P/1 – Nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Meu nome é Roberto Laureano da Rocha. Minha data de nascimento é quinze de setembro de 1974. Sou natural de São Paulo, nascido em uma cidade chamada Poá.
P/1 – E você tem algum apelido?
R – Eu tenho um apelido que o pessoal conhece, Golfinho. Há um tempo atrás eu era chamado por Golfinho Periferia; nesse tempo todo de trajetória eu mexia, trabalhei… Também fui envolvido no hip-hop, no rap. Antes de estar envolvido no hip-hop, quando moleque, eu gostava de lagoa. Nadando nas lagoas da nossa cidade, do município em torno o pessoal chamava: “Ô Golfinho, ô Golfinho”. Depois, quando fui para o rap virou MC Golfinho Periferia, aí ficou essa coisa de Golfinho.
P/1 – Fale para a gente o nome completo dos seus pais.
R – Meu pai [se] chama Alfredo Pinto da Rocha e minha mãe, Iraci Laureano da Rocha.
P/1 – E de onde eles são?
R – Meu pai é do Rio de Janeiro, cidade mesmo do Rio de Janeiro, e minha mãe é de Minas Gerais, Belo Horizonte. Ambos muito cedo vieram para São Paulo em busca de trabalho, de uma vida melhor; essa questão de São Paulo ser o local para trabalho. Os meus avós, na verdade, os trouxeram muito cedo para cá.
P/1 – E você sabe como eles se conheceram?
R – Eles se conheceram… Meu pai, ele… Quando eles vieram, vieram direto para Poá. Meu avô por parte do meu pai, quando chegou em São Paulo, conseguiu trabalhar na Central de Trens, na ferrovia. Meu avô por parte da minha mãe era pedreiro. O meu avô, nesse trabalho, conseguiu comprar alguns terrenos e meu avô construía, aí os avós começaram a se conhecer. Meu pai e minha mãe já se conheciam, aí veio esse conhecimento, o namoro. Depois casaram e eu estou aqui.
P/1 – E quantos filhos tiveram?
R – Três filhos.
P/1 – Você é qual? O mais velho, mais novo?
R – Sou mais...
Continuar leituraP/1 – Nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Meu nome é Roberto Laureano da Rocha. Minha data de nascimento é quinze de setembro de 1974. Sou natural de São Paulo, nascido em uma cidade chamada Poá.
P/1 – E você tem algum apelido?
R – Eu tenho um apelido que o pessoal conhece, Golfinho. Há um tempo atrás eu era chamado por Golfinho Periferia; nesse tempo todo de trajetória eu mexia, trabalhei… Também fui envolvido no hip-hop, no rap. Antes de estar envolvido no hip-hop, quando moleque, eu gostava de lagoa. Nadando nas lagoas da nossa cidade, do município em torno o pessoal chamava: “Ô Golfinho, ô Golfinho”. Depois, quando fui para o rap virou MC Golfinho Periferia, aí ficou essa coisa de Golfinho.
P/1 – Fale para a gente o nome completo dos seus pais.
R – Meu pai [se] chama Alfredo Pinto da Rocha e minha mãe, Iraci Laureano da Rocha.
P/1 – E de onde eles são?
R – Meu pai é do Rio de Janeiro, cidade mesmo do Rio de Janeiro, e minha mãe é de Minas Gerais, Belo Horizonte. Ambos muito cedo vieram para São Paulo em busca de trabalho, de uma vida melhor; essa questão de São Paulo ser o local para trabalho. Os meus avós, na verdade, os trouxeram muito cedo para cá.
P/1 – E você sabe como eles se conheceram?
R – Eles se conheceram… Meu pai, ele… Quando eles vieram, vieram direto para Poá. Meu avô por parte do meu pai, quando chegou em São Paulo, conseguiu trabalhar na Central de Trens, na ferrovia. Meu avô por parte da minha mãe era pedreiro. O meu avô, nesse trabalho, conseguiu comprar alguns terrenos e meu avô construía, aí os avós começaram a se conhecer. Meu pai e minha mãe já se conheciam, aí veio esse conhecimento, o namoro. Depois casaram e eu estou aqui.
P/1 – E quantos filhos tiveram?
R – Três filhos.
P/1 – Você é qual? O mais velho, mais novo?
R – Sou mais velho. Tem minha irmã, a Francelina, que é a mais caçula, e o irmão do meio, que é o Cláudio.
P/1 - Você sempre morou em Poá na sua infância?
R – Eu sempre, nasci e fui criado em Poá. Morei em um bairro chamado Vila Amarela, na cidade de Poá. Na verdade, toda a minha infância de trabalho com o meu pai sempre foi morando nesse bairro. Hoje, depois que eu casei, é que estou morando em outro bairro, em outra localidade na cidade de Poá.
P/1 – Você contou que gostava de nadar nas lagoas. Do que mais vocês brincavam? Conte para a gente um pouco da sua infância lá em Poá, nesse bairro.
R – Certo. A brincadeira era da molecada, era jogar bola, jogar pião, bolinha de gude, empinar pipa, correr, essa que é a brincadeira. Depois veio essa brincadeira de nadar, de ir para as lagoas e ficar um bom tempo. Dei muito trabalho para os meus pais nessa coisa de ir para as lagoas, eles ficavam preocupados. Inclusive meu pai, até uma época ele até... Como se fala? Tirou uma parte da renda que nem podia tirar, me colocou em uma [escola de] natação, com medo de eu ir para a lagoa. Tinha muitos amigos meus que iam para a lagoa e hoje já não estão no nosso meio por conta disso, iam para a lagoa sem saber nadar e morreram.
A brincadeira era bastante essa. Outra brincadeira era desde pequeno, já vinha essa coisa no sangue de catar latinha. Era uma brincadeira para a gente, a gente ia tomar tubaína, comprar um refrigerante, alguma coisa assim; a gente precisava se virar e uma das brincadeiras nossas era juntar papelzinho e levar no ferro-velho e trocar, pegar esse dinheiro e conseguir comprar um refrigerante, um lanche, sanduíche, alguma coisa. É isso.
P/1 – Fale um pouco sobre a atividade do seu pai.
R – Meu pai, desde que eu o conheço como pai, ele é jardineiro. Ele começou muito cedo, meu avô conseguiu colocá-lo na prefeitura de São Paulo. Ele trabalhou como ajudante, ele muito pouco trabalhou como ajudante de jardinagem na prefeitura. A partir daí, começou a pegar um grande amor por essa profissão, ele tem muito amor por essa profissão de jardineiro. Ele começou a fazer uns trabalhos assim, ia à prefeitura, às casas de jardinagem. Comecei a acompanhá-lo também nesse trabalho, muito cedo - acho que com oito, nove anos de idade; comecei a acompanhá-lo para trabalhar, aprender a plantar grama, podar as árvores.
Meu pai tem… Eu não me recordo muito bem quanto tempo de trabalho ele tem. Sei que ele aposentou nessa atividade e ainda vive assim, fazendo uns trabalhinhos nas casas, dessa atividade.
