P/1 – Sérgio, você pode falar o seu nome completo, local e data de nascimento?
R – Sérgio Perazzo, nasci no Rio de Janeiro em 4 de abril de 1943.
P/1 – Seus pais são do Rio de Janeiro?
R – Não, meu pai era argentino, veio pro Rio com dois anos de idade; minha mãe é brasileira do Rio. E minha avó materna era portuguesa; meu avô paterno, ele era brasileiro, descendente de negros e de franceses. Tem uma brincadeira que a gente faz em família: é que provavelmente algum pirata do Villegaignon (risos) transou com alguma escrava e saiu esse ramo da família (risos).
P/1 – (risos)
R – E da parte do meu pai – meu pai era argentino, minha mãe brasileira – mas meu avô uruguaio, minha avó argentina e meus bisavós italianos – daí vem o meu sobrenome. Então, na verdade, esse meu avô que era inicialmente padeiro, acabou se tornando tratador de cavalo, nasceu em Buenos Aires. E aí ele foi contratado pelo Jóquei Clube do Rio de Janeiro, né, pra trabalhar lá. Então duas das irmãs do meu pai, por exemplo, eram casadas com dois jóqueis uruguaios. Então morava no mesmo bairro a família desse meu avô e a família do meu avô materno também que era dona de uma casa de ferragens no Rio. E foi no clube de bairro que meus pais se conheceram.
P/1 – Como que é o nome do seu pai?
R – Meu pai Horácio Mário Perazzo.
P/1 – E da sua mãe?
R – Eunice Andréia Perazzo.
P/1 – Eles são vivos?
R – Não, já faleceram. Meu pai na juventude dele jogava basquete no clube, que era o Carioca Esporte Clube, que ficava no Jardim Botânico; e minha mãe ia ver os jogos de basquete e nos bares do Clube eles acabaram se conhecendo, namoraram e casaram – minha mãe casou cedo, eu nasci ela tinha vinte anos de idade.
P/1 – Qual que era a atividade, que que seu pai fazia?
R – Meu pai era um funcionário do escritório da Esso e que trabalhava nos fins...
Continuar leituraP/1 – Sérgio, você pode falar o seu nome completo, local e data de nascimento?
R – Sérgio Perazzo, nasci no Rio de Janeiro em 4 de abril de 1943.
P/1 – Seus pais são do Rio de Janeiro?
R – Não, meu pai era argentino, veio pro Rio com dois anos de idade; minha mãe é brasileira do Rio. E minha avó materna era portuguesa; meu avô paterno, ele era brasileiro, descendente de negros e de franceses. Tem uma brincadeira que a gente faz em família: é que provavelmente algum pirata do Villegaignon (risos) transou com alguma escrava e saiu esse ramo da família (risos).
P/1 – (risos)
R – E da parte do meu pai – meu pai era argentino, minha mãe brasileira – mas meu avô uruguaio, minha avó argentina e meus bisavós italianos – daí vem o meu sobrenome. Então, na verdade, esse meu avô que era inicialmente padeiro, acabou se tornando tratador de cavalo, nasceu em Buenos Aires. E aí ele foi contratado pelo Jóquei Clube do Rio de Janeiro, né, pra trabalhar lá. Então duas das irmãs do meu pai, por exemplo, eram casadas com dois jóqueis uruguaios. Então morava no mesmo bairro a família desse meu avô e a família do meu avô materno também que era dona de uma casa de ferragens no Rio. E foi no clube de bairro que meus pais se conheceram.
P/1 – Como que é o nome do seu pai?
R – Meu pai Horácio Mário Perazzo.
P/1 – E da sua mãe?
R – Eunice Andréia Perazzo.
P/1 – Eles são vivos?
R – Não, já faleceram. Meu pai na juventude dele jogava basquete no clube, que era o Carioca Esporte Clube, que ficava no Jardim Botânico; e minha mãe ia ver os jogos de basquete e nos bares do Clube eles acabaram se conhecendo, namoraram e casaram – minha mãe casou cedo, eu nasci ela tinha vinte anos de idade.
P/1 – Qual que era a atividade, que que seu pai fazia?
