Histórias Que Reciclam
Depoimento de Mateus Mendonça
Entrevistado por Lucas Torigoe
São Paulo, 23 de outubro de 2015
Realização Museu da Pessoa
HQR_HV03_Mateus Calligioni de Mendonça
Transcrito por Karina Medici Barrella
P/1 – Mateus, fala para mim o seu nome inteiro, local e data de nascimento?
R – Mateus Calligioni de Mendonça. Nasci em Ribeirão Preto em dez de janeiro de 1981.
P/1 – E o seu pai, qual é o nome dele?
R – Meu pai é Pedro Batista de Mendonça.
P/1 – Ele nasceu quando e onde?
R – Nasceu em 1942, no dia cinco de dezembro, em Sacramento, Minas Gerais, Ponte Alta.
P/1 – E qual é a origem da família dele? É de lá mesmo?
R – A origem da família do meu pai é mineira, alguns portugueses, mas todo mundo vivia em Minas mesmo, meu avô e minha avó eram mineiros.
P/1 – E o que seus avós fazem, o seu pai fazia lá?
R – Os meus avós eram da zona rural, trabalhavam em fazenda, tal. O meu pai era vendedor de livros e depois que ele migrou. Na verdade ele vendia ovos de galinha, vendia algumas coisas que eram do sítio, em cima do cavalo lá em Minas, depois quando ele fica jovem ele migra pra Ribeirão Preto, onde ele conhece a minha mãe.
P/1 – Ainda na família do seu pai, ele te contou alguma história dessa época que ele vendia ovo, como é que era Minas?
R – Era uma família bem carente, bem pobre e ele já tinha um pouco desse perfil empreendedor que eu tenho hoje, vinha um pouco dessa coisa do meu pai de pegar as coisas que tinha na fazenda e sair vendendo pra gerar alguma renda. Era uma vida dura, difícil, numa cidade que chamava Ponte Alta, bem pequenininha, interiorzão de Minas Gerais. Contou várias histórias, mas eu perdi meu pai quando eu tinha 15 anos.
P/1 – E você já foi pra lá, sabe como é, ou ele te contou da necessidade?
R – Eu fui muito novinho, quando eu viajava nas férias eu viajava com ele pra acompanhar. Meu pai ficava 15 dias fora, viajava, ele voltava a cada 15 dias pra Ribeirão, mas quando tinha férias eu viajava com ele pra fazer exposição dos livros. Naquela época nem existia computador, Google, nem nada, então todo o conhecimento era espalhado a partir das enciclopédias, a partir dos livros, então eu viajava com ele e fazia exposição nas escolas. A gente pegava o fusquinha e a belina dele ali e viajava pelo interior de Minas, interior de São Paulo fazendo exposições dessas coleções de livros didáticos, de livros de história infantil, de enciclopédias, levando isso pra professores nos diferentes colégios dessas regiões, dessas cidades.
P/1 – E a sua mãe, qual é o nome dela inteiro, onde ela nasceu?
R – Minha mãe é Teresa Calligioni de Mendonça. Nasceu em Cravinhos, interior de São Paulo, numa fazenda de café também.
P/1 – Conta mais como é isso.
R – Meu avô era italiano, migrou aos três anos pro Brasil e uma parte da família foi para o Sul, pro Paraná, e uma outra parte veio pra São Paulo. Mas era uma família que veio pra trabalhar na lavoura de café. Meu avô conheceu a minha avó também nesse contexto, que era descendente de negros, escravos, então Atílio Calligioni com Mariana de Moura tiveram minha mãe.
P/1 – E você sabe de alguma história dessa época que o seu avô te contava?
R – Eu não cheguei a conviver com meus avós, eu só tive um avô até os três anos de idade que foi o pai do meu pai. A minha mãe perdeu a mãe aos nove anos de idade e o pai aos 15, então eu não convivi com meus avós. Mas a minha mãe me contava bastante história de como era a vida nessa época, de como eram as dificuldades de morar numa fazenda no interior de São Paulo, casa de chão batido, a história de jogar cinza do fogão a lenha no chão pra casa ficar mais limpa. A história de fazer sabão com cinza, todas as histórias de uso dos recursos daquele contexto bem rural, bem interiorano, então tinha muita história mesmo que a minha mãe me conta.
P/1 – Você teve alguma história específica desse período do seu pai, da sua mãe, da família deles pra contar pra gente que você se lembre agora?
R – Deixa eu pensar. Não.
P/1 – E você sabe como é que seus pais se conheceram?
R – Sim. Minha mãe fugiu de casa por uma série de desafios de contextos ali, de convívio. Depois que ela perde a mãe e o pai ela sai de casa e foge pra Ribeirão Preto e vai trabalhar como empregada doméstica numa casa. Nessa casa ela conhece uma tia minha, que era irmã do meu pai que também já faleceu, que era cozinheira dessa mesma casa que ela trabalhava. Minha mãe foge de uma fazenda de café e vai viver na Nove de Julho, na casa de uma família de imigrantes árabes pra trabalhar como doméstica, só que ela estabelece uma relação muito próxima com a filha dessa família, que era a Márcia. Minha mãe me conta várias histórias dessa época, elas saíam juntas e a Márcia, que era filha de aristocrata, emprestava as roupas pra minha mãe. Então apesar dessa diferença de classe social existia uma proximidade muito grande também pela idade, pelos sonhos, pelos anseios da minha mãe, da Márcia e da minha tia Abadia. Ali viviam muito juntas, saíam pros bailes, enfim, tem uma série de histórias bem interessantes.
P/1 – E aí ela conheceu o seu pai através...
R – Da minha tia, isso. Minha mãe conhece meu pai através da minha tia.
P/1 – E como é que foi, eles falaram pra você? Namoraram.
R – Minha mãe teve um namorado antes de conhecer meu pai, mas acabou terminando, não tendo uma relação com esse primeiro namorado e depois encontra meu pai e se casam.
P/1 – E isso foi mais ou menos em que ano, você sabe?
R – O casamento dos meus pais? Foi mais ou menos em, deixa eu pensar... minha mãe está com... 1972, por aí, 70. Começo da década de 70.
P/1 – E você tem irmãos?
R – Tenho mais dois irmãos, uma irmã mais velha, que é a mais velha da família, e um irmão do meio.
P/1 – Então você é o caçula.
R – Eu sou o caçula.
P/1 – Quem são seus irmãos?
R – Minha irmã é a Patrícia, meu irmão é o Pedro Júnior.
P/1 – E vocês três nasceram em Ribeirão Preto.
R – Nós três nascemos em Ribeirão Preto.
P/1 – E quando essa família estava formada onde vocês moravam, lá em Ribeirão Preto?
R – Antes de eu nascer minha mãe e meu pai passaram por várias regiões, tem uma história toda de empreendedorismo, sucesso, fracasso também e perda de tudo. Porque meu pai era muito aventureiro, ele tinha só a segunda série do ensino primário, vendia livros e mesmo assim sabia ler e era uma pessoa super carismática, enfim, tinha muitos amigos, construiu muita coisa. Começou trabalhando com encanamento nos prédios, ele era encanador, migrou pra Ribeirão para encontrar um tio meu que estava ali, começou a trabalhar na área de encanamento dos edifícios que estavam sendo construídos naquela época em Ribeirão e depois ele vai pra área de livros. Então meu pai empreendia muito, chegou a ter sociedades com primos e com familiares de distribuidora de livros, chegou a ser sócio de uma rede de farmácias e tudo o mais, mas da mesma maneira que ele construiu muito sucesso ele perdeu por conta de algumas (corte no áudio) um instrumento pra sair daqueles desafios, então sempre apostaram muito em educação, cultura. Então minha mãe nunca me deixava ficar nesse bairro, sempre estava me arrumando alguma coisa pra fazer pra sair daquele contexto de pobreza, não falo de pobreza material, mas de pobreza às vezes de espírito, de horizonte. Então isso fez com que eu tivesse muito apoio da família, da minha mãe, dos meus irmãos pra conseguir chegar na universidade pública, enfim.
P/1 – E como é que foi crescer com o seu pai que tinha tantos livros? Você acabou tendo contato com eles também?
R – Com certeza. Foi a aventura mais deliciosa que eu tinha quando meu pai voltava a cada 15 dias dessas viagens de venda dos livros eram as coleções novas que ele trazia e aí tinha aquela novidade de abrir as caixas com as novas coleções, os novos livrinhos, os novos joguinhos que vinham junto nesses kits e tudo o mais. E descobrir pra mim aquele mundo encantado, a literatura, foi muito, muito gratificante ter tido oportunidade de ter esse contato. E em casa tinha estantes e estantes de livros porque a gente tinha de fato, meu pai por ter acesso a essas coleções e a minha mãe por querer nos promover, nos dar educação, tinha então um monte de coisa muito legal, era muito encantador esse mundo, pra além das balinhas que ele trazia quando ele voltava a cada 15 dias ele trazia as balinhas. E ele acabava sendo a pessoa da aventura, da alegria e tudo o mais. Minha mãe ficava nesses 15 dias, pelo menos as lembranças que eu tenho, minha mãe é que tinha que zelar pela casa, pela educação da gente na parte mais dura, a parte do dia a dia mesmo, da efervescência da infância, da juventude. Mas ela sempre foi uma mãe que estimulou muito essa descoberta do mundo. Nos preparava pra lidar com o mundo, então ela nunca me prendeu e eu sempre tive contato, apesar de estar nesse contexto de periferia, e não estou achando que só tinha coisa ruim ali nessa Cohab, tinha um monte de coisa interessante, tinha vizinho que tinha cavalo e eu brincava com esse cavalo, eu andava de charrete, eu matava pombinho com os vizinhos, enfim, fazia coisa de moleque mesmo no mato, brincava e descobria o mundo de um jeito bem, posso dizer, quase primitivo (risos), na relação com a natureza. Minha relação de exploração, apesar de estar na cidade era uma relação também de contexto semi-rural ali, então era muito gostoso, foi muito gostoso esse período, apesar das dificuldades eu tenho muitas lembranças. Faz um tempo que eu não volto pra esse bairro, mas tenho vontade de revisitar esse passado porque pra mim tem muitas lembranças, muitas memórias que estão ali guardadas nesse bairro.
P/1 – O que mais tinha nesse bairro? Como é que ele era? Você falou que ele era semi-rural, mas descreve pra gente.