P/1 – E a escola? Você lembra da primeira escola? Onde você estudou?
R – Eu estudei em uma escola na vila chamada Margarida de Camillis. É uma escola na Vila Amarela. Foi minha escola da primeira até a oitava série.
Uma coisa que meus pais nunca deixaram foi a questão do estudo. Eles batalharam muito e mesmo assim meu pai nunca deixava, por exemplo, em horário de escola eu ir trabalhar junto com ele. Tinha que trabalhar junto com ele, achava que era importante; eu também achava importante, mas a escola era prioridade para os meus pais.
Da primeira à oitava série foi nessa escola, Margarida de Camilles. Aí veio um pouco essa fase de rebeldia, eu dei um tempo de escola. Comecei a pensar em arrumar um trabalho, ir para a gandaia, outras amizades e começou uma outra vida. Essa escola foi… Esse tempo da primeira à oitava série foi muito bom.
P/1 – Você se lembra de alguma professora em particular, alguém que tenha marcado essa época?
R – Tem muita gente. Tem uma professora que o tempo todo acho que contribuiu muito, chegou muito junto. Ela [se] chamava Dona Ivani, foi minha professora de segunda série. Depois a gente se via, acompanhou muito a trajetória da minha vida. Foi uma pessoa que abriu muitos espaços; até depois da minha queda, [da] minha levantada, ela sempre esteve junto, ajudou, colaborou. Depois ela virou diretora dessa escola. Dona Ivani foi uma pessoa que marcou bastante nesse processo da minha vida.
P/1 – Você estava falando que chegou um momento você quis parar de estudar para trabalhar, é isso?
R – É. Chegou um momento que eu estava meio… Não sei bem, meio confuso com tudo, com todas as coisas, até que… Um momento de frequentar baile, ir para os bailes.
Eu disse para você, comecei a entrar nessa onda de cantar rap, aí veio um pouco uma fase um pouco… Meio confusa da minha vida. Parei, dei uma parada de estudar. Queria mais, na verdade, namorar, ficar, ir mesmo para as baladas à noite - um pouco sem responsabilidade mesmo, beber umas cachaças a mais. Foi essa época que dei uma parada nos estudos e comecei por esse caminho.
P/1 – Conte para a gente então do rap, do hip-hop. Como você começou a mexer com isso?
R – O rap… Meu sangue, eu sempre tive essa coisa dentro de mim, de autonomia, era uma coisa minha mesmo. Quando moleque, a gente tinha um time de futebol. A gente sempre… Eu que agitava para a gente fazer coisas diferentes. Quando a gente tinha… Qualquer coisa que acontecia eu sempre fui o cara que pensava umas coisas meio diferentes.
Teve uma época que eu lia muito gibi e queria também fazer os desenhos de gibi; eu sempre tive uma coisa meio agitada dentro de mim. Nessa época de balada, por conta dos anos 80, eu curti… Eu ia para o baile mas, para mim, só o baile não estava legal. Era [os] bailes black que eu sempre curti, e nesses bailes black sempre tinha shows de rapper mesmo, de cantores que iniciaram esse movimento, DJ Hum. Aí me veio também: “Opa, vou fazer uma coisa diferente aí.” [Teve] um pouco a vontade de estar nas paradas de sucesso.
A gente montou um grupo que [se] chamava Dimensão Black, um grupo de rapper que era eu… Éramos três amigos de baile. [Com] esse grupo a gente fazia shows, só que só o grupo para nós não estava legal; a gente começou a discutir umas questões mais políticas mesmo, questões raciais, questões da juventude. [A gente] começou a politizar os nossos trabalhos.
Foi uma época… Isso me ajudou bastante. Acho que a formação do hip-hop me ajudou bastante em muitas coisas, em pensar algumas coisas diferentes. Só que não tinha sustentabilidade esse caminho. A gente cantava, vivia, a gente até conseguia conscientizar muita gente com as nossas músicas, só que a gente não tinha sustentabilidade com isso. Todos nós continuávamos na mesma situação, sem dinheiro no bolso, muitas vezes sem o recurso para se deslocar. Isso motivou um pouco esse grupo a acabar, porque a gente não tinha uma sustentabilidade para tudo isso.
P/1 – Você tinha quantos anos, mais ou menos, nessa época?
R – Tinha meus… Tinha aproximadamente, nessa época, uns dezenove anos, porque com vinte anos eu, também nessa balada toda, conheci minha esposa. Tive meu filho e começou outro estágio da vida.
P/1 – E nesse período do rap, você conciliava isso com o trabalho ou só se dedicava ao rap?
R – Não. Nessa época, eu não tinha trabalho.
Alguns anos antes, dos meus nove até meus doze anos eu trabalhei mais com meu pai na jardinagem. Depois dos doze anos, meu pai mesmo conseguiu um trabalho para mim em uma oficina mecânica, uma oficina chamada Paulinho Mecânica. Comecei a trabalhar nessa oficina de mecânica, trabalhando até muito bem; conhecia bastante sobre mecânica de carro, sempre fui uma pessoa muito esforçada onde eu entrava. Só que com meus dezessete, dezoito anos, comecei a entrar nessa vida de bagunça mesmo, de achar que precisava arrumar outra coisa. Sei lá o que deu na minha cabeça, uma loucura toda. Foi nesse tempo que entrei no mundo do hip-hop.
P/2 – Como eram esses bailes de hip-hop?
R – Era muito bom.
P/2 – Vocês se apresentavam?
R – Nós tínhamos muita apresentação. A gente vinha… Aqui em São Paulo tem um lugar bem histórico [pro] hip-hop na [Rua] São Bento, então a gente vinha na São Bento. Esse grupo que nós tínhamos, Dimensão Black, se apresentava nos bailes, nas festas mesmo. Tinha os MC’s, que era eu e o outro que cantava, tinha o DJ, a pessoa que faz a sonorização com os discos e os dançarinos, breakers, que dançavam o break. Esse grupo percorria vários bailes e algumas vezes fazia shows, fazia abertura de shows para grupos que na época não eram famosos e hoje são famosos, por exemplo, o pessoal do MN, o próprio pessoal do Racionais. Nessa época eles eram que nem a gente, hoje que são mais.
P/1 – E isso foi em que época, mais ou menos?
R – Ano, você diz?
P/1 – É, em termos de anos.
R – 90, 90 em diante, por aí. Não me recordo assim, de mente.
P/1 – Você falou que conheceu sua esposa, teve filho, casou.
R – Minha esposa também era rapper, [ela] era de Guaianazes. Ela tinha um grupo chamado Black Girls. Nós nos conhecemos, cantamos, fizemos bastantes shows juntos, e [depois de] muito namoro veio a gravidez. Aí começamos a viver uma outra vida. Nessa época, da gravidez da minha esposa, a gente começou a pensar um pouco mais sério na _______, uma criança na jogada.
