na rua, só sob o olhar dos meus pais. Brincava todo mundo junto ali, chamou para dentro, todo mundo era obediente, tinha que entrar. Não ficava assim... Era assim: “Pai, eu vou ali”. “Ali aonde?”. “Ali na esquina”. “Fazer o quê?” Era assim. Para comprar refrigerante, docinho, alguma coisa do bar da esquina, não podia, só os homens que iam. “Pai, eu vou ali comprar uma bala”. Ele: “Não, vai lá Renato, compra uma bala para ela”. Era assim. Agora, eu ia nas casas de aviamento - mamãe costurava muito - ia nos aviamentos para bater botão, para fazer casa, pedia também para costurar tudo, fazer casa, tinha tecidos que não podia fazer a mão, ficava muito feio, então eu levava para fazer na máquina direitinho, bonitinho... Para mercearia também a gente ia, mas bar... Fui entrar depois de grande, não deixava a gente entrar de jeito nenhum. Inclusive, quando entrei para o Coral, a turma toda ia para o boteco. Boteco para mim era um nome proibido. Eu, com 18 anos, boteco era nome proibido. E o pessoal ia e eu ia embora para casa, custei a sair com a turma. Depois é que eu fui saindo, saindo, assim. Quando eles sentavam na rua, nas mesas da rua, eu não sentava não, sentava nas de dentro. Sentava na de dentro, com medo de alguém me ver. Nossa, para você ver que bobagem, não é? Que coisa boba. A gente perde tanta oportunidade...
P/1 – Seu pai tinha carro?
R – Quando a gente era pequeno, não. ________ [35:53]. Inclusive quando fui fazer minha primeira comunhão, eram aquelas roupas todas branquinhas, de véu e grinalda, me achei como se fosse uma noivinha. Mamãe era costureira, ela que fazia as roupas todas para nós. Aí, papai comprava os livrinhos, o tecido, meia de seda, sapatinho branco, meia toda bonitinha, vestidinho bonitinho... E alugou um carro para nós, eu lembro direitinho, aqueles táxis pretos, aqueles carros pretos, que hoje é chique, aqueles todos brilhosos, grandes, o táxi era daquele jeito. E nós fomos em um táxi desses para fazer minha primeira comunhão, levou a família toda nesse táxi, todo mundo amontado ali.
P/1 - Desde criança você ia para a igreja?
R - Ia sempre. Eles sempre foram muito religiosos, muito religiosos. Papai era um homem muito religioso. Eu agora não sou assídua assim, não. Mas eu entrei para o grupo de jovens... Fui criada aqui, quando eu estava com 12 anos, o meu pai me mandou para um colégio interno, Salesiano, na cidade de Pará de Minas, porque a tia dele era Irmã e ele também tinha muito vínculo com o pessoal salesiano, tinha um colégio ótimo lá. Eu ia para Campos, no Rio de Janeiro, aí ele achou longe e ela conseguiu uma vaga para mim em Pará de Minas. Foi um dos cursos mais fortes que eu já fiz em toda a minha vida. E eu com 11 anos e meio, eu tinha dez matérias para a primeira série do ginásio, de tudo. Se fosse hoje eu teria aproveitado mais, mas eu era muito criança, muito infantil naquela época. Mas de um tudo a gente tinha curso. Tinha Irmã formada na França e tudo, dava aula de compotaria - compotas de doces - de trabalhos manuais, de bordados lindos, coisa mais maravilhosa... Aprendi um monte de coisa, um bocado deixei para lá, o resto não quis. Mas hoje, quando me lembro de tudo, entendeu? Eu lembro como que eu deveria ter aprendido lá. Fiquei naquele colégio interno dois anos, depois vim para cá e estudei... Lá no colégio interno eu tirava oito, oito e meio, a média lá era seis. Aqui era cinco. Lá era seis. Já me voltou um ano lá para eu fazer. Eu tinha feito a primeira série do ginásio aqui, lá eu não tinha Inglês, só tinha Francês, aí eu tive que fazer o curso todo por causa da média e por causa do Francês. Depois, quando eu vim para aqui, só tirava nove, nove e meio e dez. Na redação, em tudo, tudo! As professoras lá eram muito rígidas, aprendi demais lá. E tenho até saudades, assim, sabe? Meu pai me mandou para lá, na época eu não queria ir, depois mamãe fez enxoval imenso para mim, tudo feito na máquina dela. E foi uma época bem triste, sabe? Porque eu sentia muitas saudades de casa. Eu perdia a noção do tempo, porque lá a gente não tinha relógio para olhar, não tinha televisão, não tinha rádio, não tinha nada. Tinha os horários de oração, de tudo... De pôr o uniforme, hora de aula, hora de estudo, hora de brincar - era obrigatório brincar. Hora para tudo. E eu tinha muitas saudades da minha mãe. E um dia eu, conversando com minha mãe, uns anos atrás, fiquei até emocionada, porque mamãe falou que ficava lá no quintal, às vezes, estendendo a roupa e olhando para a lua e para as estrelas, pensando se eu também estava vendo-as e pensando nela através disso. Nossa... Eu lembro que eu chorava muito; na hora do estudo escrevia muitas cartas para mamãe, mas as cartas nunca chegaram aqui. Eu escrevia muitas cartas para ela. Papai ia me visitar todo primeiro dia do mês, ele ia visitar, mas mamãe não podia ir. Viajar, sem carro, com seis? Era complicado. Ele levava um de cada vez, sabe? Para me ver. E mamãe nunca pode ir, porque ela sempre teve que ficar com alguém.
P/1 – O que você escrevia para ela nas cartas?
R – Eu falava com a mamãe que eu queria vir embora, que eu não queria ficar lá, apesar de ter muita gente boa lá... Mas tinha uma Irmã da qual eu não gostava, porque ela era brava e eu não queria ficar lá. Eu cheguei lá, ela cortou meu cabelo todinho, cortou meu cabelo bem curtinho aqui assim, todo mundo lá tinha o cabelo curtinho. E quem cortava meu cabelo era só a mamãe. Aí, no segundo semestre, eu me rebelei e não a deixei cortar meu cabelo não. Eu fiquei com o cabelo aqui assim. Cheguei aqui de férias, mamãe falou “Nossa Senhora, que cabelo é esse? Meu Deus do céu, que coisa horrorosa”. Eu falei “Mãe, eu não deixei a Irmã cortar, falei que a senhora ia cortar”. Aí, ela tomou minha fita de Nossa Senhora, que eu tinha - a gente tinha - a gente participava, lá tinha Jardim de Maria, as meninas... Não. Filhas de Maria eram as mais velhas, as mais novas eram do Jardim de Maria e tinham uma fitinha. Ela tomou minha fita e eu lembro que eu chorei muito e escrevi para mamãe que eu queria embora porque ela tomou minha fita porque eu não quis cortar o cabelo (risos).
P/1 – Você ficou quantos anos lá?
R – Dois anos. Foi pouco, mas para mim parecia a eternidade. Era complicado. Mas por outro lado, eu aprendi muito. Hoje eu tenho a consciência de que foi muito bom para mim, de tantas coisas que eu aprendi, sabe? Agradeço muito às Irmãs. A Irmã-diretora era uma pessoa excelente, perfeita, ela gostava muito de mim. Muito eu aprendi lá. Muito mesmo. No trabalho, nas Artes, no estudo, sabe? Na educação. Tudo. Aprendi muito lá. Sou muito agradecida. Por isso que eu falo: se eu tivesse ido para lá em uma outra idade, eu teria aproveitado mais tudo o que elas tinham para me passar, para me ensinar.
P/1 – Você voltou com quantos anos?
R – Com 14 e meio.
P/1 – E você falou que vocês ouviam rádio...
R – Não ouvíamos rádio...
P/1 – Não, não. Eu digo em casa.
R – Aqui em casa? Rádio...
P/1 – Rádio, TV...
R – Rádio, TV, LP, os discos todos. Papai tinha aqueles discos todos da época da seresta, não é? Eu ouvi de tudo, Geraldo Tavares... “Teus olhos são negros, negros, como a noite sem luar” (cantando). E a família dele toda tocava violão. Quando eles vinham para aqui, para festa, aniversário, ou a gente ia para Ponte Nova, era uma festa. Aqui todo mundo tocava violão, cantava, dançava... Era uma festa aqui dentro de casa. Papai também era assim, brincava no fim de semana, como eu estava falando e cortei, acho que mudei para outro assunto... Era mais no fim de semana que o víamos, e fim de semana ele brincava. Era muita qualidade, muita qualidade que tinha nas brincadeiras dele com a gente. A época em que ele dava atenção geral para todo mundo. Olhava os deveres de casa, olhava os cadernos, olhava tudo.
P/1 – Queria lhe perguntar o que vocês ouviam no rádio nessa época? Você se lembra dos programas que vocês ouviam... Que seu pai escutava?
R – É. Papai ouvia muito futebol. Aquela Itatiaia, acho que nasci ouvindo aquilo: Itatiaia (cantando). Ouvia isso, papai ouvia muito programa de futebol direto, programa de seresta. E mamãe via novelas e ouvia as orações de seis horas da tarde. Todos os dias, às 18 horas, a gente ajoelhava perto do rádio e fazia nossas orações, chamava-se Hora do Angelus, o bispo que fazia a oração e a gente rezava o terço ali, porque o terço era rezado todos os dias aqui em casa. Depois que parou. Mas os dois continuaram com as orações da noite deles, todas. Papai trouxe muitas orações do colégio interno dele, ensinou para a gente. Quando eu fui para o colégio, eu lembro que algumas orações eram as mesmas do Salesiano. Eu aprendi, cantei, rezei e tudo mais, essas orações que ele trouxe. Ele cantava até em latim. Rezava até a Ladainha em latim, ele ensinava para nós, acredita? Ele gostava muito disso. Papai sempre gostou muito de jovens, gostou muito de igreja, de música... Ele trabalhou em um colégio, tinha muitos amigos, assim, o pessoal o curtia demais. Era muito legal, papai era uma pessoa muito querida. Muito querida.