R – Ele era uma Cohab que ficava entre duas linhas férreas, era uma fazenda antiga. Atrás de uma das linhas do trem, depois de onde estava essa Cohab localizada tinha uma área onde a prefeitura tirava terra pra construir pontes e viadutos pela cidade, em Ribeirão Preto. E ali a gente chamava de buracão. Depois do buracão, que era bem grande mesmo, passava a linha do trem, onde a gente brincava nessa linha do trem, colocava vidro na latinha de óleo pra quebrar e pra fazer cerol pra soltar pipa. Tinha umas áreas de mata no caminho da escola e tudo o mais. Tinha uma outra área de chácaras. E nesse buracão às vezes, quando chovia muito, se formavam umas piscinas e piscinas de lama e a gente brincava, nadava nessas piscinas de lama. Então era uma aventura bem primitiva ali, bem, bem... hoje se considera isso arriscado, mas eu acho que meu sistema imunológico se fortaleceu bastante por estar naquele contexto ali, natural (risos). Tinha um outro campinho de futebol onde meu pai era treinador do time de futebol dessa comunidade. Meu irmão jogava e eu não gostava de jogar futebol, eu falava pra minha mãe. Minha mãe cozinhava muito bem porque a minha tia era uma boa cozinheira também, minha tia era cozinheira dessa casa que eu te contei e a minha mãe aprendeu a cozinhar muita comida árabe, minha mãe cozinha até hoje muito bem, divinamente. Então enquanto meu pai ia treinar o time, nos finais de semana tinha campeonato, tinha jogos, o meu irmão jogava no time, mas eu ficava andando em volta do campinho vendendo salgadinhos e depois vendia picolé que minha mãe fazia, então sempre fui criando ali, desde os nove anos de idade, oito anos de idade, já fazia alguma coisinha pra ganhar um dinheirinho e poder ir no cinema, poder comprar algum livrinho, gibi, que eu adorava Turma da Mônica. Enfim, essa coisa de empreender, de superar os desafios dessa pobreza material estavam ali a partir do empreendedorismo. Eu falava: “Não quero jogar futebol, mas eu vou pro campinho pra vender salgadinho, picolé, bolão ou chup-chup”. Então minha mãe fazia e eu ia pro campinho jogar. Então tinha esse campinho e tinha um terreno vazio que depois virou o projeto de uma maternidade muito famosa lá de Ribeirão Preto, uma maternidade privada que construiu nessa bairro uma maternidade pra atender o serviço público e hoje é chique até, é hype ter filho por parte normal e tudo o mais. Mas lá a proposta era que essa maternidade humanizasse mais o processo de parto, tal, chama Mater, fica lá no Quintino II esse hospital que hoje é referência nessa história de parto natural, parto sem cesárea, por uma questão de custo, mas que hoje a gente vê em classes mais altas o quanto isso aproxima as pessoas da natureza da vida. Essas coisas às vezes são conflitantes, me mostram um mundo muito num pêndulo muito louco entre riqueza, pobreza e simplicidade, tecnologia, enfim.
P/1 – E do que mais vocês brincavam na rua lá. Porque também tinha seus irmãos, né?
R – A gente brincava de muita coisa, de dono da rua... Tem tanto brincadeira no mato, de tirar mel das colmeias que estavam nas árvores, andar de cavalo, pular corda, amarelinha no meio da rua, jogar futebol não no campinho mas também na rua, bolinha de gude. Foi uma vida bem cheia de brincadeiras, pique esconde. A gente inclusive montava teatro, tinha um vizinho meu, Luciano, e a gente fazia palco, montava umas peças da nossa cabeça. Montamos um laboratório uma vez porque a gente queria guardar as coisas. A gente pegava bicho morto e guardava no fundo da casa, a gente fazia feirinha de troca de roupa, de coisas velhas que a gente tinha e a gente vendia na rua. Enfim, tinha muita brincadeira mesmo, era uma vida bem rica de estar na rua ali, de estar em contato com os amigos de diferentes idade e homens, mulheres, era uma coisa bem diferente do que é hoje. Não tinha playground, a gente não estava preso nem no playground do prédio, nem no parque, era na rua mesmo e no bairro, na natureza. Eu tenho só boas lembranças e sou muito grato por essa oportunidade que eu tive de poder viver e descobrir o mundo de um jeito, explorando ele.
P/1 – Você tem alguma história específica que você se lembra desse período de brincadeira, do que você passou e te marcou?
R – Tem muito essas histórias tanto de fazer as feirinhas, a gente era bem empreendedor, a gente fazia feirinha de troca, de vender coisas usadas que a gente não ia usar mais, de histórias, por exemplo, que a gente batia na porta. A gente quer fazer alguma coisa no fim de semana, está sem dinheiro, o que a gente faz? Pega a enxada e vai bater na porta dos vizinhos pra limpar quintal de vizinho, por exemplo. A gente tinha inúmeras histórias. E pra gente isso não era trabalhar, não era um trabalho infantil, era uma brincadeira pra gente entrar em contato com os vizinhos, enfim, tem um monte de histórias que vêm daí também, histórias de fazer o teatro. Uma vez a gente fez um festival de teatro, desfile de moda. Um dos meus amigos, o pai dele era pedreiro, então tinha cavalete, tinha umas madeiras muito grandes então a gente montava passarela, a gente montava palco, brincava de casinha, de família (risos). Enfim, tinha um monte de história bem legal e chegamos a ter inclusive esse laboratório que a gente guardava rato morto no álcool (risos), a gente queria montar ali um laboratório mesmo pra gente fazer as nossas, comprovar os nossos experimentos.
P/1 – E teve algum livro, desses que seu pai te trazia, que te marcou? Ou outro que você gostava muito.
R – Teve. O Menino do Dedo Verde (risos).
P/1 – Como era esse livro?
R – Nossa, não lembro muito. Teve O Menino do Dedo Verde, o Pequeno Príncipe, mas eu já li há muito tempo. Eu tenho ele, eu comprei ele inclusive pra dar pra minha sobrinha, mas eu te confesso que eu não reli.
P/1 - Mas ele te marcou bastante.
R – Marcou bastante.
P/1 – E essas coleções também?
R – Essas coleções também, várias coleções. Tinha Mirador, Barsa, tinha umas coisas que a gente fazia muito trabalho de escola usando essas coleções, as enciclopédias.
P/1 – E como é que você fazia os trabalhos? Abria lá e ia pesquisando?
R – É, o professor dava o tema e a gente pesquisava, chamava os amigos em casa, ia estudar, abria o livro. Diferente de hoje, né, você vai no Google e coloca a pergunta, lá você tinha que pesquisar na Britannica, enfim, tinha uma série de enciclopédias na época e a gente fazia pesquisa ali. E também quando não achava nessas coleções que tinha em casa a gente ia pras bibliotecas. Eu fiz parte do... nesse processo da minha mãe sempre me deixar ocupado, dos sete aos 12 anos eu fui fazer teatro com a minha irmã. Quando eu tinha sete anos minha irmã tinha 16 e aí eu fui fazer teatro com ela, eu fiz teatro do sete aos 12. Isso era nos fins de semana. E nos dias de semana eu ia pro Sesc e fazia o Sesc Curumim, que era um projeto do Sesc com crianças que a gente tinha acesso a oficinas artísticas, a horta, a oficinas musicais, a uma série de conhecimentos complementares ao que você tinha na escola. Era no contraturno, então eu ia de manhã pra escola, à tarde eu passava o dia no Sesc Curumim fazendo uma série de atividades. E também foi uma coisa que mudou muito a minha vida, enfim, tinha teatro, dança, uma série de coisas que o Sesc até hoje eu considero um celeiro de cultura e a gente desde molequinho ali no Sesc participando disso. E eu lembro que desde os nove anos, nessa época, foi o primeiro assalto que eu tive, que me roubaram uma carteira que eu tinha o passe de ônibus, um álbum de figurinhas e três pacotes de figurinhas. Só que foi o primeiro desespero que eu tive porque ali eu não tinha como voltar pra casa porque tinham me levado o passe de ônibus. E eu fiquei chorando, parado, no meio da esquina do Sesc, outros dois meninos que tinham me assaltado ali e aí eu fui para um posto de gasolina que tinha na frente e um cliente do posto estava ali me viu, me viu o desespero que eu tinha e me levou pra casa, com nove anos de idade. Mas mesmo assim isso não fez com que minha mãe falasse: “Não, eu não posso e você não vai continuar indo sozinho pro Sesc”. De maneira nenhuma, ela só me orientava pra tomar mais cuidado e tudo o mais. Eu sofri mais um assalto ao longo da vida depois dos nove anos de idade mas sempre com muita responsabilidade. Nove anos de idade eu tinha que pegar o ônibus sozinho, já tinha que ir, era meia hora pra sair desse meu bairro e chegar até o centro de Ribeirão onde era o Sesc, pra você ter ideia. Então eu tinha uma autonomia, eu não imagino hoje uma criança de nove anos de idade, muito menos em São Paulo, andando de ônibus sozinha.
P/1 – E o que te chamou a atenção no teatro e nessas artes que você foi fazer, o que você acha?
R – A expressão, né? Eu acho que treinar falar. Eu tinha sete anos de idade, mas tinha decorado acho que isso deve ter sido Opus V Sete que foi uma peça que a gente fez. Tem uma história que a minha irmã e os amigos dela contam que eu decorava o texto da peça inteira e quando as pessoas esqueciam, da coxia eu falava o texto pras pessoas. Então com nove anos de idade ali, todo engajado nessa história da arte mesmo. E tem uma história engraçada que a minha irmã conta que um dia eu sumi, estava todo mundo ensaiando, de repente distraíram de mim, eu saí da roda e eu fui explorar o teatro. Eu subi atrás do palco e fui subindo por todos os andares, de repente quando eles se dão conta: “Cadê o Mateus?”, eu estava lá em cima, no último andar de onde você retrai as coisas de cenografia, eu estava lá em cima e eles: “Meu Deus do céu, o que a gente faz?” “Não, não gritem. Fiquem todos calmos que ele pode se assustar e cair de lá de cima”. Entraram em desespero e eu estava numa aventura maravilhosa de subir, descobrir o Teatro Municipal de Ribeirão Preto sozinho ali, numa super aventura.
P/1 – E o que vocês ensinaram, o que te marcou nesse período do Curumim e no teatro?
R – No Curumim o que mais me marcou foi a horta, eu adorava. Acabava o dia do Curumim, todo mundo tinha que ir embora mas eu adorava ficar lá com a tia Fátima, que era a que cuidava dessa parte mais de educação ambiental e de lidar com a horta. Porque também tinha todo esse processo, a gente fazia da horta até fazer a salada depois. E o que mais me marcou sempre foi tanto a parte da horta mas também a Luciana que era a parte de... todos me marcaram, tinha o Guto, que era a parte mais de educação física, esporte e tudo o mais, mas a horta era o que mais me envolvia. E eu esperava o sol começar a se pôr pra regar a horta, então eu sempre era o último a ir embora do Sesc também porque eu ficava ali cuidando a horta, sempre gostei muito disso.
P/1 – E nessa época você acha a reciclagem estava na vida das pessoas, era um problema ou não?
