P/1 - Vamos lá. Começando a nossa entrevista, eu queria que o senhor falasse de novo o seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R - O meu nome é Carlos Roberto Fabrício, nascido em São Manuel, em 1952.
P/1 - E o nome dos seus pais, Carlos?
R- Alcides Fabrício e Adélia Cardoso Fabrício.
P/1- E o que Seu Alcides fazia, [no] que ele trabalhava?
R - Ele era motorista.
P/ 1- Você lembra dele trabalhando na infância?
R - Lembro, trabalhava junto também.
P/1 - É? O que você fazia?
R - Eu sempre estava junto com meus doze, treze anos; sempre estava trabalhando junto.
P/1- Ele era motorista do quê?
R - De caminhão.
P/1 - E me fala uma coisa: você morava na cidade, morava onde?
R - Parte na roça, mesmo, e um pouco na cidade - um pouco não, o resto na cidade.
P/1 - Até que ano mais ou menos você ficou na roça?
R - Eu fiquei na roça até os meus dezesseis, dezessete anos.
P/1 -O que você fazia… Vamos tentar recuperar: o que você fazia lá na roça? Você brincava do que quando era criança?
R - Na roça era até bom, né? Era carrinho de mão, era… Hoje, aqui é pipa, lá era papagaio. Carrinho de carretel, essas coisas.
P/1 - Ia pescar, nadar?
R - Sim, pescar, nadar no rio.
P/1 - E você tinha que ajudar seu pai lá na roça, como era?
R - Não muito que tinha que ajudar, porque ele sempre.. Na roça, ele era motorista da fazenda, então não tinha muito que ajudar. Tinha [que] estar ali, só por estar junto mesmo, perto.
P/1 - E me fale uma coisa, vocês eram em três irmãos, né?
R - Três irmãos.
P/1 - Três homens?
R - Três homens.
P/1 - Como era o relacionamento de vocês?
R - Nosso relacionamento sempre foi bom. Por ser só homem em casa, só minha mãe de mulher, era muito bom.
P/1 - Vocês saíam juntos? Como era isso?
R - Saía junto, tudo que fazia estava certo. Não tinha erro, não tinha briga, não tinha nada.
P/1 - É?
R - É.
P/1 -...
Continuar leituraP/1 - Vamos lá. Começando a nossa entrevista, eu queria que o senhor falasse de novo o seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R - O meu nome é Carlos Roberto Fabrício, nascido em São Manuel, em 1952.
P/1 - E o nome dos seus pais, Carlos?
R- Alcides Fabrício e Adélia Cardoso Fabrício.
P/1- E o que Seu Alcides fazia, [no] que ele trabalhava?
R - Ele era motorista.
P/ 1- Você lembra dele trabalhando na infância?
R - Lembro, trabalhava junto também.
P/1 - É? O que você fazia?
R - Eu sempre estava junto com meus doze, treze anos; sempre estava trabalhando junto.
P/1- Ele era motorista do quê?
R - De caminhão.
P/1 - E me fala uma coisa: você morava na cidade, morava onde?
R - Parte na roça, mesmo, e um pouco na cidade - um pouco não, o resto na cidade.
P/1 - Até que ano mais ou menos você ficou na roça?
R - Eu fiquei na roça até os meus dezesseis, dezessete anos.
P/1 -O que você fazia… Vamos tentar recuperar: o que você fazia lá na roça? Você brincava do que quando era criança?
R - Na roça era até bom, né? Era carrinho de mão, era… Hoje, aqui é pipa, lá era papagaio. Carrinho de carretel, essas coisas.
P/1 - Ia pescar, nadar?
R - Sim, pescar, nadar no rio.
P/1 - E você tinha que ajudar seu pai lá na roça, como era?
R - Não muito que tinha que ajudar, porque ele sempre.. Na roça, ele era motorista da fazenda, então não tinha muito que ajudar. Tinha [que] estar ali, só por estar junto mesmo, perto.
P/1 - E me fale uma coisa, vocês eram em três irmãos, né?
R - Três irmãos.
P/1 - Três homens?
R - Três homens.
P/1 - Como era o relacionamento de vocês?
R - Nosso relacionamento sempre foi bom. Por ser só homem em casa, só minha mãe de mulher, era muito bom.
P/1 - Vocês saíam juntos? Como era isso?
R - Saía junto, tudo que fazia estava certo. Não tinha erro, não tinha briga, não tinha nada.
P/1 - É?
R - É.
P/1 - Você tinha educação religiosa, tinham que ir pra cidade pra ir pra igreja? Como era isso?
R - Não, a gente tinha igreja. Na fazenda que eu morava tinha igreja.
P/1 - Ah, é?
R- É. E aos domingos o padre ia à igreja.
P/1 - Era fazenda grande?
R - Era fazenda... Depois de trabalhar junto quinze anos com uma pessoa aqui, fui descobrir que ela era sobrinha do dono da fazenda onde a gente morava.
P/1 - É mesmo?
R - Foi um negócio assim: ela atendendo o celular, eu no carro com ela. Ela falou um sobrenome. Eu falei: “Esse nome não é desconhecido, não.” Ela: “Por quê?” Eu contei a história pra ela. Ela ficou de boca aberta, falou: “Não acredito, Carlinhos”.
P/1- É mesmo?
R - E é verdade. Ela falou: “Esse daí que você está falando é meu tio.”
P/1 - Olha. Tio dessa moça que estava...
R - Dessa moça que estava comigo no carro, que estava indo à prefeitura fazer um negócio lá… Sei lá eu.
P/1 - Essa fazenda era muito grande? Descreva como era a fazenda pra gente.
R - Era uma fazenda grande, não era fazenda pequena. Fazenda de uns... Não sei dimensão de alqueire, mas era muito grande. Era quase uma Vila Madalena.
P/1 - É mesmo?
R - É, muito grande a fazenda.
P/1 - E plantava o que ali?
R - Café, feijão, arroz, tudo [se] plantava ali… Milho.
P/1 - Carlos, tinha mais criançada com vocês? Quem era a turminha de vocês ali na fazenda?
R - Ah, tinha muitos, né? Eram os filhos dos trabalhadores. Nesse tempo, as fazendas não eram uma casa só, se dizia uma colônia. Era muita gente que morava, então tinha muita criança.
P/1 - E vocês brincavam do quê?
R - Brincava de… Essas brincadeiras mesmo, papagaio, carrinho. Muitas brincadeiras. Até esqueço as brincadeiras.
P/1 - Vocês aprontavam muito?
R - Aprontava muito.
P/1 - Conte uma traquinagem dessa que vocês lembram.
R - Traquinagem que eu lembro, mesmo? É bicicleta sem freio. Lá não tem bicicleta, [então] a gente mesmo arrumava. Quando aparecia uma bicicleta era pra todos: quinze, vinte moleques iam andar na bicicleta. A gente caía, era um barato, mesmo. A diversão era montar nos cavalos escondido do patrão, do administrador.
P/1 - Não podia?
R - Não podia, a gente fazia isso. Então era... E talvez ir nadar escondido na piscina da casa do homem. Pegar fruta pra nós, naquele tempo, era roubar. “Vamos lá roubar manga, vamos roubar fruta.” Não podia entrar lá, a gente entrava. Tinha o zelador lá, mas à noite ele ia dormir ou tomava umas canjibrinas, então a gente ia. A gente via a hora que ele estava meio chutado, ia de tarde lá, pegar as mangas. Tinha um colega da gente que o enfrentava. Contava pro meu pai, [ele dizia:] “Eu te bato.” Ele já era um velhinho, nem bate nada, é uma educação imensa. Tinha só um que fazia isso, que ameaçava o homem lá, o senhor.
P/1 - Só ameaça.
R - Só ameaça, só. Depois saía de lá, só ia dando risada. Deus me livre se o pai dele soubesse que ele tinha falado aquilo pro... _______ ele já estava meio tocado, também _______ na segunda-feira acabava esquecendo.
P/1 - (risos) O pai dele era bravo?
R - Era, o pai desse menino era bravo. E a gente dava risada dele, né?
P/1 - Por quê?
R - Porque a gente chegava, entrava no pomar e escolhia os pés. “Esse pé aqui é meu, esse pé aí é seu.” A laranja ou a manga adiante, até escolhia já, se apossava naquela hora. “Esse pé de laranja aqui é meu, hein? Aquele lá é seu, se vira aí.”
P/1 - Vocês pegavam e levavam pra comer fora ou vocês comiam lá?
R - Não. Comia lá mesmo.
P/1 - É?
R - Comia e enterrava a casca. Era um barato.
P/1 - É uma boa lembrança?
R - É uma boa lembrança. Nossa senhora, quando eu lembro disso, eu...
P/1 - E me fala uma coisa...
R - _________. Quando me lembro disso bate _________. Não volta mais mesmo, né?
P/1 - Fica uma saudade boa.
R - Ficou.
P/1 - Vocês costumavam ir pra São Manuel, pra cidade? Como era isso?