Em um primeiro momento, [quando] minha esposa teve a gravidez, nós não tínhamos um lugar para morar nem nada. Ela vivia na casa da mãe dela, eu vivia na casa dos meus pais. Meu pai, mais uma vez, foi um paizão, viu uma casa para a gente; a gente foi morar nessa casa, onde a gente vive até hoje. Uma casa bastante simples, mas é o lugar que agora a gente está construindo. Até então, era um lugar bastante simples mesmo.
P/1 – Você estava falando que a questão do rap não dava aquela sustentabilidade. Você casado, com filho, como fica essa questão financeira, de manutenção da família?
R – Foi uma época [em] que vieram vários conflitos. Veio a questão do desespero por conta de tudo isso, eu comecei a entrar muito no alcoolismo, bebia muito mesmo. Tinha vezes [que] a minha esposa ia me buscar na rua porque eu bebia muito, bebia bastante mesmo. [Estava] meio desesperado, não sabia o que ia fazer. Vinha um monte de coisa na minha cabeça, era essa coisa de currículo, não dava nada certo e vinha um pouco essa coisa na minha cabeça, até de roubar mesmo. Teve uma fase dessa época da minha vida que eu acabei mexendo com drogas também, mas todo esse espaço de tempo...
P/1 – Mexendo, usando ou traficando?
R – Usando. Na verdade, estava andando que nem um caranguejo, bastante para trás. Dormia na rua, e começou essa coisa, esse desespero mesmo. Nesse tempo, consegui uma ajuda, consegui um emprego em uma empresa, de ajudante geral. [Era] uma empresa de tubos, [se] chamava Tubotec essa empresa, em Poá mesmo. Trabalhei um bom tempo lá, mas veio a tecnologia, começou a trocar os homens pelas máquinas e, como tudo, arrumei mais um desemprego na minha vida. Foi mais um sofrimento, mais uma… Foi bastante difícil esse momento. Fiquei um bom tempo desempregado, batendo a cabeça. O que ia fazer? As coisas acabando dentro de casa, despesa… Vivi um bom tempo com ajuda de igreja, cesta básica, essas coisas todas, e veio essa questão de pegar um carrinho, ir para a rua e coletar material.
P/2 – Como que veio?
R – Isso veio do desespero, precisava fazer alguma coisa. Eu tinha duas opções: roubar e ser mais um na estatística dos latrocínios ou ser um trabalhador, embora ainda não viesse na minha cabeça muito claro o que era ser um catador de material reciclável. Isso para mim também foi difícil, porque era visto como última coisa na vida de uma pessoa. Mas eu precisava trabalhar, precisava dar o leite do meu filho, nessa época já com uns quatro anos, e fui para a rua coletar material.
Veio toda essa vida minha de catador de material reciclável nas ruas. Comecei, na verdade, a me adaptar a essa realidade, embora muitas vezes preferisse estar coletando material tomando uma cachaça, até para esquecer os problemas. E a forma que eu achava que a sociedade me via, porque passei por várias questões coletando material. As pessoas, as crianças mesmo tratavam a gente meio mal, os moradores chamam a gente de “burro sem rabo”, “o homem do saco”. Parecia que a gente era um monstro fazendo esse trabalho, desenvolvendo essa atividade.
P/1 – E você via como uma coisa temporária para arrumar outro trabalho ou realmente já tinha ideia de ficar?
R – A princípio, eu não tinha perspectiva. Eu achava que precisava coletar para sobreviver, arrumar um dinheirinho para chegar em casa pelo menos [com] o leite do filho, [pagar] algumas despesas. Era mais isso, não tinha essas expectativas de grande negócio, nada disso aí. Fui mesmo por conta da sobrevivência e também tinha essa expectativa de arrumar um trabalho.
P/2 – Você vendia o material, o que você fazia nessa época?
R – Foi interessante, porque nessa época eu já tinha conversado com outras pessoas que viviam, que estavam quase igual, nessa mesma realidade que eu. Acho que tudo foi providência de Deus mesmo.
Outras pessoas estavam na mesma realidade que eu, todos necessitando. Nós falamos o seguinte: “Vamos para a rua catar papel, só que nós não vamos vender para ferro-velho não! Nós vamos vender esse material para outro canto.” Acho que eram três colegas, nós mesmos fizemos nosso primeiro carrinho e fomos para juntar esse material.
Nas primeiras vezes, nós tivemos que vender esse material para o ferro-velho porque era muito pouco, só que os quatro que estavam envolvidos já tinham uma certa vontade de trabalhar juntos. Nosso trabalho era assim: juntava esse material entre nós e arrumávamos um lugar para vender, mas não pensávamos em cooperativa, montar associação, nada disso. A gente precisava sobreviver, era pegar o dinheiro e ratear entre nós, para a gente sobreviver. Era um pouco assim nosso trabalho.
P/2 – Por que não vender para o ferro-velho?
R – A gente via muita exploração com o ferro-velho, os caras exploravam muito mesmo. Tem umas malandragens de balança; por exemplo, você leva o seu material lá, eles mexem na balança. Dá uma diferença muito grande.
Você não pode reclamar dessa coisa porque eles têm o carrinho, você não tem. Só por conta de um carrinho que você não tem, aquilo vira uma ferramenta do ferro-velho para te comprar. Tudo isso nos levava um pouco a não vender para o ferro-velho, sendo que a gente já tinha meio claro na nossa ideia que a gente podia passar isso para alguém que não seria… Pelo menos, seria um pouquinho mais que o ferro-velho. Nem pensava: “Ah, vou passar esse material para indústria.” Não pensava, pensava que podia passar para alguém e dar uma melhoradinha na venda, na compra do nosso material.
P/1 – E como vocês foram atrás dessas pessoas para comprar, já que vocês não queriam ferro-velho?
R – Sim, era uma estratégia meio louca. Tinha sempre um que ia lá no ferro-velho, um espião, e pegava os números no caminhão. Nas caçambas de caminhão tem número das empresas, a gente comprava cartão telefônico e entrava em contato com o pessoal. “Como é?” O pessoal vinha ver.
Nem sempre dava certo, porque o volume que a gente tinha era muito pequeno, mas quando dava certo a gente vendia direto para a pessoa que comprava por um preço um pouquinho melhor. Isso tudo a gente juntava na casa de um amigo, juntava na casa do ________ desse grupo, e a gente sempre fazia as coisas meio que no coletivo, entre nós mesmos.
Todos que estavam nesse conjunto tinha problemas familiares. Acho que a partir desses momentos foi muito bom, porque a gente começou a enxergar o outro lado, a gente trocava muita ideia sobre essa coisa da… Esses problemas que a gente tinha na rua, a gente conseguia entre si se acertar e clarear a mente. Porque não era fácil, a vida na rua é difícil, a vida coletando, debaixo de sol e chuva.