P/1 – Tem alguma música religiosa que você gosta de cantar? Que lhe marcou?
R – Tem. Era assim: “Viva a mãe de Deus e nossa, sem pecado concebida! Viva a Virgem Imaculada, a Senhora Aparecida!” (cantando). Vinha à cidade, fazia aquelas visitas na cidade. Tem uma outra que marcou mais ainda: mamãe lavando roupa e cantando, lavando roupa e cantando. A música de um Conselho que teve, que cantaram assim: (cantando Hymno do II Congresso Eucaharistico Nacional Belo Horizonte). Mamãe cantava isso direto, enquanto ela ia mexendo com roupa, mas cantava o tempo todo, trabalhando, mas cantava. E eu peguei isso dela, também sou assim. Estou trabalhando cantando, às vezes estou sozinha e canto, danço... Danço até na música de propaganda (risos). Às vezes, estou vendo televisão e começam aquelas músicas gostosas, já levanto e começo a dançar a música toda da propaganda (risos). É bom, não é? A dança parece que está entranhada, e a música também.
P/1 – A senhora acha que é coisa de sangue?
R – É de sangue, tanto de um lado quanto do outro. Meu povo é todo festeiro. A família do papai toda, a vovó, o vovô, tios e irmãs, todo mundo tocava violão. Na família de mamãe eram menos os que tocavam violão, mas eles cantavam e dançavam.
P/1 – Então...
R – Juntou tudo: a fome com a vontade de comer (risos). E todo mundo aqui é ligado nisso mesmo. Era muito alegre aqui. As noites de Natal, juntava todo mundo da rua. A gente vinha aqui, papai comprava garrafão de vinho para todo mundo tomar. E ia na casa do outro, tomava, depois na casa do outro, do outro... Os mais velhos, não é? Criança, ele não deixava não. Para nós era um vinho Moscatel, um docinho cor-de-rosa, pequeninho, que ele dosava e dava: “Toma, esse aqui você pode beber”. E ele sempre olhando, não é? Mas todo mundo fazia sede no Natal, todo mundo ia para missa primeiro, que era Missa do Galo e a ceia era sempre depois. E a missa começava tarde, terminava depois da meia-noite. Agora é que os padres todos passaram a fazer a missa às sete da noite, oito da noite, nove, para meia-noite estar todo mundo em família, ceando, comendo juntos. Mas antes não, a gente virava a noite de Natal. E de Páscoa também. Juntava todo mundo, era muito unido. Sinto falta dessa época. Eu sinto falta das brincadeiras de roda na rua, brincadeiras de queimada, brincadeira de pique e salve, era um tipo de pegador. Os meninos brincavam de bola de meia - não sei se conhecem lá em São Paulo, esses daqui devem conhecer - as bolinhas de meia feitas com meia velha. Faziam bolinha de meia, brincavam de bentes altas. Eram varinhas, colocava em pé e chutava para derrubar essas varinhas. A meninada toda brincava. E como eu era a mulher mais velha dos filhos, os meus irmãos mais novos... Eu tinha que consertar o papagaio, desengastalhar os rolimãs que andavam na terra e na areia, então eu tinha que limpar aquilo tudo para eles. Eu tinha que andar junto com eles, com os pequenininhos, que eu não conseguia andar. Andava e os colocava no colo para andar no carrinho de guia, patinete, soltar papagaio, colar os papagaios que rasgavam, fazer os papagaios. Eu tinha uma vida, assim, quase... Ajudando junto com os meninos também, mas tinha que ser tudo aqui dentro de casa. Fazia o grude usando cola... Tudo que eu tive que aprender a fazer, porque eu era o braço direito da minha mãe. Minha mãe costurando, trabalhando, eu que ajudava. Era: “Mãe, meu papagaio rasgou”. E começava a chorar. E ela falava: “Vera, olha lá o que ele quer”. E pronto. Não achei ruim também não, achei bom de brincar com isso tudo. Era muito gostoso.
P/1 – Vocês são cruzeirenses?
R – Cruzeirense. Já viu alguma coisa, aí? Nós somos cruzeirenses, todo mundo aqui de casa é cruzeirense. Começou com papai e mamãe, nós todos cruzeirenses.
P/1 – Vocês ouviam no rádio primeiro, depois foram ver na TV, é isso?
R – No rádio. Depois, quando saiu o disco compacto do Cruzeiro, nós compramos. O Cruzeiro ganhava, a gente colocava na radiola, alto, arrebentando as caixas de som para todo mundo. E tinha atleticanos, nossos amigos atleticanos também. Então, brincavam muito... Brigavam... Os meninos brigavam uns com os outros, brigavam por causa de Cruzeiro e Atlético-MG, depois estava todo mundo brincando de novo. Quando o Atlético ganhava implicava daqui, daqui implicava de lá, Nossa Senhora. Depois teve um jogador do Cruzeiro que a mãe dele mudou aqui para perto e ele estava ali. Aí, acabava o jogo do Cruzeiro e Atlético-MG, algum tinha perdido, ou vice e versa, o Cruzeiro e o Atlético-MG, quando você pensa que não, chegavam os jogadores todos juntos - do Cruzeiro e do Atlético-MG - todos aqui, na casa deles. Faziam churrascão e tomavam cerveja. Aí, mamãe falava: “Estão vendo aí, cambada de bobo? Vocês ficam brigando por causa de futebol, está todo mundo tomando cerveja e comendo churrasco ali”. Aí, a meninada foi crescendo, crescendo e parou com essa bobagem. Todo mundo junto. Só zoação mesmo que eles faziam. Mas eles vinham ali, a gente... Ficou um carro parando atrás do outro. Era um baiano na época, Rodrigues.
P/1 – Você gostava de futebol também?
R – Gostava. Papai levava a gente ao estádio. Mas a gente saia dez minutos antes, porque todo fim de festa e fim de jogo, ele não deixava a gente ficar. Ele levava a gente no Carnaval, esperava, ficava lá o tempo todo. Depois de grandinho, levava e buscava. Mas se ia acabar dez horas, meia-noite ou quatro horas da manhã, tinha que sair meia hora antes. Nunca podia esperar fim de festa, nem fim de jogo, nem nada. Ele saía antes. Teve uma vez que fomos lá e o Cruzeiro estava perdendo... Começamos a sair, ele empatou. Aí saiu todo mundo triste, chateado. Nem sei como a gente estava jogando, não. Eu sei que quando nós saímos, estávamos no meio do caminho, o Cruzeiro fez gol e nós voltamos correndo para comemorar, depois fomos embora. Logo, logo acabou e veio aquele tumulto todo. Papai falou “Está vendo, gente? Falei que não era para sair nesse final”. Era tudo muito tumulto, muito empurra-empurra, muito corre-corre. Nós todos éramos escadinha, diferença de, no máximo, dois anos de um para o outro. Um ano, dois, um ano e meio...
P/1 – Teve jogos de que você se lembra? E jogadores de que você gostava mais?
R – Gostava. O Raul. O Raul tinha uma loja lá na Galeria de Ouvidor e a gente sempre passava em frente para ver ele lá, trabalhando, vendendo. Era engraçado, ele ficava lá na loja. Se fosse hoje, não é? Ficava lá na loja, era alto, loiro, a moçada toda achava bonitinho. Passava a meninada toda olhando. A gente comprava o CD lá, ele autografava e a gente trazia. Então, era o Raul... Aquela época - a áurea do Cruzeiro - acho que quatro, não sei quantos jogadores do Cruzeiro foram para a Seleção. Era o Wilson Piazza, Raul, Dirceu Lopes, Natal. Está vendo? Eu até lembro os nomes. Se me perguntar hoje os nomes, eu só sei o nome do Natal, Evaldo, Dirceu Lopes, Raul, Wilson Piazza, Tostão... Essa época, eu realmente gostava deles. Era um time muito bom. Ganhava tudo.
P/1 – Tem algum jogo de que você se lembre mais?