R – Estava começando. Tem um primeiro projeto que eu comecei a interagir com reciclagem, chamava Lixo Útil e eu lembro de ter ido com o colégio visitar a primeira usina lá em Ribeirão Preto de segregação e triagem desses materiais recicláveis. Só que na época era uma coisa tão de pessoas engajadas que era quase um serviço, você ligava, eu lembro que a minha mãe ligava num número, separava os sacos todos em casa de materiais recicláveis, ligava nesse número e o caminhão da prefeitura fazia coleta só nas casas que solicitavam esse serviço do Programa Lixo Útil em Ribeirão Preto. Isso deve ter sido em 1993, 92, 94, por aí. Eu devia ter 12, 13 anos e me lembro de ter visitado essa usina de reciclagem em Ribeirão que era dentro do aterro, era uma usina que ficava dentro do aterro e lembro da minha mãe separando essas coisas e também tem uma outra... isso dos recicláveis. Pro lado dos orgânicos eu lembro que na época a gente separava, deixava numa lata, que às vezes até criava alguns bigatos lá, era uma coisa meio nojenta e dava isso pro cara que criava porcos. Era o lavageiro, ele pegava a lavagem, levava essa lavagem pros sítios pra alimentar os porcos e o nosso reciclável ia pra essa usina de Lixo Útil. Então era uma coisa simples, era roots, um pouco até, diríamos hoje, sujo, né, mas eram ciclos fechados que tinha, tanto do resíduo orgânico como do material reciclável. E me marcou bastante, eles vinham de carroça em casa, eu lembro. E outra coisa que existia muito interessante nessa época que eu lembro era o... Tinha um bairro, era uma comunidade simples então tinha o caminhão, a gente não ia nas lojas, parece que os produtos e serviços que a gente precisava vinham até o bairro. Então tinha o tio que vendia pamonha, tinha o caminhão que vendia desinfetante, roupalin, cera, eu me lembro muito desse caminho que passava na rua e ficava: “Desinfetante, Roupalin, Cera”. Aí você levava as embalagens que você tinha em casa e esse senhor enchia, você comprava por litro ali, a granel. Isso tudo que falam hoje nessas lojas que não têm embalagem e nada mais já existia naquela época. Eu acho que isso é muito um retorno, né? Essas tendências que a gente vê hoje de não ter embalagem, de você reutilizar a embalagem, vinham naquela época talvez por carência, até, de não ter uma indústria, de não ter essas coisas massificadas. Eu lembro muito desse caminhão que passava vendendo esses produtos de limpeza que você precisava pra casa e a gente ia lá com as garrafinhas, enchia. E aí também vinha o cara do queijo de Minas que vinha vender queijo muçarela, doce de leite, o doceiro, tinha vários produtos que eram muito entregues ali, os caixeiros viajantes, os mascates. Meu pai vendia livro e tinha os outros que vendiam várias outras coisas de porta em porta. Pamonha, o leiteiro passava também de porta em porta, vendia leite cru, leite direto da fazenda, então era uma vida orgânica sem ter todo esse marketing, essa pompa que a vida orgânica tem hoje em dia (risos).
P/1 – E vocês tinham muito contato com rádio, TV também?
R – Tinha muito contato. Minha mãe ouvia rádio o dia todo, muito dessa história de... Eu lembro que a gente ligava pro rádio, falava com o rádio. E o radialista era também vereador da cidade, então era uma coisa bem interior, bem confusa ali, e era professor da escola também. Enfim, era bem interativa, ia pra rádio assistir ao programa de rádio do Corauci Neto que era esse radialista que minha mãe gostava. Até hoje ela ouve, até hoje minha mãe segue nessa vida simples, com seu jeitinho de vida, super aberta ao mundo, tem um namorado. Ela vai fazer 70 anos o ano que vem, tem seu namorado, enfim... Sim, a gente tinha muito contato com rádio, TV.
P/1 – Você lembra de algum programa que você gostava em rádio?
R – Não lembro do nome dos programas, eu lembro que a gente chegava a ir em programa de auditório de rádio. Eu peguei na minha infância o finzinho dos programas de rádio no auditório, depois era só estúdio, mas esses estúdios também eram abertos, então eu lembro muito bem de ir na 79 AM, acho que era a rádio 79 AM. Eu lembro de ir no estúdio acompanhar os programas, era bem legal. E descobri esse mundo. Porque o que era ir ao programa de rádio? Era descobrir o que estava por trás daquela vozinha que chegava em casa pelo radinho. E era um passeio, a gente saía de casa, era na rodoviária essa rádio, funcionava na rodoviária, a gente ia até a rodovidária, conhecia o radialista, a secretária do radialista. E ele também doava cadeira de rodas, doava um monte de coisa; esse radialista tinha uma função social ali na cidade, ele também tinha essa coisa quem tem, o que a gente faz hoje via aplicativo as pessoas faziam naquela época via programa de rádio (risos).
P/1 – E você estudou em qual escola?
R – A primeira e única vez, não foi única porque depois eu fiz o cursinho junto com o terceiro colegial, mas eu estudei o jardim e o pré na escola Sapequinha, que era no bairro mesmo, era uma escola privada mas no bairro. Depois eu fui pro Moura Lacerda que era uma escola pública, uma escola estadual no bairro e depois, inclusive até por essa relação da minha mãe com o rádio, de conhecer os professores eu consegui uma vaga no colégio da quinta ao terceiro colegial, eu fiz um colégio municipal, não era estadual, no centro de Ribeirão, perto do Bosque, que era um dos melhores colégios públicos de Ribeirão, chamava Mousinho, Dom Luiz do Amaral Mousinho. Então foi Sapequinha, Moura Lacerda, Mousinho. E no terceiro colegial a minha irmã e meu cunhado, o meu cunhado é químico, a minha irmã é bióloga e eles me estimulavam muito pra passar no vestibular. Eu queria fazer Zootecnia porque naquela época a questão da inseminação artificial de bovinos estava chegando no Brasil e tal e eu queria trabalhar com isso. E prestei Zootecnia no terceiro colegial, eu tentei fazer colégio técnico um pouco antes disso. Junto com o colegial eu peguei bem aquela época que separou o curso técnico do colegial, mas eu fazia colegial no Mousinho e curso técnico em Telecomunicações no colégio que a gente chamava de Industrial, lá em Ribeirão. Os colégios eram bem próximos, então eu fazia de manhã um, à tarde o outro – tá vendo, minha mãe sempre tentando ocupar o meu tempo e eu também, buscando coisas ali pra fazer, pra ter conhecimento, buscando muito conhecimento. E depois eu estudei, não passei no curso de Zootecnica e fiz cursinho junto com o terceiro colegial, trabalhava, fazia o colegial de manhã, trabalhava à tarde no colégio e fazia o cursinho à noite e tinha uma bolsa de estudo. Como eu não passei no terceiro colegial, no segundo ano eu tinha um seguro, podia fazer o cursinho gratuitamente e aí prestei Farmácia Bioquímica porque tinha um leque mais amplo. Tinha essa história da minha irmã com a Biologia, do meu cunhado com a Química, então eu tinha que ir bem nessas disciplinas porque eu tinha lá em casa o conhecimento à disposição pra me ajudar no que faltasse, no que eu tivesse dúvida e aí eu acabei optando por fazer Farmácia porque também era um curso que me daria possibilidade de trabalhar com inseminação artificial e tinha um leque muito grande para eu fazer várias outras coisas, então eu optei por fazer Farmácia na USP de Ribeirão por isso. Passei, em 2000 eu entrei na faculdade.
P/1 – Voltando um pouco antes da faculdade, teve algum professor na escola que te marcou em alguma situação, você se lembra?
R – Ah, tiveram alguns professores que me marcaram, mas uma que me marcou muito era a Conceição, acho que eu fiz aula com ela na segunda e na quarta série. E ela era próxima aos amigos da minha irmã, próxima aos amigos do meu cunhado, é muito próxima a gente e ela chamava a minha mãe toda semana no colégio, ela sempre... porque você deve imaginar, eu não era uma criança muito quietinha, calminha, eu tinha muita energia e queria fazer muita coisa, enfim, causava muito no colégio então minha mãe fala que ela ia, dia sim, dia não ela tinha que ir no colégio pra falar sobre os problemas. Não eram problemas ligados a aprendizagem e às notas, mas problemas de comportamento e de bagunça ali no colégio. E a Conceição me marcou bastante por ter essa, porque era uma amiga da família também, então chamava naquele papel de professora, mas estava muito próxima também, entendia todo o nosso contexto.
P/1 – E você falou que aos 13 anos teve uma situação com a Natura, não foi?
