Entrevista de Naruna Costa
Entrevistada por Ane Alves, Renata Pant e Alisson da Paz
São Paulo, 30 de setembro de 2019
Projeto Conte sua História
Código PCSH_HV 831
Transcrita por Selma Paiva
P/1 - Vamos lá. Qual seu nome, local e data de nascimento?
R - Naruna de Lima Costa, nasci em São Paulo, em 24 de fevereiro de 1983.
P/1 - O nome dos seus pais?
R - Meu pai chama Agnaldo Divino Costa e minha mãe Creonice Santina de Lima Costa.
P/1 - E o que seus pais faziam?
R - Muitas coisas. Meu pai tem oitenta anos hoje, ele é mineiro, ele é carpinteiro, veio para São Paulo acho que com doze anos e trabalhou muito com carpintaria, em obras de construção, enfim e minha mãe já foi feirante, já foi boia-fria, já trabalhou com empresas que constroem rádios e tal, enfim, com essas coisas de construir pequenas peças e, depois que ela casou, não trabalhou mais, ficou dona de casa.
P/1 - E quais os principais costumes, assim, da sua família, que você lembra?
R - Eu tive uma infância assim: meu pai é vinte anos mais velho que a minha mãe, então ele é da geração dos meus avós. Então, a gente seguiu muito uma ... um jeito de vida, de pensar as coisas em casa de forma muito tradicional, não é? O meu pai era muito rigoroso com a gente. Então, a gente não tinha hábito de sair, a gente era muito caseira. Mas, coisas que eu acho que me remetem muito à minha criação é uma relação muito profunda com o que é rural. A minha infância toda foi em rua de terra, anos noventa, periferia, não é? (risos) Então, o meu pai tinha, assim, vaquinhas, e cabras e a minha mãe também, com a relação da família, com a roça, então, sempre teve muitas plantas, galinhas e coisas desse tipo. Então, a gente foi muito rodeada na infância por essa relação, não é? Andar a cavalo. E minha mãe fazia queijos e meu pai vendia, a gente vendia para os vizinhos, leite, então eu ajudava meu pai a tirar leite de vaca, essas coisas. É uma coisa que foi se...
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Entrevistada por Ane Alves, Renata Pant e Alisson da Paz
São Paulo, 30 de setembro de 2019
Projeto Conte sua História
Código PCSH_HV 831
Transcrita por Selma Paiva
P/1 - Vamos lá. Qual seu nome, local e data de nascimento?
R - Naruna de Lima Costa, nasci em São Paulo, em 24 de fevereiro de 1983.
P/1 - O nome dos seus pais?
R - Meu pai chama Agnaldo Divino Costa e minha mãe Creonice Santina de Lima Costa.
P/1 - E o que seus pais faziam?
R - Muitas coisas. Meu pai tem oitenta anos hoje, ele é mineiro, ele é carpinteiro, veio para São Paulo acho que com doze anos e trabalhou muito com carpintaria, em obras de construção, enfim e minha mãe já foi feirante, já foi boia-fria, já trabalhou com empresas que constroem rádios e tal, enfim, com essas coisas de construir pequenas peças e, depois que ela casou, não trabalhou mais, ficou dona de casa.
P/1 - E quais os principais costumes, assim, da sua família, que você lembra?
R - Eu tive uma infância assim: meu pai é vinte anos mais velho que a minha mãe, então ele é da geração dos meus avós. Então, a gente seguiu muito uma ... um jeito de vida, de pensar as coisas em casa de forma muito tradicional, não é? O meu pai era muito rigoroso com a gente. Então, a gente não tinha hábito de sair, a gente era muito caseira. Mas, coisas que eu acho que me remetem muito à minha criação é uma relação muito profunda com o que é rural. A minha infância toda foi em rua de terra, anos noventa, periferia, não é? (risos) Então, o meu pai tinha, assim, vaquinhas, e cabras e a minha mãe também, com a relação da família, com a roça, então, sempre teve muitas plantas, galinhas e coisas desse tipo. Então, a gente foi muito rodeada na infância por essa relação, não é? Andar a cavalo. E minha mãe fazia queijos e meu pai vendia, a gente vendia para os vizinhos, leite, então eu ajudava meu pai a tirar leite de vaca, essas coisas. É uma coisa que foi se perdendo, conforme toda a mudança também da quebrada, não é? Mas é algo que. para mim, é muito genuíno, assim, até hoje a relação que a minha mãe tem com as plantas e o meu pai com a natureza, assim, com os animais, mesmo não tendo mais bichos e tal, é muito forte, é uma relação muito forte. Então, acho que essa é a qualidade de tradição mais forte assim, que eu guardo deles. Os dois estão vivos, mas... (risos)
P/2 - Que bairro que é esse, que você está falando da sua infância?
R - É Freitas Junior, fica em Taboão da Serra. Eu cresci em Taboão da Serra.
P/1 - Você tem quantos irmãos?
R - São três mulheres e um homem, que é o mais novo.
P/1 - E você sabe a origem da sua família?
R - Toda a família da minha mãe é nordestina. Minha mãe é de Alagoas, minha avó era de Pernambuco, (risos) meu avô também, mas tem uma parte que é cearense. Então, toda essa parte da família, assim, é uma família de retirantes, né, que vieram para São Paulo em busca de trabalho, enfim, de tentar uma vida um pouco melhor. Então, é uma história bem tradicional também, infelizmente tradicional, vieram de pau de arara para cá e tudo o mais e, portanto, essa relação com o trabalho na feira. Então, eles vieram meio que fazendo isso, por serem trabalhadores rurais nessas regiões, mas o meu pai é mineiro, ele é de Varginha, a cidade dos ETs, e é uma mistura, assim, porque a família do meu pai eu sei muito pouco, porque, realmente, a relação com a família do meu pai foi muito restrita, a gente conviveu muito mais com a família da minha mãe, que veio em peso para São Paulo, já a do meu pai não. Mas tem uma parte que é indígena, e tem uma parte, que é a maior parte, que é negra. Então, meu pai trouxe, já, essa cultura afro e africana, não é? Meu pai benzia, trouxe também a cultura afro religiosa, a relação da gente com ... mesmo não tendo crescido num ambiente onde a gente pudesse ter sido, sei lá, do candomblé especificamente, diretamente, mas essa cultura fez parte da nossa infância, assim como o catolicismo popular pela figura da minha mãe, das crenças em Padim Padre Cícero e meu pai com São Benedito. Então, é uma mistura bem bonita. Acho que as duas frentes foram muito importantes na minha formação. As culturas de congado, meu pai fazia parte, quando criança, desses grupos de reisado, e de irem nas casas e as pessoas cantarem. Então, todas essas tradições, ainda que não fossem muito claras para a gente, o que é que é cada coisa, fizeram parte da nossa formação. E a gente não sabe exatamente, eu não sei, por exemplo, da família do meu pai, que tribo que fazia parte. O que eu sei é que minha bisavó, isso é horrível, foi uma índia laçada, que eles falam, que é muito horrível, não é? Essa apropriação mesmo, de uma geração, mas o meu pai tem oitenta, o irmão do meu pai tem quase cem anos, está vivo ainda. Então, eles pegaram, anteriores a eles, pegaram mesmo esse período de escravidão e pós abolição, que meio que não aconteceu assim, e a relação também com a apropriação indevida de tudo: da cultura, dos corpos indígenas. Então, tem essa ... mas a gente não sabe ainda de onde vem, porque a maioria não está viva, a gente não tem uma relação próxima, não é? Então, não sei que tribo que é e tal. E muito menos as etnias que fazem parte da família do meu pai, que é quase toda negra.
P/3 - Você acompanhava essas montagens de reisado, de benzer, essas coisas? Como é que era isso?
R - Sim. Essas culturas populares locais de Minas não, não é? Que são os reisados. Isso a gente nunca fez, eu só via o meu pai cantar. Ele cantava sempre muito, mas a benzeção sim, muita gente ia em casa para pedir para o meu pai ir lá benzer um filho, uma pessoa. Isso era uma coisa comum e a gente também, quando tinha alguma crise, alguma doença, alguma coisa difícil, que eles não sabiam identificar, meu pai fazia reza, benzia a gente e sempre funcionava, assim (risos). Isso até a adolescência, eu lembro de uma vez na adolescência, eu tive uma crise nervosa, com alguma coisa assim, eu cheguei em casa tremendo, esquisita, meu pai fez uma reza, assim, ele começou a fazer, já passou. Eu estava há horas tendo uma crise, que eu não sabia identificar o que é que era, eu chego em casa e ele me fez essa reza. Foi super mágico, não é? E foi algo que ele adquiriu também naturalmente, porque a mãe dele também, segundo ele, benzia. Que eu não conheci minha avó, não é? Ela benzia. E, uma vez, quando ele era criança lá em Minas, foram procura-la para benzer uma outra criança e ele tinha acho que nove anos, ela não estava, ele falou: “Não, pode entrar que a gente benze”. Ele juntou todos os irmãos e ele começou a benzer, de brincadeira, assim: “Te benzo e te curo” não sei que lá... (risos). E ele começou a falar coisas, todos os irmãos ficaram muito assustados, começou a fazer umas rezas que ele não sabia de onde veio, aí a mulher agradeceu, foi embora e depois de um tempo vieram agradecer a mãe dele, e tal, dizia que ele tinha feito uma reza, a criança tinha ficado boa e aí todo mundo ficou assustado e aí ele foi desenvolvendo assim. Ele tem uma relação com a mata, de entender quais são as ervas que pode utilizar, de fazer chás, assim, sem nunca ter estudado, ele sabe muitas rezas de cor, é bem bonito. É bem forte, assim. (risos)
P/3 - Você lembra de alguma?
R - Eu lembro, mas eu não posso falar. (risos) A maioria das rezas que o meu pai me ensinou são bem secretas e sagradas, assim, ele não deixa a gente falar por aí. (risos)
P/1 - E essa casa lá no Taboão, que você passou a infância, como ela era? O que você lembra dela, assim?