R – Eu lembro de um jogo que eu nem tenho certeza se foi o Cruzeiro, tem muitos anos, não lembro. Jogou acho que com um time de fora. Disseram que foram mais de 100 mil pessoas no Mineirão. Foi Cruzeiro e River Plate? Acho que foi isso. E nós fomos, eu lembro que a gente chegou lá, só conseguimos ver na ponta do pé, papai me colocou no pescoço dele para eu ver, e nós olhando na ponta do pé esse jogo lotado de gente, mas lotado de gente. Nós passamos aperto nesse jogo, para entrar e para sair. E papai morrendo de medo, não é? Quase nos amarramos uns aos outros. Quando a gente saía para o Carnaval... Ele levava a gente para o Carnaval e colocava nome em cada bolso. As meninas, que tinham vestido e não tinham bolso, ele pregava com alfinete o nosso nome completo, filho de quem é... Para você ver, naquela época, papai já tinha isso... Filho de quem é... Nós não tínhamos telefone em casa ainda e ele colocou o telefone de contato do vizinho, nome do pai, da mãe, telefone de contato e endereço completo de quem era. E falava com a gente: “Se vocês se perderem, entreguem para um policial ou para um adulto qualquer que achar vocês. Entreguem para alguém adulto, para vocês não ficarem perdidos”. Era assim. E não separava da gente, ninguém nunca se perdeu. Quem saia de perto dele também, não é? Ele era bravo, tinha que obedecer. Mas a gente ia todo mundo de mãozinha dada, aquela escadinha. Ele levava a gente para ver o 7 de setembro, que era o desfile, não é? O desfile de 7 de setembro todo, papai sempre gostou muito dessa área militar. Ele veio para Belo Horizonte mesmo para se inscrever para ser militar, mas já tinham fechado as inscrições, os negócios que ele queria ser... Eu acho até que ele estava pensando em ir para a guerra, só que já tinham fechado esses negócios quando ele veio. Então, ele sempre gostou muito de desfile, de ver, ele achava bonitos os tanques de guerra, ele levava todo mundo para ver. Depois, passou a assistir na televisão. Assistia o dia inteirinho aquilo lá. E na Semana Santa também. Você falou o negócio do rádio, Semana Santa ficava o rádio ligado o dia inteirinho fazendo Sermão das Sete Palavras. Eu acho que essa rádio ficava lá... Essa missa era celebrava acho que lá de São João del-Rei, ou de Tiradentes. Ficava o dia inteirinho na Semana Santa. Na sexta-feira da Paixão, a gente não podia cantar, se brigasse também não podia brigar. Não podia cantar, não podia brigar, não podia jogar bola - os meninos não podiam jogar bola - a gente não podia jogar vôlei... E era uma coisa muito séria, e se fazia o jejum. O jejum dele era o seguinte: meio pão de sal e o café com leite. Jejum da mamãe, não. Era nada, até a hora do almoço. Então, a gente que aguentava ficava sem comer nada até a hora do almoço, e os outros faziam meio pãozinho de sal, igual a papai. Era jejum absoluto, até a hora do almoço. Aí, na hora do almoço, aquela bacalhoada grande, com batatas, era um almoço bem caprichado. A gente almoçava muito bem, depois só jantava. Era assim a Semana Santa. Mas era muito sério isso aqui, a parte religiosa era muito séria. Papai depois foi Ministro da Eucaristia por muitos anos... Eu entrei para o grupo de jovens - eu e os meus irmãos todos. Nós fizemos teatro, participávamos dos teatros da sexta-feira da Paixão, de Natal, de tudo, vários teatros... Eu tenho muitas lembranças dessa época. Nosso professor de teatro era muito bom. Também tinha o Coral de lá, que ele era o maestro também do Coral. Ele era lá da Fazenda ___ [56:17] de Ibirité. Ele vinha toda semana ensaiar a gente, o Coral da igreja, o teatro do grupo, o teatro das épocas de eventos, tudo era ele quem fazia.
P/1 – Você tinha uns 17 anos?
R – Era isso. 16, 17 anos, por aí. Isso. Era muito bom. E eu cantei Verônica em várias apresentações da Semana Santa. Eu fui a Verônica, mamãe quem fez a minha roupa roxa, o véu, fez tudo. Aquela música (cantando). Que era a que vai descendo o rosto de Cristo, eu que fiz o véu com o rosto de Cristo marcado, eu que desenhei, pintei, tudinho... Eu gostava muito de desenhar, eu era muito... Às vezes mais calada pelos cantos, eu escrevia muita poesia, muito poema, muita coisa assim, sabe? Chorava, chorava, não sei de quê. Coisa de adolescente, à toa, você não sabe nem por que está chorando (risos). E eu escrevia poema, escrevia, escrevia... Você acredita que eu perdi o meu caderno? Tanta tristeza que eu perdi meu caderno que tinha todos os meus poemas escritos, perdi todos. Era dessa grossura. Não sei onde foi parar.
P/1 – Você pensava em namorar nessa época? Como é que era isso?
R – Papai não deixava não. Mas a gente pensava. Dava as olhadas. Uma vez, tinha um rapaz aqui, amigo do meu irmão mais velho. Meu irmão mais velho fazia o aniversário dele todo ano, era no mês de maio, dia 19 de maio. Todo ano ele fazia o aniversário dele. E vinham muitos amigos dele. A gente ajudava a servir e tudo, mas namorado não tinha, a gente só achava bonitinhos os rapazes e tudo, achávamos bonitinhos. E tinha um amigo dele, aqui da rua, que tocava violão e mancava de um pé; para mim não tinha nada mais bonitinho do que ver ele mancar da perna. Era assim... Platônico. Eu gostava dele de cá e ele nem ficou sabendo, até hoje não sabe. E ele vinha aqui, tocava violão, às vezes vinha com uma roupa branquinha, era bonito, tocava violão. Depois foi para a igreja, cantou no grupo da igreja que, não sei se você ouviu falar na Primeira Missa de Ié-ié-ié - era Ié-ié-ié - que o padre Antônio fez. E ele tocou nessa missa, eu o vi tocando lá. Eu já tinha chegado do colégio interno e ele tocou nessa missa. Para mim não tinha nada mais... Fiquei assim, apaixonada por ele, até hoje ele não sabe que fiquei apaixonada por ele. Mas papai só me deixou namorar depois. Num desses parques, também era circo e era parque, naquela pracinha ali tinha uns parques... Dois rapazes - estávamos eu e minha irmã - eles vieram conversar e tal. Eu me interessei pelo outro, minha irmã também pelo outro, mas o colega dele é que veio namorar comigo e eu não quis de jeito nenhum (risos). Namorei ele uma semana e falei que papai não deixou e pronto. Eu mesma falei que papai que não deixou, porque eu não queria namorar com ele. O que eu queria era o outro (risos). O outro namorou minha irmã, mas depois saiu todo mundo (risos).
P/1 – Isso foi dos 18 para frente?
R – É, dos 18 para frente. Eu tinha acabado de fazer 18 anos.
P/1 – É essa praça que você falou?
R – É, essa pracinha ali. Mas aí papai deixou namorar aqui dentro de casa, depois o menino falou: “Mas ele deixou”. “Não, ele só falou que deixou, mas não deixou não”. Minha irmã até continuou namorando com o outro e eu namorava menos. Lembra que eu te falei que eu queria ser artista, que eu não queria namorar para não casar? Aí, eu não queria namorar firme ninguém, não.
P/1 – Nessa época você costurava já?
R – Ajudava mamãe a costurar. Eu nunca fui modelista, mamãe era modelista, era tudo perfeito. Alta costura ela também fazia e eu sempre a ajudava, mas modelista eu nunca fui. Eu fazia todos os bordados, as costuras, bainhas e tudo. Tomava conta da casa, enquanto ela fazia as partes mais difíceis. Ajudava ela a costurar o tempo todo, mas quem costurava mesmo era mamãe. Eu senti muito hoje... Se fosse hoje, eu montaria uma confecção com ela. Um lugar bem “tchan”, ia fazer sucesso, porque ela costurava bem.
P/1 – E agora, com 18 anos, você fazia essas coisas, mas você ainda tinha na cabeça a ideia de ser artista?
R – Tinha.
P/1 – Você queria ir por onde? Seus pais iam deixar?
R – Cantar. Eu queria cantar. Cantar no palco. Eu queria cantar de todo jeito. Mas eu nunca fui em um programa de calouros, só fui naquele que te falei do bairro contra bairro, mas programa de calouro, não... Depois, comecei a fazer Faculdade e tudo. Comecei a namorar normal, tranquilo, sem problemas.
P/1 – E vamos voltar então. Tem um quintal lá na sua casa?
R – Tem.
P/1 – Como é a história desse quintal?
R – Querido, muito querido. Eu sinto que ele tem uma energia muito grande. Toda vez que eu preciso, assim, sentir mesmo, me ver, voltar para mim, eu sento ali, às vezes, naquele quintal, e fico olhando lá. Somente à noite fico lá, caladinha, observando, observando, pensando: “Meu Deus, quantas histórias esse quintal tem”. De alegria e de tristeza, não é? Ali mamãe fazia, também, fogueirinha de São João, de Santo Antônio, o papai colocava batata-doce para assar debaixo da fogueirinha. Ainda podia colocar fogueirinha, assim, não é? Porque não tinha vizinho para reclamar, era mato ali, mato no Sul... Então, colocava a fogueirinha e colocava batata-doce. Era gostosa a batata-doce assada na fogueira, era gostosa. Ali a gente brincava de roda, brincava de tudo... Colocava palco, tudo era ali. Os ensaios do grupo começaram ali, ali é o princípio de tudo.
P/1 – Da quadrilha?
R – Da quadrilha também.
P/1 – Como é que foi esse negócio? Seu pai começou isso?