Fora isso, Poá é uma cidade pequenininha, então todo mundo conhece todo mundo. Eu sou nascido e criado na cidade, então muitas pessoas, familiares mesmo, quando me viam com a carroça, puxando material, achavam que aquilo era… Tinha uns que nem cumprimentar me cumprimentavam, achavam que eu tinha caído, descido demais no buraco. Para mim foi muito difícil passar essa fase, você via pessoas da sua própria família não te reconhecerem, ou então, se reconheciam iam... Para o meu pai também; embora a profissão do meu pai seja bastante difícil, foi difícil para ele entender [que eu era] catador de material reciclável. Muitas vezes falava: “Vamos trabalhar em jardim, vamos limpar jardim.” “Ah, não, pai. Eu quero catar papel mesmo.” Teve todo um… Uma dificuldade de familiares e de amigos quando começaram a me ver coletando material na rua mesmo. Foi interessante superar tudo isso e hoje a visão é diferente; principalmente, aqueles que me criticavam muito hoje me colocam... É isso aí.
P/1 – E Roberto, conte um pouco para a gente como era, ou como é ainda, a abordagem da recolha do material. Como vocês fazem?
R – Em um primeiro momento… Na verdade, quando eu coletava material, nós juntávamos… Na verdade, é assim: quando eu comecei a falar um pouco desses quatro, nós juntávamos só que o que eu coletava e os outros três coletavam. A quantidade que cada um coletava era o que nós recebíamos, embora o material fosse vendido no conjunto. Mas se eu coletava tanto, e essa coleta que eu fazia era na frente de um comércio, muitas vezes até abria o saco de lixo da casa da Dona Maria, que ela colocava para fora.
Era uma coisa assim, nós não chegávamos, não tinha esse contato com ninguém. As pessoas colocavam para o lado de fora o seu material, o seu lixo; junto com o seu lixo tinha os recicláveis. A gente ia lá, coletava os recicláveis. Isso passou, desses quatro, isso aumentou na conversa na rua, no dia a dia, porque entre os catadores… A gente tem uma amizade na rua, muita amizade; ou é amizade de conversa ou amizade de copo mesmo. A gente parava no boteco na hora do almoço e trocava uma ideia, essas conversas, essas ideias que a gente tinha a gente conversava com os outros companheiros. Chegava um, chegava outro, chegava mais um.
Esse grupinho começou a aumentar, esse grupo de catadores começou a aumentar naturalmente. Sempre assim, a lógica era essa: tudo na caneta, não tinha nada de computador, nada disso, era confiar em quem estava com a caneta. Juntava o material, só que sabia que o Roberto trouxe tanto, o Wilson trouxe tanto, João trouxe tanto e a gente recebia por aquilo, só que saía por um precinho um pouquinho melhor.
Começou a aumentar o número de pessoas. Pessoas da comunidade que estavam na mesma situação difícil começaram a participar do processo, principalmente mulheres catadoras, elas foram muito importantes nesse processo nosso. Quando nós fomos dar conta, abrir o olho para entender onde estávamos, o que estávamos fazendo, já tinha em torno de quinze, vinte pessoas. Nós nunca tínhamos [pensado] assim: “Vamos fazer isso para montar uma cooperativa.” Não era nada disso, tínhamos na nossa cabeça que “vamos trabalhar”, e quando fomos dar conta, já tinha essa quantidade de pessoas envolvidas no processo, o negócio está tomando um caminho maior. [Pensamos:] “Que trem é esse?”
Por ironia do destino eu estava em uma coleta, e nessa coleta que eu estava fazendo encontrei um jornal que [se] chama Jornal Povo da Rua. Esse jornal estava falando um pouco da população de rua daqui de São Paulo e relatando um pouquinho da questão de organização de catadores, que na época era a COOPAMARE [Cooperativa de Catadores Autônomos de Papel, Aparas e Materiais Reaproveitáveis], relatando um pouco essa história. Vimos, levei para o pessoal: “Que legal os catadores [se] organizarem, fazendo trabalho de organização!”
Sentamos, começamos a conversar: “Vamos lá ver esse trabalho.” Não tinha dinheiro, não tinha nada. A gente pedia dinheiro emprestado, passava debaixo da catraca de ônibus, mas a gente foi. Várias vezes nós viemos pra São Paulo, [no] maior sufoco, maior fome para conhecer essas coisas, essas realidades. Viemos aqui em Pinheiros conhecer a COOPAMARE e começou a dar uma luz para nós - o que a gente deveria fazer, que trem que a gente tinha que fazer.
Começamos a levar essas realidades para lá, falamos: “Vamos montar uma cooperativa entre nós, uma organização.” Levei toda essa história de organização entre nós. A partir dessa… [De] discutir essa coisa de organização, veio também essa ideia nossa da sociedade conhecer o nosso trabalho, porque a sociedade tinha que… Começamos a entender um pouco a importância do nosso trabalho para a sociedade na questão ambiental, na questão da geração de trabalho e renda do município, da questão da cidadania - tem muitos companheiros como eu que viviam no mundo do alcoolismo, hoje não estão mais, não querem nem saber mais dessa história de alcoolismo. Então: “Opa, vamos também mostrar para a sociedade que nós existimos.” Veio essa coisa de pensar em um programa de coleta seletiva.
A CRUMA [Cooperativa de Reciclagem Unidos pelo Meio Ambiente] tem uma… Antes dessa coisa do programa de coleta seletiva veio toda essa história. “Vamos pôr um nome nessa cooperativa.” Veio um monte de companheiros, deram um monte de sugestões de nomes. Uma dessas sugestões foi [dada por] um dos companheiros de trabalho, foi esse nome CRUMA, que é Cooperativa de Reciclagem Unidos pelo Meio Ambiente. Foi a primeira coisa que surgiu no nosso meio, foi esse nome. Depois do nome, toda a ideia, todo mundo empolgado, vamos montar uma… Começar a pensar em uniforme, outro em chapéu, veio toda essa coisa de pensar, de ter uma nova perspectiva para todos nós.
Quando veio essa história de organização, veio uma nova perspectiva na nossa cabeça, porque até então era um grupo que… Veio essa nova perspectiva de crescimento, conseguimos levar o pessoal todo para conhecer a experiência da COOPAMARE. Veio essa coisa de mostrar para a sociedade que nós existíamos e o programa de coleta seletiva para nós: “Vamos passar de porta a porta, bater para a Dona Maria.” Só que isso para nós não foi tão fácil porque existia, para nós todos, uma resistência muito grande nesse sentido. Pra nós chegarmos a bater palma em uma casa e informar pessoas sobre coleta seletiva, isso era muito difícil, porque a gente achava que a pessoa ia sair com dois quentes e um fervendo atrás de nós. Tivemos que trabalhar muito entre nós mesmo, porque a CRUMA teve uma coisa que sempre foi fundamental em nosso meio, foi a iluminação de Deus. A CRUMA foi muito iluminada por Deus, porque o diferencial da nossa cooperativa… Nós nunca tivemos apoio nesse nosso trabalho, um grupo técnico de igreja ou de não sei de quê que chega lá, ou de uma instituição que chega até a cooperativa e fala assim: “Vamos ajudar vocês a organizar o trabalho de vocês. Ninguém nunca… Nunca chegou um organismo desse pessoal assim; fomos nós mesmos que, do nosso jeito, começamos a organizar todas essas coisas.