R – É, eu sempre quis trabalhar, sempre quis buscar autonomia, liberdade, eu sempre falei, tá bom, o que pode e o que não pode. Tinha coisa que podia e não podia, que não era o dinheiro, se eu tinha minhas economias ou não que eu poderia fazer então eu respeitava minha mãe e meu pai por isso. Mas tinha coisas que se eu tivesse algum troquinho e não tivesse que pedir pra eles eu poderia fazer, comprar um brinquedo, comprar um videogame, enfim, então eu sempre quis trabalhar de alguma maneira. E aos 12 anos eu fui trabalhar na Fundação Promenor, a gente chamava de Promerp lá em Ribeirão Preto. Eu comecei a trabalhar bem novinho, vendendo os salgadinhos, o bolão ali, isso nunca afetou meus estudos. Comecei novinho, mas depois eu fui trabalhar oficialmente meio período nesses órgãos públicos de Ribeirão Preto que é essa organização, treinava você pro trabalho, você tinha essa experiência de Menor Aprendiz. Mas aos 13 anos eu acredito que eu saí, eu tive que sair, fui mandado embora, na verdade, de uma das organizações. Passei por três e querendo muita coisa, causando um pouquinho também, acabei sendo mandado embora e aos 13 anos de idade eu peguei um produto de uma marca de cosmético que tinha lá no banheiro de casa, olhei aquilo e falei: “Mas eu nunca vi isso no supermercado, ninguém nunca passou aqui na porta vendendo, eu nunca vi pelo menos como minha mãe comprou isso aqui. Como será que isso é vendido?”. Eu olhei atrás e tinha um 0800. Eu liguei no 0800 e perguntei qual era a história daquele produto, a história daquela marca e tudo o mais, me contaram e eu falei: “Então eu quero agendar uma visita da promotora de vendas aqui na minha casa porque eu quero que a minha mãe seja consultora”. E nisso não contei pra minha mãe e falei pra ela assim: “Mãe, eu preciso de um xerox do seu RG e do seu CPF pra levar na escola porque tem uma viagem lá que a gente vai fazer e eu preciso levar esse xerox dos seus documentos”. E marquei uma visita da promotora. Eu pegava minha bicicleta e ficava esperando. Aí agendei a promotora e minha mãe falou assim: “Quê? Vender? Eu não quero vender nada, seu pai que é o vendedor aqui da casa, eu não vou vender”. Eu falei: “Não, mas faz” “Eles vão querer me vender um kit, eu vou ter que pagar isso, se eu não vender eu vou ter que ficar, de onde eu vou tirar o dinheiro pra pagar esse kit?” Eu falei: “Não mãe, eu só quero que a senhora faça o cadastro porque eu não posso, eu sou menor de idade”, tinha 13 anos de idade, “mas faz o cadastro que eu vou cuidar disso, vou vender pra gente”. Convenci ela, a promotora foi lá, eu lembro desse dia, foi um dia em casa. Depois quando a gente fez o primeiro pedido eu lembro da minha ansiedade, eu ia pra esquina, como tinha essas duas linhas do trem tinha um viaduto e tinha uma entrada só pro bairro. E eu ficava lá esperando a Kombi que ia fazer a entrega do primeiro pedido chegar. Foi uma emoção muito grande o dia que chegou essa primeira caixa, a gente abriu e eu fui entregar esses produtos da Natura pros nossos clientes. Aí como eu tinha saído do trabalho minha tia tinha uma papelaria no centro da cidade, minha tia que era esposa desse meu tio que era sócio do meu pai lá atrás. Ela tinha uma papelaria, então eu ia pro colégio de manhã, deixava as minhas coisas do colégio na papelaria da minha tia, pegava a bolsa de produtos lá e ia num prédio comercial, chamava Edifício Canadá, ia de porta em porta no edifício, eu convencia porteira a me deixar entrar, naquela época os controles eram mais frágeis, mais fluidos, então eu consegui entrar e aí eu ia de escada de andar em andar, batia na porta desses escritórios e chegava lá um moleque de 13 anos de idade: “Bom dia, você não quer dar uma olhadinha nos produtos aqui da Natura? Hoje tem não sei o quê”, e vendi Natura. Minha mãe fez 20 anos de Natura recentemente por conta disso, minha mãe faz 21 anos já que ela vende Natura, ganhou todos os broches de cinco, dez, 15, 20 anos. Minha mãe segue até hoje como consultora Natura, mas dos 13 aos 16 eu vendi Natura de porta em porta pra fazer uma graninha. Nesse mesmo momento eu fui trabalhar no McDonald’s, aos 16, tinha uma vizinha minha que trabalhava no McDonald’s e eu acabei indo também, procurando um jeito de buscar um trabalho que eu pudesse ganhar um pouquinho mais, enfim, entrar no mercado de trabalho. E aí aos 16 anos eu comecei a trabalhar no McDonald’s, passei por todos os treinamentos e com seis meses eu fui promovido a treinador e fiquei lá mais um ano e meio trabalhando no McDonald’s e não parava, né? Tinha muita energia, tal, trabalhava das quatro às dez. Só que quem ficava depois das dez tinha o fechamento, que era ficar limpando a loja inteira, então eu ficava das quatro a quase três da manhã fazendo fechamento, depois a van me levava embora pra casa. E nisso minha mãe começou a ficar preocupada, até que ela pede para eu sair do McDonald’s porque eu tinha que estudar. Aí com 17 anos eu pedi demissão, saí do McDonald’s e com o dinheiro que eu tinha juntado comprei um computador. Naquela época começa a surgir a informática, eu comecei com o computador, fazia digitação de trabalhos, arte gráfica, eu criei a minha primeira empresa formal, a MCM, que é Mateus Calligioni de Mendonça (risos). A MCM Fingerprint (risos), que eu fazia arte gráfica, brincava com paint brush ali e fazia umas coisas bem simplesinhas de digitação, cartão de visita, fazia um monte de coisinha bem simples com esse computador que eu consegui comprar, um computador e uma impressora.
P/1 – E deu certo isso daí?
R – Deu certo, me deu uma graninha. Digitei várias teses, aprendi um monte de coisa, tese de mestrado que o pessoal escrevia e precisava de alguém pra digitar, eu trabalhei, capítulo de livro, digitava um monte de coisa. Porque eu colocava propaganda na papelaria da minha tia, então como todo mundo ia na papelaria pra comprar coisas, era um ambiente que circulava muitos estudantes eu colocava a propaganda ali o pessoal me ligava e eu vendia cartão de visita, fazia os cartões de visita da papelaria da minha tia. Enfim, deu certo, muito certo essa época. Foi um pouco antes de entrar na faculdade.
P/1 – E como é que foi trabalhar no McDonald’s? Como era a rotina lá, fez amigos?
R – Fiz muito amigo e aprendi muito em termos de treinamento, de processo, de regra, de compromissos. Tinha um lema que a gente falava no McDonald’s, era: “Sujou, limpou. Molhou, secou”. Hoje eu tenho uma certa crítica a alguns processos, algumas lógicas, mas pra mim foi importante, deu muito certo pra aprender manual de procedimentos, temperaturas. Muito do que eu faço hoje tem uma raiz nesse aprendizado que veio lá de trabalhar no McDonald’s. Deu certo, foi legal porque eu ganhei uma grana, consegui juntar um dinheirinho pra fazer minhas coisinhas, comprar meu computador, tocar meu próximo empreendimento, mas foi muito, muito legal trabalhar no McDonald’s e ter contato com essa cultura, que apesar que eu não fazia nem esses julgamentos, mas era uma cultura americana, uma coisa que estava chegando também no Brasil naquele momento. Foi muito legal e depois ser treinador e aprender também com as outras pessoas. Nesse período a loja foi franqueada, então de uma gestão que a gente tinha de uma loja que era da matriz lá dos Estados Unidos depois chegou o dono pra loja. E os donos ali na loja também foi um outro momento muito legal, que chegaram o seu Roberto e a dona Georgina, que eram os donos dessa franquia do McDonald’s em Ribeirão. E eles gostaram muito de mim e me deram muito espaço para ajudá-los a entender, eu que treinei os filhos deles e eles ali no como era; já tinham passado pelos treinamentos do McDonald’s mas na loja eu fiquei muito próximo a eles e comecei a assumir algumas coisas mais de comunicação, de inovação. Eu me lembro dessa época eu fiz uma árvore de natal com os produtos do McDonald’s pendurados ali nessa árvore. E eu animava festa, eu ficava nas festas de crianças, fazia teatrinho de bonecos nas festinhas que tem lá do McDonald’s. Enfim, hoje eu tenho uma vida muito mais light em termos de alimentação mas aquele momento foi importante pra mim, ter passado pelo McDonald’s e ter conhecido esse universo todo do padrão, do ser igual aqui e em qualquer outro lugar do mundo, dessa lógica. Hoje eu quero muito mais valorizar os contextos, as riquezas e valores locais, mas foi importante ter passado, ter tido essa experiência. Eu acho que com equilíbrio a gente tem que privar por essa diversidade do mundo, pela diversidade de escolhas que as pessoas podem ter. Mas é até paradoxal essa relação, ter vindo do McDonald’s e trabalhar, viver num mundo hoje completamente diferente ao que é o mundo McDonald’s.
P/1 – Eu queria fazer uma pergunta, mas você fica à vontade se não quiser responder, mas o seu pai faleceu quando você tinha 15 anos, é isso?
R – Sim.
P/1 – O que aconteceu, como é que foi?
R – Meu pai teve câncer no esôfago e ficou um ano bem mal, minha irmã levou esse momento com bastante garra, minha irmã, meu irmão, minha mãe, sofreram muito. Eu vi meu pai em um ano de uma pessoa brilhante, vívida, cheia de energia definhar mesmo com essa doença. Teve câncer no esôfago, teve que passar por uma cirurgia, usar uma sonda, ir pra casa e comer só comida peneirada pela sonda. Foi bem duro mesmo esse momento.
P/1 – E foi com 15 anos.
R – Eu tinha 15 anos e ele tinha 52.
P/1 – Você estava no meio desses trabalhos.
R – No meio desse processo todo. No meio da puberdade e tudo (risos).
P/1 – E mesmo assim você teve forças pra continuar fazendo essas coisas.
R – Mesmo assim. Eu acho que teve uma coisa que meu pai sempre olhou pro lado brilhante da vida. Eu tinha consciência dessa dor, eu acho que na verdade naquele momento eu não tinha maturidade pra acessar essa dor e pra... Na verdade até hoje eu acho que eu não acessei muito essa dor, essa falta do meu pai dos 15 até agora.
P/1 – E nessa época que você está falando você teve alguma paixão, começou um namoro, alguma coisa assim?
R – Ah, tive várias paixões sempre, mas tive várias, nessa época também tive algumas experiências amorosas (risos).
P/1 – E como é que foi, você pode falar, quer falar pra gente?
R – Foi, foi, mas acho que não vem ao caso nesse momento essas experiências.
P/1 – Tá certo. Então depois desses trabalhos todos você se voltou mais para os estudos, né?
R – Sim, aí depois eu saí do McDonald’s e fui trabalhar como monitor na sala de estudos desse colégio. Tinha um colégio em Ribeirão Preto, o COC, que meu cunhado dava aula e eu fazia o cursinho junto com o terceiro colegial, fazia terceiro colegial de manhã, cursinho à noite e à tarde eu trabalhava na sala de estudos pra garantir uma bolsa, pra pagar um pouco menos esse cursinho e tal. Eu saí do McDonald’s e fui me dedicar aos estudos porque estava chegando muito próximo do vestibular e minha mãe, minha irmã, todo mundo queria que eu estudasse pra passar no vestibular, então eu fui me dedicar nesse período mais a estudar mesmo.
P/1 – E como é que foi passar no vestibular? Como é que foi a prova e o resultado?