R - É uma casa que o meu pai construiu toda, ela tem história, porque o meu pai foi um dos primeiros moradores do bairro, não é? Então, muito antes dele conhecer minha mãe e eles casarem, ele já morava lá. Então, quando a gente nasceu e era criança, alguns amigos antigos dele contavam histórias, que ele criou uma cobra gigante lá dentro e as pessoas tinham medo de ir, porque tinha uma cobra na casa dele e tal. Tem umas histórias assim, que ele tem relação com os animais, não é? Então, tinha isso assim, sempre foi uma casa um pouco misteriosa. E o que eu mais lembro, assim, é da garagem, porque era um lugar onde guardava o carro e tal, mas também tinham muitas e muitas coisas, inúmeras coisas e, para a gente, era uma coisa mística. Lá tinha um potinho assim, que tinha uma coisinha lá dentro que parecia o feto de um bicho, a gente não sabia exatamente o que era aquilo, mas ele falava que era o diabinho da garrafa. (risos) E a gente morria de medo mesmo, de pisar naquele lugar, mas tinha muita curiosidade. Acho que eu o vi duas vezes. Eu não sabia, então, eu tenho um imaginário, de achar que ele tinha uns chifrinhos, mas ele tinha um rabinho, mas parecia o feto de uma criança. Era uma coisa bem estranha, assim, bem esquisita. E que um dia ele desapareceu. A gente já era adolescente, meu irmão já tinha nascido e tal, já era grande, assim, e aí a gente entrou lá e o potinho estava vazio, aberto e vazio e isso causou um medo absurdo em todo mundo (risos) e depois o próprio potinho desapareceu. A gente não sabe o que aconteceu, é um mistério, mas o meu pai diz que era ele que tinha que ter saído, que saiu sozinho. E até hoje ele fala que era o tal do caramunhão lá, o bichinho que protegia, nem sei o que é que era aquilo. (risos) Mas enfim, místicas de um lar, assim, era e é ainda um lugar muito místico. É saboroso, assim, mas é uma casa de alvenaria grande, que ele fez questão de construir, inclusive tem outras, são três casas no mesmo quintal, que ele também alugava e tal. Então, foi um lugar que ele construiu para que a gente pudesse morar e também tivesse uma estrutura, uma aposentadoria. Mas ele mora lá até hoje. E é isso. (risos)
P/1 - E você era uma criança com muitos amigos? Quais eram as suas brincadeiras preferidas na infância?
R – A gente não tinha. Como eu disse, ele era muito rigoroso, não é? A gente não tinha essa coisa que a maioria das crianças da periferia tinha, que era brincar na rua ou ir na casa das pessoas. E, como nós éramos em três, durante a infância e nós três temos uma idade muito próxima, então, a gente se divertia meio que entre a gente mesmo, no nosso quintal. Tinha até uma senhorinha que vendia balas lá na rua e ela falava que nós éramos as únicas crianças que não ia lá pedir bala e tal, porque a gente não tinha essa relação com a rua, não é? Mas a gente inventava muitas coisas, era um quintal muito divertido, a gente inventava coisas e criava cabanas e tinha essa relação com os animais, não é? A gente brincava com os bichos, a gente via os bezerrinhos nascerem, tinha as cabras, tinha as galinhas. Então, a gente se relacionava muito com esse jeito meio rural de viver, assim. Então, a gente não sentia muita falta, na infância, de ter outras coleguinhas, para poder se divertir com outras coisas, porque era um imaginário louco que a gente ficava naquilo para sempre, desde brincar com o bichinho do coqueiro, onde ele vai parar, até comer minhoca, (risos) essas coisas malucas que as crianças inventam e a gente se relacionava muito entre a gente mesmo, as três meninas.
P/1 - E o que você queria ser, quando você crescesse?
R - Ah, eu descobri o teatro sem querer, assim. Acho que eu sempre quis ser artista e a minha mãe achava que eu ia ser cientista, porque eu ficava inventando, realmente, coisas. Mas tudo, para mim, era uma encenação, mas eu não sabia que existia o teatro, não é? Então, tudo eu queria representar, eu queria muito cantar, e cantava muito qualquer coisa que me ensinasse, que meus pais também cantavam muito, minha mãe. Todo dia de manhã eu ouvia a cantoria deles. Então, a relação com a música era muito forte em casa. Então, eu tinha essa vontade, mas não era uma coisa de profissão. Acho que eu não tinha um sonho de profissão. Eu queria fazer cosias. Pisciana também, não é? Toda sonhadora. (risos) E aí, quando eu descobri o teatro na adolescência, aí eu entendi o que eu queria fazer, mesmo. Falei: “Olha, é isso aí. É isso aí. Porque tem tudo que eu gosto de fazer, cabe aí dentro. Eu gosto de dançar, de cantar, inventar coisas e fazer cenários e tal. Então, dá para fazer isso”. Eu nunca tive outro sonho profissional.
P/3 - Voltando aos bichinhos lá, tinha algum assim, que era o seu predileto? Que você aprontava com ele? (risos)
R - Não. Tinha fases. Eu lembro que a gente fazia, por exemplo, uma diversão, porque é isso, a gente acompanhava também as estações, não é? Então, era época de coisas, tinha época das lagartas, por exemplo, dos mandruvás que ficavam no coqueiro e aí chovia e essas lagartas, não é? Então, era um amor que a gente tinha por elas, e aí a gente pegava, por exemplo, várias e colocava dentro daquelas latas que não existe mais, sabe? Lata de goiabada e tal. A gente fazia vários furinhos e colocava elas lá, até elas virarem borboletas. Muitas morriam, mas algumas viravam. (risos) Então, a gente acompanhava o processo: “Agora será essa?” Via virar casulo, aí quando virava casulo ficava mexendo, via o casulo mexer, entendia como era o casulo, quando ela estava saindo, daí tirava da caixa, para ela virar borboleta, acompanhava ela voar. Então, era todo um caminho assim, até ... aí quando não tinha elas, era outra coisa, era o bichinho do coqueiro, eram várias coisas, né? Os pintinhos que, às vezes, a gente pisava sem querer em cima de um, matava e era um chororô e enterrava o pintinho. (risos) Muitas coisas.
P/1 - Essas músicas que seus pais cantavam, você lembra que músicas que eram?
R - Minha mãe sempre cantou Roberto Carlos, porque ela é super apaixonada e ela escutava aquelas rádios, Rádio América, Rádio Capital, Rádio Eli Correia, não sei que (risos) todo dia de manhã e sempre tocava Roberto Carlos e ela cantava o dia inteiro Roberto Carlos. Uma voz bem aguda e super afinada assim, e meu pai cantava tudo, desde os sambas antigos, né? Zé Keti, Cartola, até essas canções de reisado, de Minas, referências, músicas também religiosas, às vezes ele cantava religiosas, assim, candomblé, às vezes escapava um ponto, alguma coisa, mas era muito raro. Porque ele é muita seriedade, assim, com relação a isso. E ele é o oposto, ele tem uma voz bem grave, bem grave e minha mãe bem aguda. E aí era ele limpando as coisinhas dos passarinhos do lado de fora, minha mãe na cozinha e os dois cantando simultaneamente, assim, muita cantoria em casa.
P/1 - Qual a primeira lembrança que você tem da escola?
R - Nossa, que pergunta boa. Eu acho que foi quando ... nem é da escola exatamente, mas eu lembro a gente voltando da escola, que é quando asfaltaram a rua, não lembro o ano, mas a gente ficou... estava voltando da escola quando tipo, liberaram a rua e ela estava asfaltada e a gente podia correr, andar nela. Foi uma coisa bem interessante, que a gente largou os materiais e saía correndo na rua, minha irmã caiu, (risos) foi bem divertido. É uma memória, de volta, não é, da escola. Da escola, exatamente, eu acho que as coisas que eu lembro foi um processo de ... de ... porque eu lembro que a escola era muito aberta, quando eu comecei a estudar assim, não tinha grade, não tinha muro, tinha muito mato ao redor, a gente corria. Ah, é verdade, essa é uma lembrança, a gente corria muito em volta da escola e fazia aquelas armadilhas com capim, sabe? Para as pessoas enfiar o pé e cair, essas coisas, não é? (risos) Às vezes a gente caía também e tal, e depois ela foi deixando de ter espaços, porque ela foi ficando cada vez mais encarcerada, assim. Aí foram os muros, a gente já não podia mais, na hora do recreio, sair para fora, no jardim. Depois começaram a ter grades entre as escadarias da escola. Então, toda vez que você ia sair para o refeitório, tinha que passar por três portões. Essa é uma memória forte, de ver a escola ficando cada vez mais fechada, isolada da comunidade, não é? Até por conta do tráfico, das relações externas mesmo. Que era um período muito pesado, na periferia, nessa época. É isso, anos noventa. Então, a gente não tinha limites, a relação das bocas, ainda não tinha uma certa organização e as crianças ficavam muito expostas. E aí, a alternativa foi prender a gente, cada vez mais.
P/1 - Tem algum professor que te marcou na escola, que você lembra?
R - Tenho. Tem um professor, chama professor Roberto, professor de Português. Isso já era no colegial, assim, porque isso: era tudo muito rígido, a figura do professor era sempre de uma pessoa que a gente não podia conversar, que a gente não podia se relacionar, não tinha uma abertura com os alunos, não é? E o professor Roberto, eu lembro no primeiro dia de aula dele, ele pediu para juntar as carteiras, os melhores amigos: “Quem for amigo já fica junto, porque eu não quero ficar disputando com vocês”. (risos) E eu achei isso muito curioso. Por outro lado, ele era extremamente rígido, e eu gostava de escrever, assim, redação e tal e ele era muito rígido com pontuação, com tudo. Com relação ao material que ele pedia, não é? Mas ao comportamento ele era super flexível, conversava com a gente, era amigo de todo mundo, era uma pessoa que todo mundo gostava. Aliás, acho que ele dá aula até hoje na escola. Então, foi uma pessoa com quem eu senti, eu entendi que poderia, que essa distância não precisava existir, que eu poderia trocar, podia olhar para o professor e falar: “Poxa, não estou entendendo o que está rolando”. Sem medo de me relacionar com ele e sem perder a qualidade, que aí ele me ensinou coisas que outros professores, por eu gostar de escrever, por exemplo, relevavam e ele não. Então, era um jogo duplo assim, ele me estimulou, me instigou a correr atrás. Foi um momento bem legal. Bem interessante. Eu já fazia teatro nessa época, então foi bem legal. Algumas metáforas começaram a aparecer ali, na relação com ele. Ele realmente me marcou.
P/3 - E como foi esse seu primeiro contato com o teatro? Você lembra?