R – Então... No aniversário dele - um dos aniversários dele - padre Antônio Gonçalves, que era o nosso vigário aqui... Papai era Ministro, dirigia o grupo de jovens, todo mundo aqui, a rua inteira, a família inteira... Todo mundo na festa dele... Ele sempre gostou de fazer uma canjica e quentão. As coisas que ele tinha, oferecia para todo mundo - canjica e quentão. Esses eram os pratos principais, o restante era ____ [1:03:03]. E cantava, dançava, brincava de quadrilha, e padre Antônio deu a ideia: “Por que vocês não montam uma quadrilha meia de verdade? A gente podia fazer uma competição de bairro”. Como teve o outro, não é? Então nós fizemos, montamos. Nesse ano mesmo nós dançamos, montamos em junho e eu que fiz a coreografia todinha da quadrilha, com 21 passos. Nunca tinha feito coreografia de quadrilha. Nós montamos com todo mundo aqui. As roupas, Nossa... Cada mãe fez a sua. E fomos competir. Montamos coreografia, ensaiamos, ensaiamos todos os dias, para nós era uma festa. Mamãe fazia pipoca para todo mundo. Às vezes, rolava pipoca no intervalo, no final, antes... Era o tempo todo o ensaio. Aí, nós fomos nos apresentar na Feira Coberta do Padre Eustáquio. Hoje tem um movimento cultural lá. Lá teve um concurso de quadrilha, com quatro grupos. Aí, ganhamos em primeiro lugar. Isso foi em 1978. Em 1979 fizeram o primeiro... Chamava Forró de Belô, lá na Praça da Estação, que é um lugar muito sagrado para nós, com relação ao movimento junino... De 45 quadrilhas, nossa quadrilha foi a campeã. Nós nunca imaginávamos isso. Foi tão emocionante, tão emocionante, que nós fomos lá para participar, a Belo Horizonte inteira fez inscrição. Chegamos lá e era assim: três dias direto, no último dia sobraram três. Eram vinte minutos para cada grupo e eles colocaram as três para dançar dez minutos cada uma. Quando nós dançamos, a gente não tinha torcida, mas todo mundo começou a gritar: “Já ganhou, já ganhou, já ganhou”. E nós fomos crescendo, fomos crescendo e apresentamos. A hora em que fizemos o passo da minha coreografia, que eu tinha feito, do pessoal rodar, girar assim, gritaram: “Já ganhou, já ganhou”. E quando falaram o primeiro lugar, nós ganhamos. Nossa, você não imagina, aí foi a glória. Nós choramos, fizemos a volta olímpica lá na praça, carregamos o papai, jogamos ele para cima, jogamos como fazem com técnico de futebol... Jogamos para cima e ele quase caiu (risos). Aí, ficamos lá, depois começou o show, começou todo mundo a dançar forró, chegamos em casa seis horas da manhã. Esse foi o Forró de Belô. Depois teve vários outros, nós ganhamos... Passou o nome para Arraial de Belô, depois agora para Arraial de Belo Horizonte. Nós fomos campeões - primeiro lugar quatro vezes - do Arraial de Belo Horizonte. Foi juntando forró e arraial. E fomos segundo lugar, terceiro, quarto, quinto, até sexto, uma vez décimo... Várias outras vezes. E Arraial da Savassi, fomos cinco vezes. Arraial do Jumbo... Jumbo é antes do Supermercado Extra. O Jumbo era um supermercado que tinha lá na Santa Efigênia, eles faziam também. E o nosso prêmio era uma cesta básica. Vinha tudo lá: fubá, farinha... A gente ganhava era aquilo, não ganhava troféu não. Uma cesta. Fomos cinco vezes também. Do Sesc também, nós fomos os primeiros campeões do Arraial do Sesc. Depois, o Sesc parou de fazer o concurso, mas ganhamos terceiro lugar, ganhamos quinto... Parou de fazer. Continuou só a festa da cidade, como o Arraial de Belo Horizonte, e agora está crescendo cada vez mais. Agora tem dois grupos, como futebol: grupo de acesso e grupo especial. É assim agora. Então, o movimento junino está crescendo muito, nós temos Associação, que se chama União Junina Mineira. E somos filiados à Confebraq - Confederação Brasileira de Quadrilhas, a nível nacional; tem sede em Brasília. E o primeiro lugar do Arraial de Belô aqui vai dançar no Arraial Nacional. É muito bom, é muito gratificante participar, e o grupo é a minha história de vida. Nós fizemos 41 anos este ano. É a minha história de vida. Antes não tinha incentivo nenhum para nada. Cada um fazia seu vestido, cada uma fazia sua roupa, cada um bolava sua roupa, era muito interessante. Então vinha roupa de todo jeito, não é? E depois, começaram a competir mais, o pessoal começou a fazer as roupas mais trabalhadas e tudo. E de uns anos para cá, depois do União Junina, o Jadson conseguiu que a Prefeitura desse uma ajuda de custo para nós. Neste ano estava em 13.500 para cada um pelo menos começar a montar alguma coisa. É pouco, porque a gente gasta muito, gasta 20 mil, gasta 30 mil, faz festas para sobreviver, faz almoço, faz feijoada, faz tropeiro disso, de aquilo, forró disso... Dependendo do grupo tem mais facilidade, shows... Tudo para angariar fundos para a gente conseguir se manter. E os prêmios não passam disso não. Prêmio é 8, 10, 12 e 14 mil, nessa ordem, só os quatro primeiros.
P/1 – A primeira vez que vocês foram foi em 1978, mais ou menos?
R – Em 1978 foi na Feira Coberta. Em 1979 foi o primeiro Forró de Belô mesmo.
P/1 – Que vocês competiram?
R – Que nós competimos. Nós competimos com quatro na Feira Coberta. Mas não foi nada assim... Foi a coisa que a Prefeitura fez com o vereador local, foi coisa leve. Agora o Arraial de Belô mesmo, com todas as quadrilhas da cidade fazendo inscrição, que saiu na mídia e tudo, foi em 1979.
P/1 – De onde surgiu a ideia de fazer uma quadrilha... Você falou, mas assim... Era da cultura da família? Explica para quem não é de Minas, como é que é esse negócio...
R – A festa junina aqui em Minas Gerais é uma festa folclórica muito entranhada nas famílias. Em todo sítio, fazenda e tudo, tem sempre a festa junina. Aquelas festas que tem as comidas típicas da região, porque a quadrilha nasceu lá na Inglaterra, de lá veio para o Brasil, com a Corte. A Corte ficou com aquela dança só no salão, depois se popularizou, aí espalhou demais e começou a voltar para a Corte de novo. Agora ela está no Brasil todo com a Festa Junina. Inclusive, no Nordeste, eles falam São João. Mas a festa Junina para nós é Santo Antônio, dia 13 de junho, São João é 24 de junho e São Pedro 29 de junho. São os três santos. Começou como uma festa da colheita, não é? A Festa Junina, que é na época da colheita, aí tem o casamento, uma festa pagã... Depois o casamento na roça, que, às vezes, na cidade, os meses de maio e junho eles fazem vários casamentos nessa época. Fazem aquela festa do interior. Inclusive, quando nossa quadrilha fez dez anos, eu fiz uma festa chamada Festa do Interior. Nessa festa, eu bolei desde quando estava dançando em uma catira, em uma coisa lá, depois fiz uma seresta, começou aquele namoro... Mostrei várias danças de todo país, aí culminou com a dança do casamento na roça e a festa da quadrilha, em comemoração ao casamento na roça.
P/1 – Queria lhe perguntar, porque eu fiquei muito curioso... Essa narrativa da quadrilha - você fez a junção - como é que funciona essa história? Qual a história que vocês estão cumprindo em uma quadrilha? Tem o casamento, não é? Como é que é isso?
R – O tema aqui em Belo Horizonte não é obrigatório, você pode trabalhar tanto com tema, quanto homenagem. Ano passado, nós fizemos homenagem ao cinema. Então fizemos as roupas de acordo, as danças... Fizemos várias homenagens a alguns filmes de época. E esse ano a gente está querendo trabalhar com a Amazônia, ou então a história do papai. Nós não colocamos... Como não vai sair agora mesmo, é segredo (risos). Para o ano que vem, nós mantemos um certo segredo com relação a outras quadrilhas, por causa da concorrência. Então, estávamos decidindo mais para Amazônia e queimadas em geral, para falar sobre isso como uma forma de conscientização. Porque o grupo não é só para dançar. Não existe só para dançar. Ele existe, também, como um movimento social, um movimento de conscientização, um movimento de aprendizado. Muitas crianças chegaram aqui com 11 ou 12 anos, quando ainda não podia dançar no Arraial de Belô, dançavam em outros lugares. No Arraial de Belô a idade era 14, agora já pode com 11, porque as crianças estão ficando muito grandes, não é? Essas novinhas. Então agora o Belô já os autoriza a participar. A gente trabalha muito, também, com a conscientização das realidades, das vidas e coisas que acontecem por aí, da violência. Teve uma quadrilha deste ano que falou da violência contra a mulher, foi muito triste de ver, ela ganhou primeiro lugar. Outra quadrilha falou sobre a barragem de Brumadinho e de Mariana. A nossa falou sobre o cinema. Esse ano o pessoal fala sobre o Rio São Francisco e tudo... E é tema ou homenagem, são permitidas as duas coisas. Nós gostamos mais da homenagem, para não ficar... Porque o tema é uma coisa muito perigosa, você pode se perder no meio. O tema você tem que começar do pé à cabeça e fazer tudo de acordo com aquilo a que você se propôs. Você tem que ter aquele projeto e não pode fugir dele. Qualquer coisa, até a fala, se fugir, corre o risco muito grande de perder pontos. Por isso, nós preferimos mais as homenagens e a conscientização. Para depois ir mesmo na dança propriamente dita. Por exemplo, nós ensaiamos ali. Tinha um pai que era separado da mãe... Várias superações nós vimos no nosso grupo. Um pai era separado da mãe e ele ficava com os dois rapazinhos, e trabalhava, noite e dia, como motorista de ônibus. Um dia, nós fomos dançar aqui, eles chamaram o pai deles para assistir, o pai deles veio e chorou muito, ficou muito emocionado, veio, nos abraçou e agradeceu: “Muito obrigado, agora eu sei onde os meus filhos estão e com quem eles estão. Eu vou para o trabalho tranquilo, sei que todas as noites eles estão aqui”. Nós o trouxemos aqui, sempre a gente faz reunião com os pais, a gente passa para eles os telefones, qualquer problema pode ligar, tem o meu telefone, o do meu irmão, João Bosco, que é o presidente do grupo agora, que era papai e ele era o vice, agora papai faleceu e ele ficou no lugar. Eu sou Diretora de Eventos e coreógrafa. A gente trabalha muito, assim, de tirar a pessoa... Não tem muitas comunidades, mas das poucas que tem, a gente já teve um trabalho bem diferenciado, já conseguimos muita gente que superou a vida, casos de superação realmente... De mães que ficaram felizes, de mães que acompanham, que sabem onde as crianças estão, entendeu? As jovens estão. Então, é muito importante o trabalho que a gente faz aqui na comunidade. Eles aprendem a fazer os trabalhos manuais, eles mesmo fazem, não precisa os pais ficarem gastando. Traz para cá, o que a gente pode comprar a gente compra, o que não puder faz vaquinha todo mundo, com os prêmios e com o dinheiro que a gente consegue, vai fazendo tudo... Elas mesmas fazem mutirão no fundo do quintal, se você vier aqui no mês de junho você se benze, fica aquela coisa espalhada para todo lado. Pessoal fazendo sapatilha, fazendo arranjo, fazendo gargantilha, fazendo pulseira, sabe? Trabalhando nos vestidos, bordando os vestidos, trabalhando assim... É muito legal você ver que teve criança que já pegaram e estão fazendo trabalho para vender. E tem outros grupos que já fazem isso também.