R – Foi muito legal. Eu passei em Farmácia em algumas faculdades, foi um processo de muita ansiedade. Eu era muito novo, apesar de já ter feito um monte de coisa por que eu vou fazer Farmácia, eu não sabia ainda o que eu queria, e ainda não sei, na verdade acho que o de mais legal que tem é a gente ser empoderado pra poder mudar a qualquer hora, a riqueza de conhecimentos, de coisas pra fazer, de desafios que o mundo tem é tão grande que eu nunca me prendi muito a isto, tanto é que eu me formei em Farmácia Bioquímica na USP de Ribeirão Preto mas hoje eu trabalho com Gestão de Resíduos. Eu não sou engenheiro ambiental, eu não sou gestor ambiental, que seriam formações mais adequadas pra trabalhar com esse tema, mas eu trabalho com isso e numa perspectiva de inclusão social que vem também desse ambiente e das pessoas que eu encontrei desse fluxo, que eu encontrei na faculdade de Farmácia. Porque quando eu entro na Faculdade de Farmácia eu tive que fazer um projeto, entrar num projeto de bolsa trabalho pra conseguir ter uma renda também pra me manter ali na faculdade porque era período integral. Como eu ia me manter nessa faculdade? Então eu entrei na bolsa trabalho que tinha um projeto com a comunidade de uma favela que era do lado da USP de Ribeirão. Eu volto mais uma vez pra fazer um trabalho social com comunidade, mas nesse momento estando na faculdade e encontrando pessoas maravilhosas, professor Julieta na época, professor Osvaldo, o Programa de Uso Racional de Medicamentos, que era o programa que eu fazia parte. E a gente ia pra essa comunidade pra levar conceitos de higiene social: por que cortar a unha, por que tirar o piolho, por que lavar o cabelo, materializava essas coisas invisíveis pras crianças. A gente tirava os equipamentos do laboratório e levava pra essa comunidade pra mostrar por que você tem que cortar a unha, olha os bichinhos que têm aqui. A gente fazia plaquinha com os bichinhos e deixava o bicho crescer dentro da placa e mostrava pras crianças: “A gente está falando pra você cortar a unha porque tem esse bichinho minúsculo lá que pode fazer mal pra sua saúde”. A gente tirava o piolho das crianças, colocava na lupa e mostrava o que estava fazendo a cabeça dela coçar. Então era muito legal também levar esse conhecimento, uma coisa que minha mãe me dava empiricamente na minha infância eu estava levando tecnicamente pras crianças quando eu entrei na faculdade. E esse processo culminou em que eu tinha que desenvolver um xampu pra todas as crianças pra elas valorizarem aquele conhecimento que a gente tinha levado ao longo de um ano pra elas. E eu acabei entrando em contato com o mundo da cosmética de novo, com a professora de Cosmetologia na faculdade. E isso quase num retorno à Natura eu venho fazer estágio na Natura depois que eu me formo na faculdade, mas depois eu conto essa história.
P/1 – E como é o câmpus, a vida de universitário na época?
R – Foi a melhor fase da minha vida, acho, viver no câmpus, com muito pouco a gente era muito feliz, com muita festa. Desde invadir a piscina aos finais de semana que a piscina estava fechada. Como a minha casa também era longe da universidade eu tinha uma grande amiga que hoje mora em Amsterdã, a Janaína, que morava na residência estudantil do câmpus, então eu passei quatro anos da minha vida ficando mais no câmpus, no laboratório, no centro acadêmico. Porque também me envolvi, quando entrei na faculdade me envolvi totalmente com as questões do movimento estudantil. Já no segundo ano já era secretário do centro acadêmico e no terceiro já era presidente do centro acadêmico, então me envolvi. Foi um outro universo também, descobrir Diretório Central dos Estudantes, descobrir o programa Universidade Solidária que eu fiz parte no interior de Pernambuco. A universidade, esse momento de vida no câmpus, de movimentos estudantis, de residências estudantis e de contato com a diversidade de pessoas que estavam ali de fato me abriram mais dois mundos gigantescos que tem muita coisa que hoje eu colho que foram plantadas nesse momento.
P/1 – Você fez residência em Pernambuco, como foi isso?
R – Não, eu não fiz residência. Eu participei de um programa Universidade Solidária que chamava Universidade Solidária Modo Xingu, então a gente foi em quatro viagens, a gente ficava três semanas, em janeiro e em julho, no período de férias, a gente fazia um trabalho em Santa Maria da Boa Vista, interior de Pernambuco, perto de Petrolina, polígono da maconha ali de Pernambuco na época. Aí eu também conheci pessoas que fazem parte da minha vida até hoje. Por exemplo, a Beatriz que é uma grande amiga, a gente chegou a ser sócio num hostel, a gente é sócio num negócio aqui em São Paulo e vem daí, ela foi minha madrinha, minha irmã de São Paulo, porque a primeira vez que eu venho pra São Paulo é por conta desse... Na verdade as primeiras vezes foram por conta do Diretório Central dos Estudantes, mas depois eu comecei a vir pra São Paulo também por conta do projeto Universidade Solidária. E a primeira vez que eu viajo de avião é para o interior de Pernambuco, pra Petrolina. Não foi pra Disney, foi pra Petrolina, interior de Pernambuco, na fronteira da Bahia com Pernambuco na margem do rio São Francisco. Eu fiquei com a equipe da frente de Cultura e Questões de Saúde nessa cidade e a gente também pôde levar um pouco dessa visão. Recentemente eu estive lá de novo, em Santa Maria da Boa Vista, encontrei um grande amigo que a gente fez lá, que era o Clênio e perguntei: “Mudou os jovens, como eles veem a universidade, como eles veem o mundo depois que a gente passou por aqui?”, que foi 2003, 2004 e 2005 eu acho. Ele falo: “Mudou muito. As pessoas vão mais pra universidade, vão mais pra faculdade, é outro ambiente”. Mas isso porque o mundo mudou também, não foi só a nossa passagem por ali. Mas foi muito interessante isso, foi muito aprendizado porque aí era um grupo de dez alunos de diferentes cursos da USP que se uniam pra pensar iniciativas que essa nossa coordenadora, que era a Bia, já tinha ido pra lá pra viagem de campo pra entender os desafios daquele território e a gente, aluno, pra trabalhar propostas pra serem desenvolvidas nesses períodos de férias que a gente ia pra lá. A gente ficava hospedado numa escola de música e ocupava um antigo mercado municipal com ações de cultura, de arte, resgatava os saberes e os artistas locais, era lindo, era lindo. Era não, é lindo e estava começando a se desenvolver a indústria do vinho ali no Vale do São Francisco. A gente foi ver os canais de irrigação que estavam começando a ser construídos no Vale do São Francisco, foi um momento muito especial da minha vida essa participação no Universidade Solidária.
P/1 – E o DCE, qual era a sua participação? Você falou um pouco, mas como é que era?
R – No DCE eu era representante do movimento estudantil de Farmácia, também do movimento estudantil de Ribeirão Preto. Era um processo de buscar direitos, de construir direitos perante o Conselho Universitário, perante a Congregação da universidade. Já era quase uma cidadania universitária, né, você buscando naquele mundinho, naquele sistema de governança que a universidade tem, tentando achar brecha pras minorias serem ouvidas. Pra mim o DCE já é um exercício de política, era um exercício de ocupar espaços que tinham espaço dentro dessa governança universitária, era essa luta por direitos. Eu acho que se eu tivesse que resumir o que foi o DCE e o que ele representou pra mim, representou essa, a gente tem que abrir canais, a gente tem que abrir espaços de diálogo e os governantes, seja ele o reitor da universidade, seja ele o governador do estado ou o prefeito de uma cidade, ele tem que estar à serviço, com os ouvidos muito atentos para que o povo pede, para que o povo clama. A mudança vai vir só se for de baixo pra cima de fato. Então eu acho que ela me representou isso, era necessário abrir canais, abrir espaços de escuta, espaços de interação e de participação da sociedade naquele contexto da sociedade universitária nessa estrutura de poder para que o poder emanasse do povo para o povo e com o povo.
P/1 – E depois disso você entrou num estágio na Natura, é isso?
R – Depois disso... Como eu fiz parte do DCE, enfim, lá naquela história do xampu que te contei, a gente depois de um ano de trabalho nessa comunidade, a gente teve que desenvolver esse xampu. Eu tive um contato com a professora de Cosmetologia e ela me convidou para fazer um estágio lá, pra trabalhar com Cosmeto com ela, pra estudar a vitamina A. Eu fiquei dois anos, dois anos e meio trabalhando no Laboratório de Cosmetologia. Só que aí eu descobri também: “Que mundo é esse? Não é isso que eu quero fazer, não quero ficar estudando vitamina A pra melhorar a ruga da pele, o creminho”. Enfim, resolvi mudar de estágio e fui fazer um estágio na área de Administração de Serviços de Saúde, para avaliar a qualidade da atenção do serviço farmacêutico no Sistema Público de Saúde de Ribeirão Preto. Só que eu fiquei seis meses escrevendo esse projeto, trabalhando com a professora Vânia com esse objetivo e o processo seletivo da Natura foi aberto e eu me inscrevi só no processo seletivo da Natura. E não porque era Natura e não porque era Cosmético, mas porque era uma empresa que tinha um conceito novo, a Linha Ekos já tinha sido lançada, a sustentabilidade. Foi a primeira vez que eu ouvi falar em sustentabilidade. E eu fui trabalhar na Natura muito por conta disso, eu acho que eu escolhi a Natura, né? Só que eu não queria mudar a minha personalidade, então eu lembro dos processos seletivos que eu entrava em dinâmicas com grupos de farmacêuticos, químicos, de outras pessoas que estavam concorrendo às vagas de estágio e de trainee, estava todo mundo assim, parecia que tinham saído de uma mesma forma, de terninho, gravata, todo mundo indo pro processo seletivo e não era muito o meu mundo. Meu mundo era sandália de couro, calça larga e blusa de tie-dye, todo meio riponga, né? Eu lembro uma vez que eu cheguei na primeira dinâmica presencial, porque passei pelos testes virtuais e tudo o mais, a primeira dinâmica presencial que eu cheguei naquele saguão daquele prédio lindo da Natura eu olhei e falei: “Hum, não vai dar certo. Todo mundo é muito diferente de mim”. E justamente essa diferença que fez a Luciana me contratar, me selecionar. E em 2004 eu venho pra São Paulo, aí já como migrante, para trabalhar na área de pesquisa e desenvolvimento da Natura, como estagiário pesquisador das linhas de proteção solar, em produtos infantis, produtos da linha Chronos, na linha anti-age. Vim e fiquei três anos no laboratório fazendo isso e também entrei nos projetos mais de sustentabilidade, que a gente chamava de vegetalização das formulações. Que era o quê? Trocar as matérias primas que eram de origem não renovável por matérias primas de origem renovável. Nesse processo eu comecei a interagir e a conhecer a Amazônia e a relação com as comunidades. Então a Natura também tem muita importância na minha vida por me abrir esse outro horizonte que era o Norte.
TROCA DE FITA
De 0:58:20 a 1:47:54 -> repete de 0:08:49 até 0:58:20
TROCA DE FITA
P/1 – Pode continuar então. Você lembra onde você parou?
R – Não.
P/1 – Você estava falando da Natura.