Era difícil entre nós organizar os próprios companheiros. A gente fazia um pouco [de] teatrinho, fizemos um teatrinho entre nós de como iria ser a abordagem na casa. Pegamos várias situações: o morador que seria gentil, o morador que seria mais nervoso, um que seria aquele amigável, então fizemos várias situações para saber como a gente ia lidar com essas situações.
Depois de várias baterias de exercícios nesse sentido, veio essa questão de ir para a rua e abordar as pessoas. Para a nossa surpresa, esse programa de coleta seletiva acabou tendo bastante êxito no primeiro bairro que a gente fez, a população gostou.
P/2 – Você lembra da primeira pessoa que você bateu na porta dela para pedir?
R – Pois é, a...
(pausa)
P/2 – Então só recapitulando, Roberto, eu estava perguntando se você lembra da primeira pessoa que você saiu para abordar e pedir material reciclável.
R – Sim, recordo como se fosse hoje. Eu não me recordo o nome dela. Foi uma senhora, foi bastante simpática, acabou… É interessante esse programa de coleta seletiva, porque as pessoas acabam se empolgando com a questão, essa foi uma dessas pessoas. As primeiras pessoas, eu acho que acabam motivando a gente, se você… Imaginava [que] se eu pegasse [como] primeiras pessoas só moradores meio chatos não iam estimular todo um processo, mas as primeiras pessoas que eu peguei foram pessoas muito atenciosas. Essa primeira pessoa, para mim, foi fantástico, aí me motivou, parecia o Popeye comendo espinafre. Aquilo ali motivou cada uma daquelas pessoas. Acho que nem todas as pessoas que eu encontrei foram cem por cento… Oitenta por cento foi muito bom.
P/2 – Como é que foi?
R – A recepção… Elas não acreditavam que era [um] catador falando sobre essa coisa do meio-ambiente. As pessoas, quando falam de coleta seletiva, já pensam que é um técnico de prefeitura que vai lá falar, mas [é o] catador mesmo [que] está indo lá, falando. As pessoas ficaram impressionadas, não só comigo mas com os outros também: “Os catadores vindo aqui, falando sobre essa questão, entregando panfletinho.” Conseguimos a produção de um panfleto através de um parceiro, aquilo para as pessoas já era um diferencial; quem estava fazendo aquilo éramos nós, os catadores, e falando da nossa maneira - eles estavam entendendo, [era de uma] maneira bastante simples. Não tinha nada muito técnico na nossa fala, mas simples, sintético e até comovente, de sensibilizar. Foi uma recepção muito legal.
P/1 – Você tinha falado meio brincando antes que o pessoal queria uniforme. Vocês chegaram a fazer alguma coisa para essa abordagem?
R – Sim, exatamente, teve todo um preparo. Além do preparo de como abordar, teve um preparo também de identificação: fizemos crachazinho, fizemos um colete, arrumamos dinheiro emprestado daqui, dali para fazer essas coisas, ficamos endividados para depois pagar. Fizemos coletes, chapéus, um chapeuzinho assim, tudo isso para… E o nosso carrinho também, pintamos o nosso carrinho de verde. Era um carrinho diferenciado, para as pessoas também saberem que éramos nós que estavam chegando, que era da cooperativa chegando. Tinha um diferenciador nessa história, isso tudo também colaborou do morador nos ver de uma forma diferente.
P/1 – E como é, vocês fazem essa abordagem e pedia à pessoa para separar? Como é isso?
R – É, a gente ia até a casa da pessoa. Primeiro a gente falava, na verdade, que nós éramos catadores, que estávamos desenvolvendo um programa de coleta seletiva, se a pessoa sabia o que era coleta seletiva. Ela fala: “Não, sei.” [Para] os outros que não sabiam, [a gente] explicava um pouco sobre coleta seletiva e que a gente ia passar determinado dia naquele local para coletar esses materiais assim, assim, assado, os materiais recicláveis. E que, além dela estar colaborando com o meio ambiente, ela também estaria ali colaborando com a renda de famílias. Então [eram] essas coisas que nós colocávamos, que além dela estar colaborando [com] essa questão do material reciclável, no lugar de estar indo para um aterro sanitário, toda essa questão de colaboração com o meio ambiente, ela também está colaborando e gerando trabalho e renda para famílias que são...
Nesse tempo, nós já estávamos com vinte envolvidos no processo. Foi a partir daí que nós… “Puxa, vinte famílias, com o meu lixo.” O pessoal chama isso de lixo, para nós é material reciclável, mas ainda as pessoas… É um conceito de lixo. [Com] aquilo que eu jogo fora posso colaborar com o meio ambiente e colaborar com as famílias para a sobrevivência. [Foi] o grande norte que nós demos para as pessoas nos ajudarem nesse trabalho.
P/1 – E esse trabalho continua até hoje?
R – A CRUMA continua até hoje, cada vez mais. Hoje com parceiros do governo estadual, governo federal; já tivemos parcerias do exterior. O trabalho cresceu, já está em uma outra ótica. Já tem caminhão, naquela época eram só os carrinhos para trabalhar. Já tem uma estrutura de separação dos materiais, estão indo para um outro local, um novo galpão.
Hoje está em uma outra estrutura: antes era [em] um bairro, como eu disse para vocês, essa coleta; hoje são doze bairros que já fazem o programa de coleta seletiva, então é uma coisa totalmente diferente. Ainda é duro, mas o início desse trabalho para todos nós foi bastante duro - trabalho de madrugada, coletar material de madrugada. Muitas companheiras que estão com a gente até hoje trabalhavam até alguns meses de sua gravidez com a gente. As mulheres na CRUMA foram fundamentais, as catadoras foram o diferencial dentro da cooperativa também. Nos momentos difíceis elas ajudavam, não só na conversa, porque não é fácil, as coisas... São dez anos dessa história, essa história toda vai fazer no ano que vem dez anos.
P/1 – Da criação da cooperativa?
R – Da criação da cooperativa.
P/1 – Ou do movimento?
R – Não, da criação da cooperativa. O movimento veio depois, o movimento veio com essa doideira que eu falei para vocês no começo. Desde pequeno, eu nunca consegui ficar quieto, sempre fui muito agitado. Querer entrar em algumas coisas é uma coisa minha mesmo e veio um pouco dessa história de movimento na minha vida - eu gostava muito de andar, de procurar outras coisas, de participar de encontro. Era meio falador, embora não falasse muito as coisas certas, mas participava para discutir as coisas. Eu fiz um curso, fui convidado para fazer um curso na COOPAMARE.
P/1 – Isso foi quando?
R – Não me recordo o ano, acho que faz um bom tempo. Acho que [em] 94, mais ou menos, não me recordo. Fiz um curso, [o] primeiro curso que eu fiz. Tinha uma pessoa lá que [se] chama Paulo de Tarso, ele era uma pessoa muito interessante nesse curso; está hoje na prefeitura de Guarulhos. Foi uma pessoa que despertou em mim essa questão de entender a importância do meu trabalho.