P/1 – Aqui no bairro?
R – Não, no nosso bairro estou falando da nossa. Tem no bairro mais afastado outros grupos também. Nós fizemos esse tipo de trabalho aqui no bairro. Trouxemos pessoas da escola, as mães agradeceram muito à gente por eles estarem aqui. E qualquer problema que tenha, a gente conversa. Tem que ter uma interação entre pai e filho. Para dançar, para viajar, tem que ter um formulário preenchido com os dados todos dos pais, autorização por escrito com xerox, com tudo. Sem isso, o Conselho Tutelar daqui não deixa os menores de idade dançar. E todo mundo tem. Tem que ter autorização, a gente não sai com os menores de idade sem autorização dos pais. Então, os pais sabem aonde eles estão e sabem de que horas até que horas é o ensaio aqui. Muitas vezes a gente recebe: “Fulano não chegou aqui até agora”. A gente fala: “O ensaio terminou às dez horas e 30 minutos, ou terminou às dez horas, mais cedo hoje. E saiu daqui com fulano, fulano e fulano”. Eu aviso para eles todos: “Nós não vamos dourar a pílula. Se a mãe ou o pai de qualquer um de vocês ligar para aqui, nós vamos falar a que horas acabou o ensaio e a que horas começou, se você veio ao ensaio e se não veio. Eles perguntam tudo e nós vamos falar. Então, não vai pegar vocês de surpresa, vocês já estão sabendo que se ligar para cá, nós vamos falar a verdade”. E é assim, porque tem que ser assim, é uma forma da gente trabalhar junto com os pais também, ajudar na criação, ensinando, porque é complicado...
P/1 – Quando você vai em festa junina ou festa de São João, as pessoas falam, tem o casamento, a noiva...
R – Tem.
P/1 – O que é isso? Por que tem essas etapas?
R – Porque a festa junina é uma festa... Antes era uma festa pagã, da colheita. Nessa época, eles aproveitavam para fazer os casamentos e as festas da família. E, no interior, tem sempre o casamento na roça e, às vezes, colocam até a menina grávida, o pai andando com a cartucheira, com a garrucha atrás do noivo: “Tem que casar, chama o delegado”... Então, faz aquele teatrinho, às vezes casa barriguda, às vezes vai casar e aparece uma amante, cheia de filhos: “Ele não pode casar com você não, porque eu tenho esses filhos todos com ele”. Os meninos chamando: “Pai, pai, pai”... É muito engraçado. Então é a parte cômica, a parte engraçada. Tem a parte séria, que é a parte sacramental, a parte, como já falei, que fazemos aquela história toda desde quando começaram o namoro na loja, trabalhando ali tudo, depois pede em casamento, aí vai se casar, faz o casamento, e aí festa junina já é a comemoração do casamento. Isso já é a história mesmo do folclore mineiro. É assim. Tanto que lá no Nordeste tem o casal de noivos, mas o casal de noivos para eles não é o mais importante, o mais importante é a rainha. Eles têm lá a rainha, tem até concurso de rainha. A rainha se veste diferenciada, tem música para a rainha, dança para a rainha, todo mundo fazendo aquela ____ [1:19:06] para ela e tudo. E aqui para nós o mais importante é o marcador, porque é ele quem conta a história que nós estamos mostrando. Ele vai colocar... Você, que nunca viu quadrilhar, vai entender nossa dança através do marcador. Começa dali e vai cantando os passos, marcando os passos. E os noivos e o casamento deles, estilizado ou não, sempre faz parte.
P/1 – E como é que você junta isso com o tema? O tema da Amazônia, por exemplo?
R – Pois é, o tema da Amazônia estamos desenvolvendo ainda. No caso, que ia ser a história da mamãe e do papai, eles se casaram na igreja e tal. A gente ia contar a história deles e depois a festa, o canto gregoriano, aqueles negócios todos que teve, fazer tudo. Agora, da Amazônia, nós não encaixamos a parte dos noivos, nós estamos pensando, porque não vamos falar só da Amazônia, vamos falar das queimadas do Brasil como um todo. Então, vai entrar Amazônia, vai entrar Mato Grosso, vai entrar Minas Gerais, outro estado que está queimando também... O casamento, nós vamos ter que ver uma forma de entrosar aí nessa parte. Eu estou pensando se coloco isso no início ou no final, ainda não definimos, ainda está em estudos. Por isso, nós estamos nos encontrando todos os dias para fazer isso. Deu uma parada de um mês, um mês e meio, porque eu viajei. Agora, a partir de amanhã nós vamos nos sentar. Amanhã já tem reunião aqui de noite, nós vamos encontrar com o grupo para estudar essa parte aí, justamente sua pergunta (risos). Vai ser difícil. Porque, por exemplo, até pensei em colocar em uma festa de casamento, dali já a sanfona começando tudo, de repente alguém grita da queimada e vem e atrapalha a festa de casamento deles. Poderia ser isso também. Ou pode alguém estar em uma igreja...
P/1 – Como são os ritmos da festa? As músicas?
R – Forró. Porque aqui em Minas são poucas as músicas puxadas para dança de quadrilha. Tem muita música nordestina, porque a gente usa muita música nordestina de Luiz Gonzaga, de Elba Ramalho, de Alceu Valença, de Zé Ramalho... E tem muita música de seresta, daqui de Minas. Música de catira, não é? Música da dança das fitas, música do Norte de Minas. Tem até a música... Nós colocamos uma vez a música de ciranda para fazer a volta. E então, já foi até um tema de discussão no estudo que tivemos aqui com o União Junina, que Minas Gerais não fornece muita música para quadrilha. Tem quadrilhas, tem grupos de quadrilhas juninas que estão fazendo sua própria música. Eles escolhem o tema e falam sobre tudo aquilo ali, e baseiam sua coreografia toda direcionada para essa música mesmo. Fica bonito, não é? Mas, por enquanto, não vale ponto. Você tendo sua música própria ou não, não vale ponto. Você tem que dançar dentro do ritmo... Mas é forró mesmo... Dentro do ritmo e dentro do que se propõe. Até a letra da música você tem que colocar. Tem que dançar conforme a música (risos).
P/1 – E como é que é uma canção de catira?
R – Aquele sapateado (sapateando). E aí vai. Mas tem muita música, assim. A catira tem sapateado, tem a bateção de palma, giro e só isso. Depois, vai só no passo. De vez em quando, tem o sapateado de novo. É muito legal, é muito legal isso aí. Mas quase que dá para fazer o concurso de catira. Em São Paulo, é muito comum isso também. Vocês já devem ter assistido, lá tem grupos de catira ótimos. Muitos grupos ótimos lá.
P/1 – Você me falou das fitas?
R – Danças das fitas. É originada da dança portuguesa, muito utilizada no Norte de Minas e no Sul do país. Ela é um pau de fitas, lá em cima as fitas têm duas cores diferenciadas ou mais. Então, os homens ficam com uma cor, as damas com outra. Ou então só feminino também. Uma roda de dentro, uma roda de fora, ali vai trançando. Tem danças que vão dançando, vão trançando no pau de fita até embaixo, depois vão saindo desenrolando até em cima. Outras não. Outras só vem e faz uma ou duas vezes, trança um casal com o outro, eu vou para aí e você vem para cá, a fita vai e trança, depois a gente desfaz essa fita. Às vezes, outros, o círculo de dentro gira para um lado, o outro gira para o outro, e vice e versa, vai e volta, vai para frente, vai para trás e gira com a fita, dá um efeito muito lindo. Lá em cima você pode colocar iluminação, pode jogar papel picado, pode fazer tudo. A gente usa fumaça também. A dança das fitas é muito linda. E pode também... Uma vez nós fizemos um carrossel. Os homens todos com braços assim, as meninas vêm e se sentam assim no intervalo dando o braço, seguram nos ombros deles, elas se sentam no intervalo entre um cavalheiro e outro. E elas seguram as fitas. Seguram as fitas e giram como... Já viu carrossel de parque? Que tem aquela parte igualzinho circo que vai girando para um lado com os cavalinhos? Mesma coisa. Gira para um lado, gira para o outro, dá um giro completo com aquelas fitas ou faixas, entendeu? É muito bonito, tem muita coisa que pode variar. Mas, ultimamente, está se perdendo muito com relação à dança e voltando-se mais para a área de teatro. A área teatral você vê que algumas quadrilhas estão até se perdendo na parte de dança mesmo e fazendo a parte teatral melhor, sendo que, na realidade, a parte da dança é a quadrilha propriamente dita. Quadrilha: quadrados. Muitas estão dançando só em círculos. Nós temos quadrados, nós temos círculos, nós temos retângulos, nós temos cruzes... Aí, vai da criatividade de cada um, mas não pode deixar de ter o quadrado, porque é quadrilha, vem daí o nome. E tem que ter as danças, os nomes: anavantur, anarriê... Anavantur: anda para frente com o Tur; o Tur era: pega o cavalheiro e a dama, e gira. Anavan: para frente. Anarriê: para trás. Essas palavras são obrigatórias. Changê: troca de lugar ou de par. Entendeu? Essas palavras são obrigatórias. Compadre, comadre, coisas bem mineiras. Quer dizer, as quadrilhas, às vezes, estão se voltando muito para o teatro. No Nordeste, por exemplo, eles estão fazendo uma gravação. Tem um áudio, a história toda faço no áudio e eles ficam falando lá como se eles estivessem falando. Tiveram duas quadrilhas aqui que fizeram isso esse ano, não sei se elas se saíram bem nas notas. Mas o ideal é que a própria pessoa fale, encene e fale aquilo ali. E só viva a dança de acordo com o que a música propõe. Isso é, realmente, a dança mineira. Nessa parte diferencia muito. Se você vê o Nordeste, é lindo e maravilhoso; as roupas de pedraria é uma coisa linda, mais maravilhosa do mundo. Mas eles vão ali todos corridos, vai, vai, vai, tudo assim. E a encenação é pouca, mas eles estão se voltando muito para a área teatral e agora Minas estava querendo fazer isso também. Nós demos uma sentada, estudando, falando, preparando os jurados, conversando que Minas Gerais é diferente. Minas Gerais tem o casamento na roça, tem o casal de noivos, que é importante para nós. A noiva não é secundária, ela é a principal. Tanto que tem pontos para marcador, casal de noivos, indumentária, coreografia e conjunto. São cinco. Três jurados para cada etapa. A menor nota, e essas duas aqui, computa. Então, é complicado. Tem que ter a dança, os jurados estão bem espertos com relação a isso. Eles estão olhando até se a sua anágua é igual à minha, porque ou você tem tudo diferenciado, ou você tem tudo igual. Não é obrigado a ter uma roupa igual para todos os dançarinos, você pode ter uma roupa diferenciada, mas no mesmo estilo. Eu não posso colocar um pé aqui e outro aqui; se são todos desse comprimento, são todos desse comprimento. Se são todos no pé, são todos no pé. A maioria usa o comprimento abaixo do joelho, é o comprimento clássico. Estilo feminino, parecendo boneca, estilo mineiro, rendas, babados, frufrus, fitinhas, fuxicos, franzidinhos, nervurinhas, coisa de mineiro mesmo, sabe? Bem assim, as nossas roupas têm que ter isso. E menos brilho possível. Aqueles brilhos para nós aqui é perda de ponto, pode ter um ou outro.