R - De vez em que quando a gente ia pra cidade, viu? Era só quando tinha o circo, um cinema, um filme bom, que [a gente se] reunia tudo pra ir. Mas era difícil a gente ir pra cidade.
P/1 - E aí vocês iam como? A pé?
R - Ia com o carro lá da fazenda, mesmo.
P/1 - O carro da fazenda.
R - É. E ia todo mundo.
P/1 - Aí iam pro circo. Você lembra de alguma vez?
R- Lembro, ô.
P/1 - Conte pra gente.
R - Lembro. Era na época, ali em São Manuel, na região, o Circo de Piranha. Não sei se chegou a conhecer esse circo, ele… A região todinha ali era de piranha. A gente ia nesse circo quando vinham as duplas - não era cantor, [eram] duplas. Eu lembro de assistir lá Sulino e Marrueiro, “O punhal da vingança”. Isso foi falado lá na fazenda, então as fazendas todas foram, ficou cheia a cidade.
P/1 - Era um teleteatro?
R - Isso.
P/1 - Como se fosse um teatro?
R - Isso.
P/1 - “O punhal da vingança.”
R - “O punhal da vingança”, essas coisas.
P/1 - Como era essa história?
R - Ah, eram umas história muito… Tinha uma namorada, sei lá eu, e ele a matou ou ela se matou. Isso eu não lembro muito bem, não.
P/1 - Mas te impressionou?
R - Impressionava a gente.
P/1 - Não tinha televisão na época?
R - Não tinha. Tinha só um rádio, esses rádios que ligava uma hora, duas horas; precisava desligar porque ele esquentava. (risos) Começava só a arranhar. Eu lembro como se fosse hoje: onde tinha um rádio ficava um monte de gente ao redor, olhando pro rádio.
Eu lembro quando apareceu a televisão. Eu assistia televisão com, acho que uns vinte ou trinta metros de distância. O administrador comprou uma, então a gente ficava da janela dele, ficava lá no terreirão, vendo a televisão. Só via mal e mal as imagens, bem de longe, mesmo. Aí ia achegando, né? Quando ele menos esperou, nós já estávamos dentro do passeio da casa, assistindo televisão. Ele lá dentro com a esposa dele assistindo, nós dentro do passeio.
P/1 - E você lembra o que estava passando?
R - Ah, eu lembro...
P/1 - O que é que você viu?
R - Eu não lembro, não. Eu lembro só daquele intervalo que tinha o... Fazia o Café do Ponto. Era uma mulher que fazia.
P/1 - Uma propaganda?
R - Uma propaganda, do Café do Ponto.
P/1 - Olha...
R - E eu… Os Trapalhões… Não eram os Trapalhões, na época eram os...
P/1 - Três patetas?
R - Não, não. Acho que tinha o Bronco.
P/1 - Ah, o Ronald Golias.
R - Golias, isso. Sempre o Golias.
P/1 - Você gostava?
R - Eu gostava, né? A televisão era preto e branco, ainda. Depois, quando uma pessoa conseguiu comprar uma televisão [foi a] maior tremedeira lá. Eles acharam que estava boa.
Hoje eu olho na televisão em casa, parece um cinema. E a televisão que tinha lá pra nós assistirmos tremia, parecia não sei o quê. A gente ia assistir jogo [e] não sabia se eram jogadores ou se eram as bolinhas que estavam... E estava bom. Estava ótimo pra gente.
P/1 - Era a diversão, né?
R - Era a diversão.
P/1 - Carlos, na sua casa era a sua mãe e mais três irmãos. Você tinha que ajudar na casa?
R - Tinha, tinha.
P/1- Como era a sua casa, quando você era criança? Quais eram as suas tarefas?
R - As tarefas da gente eram as mesmas tarefas de uma menina de casa de hoje. A gente fazia tudo, menos lavar roupa. Mas fazer comida, limpar a casa… A gente fazia tudo.
P/1- Tinha que encerar, passar aquele escovão?
R - Não tinha, porque era um tijolo, e esse tijolo era mais lavado. Tinha que lavar, mas [pra] encerar não tinha cera. Era fogão, era fogão de lenha.
P/1 - Fogão de lenha?
R - Dentro de casa.
P/1- Aí tinha que catar lenha de manhã.
R - Catar lenha, isso. Não tinha a gás, mesmo, não lembro. Nem me lembro quando a gente veio usar fogão de gás, acho que foi na cidade. Ainda assim, mesmo na cidade, quando a gente foi morar num bairro afastado - não muito afastado, bem na beira da linha - a gente tinha fogão de lenha, ainda.
P/1- E tinha luz elétrica, não?
R - Tinha luz elétrica. Bem fraquinha, mas tinha. Aquele motor.
P/1- Ah, motor já.
R- Motor. Telefone era um fio só. Sei lá como que funcionava aquilo.
P/1 - Era bem diferente, né?
R - Bem diferente de hoje.
P/1- Carlos, você estudou onde?
R - Eu estudei parte da, parte em... Ali em Água Vermelha, nas fazendas, e depois na usina.
P/1- Ah, tá.
R - A gente morou na usina também.
P/1 - Era uma usina de cana-de-açúcar?
R - Cana de açúcar.
P/1 - E seu pai trabalhava pra usina?
R - Pra usina.
P/1 - Você gostava da escola, não gostava?
R - Gostava.
P/1 - O que te chamava atenção na escola?
R - A escola… Sei lá, era o estudar mesmo que chamava atenção, mas dava meus canos também. Nos dois últimos anos, a gente passou a estudar numa fazenda... Na outra. Então, naquele intermédio, tinha vez que eu ficava no meio do mato, mesmo. Eu era o maior ano da turma e jurava: “Vocês apanham se vocês contarem pra minha mãe, hein?” Que bobeira, ficava lá caçando passarinho até eles virem da escola. Depois eu vinha com eles.
P/1 - Eles iam pra aula e você ficava caçando passarinho?
R - Ficava.
P/1 - Você não queria ir pra aula.
R - Não.
P/1 - Ficava o dia inteiro...
P/2 - Seus irmãos iam com você?
R - Não, eu estudei sozinho. Eles estudaram depois. Eu tenho um irmão onze anos mais novo que eu. O outro veio com cinco, aí eu fiquei um tempão caçula.
P/1 - Nossa. (risos) Você ficava o dia inteiro sozinho, ali caçando passarinho, nadando?
R - É, ficava ali. Tinha que ficar perto ali pra eles passarem e não me deixarem. Se eles chegam sem mim lá o bicho pegava.
P/1 - E algum dia o bicho pegou?
R - Não, eu tive esse cuidado, tomava esse cuidado.
P/1 - Quando você mudou pra cidade, vocês foram pra que bairro?
R - Quando a gente mudou pra cidade já foi mudando... Antes, quando era pequeno, eu morei na fazenda e na usina. Depois, quando… Com o conhecimento que a gente tem ali, quando eu fui morar pra cidade eu logo arrumei serviço na usina. As mesmas pessoas que eu conhecia na fazenda trabalhavam na usina, então era fácil, né?
P/1 - E aí você foi trabalhar como turbineiro?
R - Turbineiro.
P/1 - O que quer dizer isso? Explique pra gente.
R - Turbineiro é um negócio que fica girando lá, com velocidade alta, com pressão, vapor, pra fazer o açúcar. Da turbina sai, ele já vai pro saco.
P/1 - Mas o que você tinha que fazer?
R - Tinha que mexer a turbina até clarear o açúcar.
P/1 - Na mão, mesmo?
R - Na mão, na pá.
P/1 - Nossa, era manual?
R - É, quer dizer, na pá, ela o batia. Não era manual. Tinha a manual também, mas na minha época estava encostada. Era mais… Era só olhar ali o ponto, depois limpá-lo com a pá.
P/1 - E quem te ensinou a fazer esse trabalho? Você aprendeu com quem?
R - Com o pessoal da usina. Sempre fica… Quando a gente entra ficam uns dois, três, quatro dias junto com a gente.
P/1 - Você já recebia um salário com isso?
R - Salário. Em 1970, é o primeiro registro na minha carteira.
P/1 - É?
R - 1974, 72, por aí.
P/1 - Você lembra o que você fez com seu primeiro salário?
R - Não lembro. Não lembro que era um negócio, o dinheiro ia pra casa.
P/1 - Ia direto?
R - Ia direto pro meu pai.
P/1 - Jóia.
R - Mas isso foi só uns três ou quatro mês só? Depois já... Tomei conta. (risos) Mas com responsabilidade, né?
P/1 - O que você queria fazer?
R - _______ parte.
P/1 - O que você queria fazer com o dinheiro? O que você imaginava?
R - É que eu imaginava... Sei lá, ir pra rua mesmo, pras gandaias. Tinha outra solução.
P/1- O que tinha de gandaia em São Manuel? Era bailinho...
R - Ah, bailinho.
P/1- Footing, o que… [Pra] onde vocês saiam?
R- Bailinho, ________. Eu comecei também [a] beber muito cedo, então [passava o] tempo em bar, bola. Era essa a diversão lá.