R – Meu pai era um funcionário do escritório da Esso e que trabalhava nos fins de semana pra complementar salário nas casas de apostas do Jóquei Clube.
P/1 – Ah, porque ele já tinha essa ligação?
R – Já tinha essa ligação. Então ele trabalhava, na verdade, de segunda-feira a domingo, que tinha três filhos, pagava escola particular, essas coisas; então tinha que ter bico.
P/1 – E a sua mãe?
R – Minha mãe era dona de casa, sempre foi.
P/1 – E, quando seus pais casaram, eles foram morar aonde?
R – Eles foram morar ali no Jardim Botânico, ali pertinho. Quando eu era bem...
P/1 – Perto do Jóquei?
R – Era tudo ali perto do Jóquei. Quando eu era pequeno, de manhã, então – eu sou o filho mais velho – mas o menor não era nascido ainda. Minha mãe nos levava todos os dias pra passear e brincar no Jardim Botânico, a gente ia a pé. Então eu passei minha infância numa vila pequenininha que existe até hoje, ali perto da Ponte de Tábuas, que é aquele largo ali que tinha do lado do Jóquei; o outro lado o Jardim Botânico.
P/1 – Você morou quanto tempo nessa casa?
R – Nessa casa eu morei seis anos; depois eu até os doze continuei morando no Jardim Botânico, mas um pouco mais pra adiante na Rua Maria Angélica, onde meu avô tinha armazém, tinha uma quitanda, onde tinha a casa do meu avô que tinha quintal, tinha porão, tinha goiabeira, periquito. Eu morava na casa dos fundos, perto, tudo na mesma quadra, tudo ali. Era um lugar que tinha dum lado o Corcovado, do outro lado a Lagoa Rodrigo de Freitas. Era uma coisa tão habitual pra gente que a gente nem ficava ligado na beleza do lugar. Cada vez que eu vejo: “Puxa, eu passei a infância aqui!”.
P/1 – E você tem mais dois irmãos?
R – Dois irmãos; um, o mais novo, já é falecido e tem um irmão vivo, que é o do meio.
P/1 – Mora no Rio de Janeiro?
R – Mora no Rio.
P/1 – Como é o nome dele?
R – Paulo César Perazzo.
P/1 – E, conta uma coisa, como é que era essa sua casa de infância, essa aos seis anos?
R – Como era a casa? Bom, a primeira casa em que eu morei, que era nessa vila, era uma vila supersegura e que as crianças brincavam o tempo todo no..., não entrava carro na vila e a gente brincava o dia inteiro, era superlegal. Agora, a casa que ficou mais pra mim é a do segundo período da infância, essa da Maria Angélica, e que a gente ia pra rua jogar futebol; jogava futebol na própria rua, passava carro muito de vez em quando; quando passava a gente parava a bola e continuava jogando depois. Até que chegava o momento que as mães iam pra rua chamando todo mundo pra tomar banho pra esperar o pai que chegava entre seis, seis e meia; todo mundo jantava cedo e depois do jantar era hora de brincar junto com as meninas, então você brincava de tudo que você pode imaginar de brincadeira de criança, então era junto com as meninas, né?
P/1 – E seus irmãos brincavam juntos também?
R – Brincavam juntos também.
P/1 – E como é que era na sua casa, quem que exercia autoridade, seu pai ou sua mãe?
R – Olha, no dia a dia, na prática, era mais a mãe mesmo; o pai era por via indireta, tipo assim: “Vou contar pro seu pai”, né, (risos) “se seu pai ficar sabendo você vai apanhar, vai ficar de castigo”, né? Mas, na verdade, não me lembro nenhuma vez de meu pai ter encostado um dedo na gente; então, era só a construção de uma autoridade que a mãe fazia questão de cultivar no cotidiano.
P/1 – E vocês tiveram educação religiosa?