P/1 – Como é a indumentária inteira do homem e da mulher? Como você faz?
R – Tem o vestido de manguinha fofa, todo trabalhado. As mesmas aplicações que tem nos vestidos, a gente põe no arranjo de cabeça e põe na sapatilha. Ou então o sapato pretinho. Ou o sapato da cor que você achar melhor, o sapato combinando com o vestido, ou uma cor só, igual para todo mundo. Ano passado, nós usamos preto e as sapatilhas brancas, todas bordadas, trabalhadas. A gente passa cola quente em cima, para as meninas. Cada um faz o seu, junta o mutirão, todo mundo faz, faz direitinho. E os arranjos de cabeça também. Então, são combinados. E os homens, a gente combina as cores. Já teve época em que era normal todo mundo dançar de terno preto e a camisa xadrez, ou a camisa da cor do vestido da menina, ou qualquer tipo de xadrez, ou uma cor lisa só para todo mundo... Botina, ou bota ou sandália. Ou então, calça toda xadrez, com suspensório, tipo espantalho. Chapéu liso ou chapéu tipo espantalho, todo desfiado. Calça vis, amarrada aqui em cima, alta na cintura e mais curta aqui embaixo. Calças largas ou apertadas. Depende do estilo que sua quadrilha escolher, depende do que você vai trabalhar com o seu tema, com a história que você vai contar. Eles fizeram ano passado o tema do Santos Dumont, um outro grupo fez Santos Dumont. Colocaram lá um 14 bis em cima e levantaram as nuvens em cima e tudo, foi uma coisa muito linda.
P/1 – Queria lhe perguntar... Talvez seja uma pergunta um pouco difícil, não sei, mas é o seguinte... Você teve todos esses anos fazendo quadrilhas - mais de 40 anos - mas tem algum concurso de que você participou, ou apresentação, ou algumas que lhe foram mais emocionantes ou marcantes? Para o bem ou para o mal... Você consegue pensar em alguma ou algumas?
R – Consigo. Por exemplo, quando nossa quadrilha fez 25 anos, nós fizemos um belo de um bolo prateado, bonito, com o número 25, escrito, e um lencinho bonito, todo prateado e grande. A nossa noiva entrou no bolo, o bolo era de rodinha, colocamos o bolo lá dentro, ela abriu a porta e saiu toda poderosa, linda, maravilhosa. Tiraram o bolo, colocaram do lado, estava escrito 25 anos, e no ‘release’ também estava escrito. Aí, um jurado falou que não entendeu nada daquilo lá: “Para que aquele bolo branco? O que é que aquele bolo estava fazendo?” E estava ‘release’, escrito 25... Ele tirou ponto nosso, não valorizou nosso trabalho e nós perdemos, nós caímos para a segunda divisão por causa disso aí, porque ele disse que não entendeu nada do porquê a gente entrou com um bolo lá dentro. Aí nós fomos explicar para ele o que era, ele “Aaaah, sei”. E eu falei: “Agora, você já deu nota, não adianta, não é?”. Mas estava no ‘release’. Então, isso aí me chateou demais, ainda mais que a gente caiu para o acesso nessa época. Voltamos. E teve uma outra parte que me emocionou muito também... Foi quando eu estava grávida da minha filha, eu dancei no Arraial de Belô, grávida dela. Engravidei em maio e dançamos no final de junho, princípio de julho e foi muito emocionante dançar grávida, assim, sabe? Foi muito emocionante. Também teve um outro, nesse fiquei bem emocionada quando dancei... Minha filha começou a dançar, a participar do movimento junino, dentro da minha barriga. E o meu filho também. E eles nos acompanharam todo o tempo, eles dançaram, os dois dançaram até... Agora que não dançam mais, porque não têm mais condição, por causa da profissão deles. Minha filha é médica e meu filho está estudando para piloto, estudando manutenção de aeronave, trabalha como ___ [1:34:56]. Então, ele não tem mais condições, não tem mais tempo para ensaiar, porque os ensaios são muito pesados e fortes. Mas outra coisa que achei muito interessante foi... Essa foi engraçada (risos). Estávamos, eu e o meu marido... Esse ano meu marido estava dançando também, dançou um ano só. A gente estava com o carro do papai, era um Aero Willys, não... Era uma Opala na época. E esse Opala vai e morre... Vindo de Venda Nova, ele morreu ali, no meio da barragem da Pampulha, na parte de cima. Aí, eu vestida de quadrilha, grávida, barriguda, empurrando o carro e ele dirigindo (risos). Aí veio mais gente e o pessoal passava e gritava: “Alavantur”. “Olha a cobra”. “Anarriê” (risos). Era muito engraçado, eles falavam assim: “Olha a chuva, vai chover em todo mundo”. Eles passavam gritando assim para a gente, foi muito divertido. O pessoal passava de carro, mas pensa se alguém parou para nos ajudar? Depois, lá na frente, o moço parou e ajudou, tiramos o carro daquela parte crítica, ainda chegamos a tempo de dançar. O carro ligou, acho que tinha afogado, sei lá o que tinha acontecido. Eu sei que ainda chegamos a tempo de dançar, pingando suor. Essa parte... Esse dia foi muito engraçado (risos).
P/1 – Antes de eu ir para frente, vou voltar um pouco... Fiquei sabendo essa história que você organizou alguma coisa lá no internato, que você não contou...
R – Ah, não contei, não...
P/1 – Como é que foi essa história?
R – (Risos). Internato só de meninas, não é? Então nós colocamos as nossas fofocas de ginástica, que vinham até o joelho, os homens colocavam as fofocas... As meninas dançaram com vestido de uniforme. Aí, nós organizamos a dança lá, estava muito engraçada. Fizemos casamento na roça, fizemos bigode de carvão, não é? Eu dancei de menino, usando bigode de carvão para ficar um menino e uma menina. Uma menina lá foi padre, outra foi pai da moça e fizemos o casamento na roça, depois fizemos essa festa muito engraçada. Que a Irmã... Todo mês de junho lá, tinha fogueira, elas faziam festa junina dentro do internato. A gente passeava e tudo. Não tinha muita liberdade, não, mas elas também não eram muito rígidas de não levar a gente para passear, nem nada. Mas dentro do nosso espaço grande - o colégio era muito grande, agora é Faculdade - ela fazia fogueira grande e nós dançamos ali perto daquela fogueira, foi muito bonito. Pena que, naquela época, ninguém filmava, fotografava, fica perdido. Fica só na memória mesmo, não é? Mas uma memória muito gostosa, foi muito legal e eu que tive a ideia. Também teve o seguinte, no internato também... Eu nunca tinha colocado a coroa de Nossa Senhora, porque lá as vozes são muito trabalhadas. Eu colocava véu, mas tinha duas meninas só que colocavam a coroa... Uma era a Idê, a outra era Ritinha, de São Paulo. A Idê era de Belo Horizonte e a Ritinha de São Paulo. As vozes delas estrondavam, aquela voz metálica, do negro americano, sabe? Aquela voz linda. Da escola ___ [1:38:07]. Aquelas vozes maravilhosas, as duas cantavam assim. E só elas colocavam a coroa. Tanto que, quando fazia coroação de Nossa Senhora, no centro da cidade, na escadaria imensa que tinha lá, chamavam as meninas do internato e todo mundo. Quem colocava a coroa eram elas, as outras só acompanhavam, colocavam os outros complementos. Aí o que que eu fiz? Eu queria colocar a coroa de todo jeito. Estava trabalhando no fogão nessa época, na cozinha, que tinha o fogão. Tinha a parte das verduras, lá tinha horta e eu pegava cada verdura imensa... E eu trabalhava na cozinha, fui lá, estendi, depois nós limpamos o fogão e estendemos o fogão todo. Chamei as meninas, nós ensaiamos a música da coroação e eu fui e coloquei a imagem de Nossa Senhora lá, pedi emprestado, coloquei a coroa na Nossa Senhora, cantei a música da coroa de Nossa Senhora e coloquei. Falei: “Quero colocar”. E coloquei (risos). Chamei as Irmãs para assistir. Vai ser cara de pau assim, não é, gente? Chamei as Irmãs para assistir, as Irmãs aplaudiram (aplaudindo e rindo). Aquela palma amarela que ninguém vê, não é? Aí falaram: “Parabéns, parabéns, agora guarda tudo, limpa tudo aí, Vera. Arruma tudo.”. E pronto. Eu fiz essas duas coisas, você acredita? Ah, outra coisa que fiz no internato... Eu adorava dançar balé, nunca tinha estudado balé, não tinha estudado ainda não, nessa época eu estava nova. Quando eu era criança aqui, as nossas amigas todas, a gente fazia dança de balé aqui dentro e inventava, eu que inventava as danças todas. Aí, no Natal, nós pedimos sapatilhas cor de rosa, meias e roupa de balé, collant e tudo... E no Natal, nós fizemos nossa dancinha de balé aqui, só que eu cismei que eu sabia dançar balé. Aí, a Irmã Superiora foi lá, tinha uma festa grande lá no palco e tudo, todo mundo assistindo. Eu falei com ela: “Eu danço balé”. Ela: “Você dança balé?” “Danço balé”. Aí eu fui lá e fiz isso assim, ó. Mas eu era uma cara de pau. Dancei balé no palco, você acredita? Do meu jeito, o balé que eu inventei na minha cabeça. Aí eu não aguentei, depois de adulta, eu fui, entrei na Síntese, fiz dança de jazz. Entrei no balé Movimento, fiz a dança de balé contemporâneo. Comecei a ensaiar dança espanhola, fiz só seis meses de dança espanhola. Depois fui fazer o curso de folclore, o professor Carlos Felipe foi meu professor, foram seis meses de curso também. Depois eu passei no vestibular. Passei no vestibular, quando vi que meu nome tinha passado, falei: “Ah, meu Deus, o que eu faço agora? Paro com o balé ou vou fazer meu curso?” Acredita que eu pensei nisso? Parei com o balé, parei com tudo, não tinha mais horário porque eu trabalhava em horário integral e fui fazer meu curso superior à noite.