P/1 - Desde… Quantos anos você tinha?
R - Já estava com dezoito, dezenove anos.
P/1 - Mas aí era barzinho. Você bebia muito?
R - Muito.
P/1- É? Passava mal, tudo?
R - Vixe, passava mal.
P/1- (risos) Você continuou assim até quando?
R - Ah, eu fiquei até 70 e... 75 já vim pra São Paulo.
P/1 - É?
R - Foi assim, eu fui pra sua cidade, Bauru. Fiquei acho [que] uma semana em Bauru. Depois fui pra Jaú.
P/1- Mas por quê? O que você foi fazer em Bauru?
R - [Foi] porque eu aprendi uma profissão de pedreiro.
P/1- Ah!
R - Fui trabalhar em Bauru. Depois, a Camargo [Corrêa] estava fazendo… Não sei se era hospital. Em 75, ela fez ali em...
P/1 - Em Jaú?
R - Em Jaú, aí eu fui trabalhar ali. Eu trabalhei mais [de] um mês ali, em Jaú mesmo. Nem em São Manuel eu vim, eu vim pra São Paulo. Quebrei a cara aqui.
P/1 - Por quê?
R - Ah, não. Não quebrei muito a cara porque eu cheguei num dia, no outro dia já estava empregado. [Era] uma época boa de serviço.
P/1 - Você veio pra trabalhar de pedreiro?
R - Vim pra trabalhar de pedreiro. A única que eu tinha aprendido.
P/1 - Mas pela Camargo, ou não?
R- Não, eu vim na doida. [Quando] chegou aqui acabei entrando na Camargo, mesmo.
P/1 - Também.
R - Também.
P/1 - Como que… Você lembra da viagem, como é que foi?
R - Lembro.
P/1 - Você veio de quê?
R - De trem.
P/1 - Conte pra gente.
R - Cheguei aqui… A hora que eu parei ali na Estação da Luz, eu fiquei perdido. Fui de um lado: vup, vup, vup. Fui do outro: vup, vup. Falei: “E agora? Agora o bicho pegou aqui.” Mas pra voltar tinha vergonha. Falei: “Eu tenho que enfrentar, fazer o quê?”
Fiquei por ali um tempo. Mas aquele tempo era fácil porque onde a gente estivesse era a mesma coisa. Chegava uma pessoa, via a gente meio perdido, já convidava pra ir em um lugar, pra ir pra malandragem. Chegou um rapaz também com uma mala na mão. Falou: “Você está procurando serviço?. Falei: “Estou.” “Eu já trabalhei numa firma aqui embaixo, aqui no Parque Dom Pedro e ela está pegando. Vamos lá?” Eu falei: “Vamos.” Eu não falei pra ele que eu não conhecia aqui. Aí eu fui. Eu fiquei, ele não ficou.
P/1 - Carlos, qual foi a sua primeira impressão de São Paulo, fora a Estação da Luz?
R - Ah, uma impressão muito esquisita. Estava chovendo, um tempo escuro. Eu fiquei assim, meio... Mas eu sempre fui assim, sem medo. Eu não tinha muito medo das... Pra mim, [em] São Manuel as coisas eram grandes; agora, [quando] eu vou em São Manuel, as coisas [são] desse tamanhinho. Um dia a gente vai. Você entra numa estação de metrô, a estação parece que é um mundão. [Quando] chega lá são aqueles barraquinhos, ficou pequeno o negócio aqui. As ruas, fica tudo diferente.
P/1 - E aí você pegou uma obra na Camargo Corrêa.
R - Isso.
P/1- E que obra que era essa?
R - Era na Estação da Luz, mesmo. Quando eu passo ali, eu vejo serviço que fiz ali.
P/1- No metrô?
R- No metrô, é.
P/1- É mesmo?
R - Aquelas bocas de lobo, aquelas escadas da esquina da Tiradentes. Uma padaria que tinha - hoje está modificado, mas eu lembro que eu fiz aquilo ali.
P/1 - Toda vez que você passa ali...
R - Passo ali, eu lembro. Já morei por ali por perto, de vez em quando vinha ali dar uma olhada onde eu tinha sofrido.
P/1 - E onde você foi morar, onde você arrumou moradia?
R - Não, moradia já tinha, ela tinha tudo.
P/1 - A Camargo Corrêa?
R - Tinha o alojamento, a comida, tinha tudo.
P/1 - Ah, então foi...
R - Ela é muito rica, a Camargo Corrêa é muito rica. Dava do bom e do melhor pros trabalhadores dela. Do bom e do melhor, mesmo.
P/1 - E aí, você trabalhou nessa obra até quando, mais ou menos?
R - Eu trabalhei acho que três anos, aí depois comecei a picar.
P/1 - Picar é o quê?
R- É quinze, vinte dias num [trabalho], outro dia no outro.
P/1 - Como pedreiro?
R - Como pedreiro. Fui aprendendo outras coisas, era armador só no serviço de obra mesmo. Cheguei até soldador na… O último serviço meu foi soldador na Cosipa.
P/1- Lá em Santos?
R - Mas eu não tinha cabeça. Não aproveitava nada, não. Era _____ olhar feio que davam pra mim. Pronto, eu já estava indo embora.
P/1 - Você não gostava.
R - [Era] xingado.
P/1 - É?
R - Eu acho que eu vim virar gente, um homem mesmo, com trinta anos.
P/1 - (risos)
R - [É] verdade.
P/1 - Você era briguento?
R - Não é que eu era briguento. É que eu não aguentava desaforo e, pra não brigar, eu saía.
P/1 - Você ficava quieto e saía.
R - Ficava quieto e saía. Tinha vez que eu brigava, mas não… Mas batia boca, mesmo, né? Pra mandar embora, mesmo. Não tinha jeito.
P/1 - Mas era uma época que era mais fácil arrumar emprego?
R - Ah, teve época ______, eu trabalhava em duas firmas. Na Cofap aqui em Pindamonhangaba, trabalhava de dia em uma e à noite em outra. Só pra, se precisar… Pra fazer, aquele negócio de trabalhar do _________ - trabalhar não, dar nó lá, né?
P/1- (riso) Por que dar nó?
R - Porque eu não tinha cabeça, mesmo. Pensou trabalhar em duas firmas, mesmo local?
P/1 - No mesmo local ainda?
R - No mesmo local.
P/1- De dia era uma firma e à noite era outra?
R - Era outra, é.
P/1 - Olha, nunca vi isso.
R - _____ na mesma área, mas era enorme a área lá, também. Era fogo, viu.
P/1 - Carlos, quando que você passou a trabalhar com material reciclável?
R - Foi em 1980, porque surgiu o desemprego. O desemprego pra mim vem desde lá. Eu saí de uma firma aqui em Santos, na Cosipa e vim pra São Paulo. Em São Paulo me roubaram tudo e eu fiquei na rua. Aí fui catar papel.
P/1 - Na rua?
R - Na rua, é.
P/1 - E como você teve a ideia?
R - A ideia foi que eu estava numa feira do Glicério, ali, né? Terminava a feira, sempre... Estava com fome, sobrava umas frutas. Falei: “É por aqui que eu vou embarcar.”
Sentei num cantinho lá, estava lá esperando. Chegou um colega e começamos a bater papo. Estava estacionando carro e ele olhava os carros. De vez em quando, quando não tinha carro, ele vinha e sentava perto de mim, a gente começou a conversar. Ele começou a falar que trabalhava catando papel, aí eu falei… Ele falou: “Você não quer trabalhar amanhã junto comigo?” Falei: “Vamos.” E comecei.
P/1 - E me fala...
R - Era em um caminhão caminhão velho que ficava na Baixada do Glicério.
P/1 - Ele tinha o caminhão?
R - Não. O velho [com] quem ele trabalhava tinha esse caminhão, aí ele me apresentou [a ele]. A gente morava no caminhão.
P/1 - Dormia?
R - Dormia e esse senhor fazia comida pra gente. Pronto. Daí, eu arrumei meu lugar.
P/1 - E me fala...?
R - [Por] três anos.
P/1 - Três anos com esse...
R - Com ele.
P/1 - Com esse homem. Onde vocês iam catar papel? Era só papel, que tipo de material mais vocês catavam?
R - Tudo, sempre foi todo [tipo de] material. Minha área foi Bela Vista, [Avenida]
Brigadeiro [Luís Antônio], Bexiga, quando eu comecei.
P/1 - E aí eles levavam pra onde, vocês levavam...?
R- Nós levávamos pra esse senhor. Ele nos pagava e vendia pra um grande aparista.
P/2 - Ele vendia pra quem?
R - Pra um grande aparista. Aparista é quem tem depósito grande, que vem com o caminhão buscar monte. E o outro compra de picadinho, um quilo, dois quilos.
P/2 - Vocês ganhavam por quanto?
R - Por quilo. Dava pra tomar café.
P/1 - Uma época difícil?
R- Não, não era. Aquele tempo não era difícil, não.
P/1 - Não?