R – Da Natura. Aí eu passei nesse processo seletivo da Natura, fiquei três anos no laboratório desenvolvendo fórmulas, 2004 a 2007. Só que em 2007 eu tive uma série de questões de saúde, de questões amorosas e mais uma vez me questiono: “O que eu estou fazendo aqui preso nesse laboratório?”. Você viu que eu tenho um perfil bem de laboratório, né? Sou bem quieto, concentrado pra ficar no laboratório. E aí eu recebo um e-mail de uma madrinha minha da faculdade, Natali, que hoje é professora de universidade lá em Goiás, ela me manda um e-mail convidando pra participar de um processo seletivo da Artemísia Negócios Sociais. Artemísia é uma organização hoje que fomenta start-ups, criação de novos negócios. Enfim, recebi esse e-mail, olhei aquilo e falei: “Nossa, tenho uma ideia. Ao invés dessas comunidades da Amazônia que estão vendendo sementes, por que elas não vendem óleos já beneficiados? São processos tão simples, então por que não levar conhecimento e técnica pra que eles produzam óleos e vendam direto pras empresas, ou quiçá façam os próprios cosméticos na comunidade, se é cosmético ou se é alimento, que agregue valor a esses produtos na floresta, já na comunidade”. Essa ideia me despertou uma possibilidade de participar do processo seletivo da Artemísia e aí eu passei um ano na Artemísia fazendo essa Expedição Artemísia, chamava. Tinha um processo todo de autoconhecimento, de ferramentas de descoberta, de entender quais eram as nossas dores, as nossas angústias pra trabalhar essa mudança do mundo. Fiquei entre os dez finalistas, mas não fui selecionado. Mas eu sempre comuniquei isso pra Luciana, que tinha me contratado na Natura e pra Ana Paula que era a minha gestora naquele momento. E elas mais uma vez, mais um presente que me trouxeram que foi quando eu estava nas últimas etapas, sabia já, na última entrevista, antes do resultado eu estou voltando dessa entrevista e elas me ligam me convidando para um almoço porque elas queriam me apresentar uma proposta pra fazer um job rotation, pra mudar de trabalho, rodar dentro da empresa. Eu saio do laboratório e sou convidado a fazer um trabalho na área de embalagens, pra trabalhar com embalagens recicladas, pra trabalhar com uma construção de relações, com a cadeia de materiais recicláveis. Porque a gente tinha desenvolvido com outras duas grandes amigas lá, a Karina e a Raquel, tinha sido desenvolvido a tecnologia pra reciclagem e utilização de material reciclado nessa embalagem que ia ter contato com cosmético. Mas quando a gente vai numa agência nacional pra mostrar e pedir autorização pra usar esse material em contato com o produto a agência fala: “Não tem problema nenhum, vocês podem usar em contato com cosmético, mas vocês são uma empresa toda sustentável, não é? Você sabe como é a relação das pessoas, de onde esse material vem? De onde esse “lixo” vem? Do lixão que tem trabalho infantil, de pessoas que estão na rua puxando a carroça?”. Isso desperta a área de Sustentabilidade, a área de Embalagens pra construírem um processo de relacionamento com cooperativas de catadores que estavam surgindo naquele momento pra fornecerem esse material pra Natura fazer essa embalagem. Só que era tudo muito novo ainda, a Política Nacional de Resíduos Sólidos, isso era 2006, 2007, sequer tinha sido promulgada. Estava tudo muito incipiente e a gente começou um processo de homologação, de desenvolver uma ferramenta para diagnosticar as cooperativas, pra avaliar indicadores, para construir um relacionamento pautado em parâmetros, em métricas racionais para além das questões políticas, as questões emocionais, as questões psicológicas que estão envolvidas nesse tema também. A gente falou: “A gente pode fazer uma embalagem reciclada, desde que a gente tenha garantia de origem e de que ela venha, era quase fazer uma proxi da relação que a Natura tem com os fornecedores de matéria prima da Amazônia e nesse caso iam ser fornecedores de matéria prima da cidade pra se fazer embalagem reciclada. Então a gente começa esse processo de relacionamento com cooperativas, que hoje é a base de todo o trabalho que eu desenvolvo na Giral.
P/1 – Mas você já tinha ideia desse ciclo de reciclagem ou nessa hora que eles chamaram pra esse trabalho você teve que estudar e sair buscando?
R – Foi um presente maravilhoso, eu ganhei seis meses e um orçamento pra viajar o Brasil inteiro e conhecer a realidade de norte a sul, de leste a oeste do Brasil relacionado a gestão de lixo, não era só a questão da embalagem, entenda como essa embalagem termina o ciclo de vida dela, entenda o desafio do lixo, entenda o desafio da gestão de resíduos e o desafio da indústria de reciclagem. Hoje a gente chama isso de economia circular, de sair da economia linear e ir pra economia circular. Naquele momento não tinha um nome bonito pra isso, era só: “Vai lá conhecer a cooperativa, vai pisar na lama, no chorume, no lixão”, e pra mim foi como um desbravador ,foi desbravar um mundo novo, conhecer as cooperativas, conhecer os catadores, conhecer o movimento social e as fundações internacionais que apoiavam a estruturação dessa causa e aí desenvolvi também uma rede de relações, de parcerias muito fortes com a Fundação Avina que foi uma das primeiras fundações que pôs luz nessa sombra, que trouxe a causa e o tema dos catadores, da gestão de resíduos no palco. E descobri também o movimento de catadores que vinha se organizando pra conseguir consolidar, pra tirar a lei da morosidade legislativa do congresso e fazê-la virar de fato uma realidade. Então eu vivi muito esse processo de uma lei que estava lá parada há muitos anos no Congresso, eu vivi esse movimento, que o Movimento Nacional de Catadores promoveu junto com o Planalto e o Congresso, de tirar a lei da gaveta, resgatar e de fato amadurecer e criar um marco legal pro Brasil na questão dos resíduos. E é um marco legal que fala muito da inclusão social, do papel do catador, de como os catadores também já vinham se incluindo na cadeia de reciclagem mas que precisavam de reconhecimento, precisam ainda de reconhecimento, tanto da sociedade como das empresas que colocam esses materiais nas cidades. Então qual é o papel dele enquanto provedor de serviços? Pra além de ser um empreendedor que encontra renda nos materiais que têm alto valor na coleta seletiva, na reciclagem. Então também a gente vem criando uma estrutura que tem material que se recicla facilmente porque ele se paga, ele tem tanto valor agregado que não precisa pagar pelo serviço. Mas tem material não, que você tem que pagar porque ele não vale tanto, então tem que se pagar o trabalho dessas pessoas. Então vem daí uma percepção de um novo mercado e de novos trabalhadores, de novas empresas em um novo modelo econômico, não é um novo modelo econômico, mas é um modelo econômico mais solidário que é o cooperativismo, vem daí a possibilidade dessas cooperativas ocuparem espaço nesse sistema de gestão de resíduo de maneira profissional, de maneira eficiente, com gestão transparente, sem reproduzir as lógicas que tangenciam, permeiam esse mundo da gestão de resíduos, criando de fato novas práticas nesse mercado de gestão de resíduos. Então o nosso trabalho hoje é muito pautado nesse processo de desenvolver capacidades, desenvolver habilidades, de levar ferramentas de gestão, de ajudar as cooperativas de catadores e outros empreendedores desse mercado de coleta seletiva e reciclagem também a se formalizarem, a fazerem parte de um mercado emergente, visível e que pode ser rentável e não ficarem operando na informalidade e na invisibilidade. Hoje o papel dessas organizações e o papel desses trabalhadores tem que ser reconhecido e tem muito a se fazer ainda em termos de política, de conhecimento, pra que de fato a gente tenha um modelo justo, um modelo que funciona, um modelo eficiente e descentralizado na área de gestão de resíduos que hoje é um tema emergente, sério, se a gente não cuidar a gente não vai morrer afogado em água porque a água está acabando, mas a gente pode morrer afogado em lixo, se a gente não cuidar desse nosso impacto. Tudo o que a gente consome tem algum impacto na natureza e consequentemente sobre a gente.
P/1 – Qual é o tamanho do problema do lixo hoje?
R – Hoje os indicadores do lixo crescem muito mais do que cresce a população. Têm dados que mostram que a geração e o próprio estilo de vida das pessoas, a maneira como a gente escolhe consumir alguns produtos e o processo de industrialização, ninguém mais quer ir à feira, todo mundo quer comprar um potinho pronto que você põe no microondas. Isso gera muita embalagem, gera muito resíduo, então o lixo cresce de maneira exponencial. Então como cuidar pra ter embalagens mais inteligentes, cadeias com ciclos fechados. Hoje a gente tem um desafio muito grande que é tomar cuidado com o rumo pelo qual a gente está escolhendo a nossa comida, enfim, se gera muito lixo, o lixo cresce mais do que a população e pra além disso. Enquanto a Europa e os Estados Unidos discutem o não envio de resíduos para os aterros sanitários, no Brasil a gente acabou de prorrogar lei que permite que os lixões, que é uma tecnologia, nem posso chamar de tecnologia eu acho porque eu acho que é um jeito de descartar resíduo muito impactante. Você pega e joga fora. Mas onde é esse fora? As pessoas acham que existe um fora e esse fora não existe, esse lixo vai parar num espaço de terra que embaixo tem um lençol freático, eu já vi isso em praias lindas, paraísos maravilhosos, por exemplo, como a Praia do Espelho com um lixão há menos de três quilômetros de uma das praias mais lindas do Brasil e um lixão que polui lençol freático, que pega fogo e pega queimar a floresta que está ali perto, então, o Brasil prorroga o prazo que está previsto em lei para que os municípios extingam os seus lixões enquanto o mundo discute o fim do envio do resíduo pro aterro e a promoção de cadeias mais cíclicas, mais fechadas. Então ele é um tema que eu acho que a gente tem negligenciado pra atender interesses de curto prazo de empresas, de outros setores que não querem de fato dialogar e estabelecer um consenso de como de verdade a gente vai resolver esse problema.
P/1 – E pra gente que não sabe muito você explica pra gente qual é esse conceito de economia linear e economia cíclica e como é que entra isso?
R – A economia linear é uma lógica onde você tem excesso de recurso natural que você extrai, produz bens de consumo, você tem excesso de recursos naturais, pensa que o planeta é infinito e não é, a gente já sabe isso hoje. Extrai esse recurso natural, produz um bem de consumo, alguém consome ele e depois você descarta e joga fora. É aquilo que eu te falei, você não sabe pra onde vai, tem a mágica do saco de lixo, as pessoas hoje estão acostumadas a colocar o saco de lixo na porta de casa e não sabe quem pega, que hora pega e pra onde vai. Essa desconexão das pessoas com os seus resíduos é um dos principais sintomas da nossa insustentabilidade, porque a natureza consegue, todo resíduo que ela gera, ela mesma gerencia, a folha cai e a folha vira solo de novo e a natureza se recicla. A gente projetou uma série de lixos e a gente tem que ser responsável por esse lixo também. Eu falo a gente, o cidadão, o consumidor, a empresa, o distribuidor, o comércio varejista, o conjunto de organizações que estão promovendo esse contato da sociedade de consumo com os seus produtos, então a gente tem que ser responsável por isso. E na economia linear vem muito essa lógica de extrai, consome e descarta. Na economia circular a proposta é que isso faça uma curva, né? Extrai, consome, destina, recicla, reaproveita, reinsere no mesmo ou num outro ciclo produtivo. Então como que a gente constrói de fato essa curva e quem são esses atores que vão ajudar a pavimentar essa estrada, ajudar a pavimentar esse caminho pra construir a economia circular? Então aí os catadores de materiais recicláveis que há mais de 50 anos desenvolvem, alimentam a indústria de reciclagem e têm um papel mais do que reconhecido nesse provimento de materiais recicláveis pra indústria, né? Como reconhecer o papel deles? Como fortalecê-los, como empoderá-los, as organizações de catadores? Como fazer com que isso gere satisfação econômica, gere uma renda adequada, tenha processos tanto normativos e regulatórios atendidos? Eu costumo falar não é porque a gente é cooperativa porque as cooperativas têm pessoas com uma certa vulnerabilidade, que elas estão além da lei. Elas têm que atender a lei, então como ajudar as cooperativas a atender a lei, a gerenciar as suas informações pra mostrar que sim, é possível, dá certo, tem resultado? Então o nosso papel é muito também de ajudar essas organizações com modelos inovadores de educação e com processos tecnológicos pra gestão desses dados ajudar as cooperativas a se consolidarem no mercado de gestão de resíduos.