Paulo de Tarso foi na minha vida… Quando eu fiz o curso com ele, as coisas mudaram minha ótica de pensar. Eu achava que sozinho já não dava mesmo - sozinho, que eu digo, [somos] nós só da cooperativa. Tinha que ter outras cooperativas juntas, discutir juntos, discutir realidades, nossa realidade sofrida juntos; tem muitas coisas que nós poderíamos construir juntos.
Começamos a conversar - COOPAMARE, CRUMA… Tinha a UAF, que é uma organização que vai fazer cinquenta anos. A UAF é uma… Ela tem uma importância muito grande nesse processo, ela colaborou em juntar todo mundo para discutir suas realidades. Aí comecei a entrar nessa história de discutir as realidades das cooperativas.
Nesse tempo, fui convidado pela Irmã Regina, da UAF, para participar de um encontro em Minas Gerais, que estava discutindo com outros catadores - um encontro nacional de catadores. Fui para lá, mesmo boiando, sem saber o que rolava, fui para lá e comecei a participar da discussão. [Em] São Paulo, participando... Quando fui dar conta, eu já fazia parte da organização do I Encontro Nacional dos Catadores, comecei a participar dessa organização. Em 2001, foi realizado esse I Encontro Nacional de Catadores, com representações de vários estados do Brasil, nesse encontro em Brasília, aí começou a surgir essa coisa do Movimento Nacional dos Catadores.
Eu comecei a viver coisas na minha vida que eu nunca imaginava. Fui para o México, tive um intercâmbio no México, estive no Peru, estive na Alemanha, em outros países, e começou a acontecer coisas que eu nunca… O máximo que eu imaginava era ter minha sobrevivência no meu trabalho, não era começar a caminhar do jeito que eu caminhava.
Comecei a ser convidado em outros estados para discutir essas coisas dos catadores, porque é uma realidade bastante dura dos catadores no Brasil. A gente tem uns companheiros que estão na região urbana, estão nas ruas, mas também têm os catadores que estão dentro dos lixões, são companheiros que estão com uma vida bastante difícil. Comecei a conhecer toda essa realidade porque eu conhecia a realidade da rua, não conhecia a realidade dos lixões a céu aberto. Comecei a conhecer um pouco dessa realidade dos lixões, a dificuldade. Muitos dormem, moram dentro do lixão, vivem, trabalham à noite, de dia, [com] muitas crianças. Comecei a participar de tudo isso, e através de debate, de construção de uma melhor qualidade de vida para esses trabalhadores no Brasil, porque a cadeia da reciclagem não vive sem o catador. Nós, catadores, estamos na ponta dessa história e não somos reconhecidos.
Essa loucura toda começou a vir à minha cabeça, loucura boa - eu aprofundando, discutindo, conhecendo realidades daqui e dali. Formamos uma Comissão Nacional dos Catadores a partir desse encontro, começamos a nos encontrar. Eu comecei de modo mais específico a fazer uma articulação aqui no Estado de São Paulo, no interior de todo o estado; rodei todo o interior do estado. Nós temos comitês dos catadores em todo o Estado de São Paulo, representações dos catadores de várias microrregiões. As coisas começaram a abrir acesso; muitas pessoas que na verdade não queriam nem me ver, não queriam me atender, começaram a me atender. [Com] pessoal de governos, a gente conseguiu uma facilidade de discussão, de estar participando de discussão de políticas públicas. Ano passado me vi no Senado, discutindo política nacional de resíduos sólidos. Eu nunca imaginava estar no senado discutindo essa coisa.
P/2 – Como foi?
R – Foi uma coisa, para mim… Tudo [era] supernovidade; [era] estranho, porque eu nunca… Quando você está preparado para uma coisa… Eu estou fazendo uma faculdade, por exemplo, e vou à universidade. Eu vou sabendo que amanhã vou virar um engenheiro. O engenheiro tem certas ações, então você tem essa perspectiva, que está estudando para isso. Agora não, no meu trabalho, o máximo que eu tinha era que a CRUMA poderia ficar melhor e eu, no meu cantinho, trabalhando dentro da cooperativa, mas nada melhor que isso.
Quando eu me vi em nível nacional, discutindo realidades, conhecendo outras realidades… De repente, discutindo umas coisas no Senado, dentro da Câmara dos Deputados, em Brasília, para mim foi tudo muito novo, mas fui tocando, foram umas coisas muito novas.
P/2 – O que você sentiu?
R – A primeira vez [tem] sempre um friozinho, a emoção - essas duas coisas juntas que vem, porque é uma responsabilidade, você está lidando… Quando eu estou falando, não estou falando mais do Roberto do CRUMA ou do Roberto, eu estou falando do Roberto do Movimento Nacional dos Catadores. É uma coisa, a questão da responsabilidade é isso.
Outra coisa é essa questão: puxa vida, alguns tempos atrás eu estava tentando coletar o material na casa de algum morador; aquele morador estava lavando a calçada e, sem eu perceber, ele jogou água em cima de mim, para eu sair de cima da calçada dele. Eu me via naquela situação e hoje eu estou aqui, [em] Brasília. Vem a emoção, de mostrar que nós catadores, não somos o resto. Nós somos mais, na verdade é uma contribuição para o país. Somos uma contribuição muito grande para o país, nessa questão ambiental.
Isso para mim foi surpreendente. Começou essa coisa, vai para lá, vai para cá… Quando eu fui para fora do país… As vezes que eu fui para fora do país, para mim, foi tudo surpreendente, a mesma coisa.
P/2 – Você foi para onde?
R – A primeira vez eu fui para o México, depois estive na Alemanha, no Canadá e no Peru.
P/2 – Como foi chegar no México?
R – Foi legal, conheci as pirâmides. (risos) Mas...
P/2 – Você foi conhecer o movimento de lá?
R – É, na verdade eu fui participar de uma oficina de economia popular solidária. São vários grupos que trabalham essa questão da economia popular solidária; fui lá não só conhecer, mas colaborar na discussão dessa coisa no Brasil, como está essa coisa no Brasil. Na Alemanha, eu fui por conta de um agente financiador que está financiando a CRUMA, no Canadá também e no Peru. [Fui] há pouco tempo, no começo desse ano, por conta de um outro encontro, um outro (cahier?), que eles chamam de economia popular solidária, que estava acontecendo no Peru.
P/1 – E nessa sua ida para o Peru e para o México, principalmente, que são países da América Latina, você pôde trocar experiências com os outros grupos de lá? Como estão e como funciona a relação entre o Brasil e os outros países e como está essa movimentação nesses países também?