R- Não. Aquele tempo era bom. Era bom porque a gente arrumava muito material.
P/1 - É?
R - Era muito material.
P/1- Tinha essa consciência de começar a reciclagem?
R - Não.
P/1 - Como era isso?
R - Não tinha consciência, não. Bem pouquinho mesmo.
P/1 - Mas era mais fácil pra arrumar material?
R - Era mais fácil de arrumar material.
P/1 - Olha, que interessante.
R - Aí ______ vai divulgando, o desemprego, né? Agora está aglomerado, mesmo.
P/1 - Tem muita gente.
R - Tem muita gente vivendo disso.
P/1 - Entendi.
R- E dá, né? A gente também escolhia o que queria levar. Hoje não pode escolher mais, tem que levar tudo. _________ isso aqui é mais valioso, isso daqui.
P/1 - O que valia mais naquela época?
R - Naquela época, valia mais o papelão.
P/1 - O papelão?
R - Isso.
P/1 - E hoje, o que vale mais?
R - Hoje é a latinha, Todos os valiosos não tem, não acha mais. O material fino não se encontra mais.
P/1 - É mais difícil?
R - É.
P/1 - O pessoal já recolhe?
R- É, recolhe já. Difícil achar.
P/1 - E o papelão ficou...
R - O papelão sempre foi uma margem boa de trabalho. Ele é um material limpo, não é leve, não é muito pesado, não é difícil de conhecer. Hoje não, hoje tem o plástico. São mais de cem tipos de plástico pra gente ver qual é, então a gente pega os melhores, os que a gente conhece mais. O tradicional, né?
P/1 - Tem certeza que dá pra reciclar.
R - Isso.
P/1 - E me fala uma coisa, você trabalhou três anos com esse senhor no caminhão.
R - Isso.
P/1 - E aí, o que que aconteceu?
R - Ah, o que aconteceu é... Que eu fui aprendendo. Fui aprendendo mais [com] ele. Aí já saí dele, fui pra outro. Ele perdeu o ponto, a prefeitura o tirou [do] lugar que ele ficava ali na Dr. (Lundis?). Aí a gente foi evoluindo, evoluindo. Conheci a Comunidade dos Sofredores de Rua, que era bem próximo dali.
P/1- Ali no Glicério?
R- No Glicério. Eu conheci a Comunidade dos Sofredores de Rua e comecei a frequentar a casa pra banho, essas coisas. Aí surgiu a ideia dessa Associação dos Catadores de Papel.
P/1 - Quem coordenava essa casa, como é que era?
R - Era a _______ do São Bento.
P/1 - Era ligada a alguma igreja?
R - É ligada à Igreja Católica.
P/1 - É?
R - É. A Arquidiocese.
P/1 - Ah, tá. E aí lá vocês conversando, reunindo, o que...
R - Reunindo, era… A parte mais… Era catadores de papel que a gente tinha ali. Todo fim de ano tinha uma missão, que era a missão dos catadores de rua. Isso depois de eu ter conhecido bastante eles, já ter saído da rua, passado por um lugar pra morar. Era casa abandonada, mas a gente já tinha um... Peito por trás, né? Eram várias pessoas que moravam. Já tinha uma conversa e uma luta de moradia, né? A gente já começou a fazer… Tinha essa festa de fim de ano que a gente fazia com os catadores de rua, que era três dias na rua ou em salão, o que a gente arrumasse. E não tinha dinheiro, o dinheiro saía da gente mesmo, dos catadores de rua. Foi onde nasceu a COOPAMARE [Cooperativa de Catadores Autônomos de Papel, Aparas e Materiais Reaproveitáveis].
P/1 - Mas como era essa festa?
R - A festa era comer, beber, rezar, protestar na rua, reivindicar.
P/1 - Você lembra de algumas coisas que...?
R - Lembro, lembro.
P/1 - Conte pra gente, então.
R - Passeata, saía de um lugar pro outro. A gente fez passeata no início da associação, de carroça, dentro da missão, como protesto. Colocamos os carroceiros, os catadores de papel.
P/1 - Por que? O pessoal não gostava dos carroceiros?
R - Não, eram muito discriminados.
P/1 - Mas por que, por causa do trânsito?
R - Não, é porque… Veja só, os caras saíam da cadeia e naquele tempo, acho que... Não sei se agora fazem isso, acho que não fazem mais. Acho que furavam a carteira, sei lá eu, manchava o documento do cara. A única opção era aquilo, né? Então quem era catador de papel, naquela época, era tudo cadeeiro, essas coisas. Então tinha essa discriminação.
P/1 - Esses...
R- Não todos.
P/1 - Não é o seu caso?
R - Mas o... Não, era o caso de muitos que na época eram catadores e trabalhavam com material reciclável. Mas é uma opção. Era um serviço que tinha mais fácil. Você chega na rua e pá, pá, catar papel e arrumar dinheiro. Fácil, né? Você ia a uma obra, nem a obra pegava o cara pra trabalhar na hora que mostrava o documento. Era um serviço meio discriminado.
P/1 - E aí vocês fizeram essas passeatas?
R - A gente fazia essas missões. Dentro dessas missões a gente fazia reivindicação, que era moradia... Um monte de reivindicação que existe por aí. A gente fazia através dessa missão.
P/1 - E como que surgiu a ideia de montar a associação?
R - Surgiu dentro da missão, porque a missão… A gente precisava arrumar dinheiro. E como a gente arrumava dinheiro era... Comunidade dos Sofredores de Rua, mas os sofredores de rua têm um jeito de sobreviver. Ele mora na rua, dorme na rua, mas durante o dia ele faz alguma coisa pra sobreviver. Ou pede ou vende alguma coisa, olha um carro… Alguma atividade ele faz.
P/1 - Ele dorme na rua?
R - Ele dorme na rua, mora na rua, mas durante o dia ele faz alguma coisa pra sobreviver. Então tinha o vendedor de café, o olhador de carro, o marreteiro... Um monte de coisinha que faziam na rua. E tinha o catador de papel. A gente juntava tudo esse pessoal, cada um dava uma contribuição. O que olhava carro, falava: “Vou olhar carro hoje e o dinheiro que eu ganhar vai pro fundo dessa missão.” O que vendia, marretava na rua falava: “Vou trabalhar o dia vendendo. Eu tiro o meu dinheiro que eu gastei, a sobra eu dou pra missão.” E assim foi indo. E o catador de papel falou: “Então nós vamos fazer o nosso grupo.”
Era um grupo de dez pessoas, onde a gente fazia… Davam uma viagem pra gente e a gente guardava num salão - num salão não, numa casa velha, abandonada, ali no Glicério. E a gente guardava pra esse dia da missão.
P/1 - Ah, tá.
R - Sem pesar, sem nada. Só arrumava e jogava lá.
P/1 - Aí tudo aquilo que era...
R - É, reciclável. Um dia antes da missão a gente precisava arrumar o dinheiro, a gente vendeu o material. É da missão, mesmo, vou pôr a mão, né? Recebemos tudo, colocamos lá na missão.
P/1 - Você lembra quanto deu?
R - Me parece que foi 63 cruzeiros.
P/1 - Na época?
R - Mil cruzeiros.
P/1 - Em que ano que era isso?
R - Era em 83, era mil cruzeiros. Até esqueço o dinheiro. Esqueço, mesmo.
P/1 - Muda tanto, né?
R - Eu acho esse dinheiro velho no… Agora eu fico lembrando de que tempo era aquele dinheiro. Eu lembro de um conto, um barão.
P/1- Um barão?
R- É, um barão. Era por aí, me parece que foi… Não sei se a Dona Regina tem esses dados lá ainda, mas eu acho que foi 63 cruzeiros que deu o nosso [total].
P/1- Foi Dona Regina que coordenava a missão?
R- Junto. Nessa época, eu já era mais… Já estava com mais juízo, ajudava também.
P/1 - É?
R-. Fazia parte também.
P/1 - Você já tinha parado de beber?
R - Já tinha.
P/1 - Como você decidiu parar de beber?
R - Não sei.
P/1 - Do nada, assim?
R - Do nada, não posso ______. Até hoje, de vez em quando, ainda eu bebo, mas eu fiquei dez anos sem colocar álcool na boca.
P/1 - Mas assim, por esforço próprio? Você procurou ajuda?
R - Não, não procurei ajuda. Agora, depois desses dez anos, de vez em quando eu preciso de ajuda.
P/1 - Porque não é fácil, né?
R - Não é fácil.
Então assim foi, fizemos a missão. Pegamos essa grana toda, juntamos, fizemos a missão. Terminou a missão, aí fomos fazer a avaliação: o quanto deu, o que gastou, o que não gastou, o que sobrou, se sobrou alguma coisa - me parece que não tinha sobrado nada. As igrejas tinham posto algum dinheiro. E o nosso grupo foi o que deu mais, o [de] catadores de papel.
P/1 - É mesmo?