P/1 – Você podia descrever a cadeia da reciclagem, um pouco, resumidamente, da indústria, onde entra esses catadores, onde entra a população pra fazer com que esse ciclo funcione.
R – A cadeia depende muito de cada material, né? Eu costumo dizer que é um tema muito apaixonante e muito complexo, são muitos mundos. Envolve política, envolve questões sociais, envolve questões econômicas, envolve questões de infraestrutura, envolve questões ambientais. É muito cheio de nuances esse mundo da gestão de resíduos, da coleta seletiva e da reciclagem. Então a gente precisa estabelecer certos recortes. Se a gente for falar da importância e do papel do consumidor, ele tem que mudar. A primeira coisa é mudar a sua relação, ressignificar a sua relação com o que a gente chama de lixo. A gente está muito acostumado a ir ao supermercado, a ir à lojinha ou a ir à feira e a escolher os nossos produtos. Só que quando acaba simplesmente a gente joga fora. Esse fora existe? Tem um foguete que pega esse material e leva pra Marte? Mesmo assim, a gente estaria fazendo certo se a gente estivesse levando pra Marte? Tem uma questão aí, o papel do consumidor. Então acho que o primeiro processo é cada indivíduo, o lixo tem a ver com todo mundo, todo mundo gera algum tipo de resíduo, seja esse resíduo biológico, seja esse resíduo material. Então começa nessa ressignificação das pessoas com a sua relação com o lixo e saber de onde vem e pra onde vai o que eu estou consumindo, que eu estou descartando. Então tem muito nesse pêndulo a ser trabalhado. Depois tem um processo que as prefeituras também têm que aprimorar a maneira como elas disponibilizam os dados, de como elas engajam a população, de como elas comunicam o funcionamento do sistema pra que as pessoas possam se ressignificar, ressignificar a sua relação com esses resíduos. A gente tem muito o que aprimorar nesse processo do poder público e na sua maneira de transparecer, de conduzir os processos de governança, do uso do dinheiro público, enfim, tem o papel do poder público muito sério também a ser feito. Tem o papel das empresas que produzem esses bens de consumo que também hoje segundo essa lei precisam investir, precisam auxiliar o poder público a criar novas lógicas e novas estruturas de funcionamento pra gestão dos resíduos. Então tudo isso tem que ser muito bem coordenado, tem as organizações de apoio do terceiro setor, as consultorias, enfim, o processo educacional que fomenta o trabalho das cooperativas de catadores. Tem o papel dos órgãos regulatórios, tem uma série de músicos nessa orquestra e o Governo tem que orquestrar isso mesmo, tem que ter um maestro aí pra equilibrar entre interesse, obrigação, direito, dever, de todas essas partes para que de fato a gente construa uma nova lógica de funcionamento dos sistemas de gestão de resíduos. Mas em termos de funcionamento técnico cada material tem um ciclo muito específico, a gente tem muitos tipos de plástico, mais de 200 tipos de polímeros plásticos, que cada um vai encontrar um caminho de reciclagem depois que ele é corretamente destinado. Outra coisa que tem que ser feita também nesse processo de coleta, separar o material de acordo com a tecnologia principal de reinserção dele numa nova cadeia. Então tem sempre aquele material que eu ainda não sei o que fazer, não tem uma tecnologia de reciclagem e que ele não pode ser compostado, então isso a gente chama de rejeito, infelizmente a gente ainda gera um percentual de rejeito das coisas que a gente produziu, isso tem que ser repensado, né? O rejeito não pode ser uma, simplesmente ele existe e ele vai continuar existindo. Na concepção desses produtos e desses serviços tem que se pensar o fim da vida desses materiais. Tem o que a gente chama de matéria orgânica que tem que ser compostável, o material compostável que é o que tem que ser utilizado ou pra gerar composto orgânico, ou pra gerar biogás, que tem uma série de tecnologias que estão disponíveis pra recuperar e reaproveitar o valor que está nesses resíduos. E tem os recicláveis. Nos recicláveis, que são os plásticos, papéis, metais, vidro, eletroeletrônicos, uma série de coisas que tem aí nesses produtos que a gente consome, eles têm diferentes cadeias produtivas. E a cooperativa tem um papel muito grande em separar e desmontar esses produtos, segregar eles por tipos, cor e características físicas, características químicas e reinserir nas cadeias produtivas. Então tem o papel muito importante das cooperativas de catadores nesse processo. E também tem o processo de desenvolver novas tecnologias e fomentar, facilitar, o desenvolvimento e a consolidação da indústria de reciclagem no país. Hoje é muito difícil, ela está muito concentrada no sul, sudeste e o resto do país não tem essa estrutura toda instalada, então às vezes para alguns materiais, pela nossa dificuldade logística e pelo custo logístico às vezes é quase impossível trazer esses materiais de volta pra indústria de reciclagem, então tem muito a ser feito ainda no estabelecimento desses elos e desse ecossistema da indústria de coleta seletiva e reciclagem no Brasil.
P/1 – Agora vamos voltar um pouco a nossa conversa pros cooperados e pros catadores. Primeiro uma perspectiva pessoal, você já conheceu muitos deles? Quais são as histórias das pessoas, alguma marcou você?
R – Já conheci muitos, muitos deles. Já visitei mais de duas centenas de cooperativas pelo Brasil e a cada cooperativa tem uma nova história, um brilho nos olhos, uma força e um empoderamento do ser dessas pessoas que acabam conseguindo viver tendo pouco, elas não precisam ter pra ser, elas são muito mais, são muito fortes. Enfim, me emociona até falar dos catadores, das pessoas que estão lá na cooperativa mesmo, lutando pelo seu ganha pão, vendendo o almoço pra comprar o jantar. Tem uma história que me marca muito que a gente acabou de perder a dona Selma, que foi uma catadora aqui em São Paulo que tem uma história de vida que quando ela me parava para contar tudo o que ela já tinha vivido e por tudo o que ela já tinha feito na vida pra sobreviver. Naquele momento ela estava dentro da cooperativa, era uma pessoa super comunicativa, participava dos diferentes grupos de discussão a respeito do tema. Dona Selma foi um exemplo de vida e de possibilidade de mudança, de ressignificação do indivíduo. Dona Selma morou na rua, usou drogas, mas nos últimos momentos que ela esteve entre a gente aqui na Terra foram de fato inspiradores pra todo mundo que teve a oportunidade de conhecê-la. Enfim, tem n outras histórias que a gente pode, em cada cidade tem uma história de um catador que superou desafios, superou esse processo de estar na exclusão da exclusão, ele está ali sobrevivendo do que as pessoas acham que não serve para mais nada, que às vezes as pessoas misturam num saco, fecham e acham que aquilo vai se desmaterializar. Mas os catadores veem valor, conseguem descobrir e colocar esse material de volta em ciclos produtivos, reinseri-los, mas precisam ainda de muito apoio pra que isso seja feito de uma forma mais segura, mais saudável e mais rentável pra que também consigam acompanhar o processo de evolução tecnológica, planejar seus empreendimentos pra ter infraestrutura tecnológica, processo de gestão, coisas que vão se tornar competitivas dentro desse caminho que a gente está seguindo nesse momento no mundo. Então acho que tem muito esse efeito no processo tanto educacional, educação de jovens e adultos, ajudar todos aprenderem a ler e a escrever, criar processos novos de aprendizagem, processos que incorporem, bem paulofreirianamente falando, processos que entendam a realidade, que entendam a dificuldade desses catadores e a partir das experiências concretas e das experiências de vida deles traga conhecimentos, adapte conhecimentos pra que a gente continue se consolidando e crescendo pra resolver um problema que só cresce também no mundo que é o tema, que é o lixo.
P/1 – Especificamente quais são as carências mais comuns dessas pessoas na hora de fazer uma cooperativa?