R - Foi justamente na escola. Um grupo de teatro foi lá para divulgar uma peça que eles iam apresentar no Taboão. E aí a gente foi assistir. E aí, quando eu assisti, eu nem consigo mensurar a relação da peça comigo, mas a relação do teatro, e de estar no teatro e pensar: “Nossa, é isso que eu quero fazer” não saiu mais da minha cabeça. Aí, logo em seguida fui procurá-los, saber se eles estavam dando oficinas e coisas e tal, e estavam e ali eu comecei a fazer oficialmente, tipo fazer oficinas, entender. Ainda sem uma noção de que aquilo poderia ser uma ferramenta para me fazer refletir ou fazer outras pessoas refletirem sobre outras coisas, não é? Ainda não sabia que eu poderia usar aquilo muito mais a meu favor. Eu ainda via o teatro como um entretenimento. Mas foi muito impactante assim, foi realmente uma certeza. Tanto que depois, meu pai não quis deixar a gente fazer teatro, quis tirar a gente do teatro. Foi uma loucura assim, porque eu tinha que fazer, eu sentia que iria morrer se eu não continuasse com aquilo. Foi uma batalha, a gente conseguiu dobrar, (risos) convencê-lo que poderia sim ser um espaço de dignidade feminina, não é? Porque até então, fazer teatro ou qualquer coisa relacionada à arte era impossível para uma menina que se considerasse, entre todas as aspas do mundo, “de família”. Todas as aspas do mundo. (risos). Então, por isso inclusive, isso também me motivou a colocar meu nome artístico com o sobrenome do meu pai, que é o Costa, mas minhas irmãs, por exemplo, usam o Lima. Eu uso Costa por causa desse papo que eu tive com ele, falei: “Vou levar você comigo, eu vou te provar que eu não vou sujar seu nome”. (risos) Então, foi uma relação assim, durante muito tempo, eu tinha um esforço muito grande de mostrar para ele que era um lugar que eu poderia trabalhar com dignidade. E hoje ele adora, ama, admira.
P/3 - Como foi esse papo com seu pai?
R - Ah, uma brigaiada, na real, não é? Não teve nada de elaborado, assim. Era uma disputa, ele não deixava a gente ir para os ensaios e aí os amigos que faziam teatro com a gente iam lá pedir para ele, ele não deixava, a gente chorava e ficava falando no ouvido da minha mãe para ela deixar e tal, até que a gente conseguiu falar com ele, mas não foi algo... foi algo que a gente batalhou muito para conseguir, assim, não foi um papo de: “Vamos sentar aqui e conversar sobre”, era: “Pelo amor de Deus”. (risos)
P/1 - Como você fala, seu pai era bem rígido. E quando você começou a sair com os amigos? Quando você foi liberada para sair com os amigos?
R - A gente já era adulto, eu acho, assim dele ficar mais de boa, mas acho que o teatro ele fez essa ponte, porque aí a gente ia ensaiar, e não sei o que, daqui a pouco já não tinha mais hora certa e apresentação e ensaios que iam até tarde. Isso foi tirando dele essa rigidez de entender: “Está bom. Tudo bem”. Mas nunca foi uma coisa tranquila, de dormir fora de casa ou chegar meia noite sem ouvir ele falar, a fala de minha mãe. Então, nunca foi tranquilo, assim, acho que foi um processo. Foi aos poucos, mas até hoje ainda, se ele puder, ele fica ... (risos)
P/1 - E você sempre trabalhou com teatro, seu primeiro trabalho que você ganhou dinheiro já foi com teatro?
R - Não. Eu trabalhei, fui até camelô. Já trabalhei com muita coisa. Primeiro, assim: para conseguir uma graninha aqui e ali eu já fazia os corres para a família, para minha tia, para minha mãe, ia vinte vezes no mercado comprar as coisas, dava uma moedinha, não é? A gente conseguia. Aí que eu comecei a ter relação com o dinheiro, fazer trocas: “Vou ali no mercado para você e você me dá o troco. Vou ali na costureira, ou fazer não sei o que”, esses corres assim, que dava para comprar as coisas, sei lá, um cachorro quente, às vezes a gente trampava assim desse jeito a semana inteira para conseguir comer um dogão que era maravilhoso, que vendia ali na frente do mercado ou um sorvete de massa, como a gente falava, não é? Extra oficial. Mas aí oficialmente eu fiz esses cursos que são programas sociais e tal, que tem muito na periferia, né, de formação técnica para fazer trabalhos subalternos na real, mas tem essas formações, e aí eu fiz seis meses e depois eles tipo encaminhavam para entrevistas, eu tinha quatorze anos. Aí, com quinze anos, eu comecei a trabalhar. Antes disso, aos quatorze, que foi inclusive nesse período que eu estava estudando, eu comecei a trampar de camelô, era uma vizinha que trabalhava, que vendia roupas infantis em Pinheiros, e aí falou para a minha mãe que a menina que trabalhava com ela, tal, tinha ido viajar, sei lá, e aí eu fui lá, assim foi bem terrível, eu não gostei, (risos) tinha que acordar muito cedo, quatro e meia da manhã e ficar lá, tipo madrugando lá, o dia inteiro, nada acontecia, para vender roupa de criança. E lá no Largo da Batata. Fiquei um tempo trabalhando lá. (risos) Isso eu era bem jovem. E aí, nas férias, a gente tentava essas coisas de trabalhar nas lojas, não é? Sempre final de ano, de tentar trampar em loja, mas é isso menina preta, nessa época, não tinha nunca o perfil para se trabalhar nesses lugares. Aí eu fiz esse curso, terminei e aí, em seguida, eu consegui, foi na minha terceira entrevista, porque também tive um episódio assim, que evidentemente foi um episódio de racismo, em uma das minas primeiras entrevistas, mas aí é isso, a vida segue, a gente meio que estava preparada para não cumprir o quadro da aparência que eles queriam. Mas aí eu consegui um trabalho num escritório de arquitetura, que acho que, inclusive, eu fui trabalhar ali, fui escolhida para trabalhar, porque justamente era um espaço que tinha designers, enfim, artistas, pessoas que já tinham uma outra relação assim, com toda essa realidade que a gente vivia. Daí eu fui trabalhar lá como recepcionista e fiquei quatro anos lá. Foi muito bom, assim, porque eu consegui me organizar financeiramente, assim de já começar a pensar: “Ah, posso guardar um dinheiro”. Ganhava super pouco, bem pouco mesmo, como todo mundo naquela época, assim, mas já comecei a me relacionar pensando que eu tinha que guardar dinheiro, porque eu não queria trabalhar naquilo a vida toda. Eu não queria me formar com aquilo, não queria entender, tipo eu me dei muito bem fazendo isso, eles gostavam de mim, queriam que eu me formasse em outras coisas para continuar, né, na área administrativa e tal, falei: “Ah, pelo amor de Deus”. (risos) Então, eu já comecei com essa estratégia de poder guardar uma grana sempre para poder: “Uma hora vou sair daqui”. Mas foi muito legal trabalhar lá, porque também teve essa ... eles sabiam desse meu sonho de fazer teatro, essa vontade, sabiam, eu trabalhava todo dia, né, toda a semana e final de semana o dia inteiro eu estava no teatro, saia de lá a noite, comecei a fazer curso técnico de teatro. Então, minha vida era isso, assim, não é? Eles até me deram um curso também, depois que eu terminei meu curso técnico, ainda fiz um curso acho que de seis meses aqui, acho que no Sumaré, sei lá, que foi essa galera, esse meu patrão que falou: “Ah, vou te dar um outro curso aí para você conhecer outra galera”. Então, foi bem legal assim, acho que foi um momento que eu consegui dar uma descansadinha de falar assim: “Não, eu tenho planos”. Aí quando eu fiz quatro anos e pouco assim, falei: “Acho que agora está bom”. Aí pedi para eles me mandarem embora, aí comecei no teatro e não parei mais. Não trabalhei nunca mais com outra coisa. Fiz uns biquinhos e tal, mas só quando a coisa estava muito braba, mas aí saí.
P/3 - Qual foi o grupo de teatro que você entrou na primeira vez? Fiquei curioso.
R - Era um grupo que se formou no Taboão, chamava UTT, era União Teatral Taboão. Foi um projeto de um diretor, chamava Amaury Alvarez, muito querido, que foi lá fazer um projeto de teatro, ele meio que juntou todos os grupos que estavam por ali e formou uma companhia só. Ele fez um trabalho de formação com essa galera e formou alguns atores, inclusive para serem diretores e começarem a formar outras oficinas, assim. Foi um projeto bem bonito. Aí eu entrei nessa leva, da formação desses primeiros atores como diretores e tal. Foi aí, inclusive, que eu conheci o João, que faz parte do meu grupo até hoje, do Clariô, o Marinho, que ele não fazia parte dessa galera, mas meio que aproximou também. Um monte de gente.
P/1 - E quando veio a faculdade? Depois desses cursos técnicos?
R – Sim. Quando eu terminei esse curso do Senac, que foi o técnico, eu senti que eu não tinha coragem de dizer que eu era atriz profissional, não conseguia assim, se alguém me perguntasse, eu pensava, eu não conseguia dizer, não me sinto ainda com formação suficiente, assim. Que esse curso que eu tinha feito, esse curso técnico que eu tinha feito, era um projeto do Senac com o governo do estado, que aí foi também para Taboão da Serra, mas isso vocês podem cortar, se vocês quiserem, mas o fato é que foi muito sucateado assim, não foi um espelho do que é a formação mesmo, sabe? Então, alguns professores eram super legais, mas outros assim meio... a gente sentia que estava sendo enganado. (risos) E aí não foi tão legal. Algumas pessoas foram muito especiais, alguns professores foram muito, até hoje assim, são parceiros, amigos e tal, mas aí, quando eu saí, eu falei: “Ah, não estou me sentindo, eu acho que eu preciso ainda entender”. E aí eu descobri que existia um curso que era gratuito, na USP e que era bom, que era EAD. Falei: “Ôxi, vou lá, não é? Tentar”. Aí me inscrevi, o que diziam era que ninguém nunca passava na EAD na primeira vez que prestava, e aí lá, durante a formação, eu nunca tinha ouvido falar dessa escola, mas enfim, durante a formação eu descobri que era uma grande escola, uma das maiores da América Latina e tal, falei: “Bom, estou lascada, não vou”, mas vou tentar ir até o fim, pelo menos até o fim do processo, porque o quanto eu aprender aqui, para mim está ótimo. Mas eu passei. Foi um ano bem concorrido assim, eram vinte vagas, acho que foram quase oitocentas pessoas que prestaram, foi uma coisa bem concorrida assim, mas consegui entrar e realmente foi um divisor de águas assim, para muitas coisas, porque estar na USP, dentro dessa escola, que era uma escola realmente muito boa, não é? Mas era isso, era uma formação da elite, não é? Então, era eu, uma figura totalmente periférica, que nunca tinha saído daquele ambiente, preta, entrando na Universidade de São Paulo, que é uma universidade extremamente elitista, assim, que não tem pessoas... que eu não conseguia ver em lugar nenhum alguém que fosse parecido comigo... apesar de, naquele ano, ter sido o ano até então, que a EAD teve maior número de alunos negros, que eram cinco. A escola tinha cinquenta e seis anos e era a primeira vez que tinham tantos alunos negros lá, em torno de vinte.