R - Éramos em dez catadores. Naquele momento [em] que a gente se reuniu lá, os outros grupos… A gente prestou conta: quem fez marreteiro, quem vendeu café, quem olhou carro; o nosso foi o que deu mais. Participou mais, com mais dinheiro. Nesse dia mesmo, a gente não [se] desfez; os outros [grupos] se desfizeram, mas a gente ficou junto. Porque se a gente fez pra missão, não fazia pra gente.
P/1 - E aí veio a cooperativa?
R - Aí veio a Associação dos Catadores de Papel. Na época, em 85, 86, foi o Jânio, né? [Em] 85 ele foi eleito?
P/1 - Acho que foi.
R - 85. Quando foi 86, ele falou que o lixo era dele, aí nós fizemos a Associação dos Catadores de Papel pra brigar com ele e ganhamos.
P/1 - Com o Jânio?
R - Com o Jânio.
P/1 - Como é que foi essa luta? Conta pra gente.
R - A luta [foi] que ele falou que tinha essa atividade na rua. Ele falou que lixo era dele, ninguém podia pôr a mão. Aí, imediatamente, a gente fundou a Associação dos Catadores. A gente já estava no meio do caminho, mesmo, na luta já. Conversando, rapidinho fizemos a Associação dos Catadores; lutamos pra ganhar dele e ganhamos. Ele ainda prendeu várias carroças.
P/1 - Ah, porque ele não queria as carroças.
R - Ele não queria as carroças, não queria que ninguém mexesse no lixo. E a gente conseguiu. Em 86, 87, 88, 89, a gente fundou a COOPAMARE.
P/1 - Carlos, nessa época antes... Em 86, 87, vocês juntavam papelão, as coisas recicláveis e levavam pra onde?
R - Aí a gente já fazia, já tinha um grupo, depois que a gente...
P/1- Esses dez.
R - Esses dez… Já começou a abrir; veio um carrinho, veio dois. A gente tinha 10% pra uma coisa, fundo de uma coisa, fundo de outra, fundo de carroça, fundo não sei de quê. [Pra] tudo a gente tinha fundo pra fazer alguma coisa. E isso resolveu, a gente terminou com dez carroças. Depois começou a vir projeto e o negócio cresceu, descambando mesmo.
P/1 - Vocês tiveram apoio de quem, além da Casa do Sofredor, da Irmã Regina? Quem mais?
R - Na hora de formar a COOPAMARE, mesmo, foi o BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social].
P/1 - O BNDES?
R - O BNDES. O Paulo de Tarso, um que mora aqui… O lugar que ele mora é Vila Madalena. Ele foi lá e falou: “Vocês já estão juntos, por que não fazer uma cooperativa? Já é uma cooperativa.” Aí fizemos, fundamos a cooperativa na época do Collor. Acabamos de fundar a cooperativa, o Collor... Lá no CENACOOP, que era um grupo que formava cooperativa, onde tinha grupo de trabalhador, eles iam lá e faziam formação. Mandava técnico, coisa e tal, pra formar... Foi a gente acabar de formar a COOPAMARE, eles foram lá e zuum - o Collor acabou com essa, com esse… Como se pode falar? É um...
P/1 - Como se fosse um lugar de formação? Um lugar que dava palestra, essas coisas?
R - É um lugar… É isso. Palestras, projetos, técnico mesmo.
P/1 - Aí vocês ficaram sozinhos?
R - Não, aí já estava...
P/1- Vocês estavam… Tinha o grupo unido?
R - Aí já estava formado.
R - Já estava formado.
P/1 - E onde é a sede da COOPAMARE?
R- A sede da COOPAMARE é em Pinheiros.
P/1 - Ali no...
R - É, mas foi lá no Glicério.
P/1 - Ah, tá.
R - A primeira foi no Glicério, agora é aqui em Pinheiros.
P/1 - Ali perto do viaduto da Sumaré?
R - Isso, é ali.
P/1 - Como é o dia a dia de um catador? Ele cata, leva pra cooperativa? Como é hoje, como se organiza o trabalho?
R - Sempre foi, né? O catador ele sai pra rua, catando. À tarde, ou [ao] meio-dia, a hora que ele encheu o carrinho, ele traz pra cooperativa. Pesa aquele material, e coloca lá no comum. Recebe na hora ou recebe por mês.
P/1- É? E aí a cooperativa, ela tem prensa? Como é isso?
R - Tem prensa, tem balança, contabilidade, tem tudo.
P/1 - E vocês mandam pra onde esse material?
R - A gente manda pro… Tem material que a gente manda pra fábrica direto e tem material que a gente manda pros aparistas, ainda.
P/1 - Aparista?
R - É.
P/1 - O que é isso?
R - Aparista é um grande depósito, que ele vem [e] coloca os contêineres dele lá. Então, ele já ganha uma grana em cima, ele já faz [um] fardo maior.
(pausa)
P/2 - Sabe o que eu queria saber um pouquinho, como foi o começo da cooperativa? Vocês eram em quantas pessoas?
R - O comecinho da cooperativa foi uma Associação de Catadores de Papel, depois veio a cooperativa.
P/2 - Depois é que veio a cooperativa.
R - Isso. Primeiro foi um grupo de trabalho, depois Associação dos Catadores de Papel e depois a COOPAMARE, a cooperativa.
P/2 - Enquanto associação vocês faziam o quê?
R - Enquanto associação a gente só associava os catadores. Eram sócios da associação pra… Era associação mais pra reivindicar e também trabalhar junto. já. Quando a gente formou a associação a gente já começou a abrir, pra vir mais... Mas naquele tempo era um… Digamos [que era] quase igual. As pessoas, conhecidos que frequentavam a casa era sócios, mas não operavam com a gente. Uns operavam, outros não.
P/2 - Vocês chamavam?
R - Chamávamos. Abrimos a porta, então vinha bastante gente - associado, não associado, pra começar a ser sócio.
P/2 - Ser associado era pra reivindicar?
R - Era pra reivindicar, pra ser membro desse grupo. E aí pra formar a cooperativa, a gente formou com 25.
P/2 - Quando veio a ideia da cooperativa?
R - Quando veio a ideia da cooperativa… Foi um negócio que a gente ficou com medo. A gente tinha medo - que negócio estranho, o cara vem aqui tirar proveito. E a gente já tinha uma certa...
P/1 - Quem era atravessador, do que vocês tinham medo?
R- Não, a gente tinha medo, mesmo, era da política. Política mesmo que... O cara está interessado, [seja] atravessador ou um fabricante. Até o cara dizer que era o Paulo de Tarso, que é uma pessoa maravilhosa. Então foi difícil. Até hoje a gente olha um pro outro [e quando] fala isso morre de dar risada. Ele também dá risada. Difícil reconhecer, ele estava de terno.
P/2 - Conta como foi esse encontro com o Paulo de Tarso.
R - Ele marcou com a gente. Eu não sei [de] que jeito, ele descobriu a gente lá. Ele é uma pessoa muito dedicado a isso. Ele foi à procura da gente e a gente, nos primeiros dias, não quis se encontrar com ele. Ele insistiu. “Então, vamos ter um encontro com esse cara.” Quando ele chegou lá a gente assustou.
P/1 - De terno, gravata.
R - Terno, gravata. Ele falou que não era aquilo, o terno e a gravata era o uniforme dele de trabalho, né? Não era mesmo. A gente já tinha um certo receio. Mesmo assim, a gente foi conversando, ele acabou conquistando. E a gente começou a trabalhar junto.
P/1 - E o que ele falava pra vocês?
R - Ah, ele falava… O que ele dizia [era no] sentido da pessoa estar sozinho, em cooperativa. Mostrou várias cooperativas que a CENACOOP tinha formado, que davam certo. Por aí, foi mostrando que o negócio dava certo, então a gente foi formando.
Depois, ele ficou na cooperativa um tempão. Ele ajudou a fazer projeto, ficou mesmo acompanhando de perto, mesmo. A gente pegou confiança nele, ele confiou na gente também. Foi um tempo bom que a gente trabalhou junto.
P/1 - Agora vocês se encontram, dão risada daquele tempo.
R - [A gente] dá risada do que aconteceu. Hoje ele está em Guarulhos, [é] Secretário de Obras lá em Guarulhos.
P/2 - Qual a diferença de trabalhar na Associação e na Cooperativa?
R- Olha, quase nenhuma. Depois que formamos a cooperativa, a associação ficou paralela, não morreu, não fechou não. [A] pessoa é sócia, mas está conhecendo o que é a cooperativa. É quase como um aluno que se matricula pra depois ser um catador de papel, mesmo. Ele já é um catador, né? [É] pra ele descobrir os valores que ele tem, que que não é só catar o papel, entregar aqui, pegar o dinheiro, enfiar no bolso e ir embora. Tem outras coisas mais, [é] pra não ser isso, só pegar o dinheiro.
P/1 - Que outras coisas são essas?
R- Ah, que outras coisas? Tem o lado humano, o lado familiar, [de] ser junto, irmão um com o outro. Estar junto na luta. Não é “eu vendi meu papel, entreguei aqui na cooperativa, vou embora”. Vamos discutir o que é a cooperativa, vamos partilhar disso aqui. Isso daqui é meu - não meu, nosso. É meu enquanto eu estou, quando eu não estou não é mais meus. É mais ou menos assim que a pessoa vai descobrindo.