R – Nos países da América Latina, embora as dificuldades muitas vezes [sejam] maiores que a nossa aqui no Brasil, eles estão com uma garra bastante grande de organização, de discussão, de buscas de outras realidades para se organizar. A gente nota. A primeira vez que eu fui lá, que eu estive nesses países da América Latina, [notei] que a companheirada tem uma força de vontade muito grande de se organizar. Eu vejo isso um pouco [como] nós, há alguns anos atrás: nós tínhamos toda essa garra, mas muitas vezes não tinha a estrutura. O que eles estão procurando hoje é a questão de estruturar, porque tendo a estrutura eles vão caminhar, vão avançar muito nos seus trabalhos.
P/1 – Mas vocês já pensam em um movimento latino-americano?
R – Sim, já tivemos um I Encontro Latino-Americano de Catadores, há dois anos atrás. Em 2005, nós vamos ter o II Encontro Latino-Americano de Catadores, que tem um pouco essa finalidade de trocar e de criar uma rede de discussão, uma rede de apoio mútuo dos catadores da América Latina.
P/1 – Fale para a gente… Acho que você não falou ainda muito sobre isso, mas eu queria que você falasse um pouco, por exemplo, do trabalho que vocês fazem, tanto no movimento quanto no CRUMA, de capacitar ou de conscientizar outros catadores de participar do movimento ou de cooperativas.
R – Tem uma coisa além disso. Quando nós começamos essa trajetória, é interessante… Não fui só eu, Roberto, foram outros companheiros também, aparecendo também. Vimos que tinha essa mesma realidade e essa dimensão.
Tem uma companheira de Minas Gerais que foi foi fazer um discurso na ONU sobre a questão dos catadores. Essa coisa começou a crescer muito e nós notamos que era importante a organização. Quem organizava muitas vezes [éramos] nós mesmos, porque nós, catadores, estamos tão cansados [de] ter que ir à prefeitura, fazer cadastro, e as coisas… Nada acontece.
A gente acredita mesmo, catador acredita muito em catador e _______ muito interessante, então nós começamos a ir até os lixões mesmo, conversar com os companheiros; mostrar para eles, através da nossa vida, que é possível se organizar - por mais difícil que seja a situação, é possível se organizar. Nós começamos em grupos de catadores [a] fazer essas organizações no Brasil inteiro, e capacitar, organizar os catadores para que juntos - não sozinhos - nas suas cooperativas, nas suas associações, no seu grupo… Mas que esses grupos se juntem e comecem a discutir suas realidades, formando uma grande rede; a ideia, no final dessa nossa história, é formar uma grande rede.
Hoje é esse o nosso papel - não só meu, mas [de] vários catadores do Brasil: de juntar todo mundo, discutir, falar do jeito que a gente sabe falar. Tem muita coisa técnica na nossa fala, do nosso jeito mesmo, discutindo; não precisa também lugares bonitos, coffee-breaks para isso, é coisa bastante simples. A gente senta e discute as questões, as realidades, e [tentamos] buscar caminhos juntos de crescimento.
É esse o nosso trabalho, fora essas intervenções de políticas públicas que a gente faz. O ano passado também foi um marco histórico para mim. Quando imaginava que um catador ia estar com o presidente, negociando algumas ações para o Brasil. O ano passado foi um momento muito importante da minha vida. Eu nunca imaginava ver o presidente na minha frente, poder conversar com o Presidente da República.
No Congresso Latino-americano estivemos também com o embaixador da Unicef, Renato Aragão, conversamos muito com ele. Ele colabora em algumas ações. Acho que essas pessoas trabalham um pouco ajudando, colaborando, trilhando.
Nós necessitamos do mínimo para o nosso crescimento. O mínimo que a população pode dar para nós, colaborar conosco… Entendemos que dentro dessa luta toda estamos fazendo simplesmente um apelo para a sociedade, [para] que ela possa continuar nos deixando sobreviver. [É] o que nós sabemos fazer, a nossa profissão é catador de material reciclável. Não sabemos fazer outra coisa. Se perguntar para nós o que é papel, o que é plástico, qual o tipo desse material, nós sabemos, mas nunca fizemos um curso sobre isso. A gente sabe que tipo de material é, o que é bom, o que não é. É nossa profissão e nossa profissão depende muito da sociedade, dela não deixar a gente morrer.
Não deixar a gente morrer é a sociedade fazer coleta seletiva e doar para os catadores. Hoje a gente tem muito essa coisa de “reciclagem dá muito dinheiro, a reciclagem...” As pessoas muitas vezes estão juntando material, querendo vender os materiais. Cada morador que junta material reciclável e faz questão de vender, na verdade, está tirando o pão de cada dia de um catador. Acho que é uma outra coisa interessante da gente lutar, que a sociedade seja amiga do catador, porque a nossa sobrevivência está ali na ponta, e a ponta são os moradores, são as indústrias. que acabam gerando seus materiais e vendendo. Puxa, custa dar, porque é resto, né? [Com] seu restinho, você está ajudando famílias a sobreviverem e ajudando essa profissão a continuar.
Essa é a grande luta nossa, a gente sente muita dificuldade nessa onda. Quando falam muito da reciclagem a pessoa só vê cifra, mas não é nada disso. Nosso ganho é uma média de 250, trezentos [reais]; são poucos os catadores que ganham mais de quatrocentos reais por mês, isso é raro no Brasil. É muito mesmo o grito… Hoje a gente tem o grito de sobrevivência, da nossa atividade e dos nossos filhos, das nossas famílias, para essa questão dos materiais.
P/1 – E qual a luta mais premente de vocês nesse momento?
R – Uma das lutas é essa, dar um grito para a sociedade entender que nós precisamos que a sociedade cada vez mais seja nossa amiga, amiga realmente do catador. Uma outra luta, é lógico, [é] lutar por infraestrutura, lutar [para] que o poder público, [a] sociedade civil, as entidades, cada um tenha seu papel nesse programa de coleta seletiva. Porque não somos só nós, catadores; cada um tem um papel, um pouco do que eles chamam de gestão compartilhada de resíduos. Todo mundo tem a sua responsabilidade. [Que] ninguém queira tirar o ganha-pão do catador, que todo mundo possa entender que essa profissão nossa já existe há mais de cinquenta anos.
Hoje estou aqui fazendo uma entrevista, mas há cinquenta anos ninguém tinha um olhar nesse sentido para o catador. Quando eu falo pelos catadores, eu falo não só pelos catadores que estão hoje aqui, mas falo pelos catadores que já morreram. Tem muitos companheiros que morreram sem poder dar o seu grito, muitos companheiros que morreram debaixo de sol, debaixo de chuva, nas ruas, no frio, e não puderam dar o grito. Não tiveram essa oportunidade que a gente está tendo hoje, de dar esse grito para a sociedade. Mostrar na mídia, mostrar em tudo que é canto que nós existimos, que estamos aí, que nós não estamos somente atrapalhando o trânsito da cidade, ou que nós somente estamos no meio do lixão e está muito bom onde nós estamos. É uma das reivindicações nossas, dar esse grito para a sociedade, porque nós somos trabalhadores, somos pessoas, somos gente igual a qualquer um. Estamos juntos, estamos colaborando, fazendo a nossa parte.