P/1 - E quais foram os momentos mais marcantes dessa época da faculdade?
R - Vários. Acho que a faculdade foi, realmente, um divisor de águas, porque eu consegui identificar um monte de questões sociais que eu não tinha identificado ainda, mesmo já trabalhando num escritório de arquitetura e não sei o quê, mas a relação com os alunos, com aquela universidade assim, de entender que aquele era um espaço público, mas que era tão restrito e que as pessoas da periferia nem sabiam que existia. Como eu, por exemplo, não sabia nem que existia a EAD, não é? E muito menos almejava a possibilidade de estudar num lugar como aquele. Então, aquilo foi me despertando um aflorar político, que eu não tinha tido até então, não é? E uma possibilidade de usar o meu trabalho, a minha profissão, que era a profissão que eu tinha escolhido, como uma voz que pudesse debater esse assunto naquele território, antes de voltar para casa. Antes de voltar para o Taboão. Então, foi muito interessante, porque o meu corpo, eu comecei a perceber o meu corpo como um corpo político, e tinha que correr atrás, para que o meu discurso pudesse acompanhar a minha figura, porque todo mundo falava por mim, eu era usada como exemplo em tudo, não é? Quando tinha greve, quando tinha coisa, então, era a figura que pegava busão, que era preta, que era periférica, porque mesmo os negros que tinha na minha turma, a maioria eram de Santos, vieram para São Paulo, estavam morando no Centro, não sei que. Então, a relação com a quebrada quem trazia era eu e mais uma outra atriz que fazia. Então, tudo isso mexeu muito comigo, assim a ponto de pensar se eu continuava na escola ou não e tomar uma decisão: “Não. Vou continuar aqui, vai doer para caramba, mas vai doer para todo mundo”. Quando eu entendi, falei: “Vai ter que sobrar para todo mundo”. Então, teve vários momentos, assim. Quando eu cheguei, eu me sentia uma analfabeta. Uma analfabeta com relação a tudo assim, desde uma leitura de um texto, de uma tragédia, por exemplo, que tinha outros vocabulários que eu nunca tinha ouvido na vida, até pronunciar qualquer nome de autor da gringa, porque também a gente não tem um arsenal de estudo que contemple a nossa realidade enquanto pessoa preta. Não tem uma referência afro, não tem. Então, são todos ou americanos ou europeus. Então, desde pronunciar um nome, Brecht, por exemplo, nossa, eu tinha que ficar falando, falando, falando, para conseguir falar isso. Então, me sentia realmente uma analfabeta nesse sentido, no sentido da história do teatro, eu tinha acabado de me formar. Para você ver como a minha intuição era muito forte, de imaginar que eu não tinha tido uma formação boa, mesmo eu não sabendo. Então assim, porque foi uma formação para a periferia, pode ser qualquer coisa fácil, porque eles não vão entender, mesmo. E foi isso. De verdade. Eu tive a certeza quando eu estive na EAD. Eu não conseguia acompanhar, mas ninguém sabia, que eu não conseguia acompanhar. Não compartilhava isso. Mas era muito sacrificante para mim, num primeiro momento. E uma analfabeta nesse sentido, uma analfabeta política, porque é um ambiente público, que tem esse discurso com os alunos, então, a universidade é, existe uma esquerda, existe uma esquerda como existe uma direita, existe alguém que está pensando o mundo e as pessoas que estão pensando um Brasil são os estudantes, os estudantes fazem greve, ocupam a reitoria e falam de marxismo e falam de tudo e eu não sei nada daquilo, e aí eu me senti uma analfabeta política, falei: "Meu Deus eu não sei o que é que eles estão falando, não sei porque eles estão falando tudo isso”. Só que eu nunca me senti representada na fala deles, porque eles nunca falavam... quando eles falavam de mim, eles falavam do povo que assiste o Faustão. Quando eles falavam do povo, eu sabia que eles estavam falando de mim. Mas também demorei para entender. Só que uma hora eu saquei. Então, tudo isso, eu tive que entender o que eles estavam falando, para poder criticar o que eles estavam falando, para poder me colocar naquilo que eles estavam falando e acrescentar. E aí eu vi esse processo acontecer comigo lá dentro. A ponto, de em dois mil e seis, faltava dois anos para eu me formar, teve toda aquela história do PCC. E aí eu ver todos, inclusive os grandes marxistas, toda comunidade da escola, todos estudantes histéricos e apavorados, com medo de ir para a Vila Madalena, de ir para Pinheiros, não sei o que, de pegar o ônibus que saía da USP, não existia Uber, então todo mundo dividindo seus táxis ou começando a ir com seus carros, para a universidade, com medo, com medo, com medo, pedindo para sair mais cedo, com medo, com medo, com medo. E aí eu pedi para a diretora da escola, para a gente ter uma conversa sobre isso. E eu fiz tipo uma espécie de uma palestra assim, de falar que: “Mano, agora vocês estão pensando nisso? Agora vocês estão com medinho, com medo de pegar busão? Agora que vocês estão preocupados se vão ser atacado fogo ou se vai ter bala perdida para vocês? A gente existe e quando vocês fazem isso, vocês estão tirando a mim, vocês estão me tirando, porque vocês estão olhando para mim como se eu fosse uma bandida. Porque eu sou essa pessoa, que saiu da periferia para atacar ônibus na frente da casa de vocês”. E aí a gente teve um papo, foi super legal e aí eu me vi nesse lugar, de realmente fazer uma travessia muito grande, num período muito curto, para poder mostrar para eles, e para eles num todo, desde a galera totalmente da aristocracia de São Paulo, que tinha uma galera realmente muito rica na universidade e que não quer saber de nenhuma discussão política desse tipo, até a galera que achava que estava fazendo uma discussão política interessante, mas que não estava contemplando a periferia. Então, o lugar mudou, assim, a sensação de analfabetismo se deslocou, quando eu comecei a trazer as nossas questões, mas foi um parto. Não foi fácil. Não foi nem um pouco fácil, não é até hoje, não é?
P/2 - Seu pai, você falou de Minas e sua mãe do nordeste. E eles se conheceram aqui em São Paulo?
R - Se conheceram. Meu pai era muito amigo do pai da minha mãe. Os dois se conheceram eu não sei como, mas acredito que naquele ambiente da feira do bairro, porque meu avô trabalhava muito próximo da casa do meu pai, não é? Então, acho que eles se conheceram meio ali e os dois com essa relação também com o rural, com sítios, com não sei o quê, eles eram muito amigos, um frequentava a casa do outro e iam viajar, iam pescar juntos, fazer coisas juntos, caçar tatu, essas coisas todas. (risos) E aí foi assim que meu pai conheceu minha mãe, e pediu para namorar com ela. Ela que era uma feminista nata, que dizia que não ia casar tão cedo, (risos) que terminou com um cara que falou que morreria se ela deixasse ele um dia. Falou: “Então tá, vamos ver”. Ela se apaixonou e eles casaram. E meu avô falou para minha mãe: “Você sabe que seus filhos vão nascer pretos, não é?” Ela falou: “Sei”. Ele falou: “Então, está bom”.
P/3 - Sua mãe é negra?
R - Não. Meu pai é, minha mãe, não. Minha mãe é cabocla.
P/1 - E você é casada?
R - Não. (risos) Como fazer essa pergunta (risos) cretina.
P/1 - Como você conheceu o seu marido? Se você lembra do seu casamento?