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Eu estava com 24 anos.
P/1 – Você trabalhava aonde nessa época?
R – Na Telemig, na Telefônica.
P/1 – Você fazia o que lá?
R – Eu entrei lá como datilógrafa, depois fui atendente comercial. Depois eu fui auxiliar... Não... Técnica Administrativa I, Técnica Administrativa II, depois fui Subgerente, Chefe de Subseção e Auxiliar de Chefia, aí eu aposentei por causa de lá, deu problema por causa do computador, da escrita e tudo, fiz a cirurgia e eles me aposentaram. Fiz dois anos de fisioterapia e todo tipo de fisioterapia que tinha, não melhorou e eles me aposentaram. Foi quando eu fiquei muito triste, porque eu estava indo de vento em polpa lá, tinha feito muitos cursos. Internet chegando na época, fazendo tudo e eles mandando fazer curso lá, eu já barriguda do meu filho menor, fazendo curso no centro de apoio deles, de 15 dias, 10 dias, para ganhar promoção. Aí, o médico me aposentou e eu saí sem ganhar minha promoção e fiquei dentro de casa, não é? No início, parecia férias, estava bom, não precisa levantar de manhã cedo, não tinha hora marcada, não tinha o cartão de ponto. O cartão era eletrônico... Não tinha cartão para bater nem nada. Mas aí, saia todo mundo para aula, os meninos iam para a escola, meu marido ia trabalhar e eu ficava: “Meu Deus do céu, e agora o que eu vou fazer?” Inventei um tanto de curso numa ONG lá perto, fiz um monte de cursinhos, comecei a trabalhar com esses negócios, trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar... Depois não deu mais tempo, porque a escola dos meninos estava muito forte, exigindo muito de mim para dar assistência para eles dois e eu parei de fazer os trabalhos. Só fiquei fazendo isso aí para o meu bel-prazer e pronto. Até um dia em que eu estava muito chateada no salão, eu falei para uma senhora assim: “Infelizmente, eu aposentei”. Ela falou: “Minha filha, nunca fale ‘infelizmente’, você tem que pensar o seguinte: que mãe que não quer, com seus filhos de 3, 4 anos, ganhar o salário que você ganha, tomar conta dos seus filhos, não deixar os filhos por conta de berçário o dia inteiro, como ficavam, de escolinha o dia inteiro... E ganhando o tanto que você ganha para ficar com seus filhos? Que mãe não queria isso? Jogue suas mãos para o céu, agradeça a Deus, porque essas oportunidades são para poucos”. Ela falou para mim assim, antes de falar isso: “Não quero que você brigue comigo, não fique com raiva de mim, não lhe conheço, não tenho nada a ver com sua vida, mas eu vou lhe falar uma coisa”. Aí falou isso tudo. Eu fiquei meio assim, chorei, chorei, chorei... Porque estava muito engasgado, porque na última semana lá eu estava bem para baixo, bem para baixo, quase entrando em depressão por ficar dentro de casa, fazendo só serviço de casa, cuidando de cachorro e dos meninos. Aí, depois que ouvi isso, fui para casa pensar, fui pensando, pensando e falei: “Meu Deus, me perdoe, eu tenho que agradecer mesmo. Porque, realmente, agora os meus filhos vão ser criados da forma que eu quero, da forma que eu consigo, não é? Da forma que o senhor vai me ajudar. E não vai precisar mais ficar indo para berçário, levantando e saindo debaixo de chuva para correr para trabalhar, para tudo”. Porque teve um dia em que eu estava saindo do meu prédio - morava no centro nessa época - meus meninos... Comprei capa de chuva para ele e para ela, comprida no pé, comprei botinha para todo mundo e capa de chuva que amarrava aqui, de manga, comprei número grande para tampar os braços para não molhar, porque eu os levava para a escolinha e de lá ia direto para o trabalho. Dei sinal para o táxi, estou lá esperando com um no colo o outro cinto com espartilho nas costas, eu dei o sinal para o táxi, o moço saiu de dentro do prédio, correu e entrou no táxi, deixando eu e os meninos, já com a porta quase aberta ele entrou no táxi e foi embora. Aí, eu tive que andar mais dois quarteirões para pegar um táxi lá na frente. Eu lembrei disso também na hora. Aí falei: “Meu Deus, está vendo? Estou livre disso agora”. Se estivesse chovendo, estou aqui com meus filhos aqui dentro de casa, entendeu? Agradeci a Deus e pedi para ele me dar força, ajudar e continuar a vida, e é isso mesmo.
P/1 – Você se aposentou em que ano?
R – Em 1995.
P/1 – Em 1995?
R – É.
P/1 – Tá. Vamos voltar então. Você entrou na Faculdade com 24 anos, é isso?
R – É.
P/1 – Que curso você fez?
R – Comunicação Social. Antes eu estava fazendo Inglês e fazendo dança, e eu não estava querendo fazer... Eu tinha perdido o primeiro vestibular, depois tinha que pagar cursinho e tudo, e eu não estava achando hora para fazer cursinho, só minhas danças e meus negócios... Aí eu fiz Comunicação Social, Publicidade.
P/1 – Na PUC?
R – Na PUC. Na PUC João Cabral. Mas é isso aí. Eu acho que nada no mundo acontece por acaso. Porque aí eu também me aposentando, tive mais tempo de me dedicar a isso aqui, me dedicar aos meus filhos, minha família e ao meu grupo, que ficou dois anos ganhando primeiro lugar de novo, não é? Foi um sucesso, foi a coisa mais linda do mundo. Eu me afastei uns tempos, quando eu estava grávida dos meninos, amamentando - eu amamentei os dois. Aí, meu irmão assumiu, com a noiva dele na época, e eu fiquei afastada uns 8 anos mais ou menos; quando eu voltei, nós ganhamos de novo. Agora bola para frente, vamos ver agora o que é que dá. As quadrilhas estão cada vez melhores, estão se arrumando muito, muito bonitas... Amadurecendo, não é? Nossa quadrilha é muito familiar, mais tradicional e nós já estamos fazendo as nossas mudanças, já tem uns três anos que estamos trabalhando nas mudanças. E aí está crescendo também, já começou a melhorar no ranking, vamos ver o que dá ano que vem. Se Deus quiser vai dar tudo certo.
P/1 – Agora me conta, como você conheceu o seu marido?
R – Tá. Na PUC, na época, tinha o Coral da PUC; só podiam participar funcionários e estudantes. Depois, quando foi mais para frente, ele também estudava na PUC. Ele entrou. Agora não precisa mais ser o Coral totalmente dependente da PUC e pode entrar qualquer pessoa para participar, totalmente livre, totalmente independente. Então, quando ele entrou, ele tinha um horário de aula... A gente nem ligava um para o outro, depois nós começamos. Nós dois nem lembramos exatamente o momento que começou, eu sei que foi em um sítio em Oliveira, que o Coral tinha um passeio sempre no 1 de maio e no 7 de setembro. Já era passeio oficial do Coral. A gente ia para um sítio, ficava o dia e vinha embora no dia seguinte. Tinha vezes que a gente ficava no sábado e no domingo, vinha embora no domingo à noite. E foi em um desses dias que ele foi e nós começamos a namorar, no sítio de Oliveira, dia 6 de setembro. Aí, começamos a namorar e como fez 30 anos... Esse ano nós fizemos 30 anos de relacionamento, 28 anos de casado. A maior coincidência que teve... De lá, nós fomos viajar para o Chile; no Chile é que começamos mesmo a namorar. Mas, assim, olha a coincidência. Nós fomos viajar com o Coral agora para Cuiabá, saímos no dia 6 de setembro, até então enquanto a gente assinava a papelada e tudo, a gente não tinha atentado para isso, aí ele estava em casa quase saindo com a mala, ele vira e fala para mim: “Ô, Vera, você sabe que dia é hoje?” Eu falei: “Sei... 6 de setembro! 6 de setembro” (risos). Justamente o dia em que fomos viajar outra vez com o Coral, no dia em que começamos a namorar, fazendo 30 anos que nós começamos a namorar. Que coincidência, não é? Dizem que coincidência não existe, mas... Foi legal. Foi legal essa viagem nossa, foi muito bom, comemoramos mesmo os nossos 30 anos. Foi muito bom, muito legal. Mas nós nos conhecemos lá no Coral. Ele é barítono, faz solo e tudo, e eu sou soprano.