Outra coisa que a gente luta muito é [pelas] políticas públicas. Nas políticas que discutem as questões ambientais, principalmente de resíduos sólidos, [que] nós possamos estar envolvidos. Quando falam do programa de coleta seletiva… Existem vários programas de coleta seletiva, mas programa que realmente seja solidário, que possa incluir o catador no processo; [um] programa que seja solidário a esse trabalhador, que há mais de cinquenta anos desenvolve essa atividade.
Outra bandeira nossa é a bandeira dos nossos filhos. Lugar de criança não é no lixo, lugar de criança é na escola, tendo sua boa alimentação, o seu cursinho. Nós achamos, temos claro que lugar de criança é um outro espaço; a gente luta muito, porque já temos crianças que vivem com seus pais coletando, deixam a escola. Isso é muito difícil também.
E o fim é a erradicação dos lixões, as construções de aterros sanitários, mas com um fator diferencial. Não [o] fator que… Muitas vezes a gente escutava: “Vamos fechar os lixões”, mas esqueciam que nesses lixões existem pessoas, e essas pessoas são os catadores. São fechados esses lixões e os catadores ficam à mercê. Fechar os lixões sim, mas que deem condições para os catadores viverem da sua mesma atividade de forma mais digna.
Essas são as nossas bandeiras, do movimento. A gente luta porque não é fácil, tem uma responsabilidade muito grande com os outros companheiros do movimento nessa história toda. Eu vivo rodando esse país para lá, para cá, _____ estava em Curitiba… Na verdade, acho que outra coisa que eu nunca imaginava na minha cabeça também era conhecer o Brasil do Oiapoque ao Chuí, [como] eles falam, né? Conhecer um pouco essa realidade do Brasil. Hoje eu tenho um panorama de quase toda essa realidade dos catadores. Agradeço muito a Deus [por] ter me dado essa oportunidade de poder conhecer toda essa diversidade, de entender que o sofrimento dos companheiros. É bastante grande, só que nós temos muito para avançar ainda nesse nosso trabalho.
P/2 – Como você sonha o movimento dos catadores daqui a vinte anos?
R – Um movimento bastante solidário. Em um primeiro momento, acho que a primeira coisa é isso. Acho que a solidariedade é de extrema importância, independente o tamanho disso, mas que nós sejamos solidários. Solidários e fraternos, acho importante isso.
É um movimento que os catadores vão ter sua independência, sua autogestão; vão estar com seus galpões, desenvolvendo suas atividades, comercializando conjuntamente seus materiais, muitos já se tornando indústrias no seu processo de trabalho. Mas sempre com a questão da solidariedade, nada da competição; nada de querer ficar muito rico e sim ter qualidade de vida. Quando você atingir aquela qualidade de vida, que outros possam também, que esse trabalho possa colaborar com outros companheiros que ainda não atingiram uma qualidade de vida legal.
É um pouco isso que eu penso do movimento. Que não tenhamos mais companheiros trabalhando nos lixões, se misturando no meio dos urubus, porque é triste. Acho que a coisa mais triste é uma pessoa dentro do lixão, se misturando com os urubus. E uma sociedade também que tenha, que veja… Que ela seja realmente uma sociedade amiga do catador. Quando falarem do problema de coleta seletiva, tanto o empresariado, o setor público, privado - todos, quando falarem de coleta seletiva, lembrar: “Poxa, tem o catador. Tem uma organização de catadores, nós podemos separar esse material e doar para esses trabalhadores.” É ter realmente uma sociedade amiga do catador.
P/1 – Você quer falar mais alguma coisa que a gente não tenha perguntado?
R – (risos)
P/1 – E você tem ainda algum sonho pessoal?
R – Meu sonho pessoal acho que é fazer uma faculdade. Depois desse processo todo voltei a estudar, fazer o segundo grau. Tenho o sonho de fazer uma faculdade hoje, correr atrás, o problema é encontrar tempo para tudo isso.
P/1 – E qual seria?
R – Faculdade de Engenharia de Saneamento Ambiental. Queria lidar um pouco com essa coisa de lixões, de aterro sanitário, de tratamento. Eu gosto muito dessa área, acho muito legal essa área.
Sonho que outros também, que apareçam outros Robertos, outros Alexandres, outros Érick Soares - Érick Soares foi, ele é um mito dentro do movimento dos catadores. Érick Soares foi um companheiro que começou conosco tudo isso, essa história, e de um ano ele deu uma alavancada, foi uma contribuição para o movimento muito grande. Deus sabe o que faz mesmo. Nessa alavancada que ele deu construiu alianças, parcerias, grandes discursos. Nós estivemos juntos na Bahia, ano passado, em janeiro - não, em dezembro do ano passado; fizemos um encontro estadual, foi um grande encontro. Esse Érick Soares foi em todos os lixões que tinham lá, todas as organizações de catadores; em cada organização ele conseguia motivar os catadores, os catadores queriam até a bandeira do movimento dentro do lixão, motivar com essa questão da organização dos catadores. Ele criou uma série de… A ________ veio através dele, foi ele a pessoa que fez essa...
Uma vez, nós estávamos no quarto… Nós dois estávamos nesse encontro. Acho que foi uma das coisas que marcaram muito na minha vida. Nós estávamos dividindo o quarto nesse encontro. No último dia ele abriu a porta do quarto, levantou as mãos para o céu e agradeceu a Deus por ter deixado ele organizar esse encontro. Estava muito danado, aquilo ali. Ele agradeceu a Deus por ter dado a oportunidade dele ter ido aos lixões, pegado a companheirada toda, juntado todo mundo, [por] fazer um grande encontro estadual dos catadores na Bahia.
Ele me falou: “Roberto, não deixa a peteca cair.” “Nós não vamos deixar a peteca cair mesmo, a peteca do movimento nós não vamos deixar cair.”
Nós fomos embora, ele estava louco para ver a família dele. Só falava da família dele porque já tinha ficado um mês na Bahia, fazendo todo esse trabalho de articulação para esse encontro estadual acontecer na Bahia. Foi embora, eu vim embora para São Paulo e três dias depois vem a notícia que ele veio [a] falecer. Ele foi uma pessoa para nós, do movimento, que sempre vai estar no nosso coração.
Érick Soares foi uma pessoa que contribuiu muito, [uma] pessoa bastante humilde, [de] família de catadores do lixão, que deu uma dimensão nacional muito grande… A gente não pode nunca esquecer desse companheiro.
Historicamente, nas lutas de movimentos sociais tem várias pessoas que a gente sempre relembra; dá essa força, esse ânimo para a gente que luta. Eu acho que no movimento dos catadores nunca podemos esquecer desse companheiro que é o Érick Soares.
P/2 – Está bem. Queria agradecer a você pela entrevista.
R – Eu agradeço a vocês, muito obrigado por essa oportunidade para nós.
P/2 – Obrigada.
P/1 – Gostou de dar a entrevista?
R – Legal! (risos)
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