R - Eu conheci o Marinho, eu tinha vinte anos. Foi logo depois que eu saí do escritório de arquitetura, demorou pouquíssimos meses, ele era diretor de teatro, fazia muito teatro infantil assim, na cidade, a gente já tinha trabalhado juntos naquele ano, numa Paixão de Cristo, que tinha na cidade e que tem até hoje, que é um evento da cidade de Taboão da Serra, e o Marinho era Jesus. A história dele era bem bonita, porque os pais dele, foram os primeiros Jesus e Nossa Senhora dessa Paixão de Cristo, que tem mais de sessenta anos. E aí ele estava começando a fazer Jesus, como uma homenagem para os pais e a gente se conheceu nessa época, que eu tinha feito a Paixão também. E assim que eu saí do escritório de arquitetura, ele me convidou para fazer uma peça infantil. Que foi o que deu a luz para todas as coisas, foi a sementinha de todas as coisas mais importantes, eu acredito, da minha vida, até então. A gente fez essa peça, foi aí que a gente começou a se apaixonar e querer namorar, (risos) ele era vinte anos mais velho que eu. Ele tinha quarenta nessa época, eu tinha vinte. E a gente se apaixonou assim, absurdamente. Com essa peça a gente teve a ideia de fazer, pegar a grana, essa peça deu muito certo assim, a gente conseguiu fazer alguns projetos que deram muito certo, e aí, com a grana que a gente conseguiu ganhar, ao invés da gente fazer dela totalmente cachê, a gente resolveu pegar essa grana e investir num espaço para guardar cenário, para poder ensaiar, porque a gente não tinha. Tudo ficava na casa de todo mundo, ensaiava no quintal na casa do Pezão, (risos) que é um poeta maravilhoso da cidade, que ama teatro, então ele tem uma casa que hoje tem um projeto de laje de teatro e poesia. Mas a gente ensaiava lá no fundo da casa dele, e a gente resolveu pegar essa grana e fazer um espaço, que hoje é o espaço Clariô, mas que na época era nossa sede. E aí, quando a gente fez esse espaço, a gente convidou outras pessoas para ocuparem junto com a gente, e que meio que já trabalhavam comigo, não é? Que aí ia entrando a Luana, o João, a Martinha. A Martinha foi convidada depois, mas o Alexandre, que era namorado da Martinha na época e aí que trouxe a Martinha para trabalhar com a gente, e a gente formou uma pequena trupe, que ainda não tinha um espetáculo juntos, mas que a gente ocupava o mesmo espaço, isso em dois mil e cinco. E aí nasceu o Clariô. Porque, quando a gente fez esse lugar, esse espaço, e logo em seguida eu entrei na EAD... quer dizer, eu já estava na EAD, mas ... exatamente, eu entrei na EAD em dois mil e quatro. Em 2005 eu já estava há um ano na EAD, com todas essas discussões e a gente sentiu necessidade de falar e de pensar por que a gente precisa, por que a gente vai fazer desse espaço um espaço só de ensaio, se a gente pode fazer dele o nosso espaço de teatro, né e mudar essa lógica, porque o Marinho sempre trabalhou na periferia com teatro, só que ele trabalhava com teatro de rua. E aí ele também me estimulou a pensar que a gente poderia sim, mudar a geografia das coisas e fazer do nosso espaço um lugar onde as pessoas pudessem ir, ao invés da gente trabalhar ali, pra ficar correndo atrás de um monte de teatro no Centro e tal, e nunca conseguir uma temporada e fazer uma apresentação aqui e outra ali. E aí nasceu junto esse grande amor assim, que foi a minha história com ele e a história do grupo Clariô de teatro, que nasceu ali, junto com esse espaço, com a junção dessas pessoas, e tal. A gente teve uma vida muito bonita, assim, não consigo não me emocionar. (risos) Mas de realmente compartilhar todos esses sonhos. Eu acho que eu entrei na vida do Marinho quando ele precisava se sentir estimulado também, num lugar de direção que fosse diferente, porque ele já estava há muitos anos trabalhando com teatro de rua assim, e com uma perspectiva muito triste de não ver as coisas melhorarem, mesmo pós Lula e tal, não é? Mas ainda assim a relação da cultura na quebrada era muito escassa, era muito ... a gente não tinha acesso às coisas, não é? Então, é sempre uma briga. Brigando com a prefeitura de Taboão, brigando com a prefeitura de São Paulo, brigando com o governo do estado, tentando mostrar para todo mundo que é um direito, não é? Principalmente do povo pobre, ter acesso à cultura. Então, quando eu entrei na vida dele, como história também, a história de uma jovem que demorou tantos anos, precisou estar adolescente e um grupo ir até lá, para poder ter conhecimento do teatro e tal. Eu acho que ele sentiu que era uma oportunidade muito forte, então a gente se ajudou muito a que esses sonhos particulares, ele de poder falar sobre as questões que ele queria falar dentro da periferia assim, e ter uma casa onde as pessoas pudessem ir e tal, e eu com essa necessidade quase que vital de fazer um teatro que pudesse dar conta da minha história, da nossa história. Então, foram duas potencias que se encontraram num momento muito certo, acho. E a gente fez juntos, a gente não teve filhos, ele tem filhos e tal, mas juntos não, a gente viveu onze anos juntos, mas sem nunca pensar em desistir do rolê. A gente ficou um bom tempo namorando escondido dos meus pais, (risos) porque ele também estava num processo de separação, e tal, e com medo de perder guarda das crianças e eu já tinha entendido assim como o teatro, que era algo que era para minha vida, mesmo. Acho que nosso encontro, a gente nunca teve dúvida. Então, eu sabia que assim: “Vou esperar um pouquinho, porque vai ser mesmo, não vai ser uma coisa que vai acabar daqui a pouco. Então, quando estiver mais sossegado, a gente vai contar”. Mas o meu pai meio que já tinha sacado, minha mãe também, nada que ... mas foi muito bom também, porque a gente guardou uma energia muito nossa assim, e aí, aos poucos, a gente foi abrindo para os amigos, foi abrindo para as famílias e aí a gente casou oficialmente, foi morar juntos e tudo o mais. Mas é isso. E aí a gente montou o espetáculo Hospital da Gente, que é o espetáculo que ele dirigiu, o primeiro espetáculo que ele dirigiu com o grupo, já com todo esse coletivo e foi uma coisa muito preciosa assim, não é? Foi um espetáculo que até hoje tem uma repercussão muito grande. O primeiro trabalho nosso, assim, lá na nossa casa, mas que teve realmente essa energia de algo muito forte que estava brotando. Mesmo enfrentando enchente, vários dias que a gente não conseguia, no começo a gente levava duas, três pessoas, que iam assistir, mas era muito bom, as pessoas foram falando umas para as outras, foram falando. A gente tinha um projeto de ficar um ano em cartaz, a gente ficou três. Todo final de semana, no nosso espaço, sem interromper. E aí depois viajamos para caramba, e até hoje, assim, é um dos espetáculos nossos mais comentados, falados e tal. E é isso.
P/1 - E como foi o dia do casamento de vocês?
R – (risos) Foi uma correria, não é? Vixe. A gente não queria casar assim, a gente nunca teve essa coisa, assim: “Vamos fazer uma festa, vamos gastar dinheiro”. A gente sempre pensava: “Nossa, qualquer dinheiro que a gente pegar, a gente vai investir no nosso teatro, nossas coisas, não ficar gastando com festa pros outros”. Mas era importante para as nossas famílias, né, que a gente casasse, principalmente para os meus pais, oficialmente, e tal. Aí a gente fez um casamento no cartório, com os padrinhos, com a coisa bonita, assim e tal, e depois a gente fez uma micro festinha, numa churrascaria e tal, e convidou os amigos e as famílias e foi muito gostoso, mas foi muito cansativo, na verdade. Quando a gente chegou em casa, falou: “Graças a Deus. Já não devemos para ninguém, está tudo certo e vamos lá”. Mas eu, pessoalmente, nunca tive o sonho do casamento. Eu nunca me vi assim, nossa, vestida de noiva e casando. Eu atribuo isso à ideia de que eu sou atriz, então eu tenho esse meu espetáculo várias vezes, em vários momentos. Eu acho que isso, para outras pessoas que não têm essa possibilidade, não trabalham com o palco, não tem plateia, eu acho que essa relação com a plateia, a gente que é atriz sabe que é muito importante, as palmas, a troca, o poder dizer para a comunidade quem sou eu, o que eu estou fazendo, qual é a minha escolha, não é? Então, a pessoa que não tem nenhum modo de compartilhar isso publicamente, acho que o casamento é um momento muito importante. É como se dizer no mundo, assim, não é? Eu fiz uma escolha, estou passando uma fase, a comunidade pode celebrar comigo e tal. Então, eu não critico esse sonho, mas nunca tive esse sonho desse momento. Eu tenho esse sonho do eu sou do amor, da paixão mesmo, não é? Eu sempre soube, que eu sempre fui muito apaixonada assim, eu me apaixonei pela primeira vez, eu tinha seis anos, e eu fiquei tipo uns sete anos apaixonada pela mesma pessoa, mas na escola, não é? Aquela coisa (risos). Muito apaixonada, assim. Aí não dava certo, dava errado, tudo errado, desencontro e aí quando eu deixei de gostar dele, ele começou a gostar de mim, eu não queria mais e me apaixonei de novo, aí não deu certo. Aí, quando eu tive o amor da minha vida, que eu achava que era o amor da minha vida, tomei vários galhos na cabeça, e descobri e fiquei mal, deprimida. Mas eu sempre soube, eu sabia que eu estava marcando um encontro muito especial assim, sempre que alguma coisa dava ruim eu sabia, que tinha ainda alguma coisa, eu sempre tive uma esperança assim de um amor, não é? Tanto que, para mim, foi muito difícil superar a perda dele, não é? Era como se ele ter morrido, morreu comigo muita esperança de afeto. Parecia que não foi nada que ele fez, a gente não separou, não brigou, não teve uma coisa que deu ruim aqui, que pode ser desenvolvida, era um auge, que foi cortado. Então, até quando é bom, é ruim, não é? (risos) Estou segurando aqui. Foi bem difícil. Mas acho que hoje a gente já tem um pouco mais de esperança.
P/3 - Eu ia perguntar ainda sobre a fase do Jesus. (risos). Você conseguiria descrever assim, como foi que surgiu essa primeira fagulha?
P/1 - O momento da paixão?
R - O Marinho era muito encantador, não é? Muita gente, realmente era muito encantada assim com ele, porque ele era uma pessoa muito iluminada mesmo. Todo mundo que convivia, as pessoas que conviviam com ele, sabe? Tem algumas pessoas que tem uma energia que é do bem, então ele ajudava muita gente, era aquela pessoa que as pessoas iam pedir conselho, desde as adolescentes até as tiazinhas, iam pedir conselho, iam falar, era impossível não chamar a atenção e ele fazia o protagonista da peça. Que era a pessoa que era Jesus, com aquela história bonita, não é? Então, não tinha como não observar essa pessoa, não ver que pessoa da hora, e eu lembro que eu estava terminando também uma história, uma relação, assim, que foi bem difícil, de muita treta, de muita briga e tal. E aí, uma das coisas que me aproximou muito dele foi isso, de sentir que ele era uma pessoa que eu poderia confiar, porque eu não sou alguém que consegue se abrir muito, porque eu sou também essa pessoa agregadora, que ouve muito de muitas e muitas pessoas, mas divide pouco, é difícil eu convocar uma amiga, para falar: “Ai, estou passando o maior perrengue”. É muito raro eu fazer isso, porque geralmente são as amigas que vêm falar. Então eu meio que abracei essa ideia, de que eu não compartilho. Mas com ele eu senti que eu poderia compartilhar assim, e foi muito legal, porque a gente criou uma amizade antes, uma coisa de uma admiração muito grande, que nenhum falava para o outro. Então, eu admirava ele como pessoa, falava: “Mas que pessoa doce, que pessoa especial”. E realmente a gente cultivou uma amizade, de poder falar, ele estava nesse período difícil de medo, de questão de guarda das meninas, separação, muito triste tudo isso, não é? Morando sozinho, sem nada em casa e tal. Então, ele falava das coisas dele, e eu contava das minhas, ele era bom conselheiro para caramba. Só que a gente conversava, eu ia embora e ficava lá, não é? Com a cabeça já pensando: “Mas meu Deus, o cara é vinte anos mais velho”. Mas só que não. Ok. Aí, quando a gente meio que confessou assim, já estava rolando para os dois, muito, não é? Era tão absurdo para mim quanto para ele, se relacionar com uma jovem, e para mim também, mas foi inevitável assim. Ele também via muita coisa em mim que eu não via ainda, ele me contava coisas sobre mim que eu não sabia que existia assim, que ele me apontava. Então, essa coisa da admiração, era uma pessoa que não tinha coisas ainda, não tinha construído coisas, mas era alguém que ele já admirava muito, porque ele conseguia ver muito potencial em muitas coisas. Então, foi alguém muito importante mesmo na minha construção como artista, como... todas essas questões da EAD assim, poder dividir com ele, poder contar também com essa... não é? Parei.