P/2 - Como é que funciona a cooperativa? Tem essas reuniões, vocês discutem?
R - Discute. As reuniões são às quintas-feiras. A gente discute, lava roupa suja. Recebe alguma pessoa nova e passa pros novos também, porque é uma coisa difícil passar isso.
P/2 - Passar o quê?
R- Passar o cooperativismo. A pessoa chega, talvez fica sócio, é um cooperado, mas a gente percebe que ele não entendeu mesmo o que é uma cooperativa. Depois fala que ela tem algum dono. Que nem eu, já fui dono muito tempo da COOPAMARE. Até...
P/1- As pessoas falam isso? (risos)
R - É, até falam. Tem certas situações que você tem que ser dono mesmo, até pra me entender. Tem que passar, porque senão a gente vai… Ele vai falar não, vai embora. Então, se sendo dono ele vai ficar, então é bom que você seja um dono e ele fique, porque [se] você divulgar pra ele que não é dono, aí ele vai achar que você não é o dono. Então [é] melhor assim: “Sou o dono, tudo bem, então vamos continuar junto.” Ele vai descobrir que eu não sou dono e continuou junto, está aí.
P/1 - Todos são donos?
R - Todos são donos.
P/2 - Teve que fazer isso com alguém em especial? Você tem que fazer isso sempre?
R - Isso é o dia a dia da gente. O dia a dia da gente, mesmo, é ver que a pessoa não está entendendo. Está entendo que a gente é dono, o que eu posso fazer? “Pô, vai lá no escritório, faz os caras fazerem alguma coisa pra mim.” Como eu posso fazer? “Deixa o cara pegar esse carro aqui, ir lá buscar um material pra mim.” Não é, deve negar, dar uma cortada, mas o pessoal… A gente bate testa, fala: “Olhe, essa autoridade que eu [tenho], se é que eu tenho, você tem também sendo cooperado.” A gente vê que não caiu a ficha direito, mas é aquele negócio: “Pede, manda a secretária lá, fazer alguma coisa pra mim; dar, emprestar um dinheiro pra mim.” _______ não sabe quanto tem lá, não sei o que. [A gente] bate testa o dia todo.
P/1 - (risos) Difícil. E como é o seu cotidiano? Você primeiro passa na cooperativa ou primeiro você vai catar lixo, material reciclável? Como é seu cotidiano?
R - Eu estou todo dia na cooperativa.
P/2 - Você fica direto lá.
R - Direto, fazendo tudo. Hoje, o serviço de hoje. Cheguei, fui vender a… Fui fazer uma coleta em Pirituba e uma aqui na Pompeia. Então eu faço Pompeia, Pirituba, Lapa e vou embora. Então hoje deixaram pra fazer ________ não com a perua, hoje faço com a perua. Mas tem o meu carrinho, também, pra fazer. Cheguei lá [às] onze horas, a Célia: “Vai vender a latinha ______, até duas horas dá tempo.” Carreguei a perua, fui entregar latinha. Foi onde eu me atrasei.
P/1 - Aí você veio pra cá.
R - Vim pra cá. Mas já estava tendo uma reunião lá.
P/1 - Que legal.
R - Dia a dia.
P/1 - Carlos, me fala uma coisa: o pessoal que trabalha com esse material reciclável - vocês trabalham - eles têm noção de quanto isso é bom pra preservação do meio ambiente?
R - A gente tenta passar pra eles.
P/1 - Carlos, qual você acha que é o papel do catador de material reciclável?
R - O catador do material é um… Ele está inserido na economia do país. Pensando no todo, está envolvido. ______ é o gasto que tem com caminhão - o pior não é o gasto, o pior é o aterro, que tem… Sabe lá quando vai decompor esse plástico, esses materiais. É assim, um monte de coisa, não poderia nem dizer o que isso causa. E ele não tem esse… Ele está entregando o material, está recebendo o dinheiro dele e tchau.
P/1- Aí, vocês fazem palestra pra...?
R - Fazemos palestra, [pra ele saber] o valor que ele tem, o que ele merece, o que ele não merece. E em relação ao meio ambiente. Pra merecer o que ele precisa fazer, também tem isso. É muito fácil só querer também, né?
P/1 - Em relação ao meio ambiente, o que vocês falam pra eles da importância do trabalho?
R - A gente fala que o catador está protegendo o meio ambiente. Enterram toneladas de material, ela podia ficar circulando mais. E _____ mais do que, vamos supor, faz o papel, enterra perto do alumínio, aí vai lá e corta as árvores. Nós não temos mais árvore, [pra] fazer papel hoje plantam eucalipto. Então, vai fazer o quê? Daqui uns dias não tem mais papel. Então o papel tem que girar, acho que pelo menos umas... Eu ainda vou fazer essa pergunta pros caras da Suzano: o quanto gira um papel, um montante de papel, quanto ele... Uma árvore, vamos supor, cortam ela, fazem o papel; quando dá, quanto ela fica tendo resistência ainda...
P/1 - Pra reciclar?
R- Isso. Ir reciclando, reciclando, até quando ela vai perdendo a intensidade, né?
P/1 - Vocês têm parceria com a Suzano?
R- Tem, a gente vende o material pra eles.
P/1- Ah, é? E eles fazem o papel reciclado?
R - Papelão. O Reciclato.
P/1- É assim que fala?
R- É assim que fala. Lançaram esse ano, [em] 2002, esse papel no mercado; ele é feito de papelão. E a preferência da Suzano é que seja material já usado.
P/1 - De cooperativa?
R- De cooperativa, é.
P/1 - Eles compram muito de cooperativa.
R - Compram muito de cooperativa.
P/1 - E quando você passa, você já [vê] isso vendendo em loja?
R - O reciclato?
P/1 - É.
R - Eu não vi ainda na loja, mas já tem.
P/1 - Mas você já [viu] pronto?
R - Já, nós temos. Eles mandaram.
P/1 - Quando você pensa, você pensa assim: “Isso aqui tem meu trabalho, o trabalho da cooperativa”? Você já parou pra pensar nisso?
R - É esse aqui. A produção, eles mandam pra nós. Isso é o reciclato.
P/1- Esse aqui?
R - Esse papel aqui é muito caro. Quer dizer, acho que saiu mais caro do que esse, mas é um… Ele é caro pra vender, mas se torna mais barato porque não tem matéria prima, ele [vai] girando.
P/1 - Quando você vê um papel assim, você sabe que tem o trabalho seu. O que você imagina? Você parou pra pensar nisso?
R - Não, eu não parei pra pensar nisso ainda. Papel da gente, de divulgação, a gente já achou jogado no lixo. Quando a gente acha no lixo, acha que já está bem… Quando a gente vê um material da gente, já deu, fez volta, jogado no lixo. Dá um certo... Não dá tristeza, dá alegria porque a pessoa… Vai ver que está passando mesmo por aí, né?
P/1 - Ah, está usando, está reciclando.
R - Está usando [o papel] . Não é que está reciclando, é que está passando de mão em mão. Pra ele vir e voltar, ele andou pra caramba. [Pra] voltar lá na COOPAMARE outra vez, né?
P/1 - E vai ser reciclado de novo?
R - Vai ser reciclado de novo.
P/2 - Como é isso? Como é que esses materiais que vocês produzem são usados pra falar pras pessoas o que vocês fazem? Como é a relação de vocês com… Pra mostrar pro pessoal o que vocês fazem?
R - A relação é mais com colégio, com condomínio. A gente tenta passar o que é a reciclagem, o que retorna. E pra eles, o reciclado… Não retorna dinheiro pra eles, retorna vida, retorna economia.
Às vezes querem vender o papel. Vender? “O senhor não tem o salário tal?” Os caras já estão… De você separar e passar pra cooperativa ou pro cooperado na rua, você já está ganhando. “Por que eu estou ganhando?” Hoje, o cara pensa em ganhar é dinheiro. Não é só dinheiro que ganha, a gente ganha não vendo o material sendo enterrado, a gente ganha não vendo os rios serem poluídos. É ganho, ganha muito mais que o dinheiro. Vale muito mais que dinheiro um Tietê limpo, do que eu vendendo esse material pra você e você jogando ele lá no rio, ou um plástico. Se eu não jogar ele lá, não queria ter um rio bonito, não é um ganho? Isso às vezes as pessoas não entendem; demora a cair a ficha dessas pessoas da alta [sociedade], hein?
P/1- É?
R - Demora a cair a ficha, ele quer ter lucro em cima. Só que o lucro dele tem que ser diferente. O lucro quem tem que ter em cima é quem trabalha com ele. Ele tem que ter o lucro de ter um rio mais limpo, uma luz melhor, uma água melhor, uma rua mais limpa, mais árvore. É isso.
P/1- Uma vida melhor, né?
R - É [o] que a gente tenta passar.