P/1 – E vocês cantam o que lá?
R – O Coral era polifórmico. É música popular brasileira e estrangeira, música clássica, música folclórica, música sacra, música de domínio público e popular. A gente canta em Russo, Italiano, Inglês, Francês, Espanhol, na linguagem índia, várias músicas a gente canta.
P/1 – E agora você tem dois filhos então?
R – Dois filhos. Elidiane e João.
P/1 – Por que você escolheu esses nomes?
R – Elidiane foi pelo nome da minha avó, a mãe de mamãe se chama Elídia de Araújo Lajes. Eu nem conhecia o bebê ainda e falei assim “O dia que eu tiver uma filha vou colocar Elidiane”. Olha que bonito, Elídia, que é da minha avó que eu adoro, sou apaixonada por ela, ela é minha amiga e confidente aqui dentro de casa. Depois que meu avô faleceu, ela deixava a casa dela e ficava aqui comigo o tempo todo. Mamãe foi para o Canadá, foi para os Estados Unidos para o casamento do meu irmão. Ela ficou aqui dois meses tomando conta de mim, porque eu estava me formando, não podia ir. Estava me formando na PUC. Eu falei: “Vou colocar esse nome”. Nós nos casamos em março e em maio eu engravidei, porque a gente já estava querendo ter filhos mesmo. E ele louco para ter uma menina. E, normalmente, homem quer um filho homem, não é? Ele já pensou logo em uma menina. E foi a Elídia... Elidiane. E o João é em homenagem ao pai dele e ao meu avô. O pai dele se chama João Gomes Ferreira, chamava, não é? Ele perdeu o pai dele quando tinha sete anos. E o meu avô, João Ferreira Lessa, que é sobrenome de mamãe - Ferreira Lessa - que depois tirou e colocou o Assis do papai. Então, ficou João Gomes Ferreira Lessa de Assis Neto. O Assis do papai. Só não coloquei bisneto, porque era neto e bisneto, não é? (risos). E Elidiane Lessa Ferreira de Assis Gomes, o sobrenome deles. Olha que coincidência: tenho Ferreira nas quatro famílias. O vovô era João Ferreira Lessa, do lado da mamãe. O pai do papai era Francisco de Assis Ferreira, apesar de o papai não usar Assis Ferreira. O meu marido Ademir Gomes Ferreira. Então eu já era Ferreira. Os amigos deles me chamavam: “Ó, Ferreira, Ferreira ligou” (risos). Aí eu coloquei Gomes também, em honra do pai dele, que era uma família muito unida. Ele preza muito esse sobrenome Gomes, aí coloquei o Gomes dele nos meus filhos também. Eu acho que, apesar de o nome estar grande, é uma união das famílias todas.
P/1 – Eles têm quantos anos agora?
R – Minha filha tem 26, é médica. Ela se formou na Unifenas, tem dois anos e meio que se casou, dois anos que se formou. E agora acabou de montar uma clínica. De vez em quando eu trabalho lá com ela, ajudo. Ela montou uma clínica pequena e agora montou uma de três andares, lá no Tupi também, em um endereço um pouco melhor. Já vai inaugurar agora, só esperando os trâmites legais, fechar lá a papelada. E meu filho tem 24 anos, ele estudou manutenção de aeronaves, quer ser piloto, fez o curso teórico todinho, está batalhando em outras coisas, é representante, é DJ, foi gerente lá do ____ [1:53:30], lá no Contorno. Foi gerente por dois anos e meio. E ele quer ser piloto, mas por enquanto ele está representante, mas é o que ele intenciona, e ele gosta muito. Mas é isso aí, minhas duas pérolas preciosas que eu amo muito. Duas criaturas que Deus confiou para eu criar - eu e meu marido. Nós estamos tentando levar direitinho, acho que estamos conseguindo. Todos os dois trabalhadores, dignos e honrados, graças a Deus. Não tenho neto ainda não (risos).
P/1 – O que você planeja para o futuro agora? Quais são os seus sonhos?
R – Meus sonhos? (respira fundo). Meu sonho era ver meus filhos bem-criados, estudados, trabalhadores e felizes. Eles são. Eu tinha um sonho de montar um espaço de eventos, onde eu e meu filho trabalharíamos juntos dentro da área dele, agora ele está virando para o outro lado da Aeronáutica. Meu sonho é ter tranquilidade em casa, ter paz familiar, é isso que eu tenho e quero continuar tendo. Só tenho que agradecer a Deus por tanta coisa que ele já me deu, pelos meus filhos, pelo meu marido, pela minha casa, pela minha família, tudo... Por tudo que eu vivo, meu sonho é de continuar assim, com minha família bem. E a paz neste país, que está tão conturbado, que eu não sei aonde vamos parar, realmente está me dando medo. Está me dando muito medo, porque a gente não sabe o que vai acontecer. Há uns entraves aí que a gente não sabe para que lado vai rolar a bola. Então, eu peço a Deus e rezo todos os dias para que a gente consiga realmente ter paz neste país e no mundo, não é? Acabar com essa bagunça toda é meio utopia. Ia ser uma utopia. Mas o sonho de colocar o espaço de eventos eu não tenho mais não, parei com isso, acho que não quero isso mais não. Meu sonho mais perto agora é fazer minha quadrilha ser campeã (risos). Quero que ela seja campeã, isso aí é o sonho mais próximo, um sonho menor, mas não é tão fácil. E ter saúde para enfrentar tudo na vida, que isso é primordial.
P/1 – Tem alguma pergunta que eu não fiz e você queria que eu fizesse, alguma coisa que você queria falar e não teve como?
R – Não sei. Eu te falei do palco que eu fazia no quintal, não falei?
P/1 – Mas por que você se lembrou disso?
R – Eu lembrei porque é uma coisa que sempre me toca. Cantar. Eu fui para o Coral como uma coisa paliativa. Fui fazer o curso de Comunicação Social de forma paliativa. Eu queria mesmo era estar lá.
P/1 – No palco cantando?
R – Cantando. Eu adoro cantar. Eu amo cantar. E dançar. Eu acho que gosto mais de dançar ainda do que cantar. Ser um... Aquela voz maravilhosa da Elba Ramalho, que tem uma voz estrondosa. Isso que eu queria ter.
P/1 – Não posso pedir para você dançar aqui, mas tem alguma canção que você queria cantar antes da gente terminar? Se não tiver também...
R – Tem uma que eu canto, junto com meu marido, até. A gente canta junto. Posso cantar só eu? Ou posso cantar com ele?
P/1 – Só você.
R – Só comigo? (limpa a garganta). Diz muito de nós. E nosso casamento foi a coisa mais linda do mundo. Foi com o Coral cantando e ele cantou para mim uma música. (cantando Paz do Meu Amor, de Luiz Vieira). E ele cantou isso para mim. Mas tem uma música que lembra muito de quando a gente estava no Chile (cantando Alma, Corazón e Vida).
P/1 – Obrigado, viu, Vera. Foi um prazer conversar com você, está bom?
R – A mim também, obrigada pela oportunidade. Foi muito bom falar
P/1 – Você gostou? Como é que foi contar essa história?
R – Foi emocionante. Lembranças, não é? Sempre leva a gente... Nos transporta. A lembrança sempre nos transposta. Lembrei de coisas que há tanto tempo não me lembrava, muita coisa mesmo, até do colégio interno, detalhes assim. Às vezes, eu estava te falando e estava lembrando do campo em que eu estava brincando, dos nossos jogos que tinha. Era obrigado a brincar, não podia ficar nos cantos, não. E lembrei de tanta coisa que aprendi, e uma coisas foram ficando para trás. É muito interessante. É uma retrospectiva que faz da vida, mas um pouco forçada, um pouco tímida (risos). Mas é difícil falar da gente, não é? Tentei elaborar, óbvio que... O Coral me trouxe muitas alegrias, meu casamento e meus filhos. Tem uma coisa do Coral que não te contei. Posso contar? Nós fomos cantar no Natal, no Minas Tênis Clube, o Coral cantando lá e a minha filha... A gente estava entrando e a minha filha era o Menino Jesus, ela estava dormindo. Ela só mamava no peito. Entrou com ela embrulhadinha, feito o Menino Jesus, o vestido normal... Entrou lá, quando foi no meio do caminho ela começou com o berreiro, o pessoal cantando... o Coral cantando e a menina não podia atrapalhar. Eu fui, tirei, dei o peito para ela, acabei de entrar com ela, amamentando. Aí o povo lembra disso até hoje (risos). Entrei com ela, amamentando, até chegar lá. Acabei de dar mamar, fui para o meu lugar e continuei cantando. Era uma parte que eu tinha esquecido (risos). Interessante, não é? Só assim que eu consegui calar um pouquinho o Menino Jesus (risos). Que bom, Paulo, muito obrigada pela oportunidade, vocês aqui. Essa oportunidade de relembrar coisas boas da minha vida, as coisas ruins a gente deixa para lá, e tem tantas... Minha vida é normal (risos).
P/1 – Obrigada, viu?
R – Te agradeço. Valeu.Recolher