P/1 - E como está Naruna hoje?
P/3 - Posso voltar, antes de chegar no hoje? Que antes você falou que vocês formaram o grupo Clariô de teatro e teve momento de perrengue, de enchente. Como é que foi essas enchentes, assim, como é que foi a formação daquele espaço?
R - É. Foi treta, mas era isso: lá é uma região que é muito precária por essa condição, não é? Toda a Rua Santa Luzia, as pessoas que moram lá, moram há muitos anos, não conseguem vender suas casas, não conseguem alugar suas casas, nada, porque é uma região que tem enchente. Então, acaba, mesmo sendo no Largo do Taboão, no Centro da cidade, é uma microperiferia. E a gente teve uma relação muito boa com a comunidade, de poder trocar muito, não é? Era um espaço, um aparelho que estava entrando ali, quase uma nave, de repente, meio que do nada, só que aquela comunidade tinha muitas crianças, tinha uma necessidade também de poder ter espaços como aquele que nunca teve muito perto. E aí, quando a gente teve as primeiras enchentes, a gente ficou muito assustado, porque a gente mesmo nunca tinha vivido, e a comunidade perde tudo mesmo, a gente não, a gente tinha nosso espaço, a gente perdia cenários, figurinos, coisas que antigamente perdeu, tiveram enchente lá de quase três metros de altura, só que foi muito aterrorizante, assim nesse sentido, porque a gente pôde ver uma realidade muito cruel. E aí, mesmo toda a comunidade tendo perdido todas as coisas, as roupinhas das crianças, comida e tal, por já terem essa experiência no cotidiano deles, foram até o teatro nos ajudar a limpar, tirar a lama, pegar água, a jogar as nossas coisas fora, a separar o que deu certo e o que não deu certo. Então, a gente se sentiu, nesse momento, com um acolhimento muito grande. Foi muito forte. E aí a gente passou também a fazer um processo inverso, de ir na auditoria da prefeitura, de pedir coisas, de recolher doação para as crianças, para a comunidade, para voltar algumas coisa, né, para eles, porque a gente ia dormir na nossa casa, não é? No nosso colchão limpo. Eles não tinham nem onde dormir, assim. Muita treta. Então, toda essa coisa horrível, acabou aproximando a gente da comunidade, e até hoje assim, eles que tomam conta do Clariô mesmo, não é? Mas é isso. A gente, com o passar dos anos, pôde reformar o espaço, que antes era uma casa, aberto, o nosso quintal era no nível da rua e aí, com o passar do tempo a gente conseguiu, com o projeto do Hospital da Gente, juntar uma grana e reformar o espaço, a gente subiu um metro do nível da rua o nosso piso, e fez um galpão e começou um mezanino e tal, e aí as coisas mais valiosas, mais importantes, a gente deixa em cima, e até agora, ultimamente não teve mais enchentes, porque eles fizeram um piscinão na cidade, mas mesmo depois do piscinão a gente teve enchentes bem pesadas assim. A gente não entende muito o porquê, existe uma especulação de uma coisa de não ir água para outros lugares, e fecha o piscinão, não sei o que, a gente não pode provar nada, mas é um fato que houveram enchentes depois, então ainda é uma realidade que é possível, não é? Mas é isso, nossa relação com a comunidade fica cada vez mais forte nesse sentido da gente realmente se cuidar e se proteger, agora mais do que nunca. As crianças cresceram, né, algumas das crianças, inclusive, são pais já, mas tem outras tantas, mas eles entendem a importância de um espaço como aquele, assim, disso, de reflexão, de produção de pensamento, de também possibilidade de trabalho, não é? Quando tem algum evento no Clariô a galera se organiza, faz barraca, fazem coisas, vendem coisas, de conseguir uma grana a mais, assim é um espaço que é preservado mesmo, pela comunidade.
P/3 - Você lembra de algum dia que, para você, foi muito especial naquele espaço?
R – Nossa, tem ...
P/3 - Deve ter tido vários.
R - (risos) Pois é.
P/3 - Mas um em especial, que te marcou?
R - Nossa, tiveram vários. Mas eu acho que o dia que ... acho que foi na nossa segunda enchente, porque teve uma enchente antes de estrear o Hospital. E aí, quando a gente já tinha estreado a peça, a gente fez uma cena que fala sobre isso e a gente cantou uma música sobre a enchente, tem uma cena que conta um pouco dessa história dessa comunidade. E aí, logo depois que estreou, depois de um tempo que estreou, teve uma enchente. Foi o período que a gente perdeu o cenário, inclusive. E aí, a comunidade, levando as coisas, correndo com as coisas, porque eles também ficaram de olho no rio, e aí eles sacaram quando o rio encheu, conseguiram comunicar todo mundo. Então, é muito rápido, não é uma coisa que leva horas para encher não, são minutos, só que eles conseguiram já se articular, não é? Já estavam meio que preparados, e aí eles saíram correndo de casa com as coisas, colocando numa Kombi, lá, uma galera assim, e eles saíam com as coisas, cantando a música da peça.
P/3 - Qual era a música?
R - “Encheu, encheu, corre com a cadeira, bota a mesa na cabeça, não esquece da penteadeira, do armário e do fogão” e aí vai. (risos) E eles saíram cantando, a gente ficou meio... tipo a gente também correndo com as nossas coisas, subindo, a gente ouviu assim, falou:” Gente?”. A gente saiu lá fora e a galera estava cantando a música.
P/3 - Encheu de verdade.
R - É. Encheu de verdade.
P/1 - Naruna, você falou da sua grande paixão, e que ele faleceu. O que aconteceu?
R - Ele teve câncer de pulmão. A história é muito louca, porque o pai do Marinho chamava Mário também, Mario Quazini. E todo mundo dizia que parecia muito com ele, muito, muito, muito. E logo que a gente se conheceu, assim depois de um tempo, depois de um ano, o Marinho falava para mim: “Aproveita porque é só dez anos, hein? Só tem mais dez anos”. O pai dele morreu de câncer de pulmão, com cinquenta e um anos. E ele brincava assim, porque todo mundo falava que ele era parecido, e ele realmente era, eu vi fotos e tal, a mãe dele falava, o comportamento dele era muito parecido, e ele brincava com isso, de falar isso. E aí eu deixava, mas depois de um tempo eu falei: “Mano, não brinca disso não, eu não gosto não, é ruim”. Ele fumava muito também e ele parou, mas realmente, quando ele fez cinquenta anos, ele se descobriu doente, foi em dois mil e treze, para ele foi muito chocante assim, porque foi a idade que o pai dele descobriu também, foi muito difícil falar para mim, mas a gente tentou muito, de muitos jeitos, não é? Que ele descobriu, na época tinha acabado de aparecer assim, e aí foi todo aquele processo horrível, né, de quimioterapia, coisa e tal. A gente ficou super esperançoso. Aí, no final de dois mil e treze ele teve alta, porque tipo, não tinha avançado nada, estava parado e tal. Então, ele teve alta, foi um momento bem gostoso assim, porque foi no final do ano, na época do aniversário dele e tal, a gente fez uma reunião, a família toda deles, viajamos juntos e tal. Aí passamos o começo do ano, a gente viajou também com a peça, para o nordeste, que é uma coisa que a gente queria muito ir, a gente foi para Recife, com o Hospital, foi bem mágico assim. E aí, depois que ele teve o retorno médico, no dia que ele teve o retorno, eu tive um trabalho para fazer no Rio. E ele nunca ia sozinho, que eu nunca deixava, não é? Mas ele falou: “Não, é só um retorno para saber se está tudo bem, deixa que eu vou. Não vai desmarcar um trabalho no Rio”. Aí eu fui, meu coração na mão assim, e aí ele foi e tinha dado metástase no sistema linfático e tal. Mas ele não me explicou assim, não me contou a real. Então, a gente passou um período, ele voltou a fazer quimio, eu tinha entendido que tinha voltado, mas eu não sabia da realidade total, porque ele era um cara palhaço, um cara que conservava muito a energia de alegre, com as filhas, comigo e tal, não é? Muito preocupado assim. E aí a gente começou e para mim foi um momento de novas esperanças, vamos lá fazer meio que um processo muito parecido assim, mas aí não foi. Ele realmente foi ficando ruinzinho e tal e aí foi para o hospital. O dia que ele faleceu, um dia antes ele estava super alegre, feliz e tal, a gente passou o dia inteiro juntos, o hospital tinha liberado para ficar lá várias horas, não é? Já meio que tinha entendido. Mas ninguém tinha anunciado nada. E aí eu fui, fiquei com ele, ele estava super feliz, palhaço, fazendo piadas, fui embora, no dia seguinte eu tinha um trabalho de fotos. Era um negócio de noiva, uma coisa que tinham me convidado para fazer umas fotos, com uma marca de vestido de noiva e tal, e eu tinha que estar lá tipo meio dia, assim. Então, no domingo eu falei que não ia de manhã, porque eu tinha que ir para lá, mas aí na segunda eu acordei e falei: “Vou passar lá antes, não é? Vou dar uma passadinha só para saber como é que está e aí depois eu vou para esse negócio aí, não tenho que fazer nada mesmo, só ir”. E aí eu fui para lá, ele tinha acabado de ser entubado. Aí não deixaram a gente entrar, eu não entendia o que estava acontecendo, é procedimento, procedimento. Aí eles deixaram a gente entrar, finalmente, e ele tinha acabado de ser sedado, por autorização dele mesmo, e aí o médico veio conversar comigo e com a irmã. Estava eu e a irmã dele, aí ele veio conversar com a gente e falar que ele já estava sem funcionamento nos órgãos e tal e eu fiquei em pânico, falei: “Como assim, tipo de um dia para o outro os órgãos não estão funcionando?”. Aí pedi e ele falou assim: “Ele sabia disso. Ele sabia o grau que ele estava, se vocês quiserem, vocês podem ligar para o médico dele”. Aí dei o telefone para o médico e falei: “Eu não vou ligar para nada, liga você”. Pedi para ela pelo amor de Deus sair, aí eu fiquei sozinha com ele, aí ele tinha acabado de ser sedado, peguei na mão dele e ele apertou ainda a minha mão, assim, um pouquinho, e aí eu cantei uma música que eu não vou cantar aqui, mas é uma música que ele cantava sempre para mim, toda vez que a gente ia no karaokê e não sei o que, e aí eu cantei para ele, o negocinho subiu. Foi uma coisa assim ... se era isso que você queria saber. (risos)
P/1 - E como está a Naruna hoje?