P/1 - Carlos, vocês têm parcerias com algum… Você falou Pão de Açúcar. Vocês têm parcerias com algumas entidades que têm coletores, como é isso?
R - Tem. A gente tem parceria com a Siemens, já há uns doze anos.
P/1 - Que é aqui perto?
R- É aqui, tem essa aqui da Lapa. E tem a da Mutin, do escritório. E eles doam o material deles pra gente.
P/1 - Doam direto?
R - Doam direto. Eu vou buscar. Vem misturado, o copinho, mas é tudo material reciclado. Mas eles têm essa parceria com a gente, de ter esse cuidado, doar esse material pra gente. O Pão de Açúcar...
P/1 - Tem alguma outra empresa? O Pão de Açúcar?
R - O Pão de Açúcar, uma loja. É por intermédio de uma… Tem uma entidade que cuida desse marketing do Pão de Açúcar. A gente estava com uma loja, a gente brigou e ficou com ela. Essa aqui da… da [Praça] Panamericana.
P/1- Da Panamericana?
R - Isto. A gente ficou com aquela loja. As outras lojas, decerto que fazem, mas vai pra outras cooperativas.
P/1 - Cada loja teria uma cooperativa?
R - Não. [De] todas as lojas [o material] está indo pra uma cooperativa, só essa que a gente faz.
P/1 - E dá um volume bom?
R - Dá um volume bom.
P/2 - Como é que funciona o ponto? Vocês se dividem, cada um vai buscar?
R - Não. Ponto a gente se divide, e o catador é conquista. O catador vai andando pela rua e vai conquistando. Dá pra fazer, eu passo nessa rua aqui, pego um material aqui de vocês; quando passar outro companheiro, pega o do frente. Tem...
P/2 - Vocês vão andando.
R - Vamos andando.
P/1- Tem algum horário que é melhor pra pegar?
R - A hora do lixo.
P/1 - Seis horas da tarde.
R - Seis horas da tarde… Sumaré é de manhã. A gente vai descobrindo, cada bairro de centro e olha o horário que põem o lixo. Na Sumaré… Hoje é sexta? Então hoje é sexta, no Sumaré. É bom.
P/1 - É bom?
R - É bom pra andar, porque vai achar as coisas.
P/1 - E aqui em Pinheiros, que dia que é bom?
R - Pinheiros é o dia todo e todo dia.
P/1 - Por causa dos bares?
R- A [Vila] Madalena parece que é quarta, quinta - quarta e quinta não, acho que terça, segunda. É segunda, quarta e sexta.
P/1- Que passa o lixo tradicional.
R- Isso, tradicional. Vocês põem o lixo pra fora, é mais fácil pegar. Tem que ter tudo isso, [saber] que horário vai pôr.
P/1 - E os bares? Pegar de madrugada, vale a pena?
R - É mais o vidro, né?
P/1 - Latinha, essas coisas?
R- É o vidro. Tem uns bares que a gente pega, os catadores pegam.
R - Nas latinhas não. Fala em latinha não, que...
P/1 - Por quê?
R - Porque todo mundo cata.
P/1- (risos)
R - Você vai lá, [ele] toma a cervejinha dele, ele enfia a latinha na bolsa, mesmo. [Você] passa dentro de um bar e fica. Quando não amassa dentro do bar, você está tomando o guaraná, o cara já está ‘assim’ com a sacolinha dele.
P/1- (riso)
R- A latinha nem cai no chão, já vai.
P/1- (riso) Por que, paga bem?
R- Não, não é que paga bem. Você está tomando um guaraná, você pode ir andando na rua e tomando o guaraná. Eles vão atrás de você. Você joga a latinha no chão, se você jogar, ela bater no chão, ela não vai ficar ali cinco minutos. Vai passar uma pessoa ali catando. Ou o catador, ou ela mesmo: “Estou juntando latinha.” Pega e leva embora. É assim. Ou o dono mesmo do restaurante junta, ou o garçom, o cozinheiro, sei lá.
P/1- E aí ele leva pra cooperativa? Como é que...
R - Ela vem pro mercado, mas só que vem pouco pra nós, pra cooperativa. Talvez vá pra cooperativa, mas é assim, uma coisa que sumiu. Eu mesmo, se eu for andando pela rua e ver uma latinha, eu vou catar e enfiar no bolso. Ou vou andar com ela na mão até encontrar um cara e dar a latinha pra ele. Mas sei pra quem eu estou dando, né?
P/1 - É a coisa mais disputada que tem?
R - É a mais disputada que tem. Não percebe, não? Olha na rua pra você ver só, o cara com a sacolinha na mão. É talvez… Não é tão mal de situação. Ele vê umas latinhas e um saco lá, abaixa e tira ou leva pra escola, sei lá. Mas vai entrar lá na fábrica.
P/1 - Mas isso é uma consciência... De alguma maneira vai entrar lá.
R - Vai lá pra fábrica.
P/1 - Mas isso é uma consciência, será da população?
R - Não é uma consciência, tem gente que não precisa disso e pega. E tem muita gente que é consciência, né? Mas menos consciência do que... mais valores, mesmo. Mais pessoas pegam pra vender, mesmo.
P/1 - Pra vender?
R - Mais pelo valor.
P/1 - Quando você pensa assim… Se você pensar que está contribuindo pro meio ambiente, a preservação, o que você acha do seu trabalho? Qual é a importância do seu trabalho?
R - Eu acho que é importante. Eu fico contente de estar prestando aquele serviço, tanto tirando meu ganho, meu sustento, da minha família, como também sabendo que no final dessas coisas vai acontecer a limpeza de rio, sabendo que eu estou contribuindo pra isso. Ajudando a natureza.
P/1 - É legal.
P/2 - Você sustenta sua família?
R - Com certeza.
P/1 - Você tem dois filhos.
R - Quase vinte anos. Não, tem três dela. Cinco.
P/1 - Cinco? Tem cinco filhos?
R - Cinco. Mas já estão trabalhando já.
P/1 - Eles trabalham com você?
R - Não.
P/1 - Em que área eles estão?
P/1 - Eles estão… Tem um com dezoito, outro com quinze e a menina está com dezoito. O menino está com dezessete. Já estão quase trabalhando, mas eu prefiro que eles estudem primeiro. Tem mais, tem um lá que eu estou pegando no pé agora: “Vamos fazer alguma coisa aí, ou…”
P/2 - Carlos, deixa eu te perguntar uma coisa. O movimento nacional… Você começou a entrar em contato com outras cooperativas. Como é que você começou a… Existe essa comunicação entre cooperativas, pelos catadores?
R- Surgiu a COOPAMARE. No surgimento da COOPAMARE surgiram várias cooperativas. E esses grupos de trabalho foram… Qual é a notícia, né? A COOPAMARE é muito conhecida. E talvez a pessoa [que] está aqui em Pinheiros vá conhecer a COOPAMARE lá na Europa.
P/1 - É mesmo?
R - “Pô, eu estava lá na Europa e ouvi falar da COOPAMARE e a COOPAMARE está aqui perto de mim.” E sendo que aqui eu tenho um grupo, estou patinando com esse grupo aqui. Então, vai pra lá, vai conhecer vocês na Bahia. A pessoa está no trabalho aqui, está na Bahia, não sei onde, surge o nome da COOPAMARE, então: “Eu estou lá pertinho.” É por aí. Aí se espalhou mesmo, hoje a gente está latino-americano - a gente fala nacional, mas já não é mais nacional. Nesse [encontro] que teve agora em Caxias o mapa cresceu, esse encontro nacional… Cresceu, veio a Argentina, veio Uruguai, Paraguai. Veio lá uns três ou quatro países [de] fora.
P/2 - E como os catadores vão? Vão todos os catadores, como é que fica?
R - Já estão organizados, filha - quer dizer, em parte.
P/1 - A cooperativa paga passagem, tudo isso?
R - A cooperativa arruma dinheiro, ______ recibo.
P/1 - Dá um jeito.
R - Dá um jeito. Eles brigam lá, arrumam ônibus. O [pessoal do] Uruguai deu pena, eles vieram sem comer. O ônibus quebrando, um ônibus velho.
P/1- É mesmo? Se você comparasse a situação do catador do Brasil, da Argentina, do Uruguai, quais são os principais pontos que você lembra que falavam?
R- Eles não..
P/1- Lá é mais difícil? O que...
R - Não é que é difícil.
P/1 - O que é diferente?
R - É tão desorganizado. É a política, sempre a política está no meio, que não deixa, impede. Outras vezes… Aqui tem companheiros [que] têm ido em encontros pra tentar juntar o catador; aqui pertinho, no interior. Tem um cara lá atrás que: “Fala muito não, hein?” Aqui, perto de São Paulo. Veio a descobrir esse ano.
P/1 - É mesmo?
R- A gente começou a juntar os catadores. Um cara __________, um atravessador ameaçando.
P/1 - Esse é o maior problema que vocês enfrentam?
R - Não, o maior problema pra nós não é...
P/1- Um dos [problemas]? Não?