R – Eu acho que começa na autoestima, começa das pessoas, não porque trabalham com lixo se acharem lixo. Não são, pelo contrário, elas são muito mais super heróis do que quem se acha super herói e produz muito lixo. Então tem todo um trabalho de resgate de autoestima, ele começa no resgate de autoestima. O outro depois é tirar um pouco da dureza desse mundo, é um trabalho duro, não quero ser demagógico aqui e dizer que é uma coisa: “Ó que lindo, é um agente ambiental. Ó que lindo, trabalha”. Quem já foi num lixão, quem já acompanhou um catador na rua, quem já abriu um saco de lixo misturado e viu as pessoas ali mineirando materiais que têm valor sabe o quanto é duro esse trabalho, então eu acho que tem que ter menos romantismo nisso e assumir de fato, tirar o véu, colocar luz nessa sombra e unir forças pra conseguir estabelecer, criar um sistema onde de fato esses empreendedores, que são milhares, mais de 800 mil catadores pelo Brasil, cotidiana ou informalmente ou eventualmente coletando materiais, reinserindo nas cadeias produtivas que precisam de apoio tanto de melhorar essa coisa, catadores no lixão. Até hoje a gente tem uma coisa que é, no século XXI, pessoas trabalhando dentro de um lixão coletando materiais ali como animais. Tem muito dessa cultura que se estabelece nesse ambiente. Então eu tento me sensibilizar, tenho um processo de empatia de me colocar nesse lugar pra entender a dureza também. Às vezes a gente se sente agredido, às vezes o processo é duro, não é tão bonitinho e tranquilo e calmo como as novas tendências de relacionamento pregam, mas que ele está numa condição cotidiana muito dura, ele tem que dar uma cotovelada aqui, uma cotovelada ali pra conseguir pegar o material que vale mais. Então desconstruir essa cultura que vem do lixão e criar espaços de convivência, cooperativos, que de fato pensam o coletivo é uma transição muito lenta, que precisa de muito cuidado. Então enquanto tem uma pessoa trabalhando no lixão, que está trabalhando por ela, como indivíduo, ou um cara catando material na rua com a sua carroça, trazer isso pro campo de uma cooperativa que é o extremo oposto, que é o coletivo que está em questão, que são os valores coletivos, os processos coletivos que estão aqui é uma mudança que leva tempo, precisa de muita informação, de muito processo de relacionamento, de muita facilitação. Então é um processo de transição e entender os desafios dessa transição, que não é linear, é interativa, como que a gente leva, desde resgatando a autoestima até inovando processos educacionais porque as pessoas não estão acostumadas a lidar com PowerPoint, sentar uma olhando pra nuca da outra e ficar tendo processos. Nem a gente que tem anos e anos de banco de escola consegue, imagina alguém que nunca ou que foi muito pouco pra uma escola ter que passar por um processo como esse. Então eu acho que tem desafios tanto de inovação de quem se diz técnico, de quem trabalha na área educacional pra conseguir entregar pra essas pessoas conhecimento na velocidade que elas precisam. Porque senão a gente vai perder o bonde da história e não vai conseguir se consolidar de fato e aproveitar as oportunidades que esse mercado que está emergindo a partir da Política Nacional de Resíduos Sólidos se consolide com a participação das cooperativas de catadores. Então acho que tem desde do processo de autoestima até a questão de aprimorar processos técnicos de gestão, processos de inteligência do normativo, do regulatório, do planejamento, seja planejamento operacional do galpão, seja o planejamento do negócio social, da visão de futuro de uma cooperativa. O planejamento e a diversificação dos produtos e serviços que uma cooperativa pode oferecer pra sociedade, mesmo se diversificar, interagir e não também buscar o apoio da assistência social, pessoal da prefeitura, mas sim entender como empreendedor, como um serviço essencial pra sociedade e que deve ser reconhecido e remunerado por isso. Não estamos pedindo favor, não é assistencialismo, tem que ser um reconhecimento de um serviço, de um trabalho que é executado e que é colocado em prol do desenvolvimento sustentável. Então eu acho que tem também que se criar traduções e essas linguagens pra todos os públicos. Quando eu falo isso eu não falo só da necessidade de conhecimento de mudança de percepções dos catadores, mas também dos técnicos, das empresas, dos gestores públicos. Acho que a gente tem que mudar essa visão de certo e errado pruma visão de como a gente faz junto, qual é o consenso que a gente estabelece e menos de esquerda e direita, azul e vermelho e certo e errado, mas como que juntos a gente alcança um objetivo comum que é conseguirmos deixar esse planetinha aqui saudável por mais um tempo. Então tem muito a mudar na maneira como as pessoas encaram a política, o mundo, os desafios, as coisas como elas estão acontecendo. Tem muito desafio, a gente precisa de fato de uma atualização no modelo de governança, modelo político no país, seja ele modelo político, a governança do Estado, seja ele do lado das empresas, essa visão às vezes predatória, ‘tenho que produzir, tenho que vender’, mas e aí? Tem coisa a ser mudada em todos os espectros da sociedade.
P/1 – E nesses anos que você vem trabalhando com isso você percebe uma mudança das empresas, do governo, os cooperados? Pra onde está indo?
R – Muita mudança. Tem muita mudança que vem acontecendo, às vezes numa velocidade menor do que eu esperaria, eu acho que por falta de engajamento, por ser um tema novo, por falta de uma padronização dos modelos e das propostas eu acho que a gente ainda vem num modelo meio errante, mas eu acho que muita coisa vem mudando. Muita coisa vem mudando desde essa percepção de autoestima do catador, que hoje é uma categoria reconhecida no Código Brasileiro de Ocupações, das cooperativas. Eu acho que ainda nesse aspecto tem que mudar como são os meios, são as ferramentas. Já se mudou a percepção, já mostrou-se que é possível e a gente publica uma série de conteúdos, uma série de conhecimentos a respeito disso, mas a gente precisa ainda mudar essas ferramentas. A gente tem exemplos onde se a cooperativa foi fundada pelo partido A, quando o partido B assume o poder ele elimina aquela cooperativa porque ela é do partido A e não do partido B, então eu acho que tem que se mudar essa percepção e a cooperativa não é de partido nenhum, ela é da sociedade, ela é dos catadores primeiramente e depois ela está prestando um serviço essencial pra sociedade, não é voto que ela provém, ela provém serviços de reintegração de materiais na economia circular e não votos pro candidato A ou B. Eu acho que tem muito que se mudar também dessa conquista de direitos, dessas conquistas de espaços e não ficar à margem das vontades do candidato A ou do candidato B. Muito se mudou, muito se avançou, muito evoluiu, mas muito ainda tem que evoluir, que avançar. E eu acredito que isso nunca vai parar, na verdade a inovação tem que estar presente em tudo isso porque vai mudar a embalagem, vai mudar o sistema, vai mudar a maneira como as pessoas se relacionam no contexto da cidade e a gente em que estar preparado pra lidar com este dinamismo. Eu acho que o que tem que mudar também é essa nossa busca só pelo ambiente estável pensado, pré-definido. A dinâmica e a capacidade de interagir, de se adaptar a essas mudanças que cada vez vão ser mais frequentes têm que se estabelecer. Eu acho que tem que mudar é a nossa relação com isso, com o estável e com o dinâmico, tem muito a ser feito nesse processo também. E muito conhecimento é necessário pra isso, né? Conhecimento, força, articulações, uma série de coisas é importante pra que a gente lide de forma equilibrada nesse dinamismo.
P/1 – E agora passar para umas perguntas finais, que o nosso tempo está acabando já. Pra você, como que a reciclagem mudou a sua vida?
R – Como a reciclagem mudou a minha vida? Mudou muito a minha vida, mudou toda uma ideia que eu tinha de carreira, que eu ainda não sei se eu tenho, mas me reciclou. Na verdade eu não fui reciclado porque se eu fosse reciclado eu voltaria pro mesmo ciclo, não sei como eu poderia dizer, fui renovado, enfim. Meu conhecimento em Farmácia e minha formação em pensamento sistêmico me ajudou muito depois. Um tempo atrás eu comecei a fazer uma reflexão sobre isso, eu sou farmacêutico, mas o que isso me dá de condições, conhecimento técnico pra trabalhar na área de resíduos? Eu acho que cada corpo humano acaba sendo um mundinho em si e é um sistema. E o pensamento sistêmico, eu acho que ter estudado Farmácia e Bioquímica me ajuda muito a fazer essa correlações entre o nosso corpo e eu como mundinho pequenininho que sou e o macro dos mundinhos que se estabelecem, do mundão que está aí e desse processo, dessa dinâmica que a gente tem a cada dia dentro de nós mesmos. Então acho que a reciclagem mudou e vem mudando a minha vida em vários aspectos, a minha maneira de olhar o mundo, as habilidades que eu tenho que colocar a serviço desse mundo, as competências que eu ainda tenho que desenvolver, a percepção das fragilidades e das minhas incapacidades me mudou muito e ainda vem me mudando, então eu acho que é uma área que me encanta, me engaja porque eu acho que é isso, é o novo o tempo todo.
P/1 – E agora voltando só rapidinho pro pessoal, você trabalha hoje na Giral, é isso?
R – Hoje eu trabalho na Giral Viveiro de Projetos, na New Hope Ecotech e no Viveiro Inovação Social. São três organizações que a gente vem criando e reinventando essas organizações também. A Giral é focada na área de educação, tecnologias inovadoras pra gestão e educação nessa área de projetos sociais, projetos socioambientais, tanto na área de resíduos como na área de geração de renda, Amazônia, desenvolvimento local, então, a gente está focando muito nesse processo de que metodologias, mecanismos inovadores que a gente utiliza pra fortalecer o ecossistema de empreendimentos sociais. O Viveiro é o espaço que administra tudo isso, a gente acabou de criar um laboratório de inovação social onde essas organizações convivem ali. E a New Hope está trazendo tecnologia pra área de gestão de resíduos, tecnologia e big data, a internet das coisas, pra área de gestão de resíduos, então a gente acaba nas interações, nas aproximações que a gente vai tendo, criando novas organizações que vão ficando especializadas em frentes distintas, diferentes em torno do mesmo tema, que é a gestão de resíduos.
P/1 – E você disse que estava sócio de hostel, como é que você está em São Paulo hoje, o que você faz?
R – Eu fico em São Paulo, eu acho que eu ainda estou em São Paulo porque eu não tenho carta, nem carro, eu não dirijo, eu moro perto do meu escritório, eu levo cinco minutos caminhando pra chegar, interajo com a praça, com o vizinho, com todo mundo que está nesse caminho. Eu acho que eu estou conseguindo praticar um estilo de vida no qual eu acredito, às vezes eu cometo alguns deslizes, mas também perfeição não existe, não tenho o manto da pureza, então eu acho que... Estou em São Paulo conhecendo muita gente. Estou em São Paulo, mas não estou em São Paulo, eu viajo muito, trabalho no Brasil, na América Latina, viajo pra conhecer outros sistemas na Europa, sistemas de gestão de resíduos. Eu passo aqui pra lavar roupa de vez em quando, pra trocar de mala, mas a gente está encontrando uma série de alianças, uma série de conhecimentos complementares, de habilidades complementares pra entregar soluções pro mundo e não estou pensando também em mim, estou pensando que legado que a gente vai deixar, o que a gente está mudando nesse ecossistema todo e nesse oceano que é esse tema da gestão de resíduos. Então a gente está estabelecendo uma série de articulações, parcerias, pra tentar entregar soluções para os diferentes atores impactados ou responsáveis pelo tema, não só em São Paulo, mas também no Brasil.
P/1 – E quais são seus sonhos hoje?
R – Os meus sonhos hoje? São conseguir de fato comprovar que um pouquinho, um pedacinho, se eu conseguir comprovar que 50% das nossas crenças que dá certo, que dá pra fazer e conseguir estabelecer um ambiente de diálogo harmônico, focado, consensuado, que seja diverso, se a gente conseguir estabelecer algum consenso nesse contexto multiverso, bem diverso que a gente atua, trabalha, vai ser, eu acho que vou realizar... Eu já realizei muitos dos meus sonhos, eu acho que eu estou ainda tentando perceber qual é. Meu sonho de fato é conseguir provar que as cooperativas são capazes. E a gente acabou de mostrar, de conseguir parcerias pra colocar uma cooperativa dentro de um Centro de Distribuição de Resíduos e agora acho que o meu maior desafio pra além do sonho é conseguir provar que é possível que uma cooperativa participe e desenhe um novo modelo de gestão e gerenciamento de resíduos no Brasil e no mundo.
P/1 – Como é que foi contar a sua história?
R – Foi legal. Gostoso.
P/1 – Tá certo então, obrigado.
R – Obrigado.
FINAL DA ENTREVISTA
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