R – Ai, eu me sinto como se eu tivesse sido... como se a minha cola agora estivesse funcionando assim, eu me sinto como se eu fosse uma coisa que foi quebrada e que foi colada, e que estava frágil, não encoste porque é frágil, e agora tipo está ... a cola está rolando, assim. Está lá, foi pintada, tudo ok e tal, mas se passar o dedinho assim, você vai sentir que ela foi moldada. É muito louco isso tudo, porque eu tive uma experiência que acho que muita gente não teve e talvez nunca tenha na vida, que é de viver uma história de um amor real assim, sem dúvidas, sem crise, sem coisas, porque eu acho que muita gente busca isso, não é? E talvez morra e não vai viver isso. Quando ele morreu, eu fiquei pensando: “Meu Deus, que merda, talvez seja melhor viver de uma forma mais mediana, mais medíocre mesmo, nunca se apaixonar totalmente, não sei o que, mas também nunca ser tão forte”. O cara morreu na minha frente, assim, por quê, não é? Por que tão forte? Por que precisava ser tão avassalador assim, não é? E a sensação de ter eu ido junto, porque é um monte de coisas que eu acreditava. A ideia de que as coisas acabam mesmo, mas de uma forma cruel assim, é muito triste uma pessoa... eu não respeitava os suicidas até então, depois eu nunca tive um pensamento suicida, mesmo depois disso, mas eu passei realmente a respeitar. Porque eu fiquei pensando: “Nossa, é uma coisa tão estranha que nos liga à vida, não é?” É uma esperança. A gente vive porque a gente tem esperança de alguma coisa, de viver melhor um tempo, mas a gente sabe que a gente vai morrer. Tudo acaba, não é? Então, por que é que a gente fica criando expectativas, e tal, porque a gente sabe que vai morrer uma hora, não é? E aí quando uma pessoa, assim morre, você fala: “Opa”. Sei lá, quando uma mãe perde um filho, por exemplo. É um amor. Um amor real assim, não é? Que aí muitos paradigmas são cortados, muitas ... a ideia de um amor livre de preconceitos ou tipo menos, um amor lúdico assim, cai, porque a gente tem isso quando a gente tem uma decepção muito grande. Então, mesmo quando você não tem uma decepção muito grande, a pessoa pode morrer ou você. Então, pode acabar, não é? Eu sou pisciana, não é? Então, tem uma coisa muito concreta assim, ligando à realidade, é muito duro. Foi muito difícil. Então, quando todo mundo achou que eu já estava recuperada, que eu tive aquela fase horrível e tal, e visível de você ficar um caco e tal, aí quando eu vesti a roupinha e fui trabalhar, todo mundo achou que eu estava ... era quando eu estava mais, porque é quando eu olhava para as coisas de uma forma muito pragmática, assim, de falar: “Tanto faz, tanto faz” “Ah, vai fazer não sei o que, vai fazer a série, fazer o filme” “Tanto faz” “Ah, não passou no teste, não sei o que” “Tanto faz” “Tem comida hoje?” “Tanto faz. Vou aqui ficar fazendo para ninguém me encher o saco. Ninguém ficar batendo na minha casa, tentando me dar remédios, e calmantes, mas ... tanto faz”. Eu passei por essa fase. Foi a fase mais difícil. Foi a fase onde eu comecei a ficar doente. Eu tive uma endometriose que tipo me arregaçou assim, de um tempo para cá, que eu estou ainda me curando. Foi quando eu comecei a morrer por dentro mesmo, porque era como se eu não tinha tido esse impulso suicida, mas eu tinha escolhido, involuntariamente, não estar mais aqui, assim, porque realmente eu não tinha objetivo. E aí um amigo me pegou na mão e falou: “Vem aqui”. Me levou numa Mãe de Santo. Eu nunca tinha feito jogo, nada disso. Nunca quis saber de futuro. Sempre tive uma relação muito respeitosa com religião e com todas religiões holísticas, e místicas, e sagradas. Todas as religiões são sagradas, apesar de que algumas nem parecem. (risos) Mas eu sempre tive muito medo de me envolver demais e depois eu ser cobrada por uma disciplina que eu não ia ter, porque a minha religião é o teatro, mesmo. Então, nunca tinha jogado, nunca tinha feito nada. Logo que o Marinho morreu, eu tirei uma coisa de mapa astral, que essa mulher, que também era terapeuta, falou para mim sobre essa questão, tipo por exemplo do Marinho ter morrido na minha frente, dessa relação muito intensa que eu tenho com a vida assim, e que ela me falou isso: “Não poderia não ter sido isso com você. Uma pessoa como você não poderia ter ficado sabendo”. Que o Marinho morreu, não sei o que, não é? Tipo, uma relação que vocês viveram como essa, não poderia não ter uma despedida. Não poderia ter sido testemunhada por outra pessoa. A irmã dele estava lá, mas foi bem na hora que ela saiu. É um fardo isso, parece, também. E aí, ela lá no mapa astral, ela me falou que eu tinha duas escolhas, que era: “Você escolhe, você pode escolher continuar ou parar. Se você escolher continuar mesmo, vai ser muito legal, porque você tem coisas a oferecer. Não é só para aqui, para as pessoas que estão próximas a você. É para muita gente, assim”. Mas na época, fazia meses, e eu pensei: “Aí, muito positivista”. (risos) Mas ok. Aí, anos depois, assim, um ano e meio depois, quando era isso, essa fase, todo mundo achou, cabelo já estava crescendo, unha nascendo, já estava começando a engordar, que aí eu fiquei realmente doente e essa Mãe de Santo olhou para mim e falou: “Olha, sua alma está doente e você está morrendo. Qualquer coisa te mata, hein? É isso aí, atravessou a rua, caiu, já era. Porque a sua escolha foi essa. É isso mesmo?”. Eu fiz: “Não”. Ela falou: “Qual o seu objetivo na vida?” Me vi pela primeira vez sem objetivo nenhum. Pela primeira vez. Porque eu sou a sonhadora. Eu sou aquela do grupo de teatro: “Vamos fazer aquela casinha ali, e vamos montar aquela peça lá”. Eu sou a que constrói as ideias, eu sou sonhadora totalmente. E aí ela me fez essa pergunta e eu não sabia responder. Eu não tinha mais objetivo, não é? E isso foi um despertar, assim, para mim, de falar: “Meu Deus, eu escolhi mesmo. Mas eu não quero”. (risos) E aí eu fiz todo um processo assim, mesmo em paralelo com a religião assim. Fui numa outra também, que é uma amiga, e também me disse coisas lindas e muito parecidas, e aí eu entendi, foi quando me descobri doente, fiz uma cirurgia que me deixou super mal, assim, perdi um ovário, uma trompa. Ou seja, já estava me livrando da possibilidade de continuidade, de filhos e coisa e tal. Aí me deu um pavor, e eu comecei realmente a cuidar de mim. Então, eu fiz essa colagem das minhas ... tudo isso para dizer como eu estou hoje. Hoje eu me sinto realmente colada e segura. Já tenho alguns objetivos, já entendo alguns processos, não é? Já passei por essa raiva, assim, da vida, de Deus, de sei lá o que, que deixa a gente aqui nesse mundo vivendo coisas maravilhosas e ao mesmo tempo sofrendo e tal. Mas eu me sinto mais corajosa agora, assim, para viver algumas experiências, amar de novo. Eu estou namorando, isso foi muito difícil, poder me relacionar de novo e assim, nem cobrar em excesso o que eu vivi antes, nem ter expectativas em relação a isso e nem criar expectativa nenhuma, porque eu posso perder mesmo, então é melhor não se ligar, sabe? Foi um processo muito difícil. Eu não faço terapia, então, (risos) eu vou eu mesma tentando ... mas agora eu já me sinto mais calma assim, mais pronta para as coisas. Não tão contra, nem rejeitando, nem me apegando demais assim, mais madura eu acho. (risos)
P/1 - E quais os seus sonhos?