R - Passam por cima.
P/2 - Qual é o maior a maior luta do movimento de catadores?
R- É tudo. Acho que a luta é o todo mesmo e não tem… Tem que enfrentar.
(pausa)
P/2 - Você estava falando das principais lutas, o que vocês mais reivindicam, qual é?
R - O que a gente reivindica é o... É conhecimento do catador, é o reconhecimento pelo poder público, isso a gente está conseguindo bem. Que o próprio catador, pra não estar acontecendo isso, se junte mais, que não deixe ser levado. Ter vinte, trinta ao lado dele, que seja tudo junto. Essas lutas que a gente tem por aí.
De Estado pra Estado muda. Um Estado quer ser mais; não pode ser assim, tem que ser todo mundo unido. Mesmo se está fraquinho, aquele fraquinho tem lugar no meio dos movimentos grandes. Hoje existe a COOPAMARE, tem cooperativa que está maior do que a COOPAMARE, mais organizada, mais pra frente, com mais grana, mais equipamento. Não é por causa disso que a gente vai ficar… “Pô, ensinamos eles e estão… Olha lá!” Se precisar da gente, mesmo a gente estando menos, a gente vai ajudar. Está entendendo? Não tem essas coisas. Esses porrinhas sempre tem no meio.
P/1 - (risos)
P/2 - Que que você sonha pra COOPAMARE Imagine ela daqui a vinte anos. O que você quer que ela seja?
R - Eu realmente nem penso em COOPAMARE mais. O que eu estava falando pro... Como chama? O Frederico. “Nem penso mais em COOPAMARE. Eu penso num movimento nacional, o nosso produto ser fabricado por nós mesmos.” Uma fábrica pra nós.
P/1- Teria usina...
R - Usina, tudo, ______.
P/1 - Ter todo o processo de reciclagem.
R - Todo o processo. Inventa um nome aí, que inclua todo mundo. Esse papel aqui é feito pelos catadores de papel. [Que] não seja COOPAMARE, não seja Reciclan, não seja ninguém. [Que] seja pelo Movimento Nacional dos Catadores, uma fábrica em Pernambuco, não sei onde aí. Seja nosso, mesmo. Não que seja Companhia Suzano [de Papel e Celulose]. É mais ou menos isso que eu penso.
P/2 - Vocês estão juntando… Como vocês vão juntando dinheiro pra chegar a isso?
R - Não sei. Não sei como vai ser, mas o projeto meu, da minha cabeça é esse. E um dia o catador fala: “Essa fábrica aí é nossa.” Ele mesmo andando com o carrinho na rua, vê um papelzinho: “Aquilo veio da minha fábrica.” (risos)
P/1 - É bacana, vamos torcer pra acontecer.
R - É. Isso eu sei que… Dez pessoas deram um grupinho pensando como amanhã. Amanhã tem a missa de uma pessoa que idealizou isso e não chegou a ver o catador junto. Viu só uma partezinha em 87, depois faleceu. Se ela estivesse aí pra ver hoje, [veria que] nós estamos em um movimento nacional. Antes era o quê? Quando ela faleceu tinha um grupo de catadores de papel e ela queria ver todo mundo junto. Essa ideia não pode morrer, tem que ir pra frente.
P/1- Quem é essa pessoa?
R- É Ni Luca.
P/1- Ela é de São Paulo?
R- Não. Ela é do Uruguai.
P/1 - E ela que veio com essa ideia de ter o movimento?
R- Não, ela tinha… A ideia é de todos, mas quando surgiu a ideia ela queria ver, ela falava sempre [que] queria ver os catadores de papel unidos. Ela viu muito pouco do que pensava. Ela pensava alto também. Ela se foi, mas não se acabou, não.
P/1 - O espírito da luta...
R - O espírito continua. Tudo que ela queria ver, hoje se ela estivesse viva, ela estaria vendo. Grupos de moradia, está aí essa luta grande.
P/1 - Bacana. Você acha que falta alguma coisa?
P/2 - Tem mais alguma coisa que você tenha vontade de falar?
P/1- Você acha que ficou faltando...
R - Não, acho que está completo.
P/1 - Última pergunta: o que você achou de ter dado essa entrevista pra gente, de fazer o vídeo… Teve seu passado, a infância, a adolescência; você olhou pra trás e essa entrevista [pode] servir pra formar, informar outras pessoas. O que você achou dessa experiência?
R - Pra mim, eu acho bom. Eu mesmo, tem vezes que eu me inspiro em muitas coisas antigas. Comecei a olhar aquelas fotos, fiquei olhando assim, mas essas fotos. De quando são aquelas fotos? São muito velhas?
P/2 - Quais?
R - Aquelas pessoas, acho que nem... As foto que estão no painel, lá.
P/1 - Década de trinta, quarenta.
R - É isso que a gente acha isso no lixo.
P/1- É?
R - Acha. Tinha uma coleção de jornal que [mostrava que] o rio não era direitinho assim, o rio era torto. Eu acabei perdendo uma coleção, uma pilha de jornal, de 54, 49.
P/2 - É mesmo?
R - É. Jornal, muitas coisas que eram manuais ainda. Eu acho que do jeito que os jornalistas escreviam publicava no jornal, então aquilo, pra mim… Eu gosto de ver essas coisas. Está vendo o que está hoje, agora passou no computador e já sai o jornal amanhã. O rio está direitinho, uma linha só e não é assim.
Fico bravo quando criticam o prefeito, a prefeita, que seja, que dá enchente. A água entrou aqui na minha casa, mas por que a água entrou aí na sua casa? Porque aí é lugar dela. E a pessoa não aceita aquilo, que ali é o lugar da água. Vai morar na margem do rio, fazer o prédio na margem do rio, mas ele não viu antigamente como é que o rio andava, aí fica pondo defeito, que o bueiro está sujo.
Naquele tempo não tinha bueiro, não tinha sujeira, não tinha nada. Tinha só mato, não tinha? E a água empoçava lá pelo mato. Não tem, isso eu fico… “Ah, mas põe ela pra lá.” Põe ela pra lá, vai pra casa do vizinho. Quando enche, ela vai vir pra cá outra vez. Não tem jeito. Pra mim, é fora do normal isso.
P/1- (riso)
R- A cidade de São Paulo podia inventar um jeito de fazer as ruas com jeito de terra - um pedacinho de terra, um pedacinho de asfalto. Mas está uma piscina, cada um quer tampar o seu espaço. Hoje São Paulo está uma casca, uma piscina. Água vai entrar na sua casa? Vai não, você pega e enfia uma paredinha ali. A água vai entrar na minha casa desse lado aqui, faz uma paredinha ali. Ah, a casa vai entrar...
Daqui a pouco, na rua ali tem água. Em vez de a água entrar pras terras, que eram os porões que a água entrava e ia embora pra terra, não vai mais, fica um rio ali dentro. Aí fica todo mundo xingando: “Ah, não posso sair da...” Pô, você tampou o lugar da água. Ela vai ficar aí, não é?
P/1- É.
R - Essas coisas que sempre eu vejo, as antiguidades, eu gosto de olhar. Casa velha, que nem ali no ______ do Glicério, as casas… Pode passar ali na Rua dos Estudantes que tem um alçapãozinho, bem feitinho. E um buraco, só que ele está tampado e a casa está cheia de entulho.
Aquilo ali era o quê? Era um buraco, a água água saía lá, entrava dentro da terra, e os pisos eram de madeira.
P/1 - Pra cima.
R - E pra cima. Quer dizer, às vezes você está lá dormindo na sua casa e está cheio de água aqui, mas ela está indo embora pra terra. Agora não, todo mundo tampou. Então a hora que chove, a água… Inteligência, né?
[É] verdade. Eu mesmo ajudei a tampar, jogar muito entulho naquelas casas velhas ali. ______
P/1- (riso) Quando você trabalhava nas construções?
R - É, mas eu pensava, eu sabia que estava fazendo… A gente estava tampando a água, tampando o lugar dela. Era tudo gradinha de ferro, pra não entrar bicho, mas a água entrava e sumia na terra. Agora não, agora [é] tudo tampado, então a água tem que ficar à vontade mesmo, até o sol sumir [com ela].
P/1- (riso)
R - [É o] maior barato isso aí.
P/1 - Pra gente terminar, Carlos, queria que você mandasse uma mensagem pros outros catadores. Qual a importância do trabalho de vocês, que conselho você daria?
R - Eu daria o conselho, o que eu daria é que todos os catadores abraçassem essa luta com vontade, porque é pra melhora de todos - tanto [pra] si próprios como pro planeta. O planeta ganha com isso, com o trabalho dos catadores.
P/1 - Não é uma coisa isolada, né?
R - É, não é uma coisa isolada. Não só ele ganha; tem o ganho dele, mas o planeta em si ganha mais. É essa mensagem que eu passaria pra catador, que ele pensasse mais no…
P/1 - No todo.
R - No todo, não só no dia a dia. É isso.
P/1 - Obrigada pela entrevista, foi ótimo.
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