R – Ai, meu Deus. Eu tenho sonho que está começando ... o meu sonho é poder colocar todos os meus sonhos na Terra. Um deles está vindo, que é o disco novo das Clarianas. (risos) Ah, o meu sonho de verdade é poder fazer com que tudo isso que eu sinto, que é muito importante para mim, assim, que eu não posso deixar de fazer, né, que é a minha arte, e eu sinto do fundo do coração, que não é uma coisa que é num lugar de vaidade, que é num lugar... não é um prazer meu assim, eu sinto que eu preciso colocar essas coisas que eu penso e que eu faço, no mundo. Por algum motivo. Então, o meu sonho é que todas essas produções, especialmente essas ideias, essa ideologia possa ter sentido no mundo, mesmo. Porque é muito visceral para mim, assim, eu não posso deixar de fazer. Não pode ser à toa. Porque é muito sofrimento a gente fazer o que faz, e fazer na quebrada, sendo uma mulher negra, num momento de hoje, porque não é mulher negra em qualquer momento, é em 2019 assim, onde a questão da representatividade é muito forte, a história e a memória está na nossa mão assim. A gente não pode, como há alguns anos atrás, se dar ao luxo de não saber quem a gente é e o que a gente representa nesse país, não é? Um país que se assumiu finalmente racista e xenofóbico, homofóbico e é isso que a gente tem. Então, assim, arde assim mesmo, na veia, no sangue. Não é compor uma canção, gravar, fazer um show assim. Eu saio exausta mesmo, porque é como se eu juntasse todas as energias de poder e de poder mesmo, de poder que eu aprendi com meu pai, das magias dele ou com a minha mãe, assim, da trajetória dela, assim. Como que pode um povo passando fome, gente? Como que pode? Esse meu avô ficava construindo caixãozinho para as crianças no meio do caminho e vinham de pau de arara para São Paulo para deixar de ser escravo lá e ser escravo aqui, sabe? Como pode tudo isso passar na nossa cara? E a gente ter a chance de se manifestar, descobrir um modo de se manifestar e não fazer sentido. Tem que fazer sentido. Então, meu sonho não é nada absurdo. Não quero ser rica, ter uma casa com piscina, viajar para a Europa, não sei o que, ter vários filhos e não sei. Também, mas é fazer com que as coisas tenham sentido, porque realmente dói, não é algo fácil. Não estou aqui fazendo um bolinho, assim. Para esse bolinho acontecer, é como se a gente tivesse que plantar tudo, desde o trigo, botar o ovo da galinha, arrumar o galo para a galinha para botar o ovo, o trigo. A gente tem que fazer tudo para poder sair o bolo, não é um bagulho que a gente compra lá, a massa pronta, fica lá, não sabe fazer, encomenda. Então, é muito rolê chegar até aqui, assim, tem que fazer sentido. E aí, uma dessas coisas é o disco das Clarianas, que a gente está aí há dois anos, pensando, criando, e agora ele finalmente está ficando pronto, a gente tem a chance de lançar e o meu desejo maior é que ele faça sentido assim, para as pessoas, que as pessoas ouçam e que faça, sei lá, mude um pouco uma chave na mentalidade, que a gente abra lugares, repense conceitos e pré conceitos, construa coisas novas assim, porque é isso. Senão, estou de boa. Estou de boa, mesmo. (risos) Eu me sinto muito cansada assim, mesmo fazendo, eu sinto que eu coloco uma energia muito grande nas coisas. Talvez seja um problema até, mas eu me sinto muito cansada, então, não é simples. Tem que ser pra alguma coisa, não quero que minha arte seja debatida, seja conceituada, seja analisada para nada, assim, eu não quero nem que debata. Eu quero que façam, que as pessoas consigam, sei lá, olhar para a gente que está, sabe, nesse Brasil assim, e que... descolonizar pensamento. Porque está foda. E agora está foda para todo mundo, assim. Então, (risos) acho que vai ser interessante poder, nesse momento, ter um pouco de visibilidade, como a gente está tendo assim, poder mostrar um pouco que... e quando eu falo que eu faço, eu estou pensando também numa galera assim, tipo inclusive em vocês mesmo, uma galera que a gente sabe que está fazendo esse trampo revolucionário, que está muito longe de ser algo mercadológico.
P/1 - Infelizmente está chegando ao fim, eu ficaria aqui a tarde inteira. Eu queria saber se tem alguma coisa que você gostaria de falar, que a gente ... que não foi contemplado com as nossas perguntas.
R - Falei das Clarianas, que é o que eu queria falar. Clarianas. Clarianas. Eu acho que o projeto das Clarianas é um projeto de música, né, de cantadeiras, que nasce dentro do teatro, mas é como se fosse uma flor, que tem identidade própria, que tem autonomia assim, e que é isso: são cantos, eu aprendi, me descobri compositora, mas quase como uma ... eu sinto que é quase como se eu pegasse essas memórias e traduzisse em música, eu não sinto que elas são exatamente minhas assim, porque são memórias mesmo de um canto que meu pai trouxe, na genética, na memória celular dele, assim, com essa família preta, e que foi escravizada, mas que também foi rei e rainha, que a gente não sabe a história, que nos foi tirado esse privilégio de saber de onde a gente veio, não é? Então, da minha mãe, da trajetória da minha mãe, da família da minha mãe, que é essa população também da seca, da miséria, que realmente viveu a miséria, não ter o que comer, assim. Então, eu sinto que esse trabalho musical a partir do sensível, que é o canto, a cantoria, e que traz na estética já essas memórias, que é o canto das lavadeiras, das trabalhadoras e tal, e das mulheres, representada pelas mulheres, eu sinto que é um trabalho de cura que a gente faz, de curar essas mágoas todas que... essas dores todas que estão gravadas na nossa memória mental, na nossa história, nas nossas células, no nosso sangue, assim. De cura e de revolução, assim, acho que a música é um lugar de possível transmutação. A partir da música a gente consegue ficar em contato com algo que é divino, que é maior que a gente. Então, eu realmente, desde que começou as Clarianas, assim, eu tenho uma paixão mesmo por esse projeto, que também tem a ver com teatro, porque nasceu lá, mas que ela ainda consegue, eu acho, alcançar outros campos que o teatro é limitado. As Clarianas, para mim, é um projeto que é ilimitado, que é uma música que ela pode chegar mesmo, não é? Teatro precisa da gente, a música não necessariamente, não é? Do nosso corpo físico. Então, é um projeto que eu amo muito assim, fazer, com as minhas manas Martina, Luana e os companheiros que vêm com a gente, as companheiras e tal. E também, outra coisa que eu acho importante dizer, é que esse momento que eu estou hoje, fazendo algumas travessias, acho que eu sempre fiz, desde que eu comecei a trabalhar, assim nesse escritório, mais depois na EAD, e depois os lugares onde a minha profissão me levou. Eu faço algumas travessias da quebrada para lugares que a gente jamais colocaria os nossos pés, desde a própria Universidade de São Paulo até ambientes onde o cinema me levou, não é? Onde o audiovisual me levou com a minha arte e isso me faz relacionar muitas coisas no meu cotidiano, desde o que é a minha pessoa, o que a minha figura hoje, em 2019, pode trazer como representatividade, como um lugar de um pouco mais de expectativa para quem está assistindo ou para quem vê, ter referências que eu, por exemplo, enquanto jovem não tive. Então, eu entendo essa importância de poder ser alguém que está representando a maior galera, isso é muito legal, porque eu colho esses depoimentos, não é? As meninas vêm falar o quanto a minha figura, não exatamente eu, mas a minha figura é importante na trajetória delas, não é? Que são mais jovens, que estão começando, ou que nem pensam em ser artistas, mas que se sentem representadas pela minha figura. É muito louco estar nesse papel. Ao mesmo tempo que é saber exatamente o que é estar na perifa da perifa, e olhar tudo aquilo e falar: “Não, tem uma distância muito longa ainda para ser percorrida, sabe? Só isso não basta”. Então, eu acho que esse momento que eu estou vivendo, também é de dialogar com essa contradição. De falar: isso que é importante, a representatividade, mas às vezes a gente corre o risco de estar dando ouro para bandido, sabe? Porque o mercado está pedindo isso, não é? Representação diversa, a diversidade. Então, às vezes, a gente contribui... eu fico com medo, às vezes, assim, de estar contribuindo para um lugar de um conforto desses espaços, por eu existir lá, mas de mim para adiante não avança nada. É a maior treta. Mas eu acho que é isso: todo mundo nesse momento acho que está vivendo várias contradições, o masculino, o feminino, que também tem que observar o masculino e o feminismo no meio de tudo isso, a mulher branca, a mulher preta. É a maior treta, assim. Então, além das questões pessoais, tem essa questão política de entender que a nossa arte é muito importante. Tanto que é isso, não é? A gente está o tempo inteiro sendo ameaçada, não é? Porque a gente realmente pode mexer na mente da galera assim, enfim.
P/3 - Você já teve alguma situação assim que você: “Putz, estou entregando o ouro para o ladrão aqui”, que você percebeu e mudou depois com alguma coisa assim?
R - Já. Teve coisa que eu consegui sair fora a tempo, graças, (risos) e eu acho que de resto, eu acho que não é nada óbvio assim, que a gente consegue identificar agora. Não é?
P/3 - Sim.
R - Eu acho que são coisas que é isso, por exemplo: a produção audiovisual, o cinema no Brasil. Mano, a produção de cinema no Brasil, noventa por cento é branca. Não tem a gente lá, sabe? E às vezes a gente tem que se sujeitar a ser a única ou tipo, entre os cinco mais, contando com a atriz, assistente de câmera, assistente de direção, direção é raríssimo. Aí às vezes eu falo: “Mano, eu nem queria estar aqui, sabe?” É tão distante, que na real assim, eu não sei se estou ajudando ou atrapalhando. Mas pode ser que eu esteja contribuindo. Mas se pá eu estou, sabe? É uma contradição de pensamento, porque não é suficiente. A vontade é de falar assim: “Vamos fazer, metade a metade, trinta/ setenta. Está errado, vocês estão achando que estão falando de política, vocês não estão considerando o povo brasileiro, cinquenta e quatro por cento da população é negra. Está errado”. Ou não, às vezes só de eu estar lá já significa um monte de coisas. Mas também pode ser o perdão dessa galera que nunca pôs ninguém lá e aí põe um e acha que está resolvendo o problema, entendeu? Porque parece que a questão racial é só da galera preta. Parece que a questão feminista é só das mulheres. E não é, mano. É de todo mundo. Então, eu estou nesse momento nesse pensamento de contradição, assim. Às vezes dá vontade de radicalizar, usar um pouco (risos) desses chamados todos, para poder radicalizar e fazer com que a galera observe algumas coisas além do que eles estão acostumados a pensar sobre política, e a gente também. Mas, em fria, assim, eu já consigo me safar. Fria mesmo, estou fora.
P/3 - E o que você acha da censura ao Marighella?
R - O Marighella não foi censurado diretamente. É isso. É um jogo que os caras estão fazendo, não é? Que nada está sendo censurado diretamente. Nem o Museu. Mas, indiretamente sim, não é? A Ancine está sendo sucateada. Aí é isso, ter escolhas. Para a liberação de burocracias do que eles querem que vá primeiro. Mó zuado. Lula Livre. (risos)
P/1 - E como foi contar sua história?
R - Foi bom. Acho que é um exercício bom assim, tanto de memória, relembrar algumas coisas é bem gostoso, quanto de reflexão, não é? A gente fala, a gente pensa no que a gente fala. E se trabalha, sei lá. É gostoso. É difícil, mas é gostoso. Não é fácil. (risos)
P/1 - Que bom que você gostou. Então, em nome do Museu queria agradecer a sua participação, depois que a gente fizer todo o processo com a história, a gente vai te mandar o link com a sua história e depois vai para o portal, como expliquei. E se você achar que esqueceu de contar alguma coisa importante, a gente dá para entrar lá no portal, não acrescentar a história, mas pode ser, de repente contar uma história das Clarianas. É isso.
R – Valeu, gente.
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