R – Olha, na verdade eu tive, mas não por religiosidade da família. Então, por exemplo, na minha família tudo ninguém frequentava igreja, ninguém ia à missa aos domingos. Iam à missa de bodas de prata, bodas de ouro ou casamento, batizado. Mas eu estudei durante oito anos num colégio de jesuítas, que era o Colégio Santo Inácio, que fica em Botafogo até hoje. Então, na verdade, eu tive uma educação religiosa através do Colégio; então, durante esses oito anos a gente tinha aula de religião três vezes por semana. E, no entanto, eu terminei o colegial em 1961; então pra gente ter uma ideia do que que era isso em 1959, 1960 e 1961 as aulas de religião, na verdade, eram aulas de educação sexual pra gente, como adolescente. Então existia uma visão e uma abertura maior do que a gente, à primeira vista, possa imaginar aqui que seja. Mas tinha um certo maquiavelismo dos padres. Por exemplo, naquela época toda escola tinha um dia de folga na semana; então, todas as escolas tinham folga na quinta-feira, a minha escola era a única que tinha folga na quarta-feira. Então, o que que acontecia, quarta-feira, as únicas crianças com quem a gente podia brincar eram da mesma escola. Como a escola tinha campo de futebol, quadra de basquete, piscina, tinha mesa de pingue-pongue, então o lugar natural pra brincar era na escola. Mas a escola reservava essas quadras esportivas na quarta-feira só pra quem era da Cruzada Eucarística ou do Congregação Mariana (risos).
P/1 – Aí todo mundo (risos).
R – Resultado (risos) todo mundo virava cruzada (risos) ou depois congregado mariano pra poder jogar futebol na quarta-feira. Então era um esquema superbem montado pra obrigar a gente assim a assistir missa na quarta-feira, ouvir preleção religiosa e depois, como prêmio, jogar futebol.
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Aí, era da quinta série, dos onze aos dezessete.
P/1 – Você entrou com quantos anos na escola?
R – Eu entrei no Jardim da Infância com seis anos.
P/1 – No Santo Inácio mesmo?
R – Não, não, era uma escola pública que ficava em Botafogo. Depois eu fiz o primário, primeira até a quarta série num colégio pequenininho que era perto da minha casa, eu ia a pé, sozinho.
P/1 – Sozinho?
R – É, e que era Externato Menino Jesus, mas era um colégio leigo. Mas naquela época, você vê assim, não tinha essa coisa de mãe levar na escola porque a segurança era tão grande que a escola ficava umas duas ou três quadras da minha casa e eu ia a pé pra escola. Quando eu comecei a quinta série – que chamava de admissão na época e que eu já estava no Santo Inácio – eu tinha que pegar bonde pra ir na escola, eu ia de bonde sozinho pra escola e voltava de bonde sozinho pra escola. Então como tinha algumas crianças que iam no ônibus da escola – que os pais podiam pagar ou ficavam mais preocupados com isso – a gente sempre ficava gozando dos caras do ônibus dizendo que os caras eram maricas porque assim, a gente andava de bonde e o grande trunfo era saltar do bonde andando um pouco antes do bonde parar. Então tudo era uma afirmação de macheza que a gente tinha e que era muito curioso porque assim, os padres tinham uma hierarquia dentro do colégio, tinha um deles que tinha o cargo de Prefeito Geral, que cuidava da disciplina geral do colégio. Então quando a gente saía da escola e pegava o bonde, o bonde parava mais tempo num determinado ponto no bairro do Humaitá, chamava Ponto de Seção, que era o ponto que o fiscal conferia os passageiros pro trocador, pra quem recebia o dinheiro não poder passar a perna na Companhia de Bondes, né? E nesse Ponto de Seção tinha uma padaria onde esse Prefeito Geral, que era um padre, ele saía num carro dele que era um carro velho, pequenininho, ele ultrapassava o bonde e se escondia na padaria. Quem ele pegasse fumando no bonde (risos) ou no estribo do bonde ou de paletó aberto do uniforme – que não podia – no dia seguinte era suspenso.
P/1 – É mesmo?
R – Durante três dias. Então tinha uma fiscalização extra-muro dos colégios, os caras ficavam ali.
P/1 – No bonde?
R – O tempo todo, no bonde.
P/1 – Incrível. E fala uma coisa no primário, ainda no Externato, tem alguma professora que tenha te marcado, que você lembra dela ou lembra o nome?
R – Tem, tem, a dona Elza que eu adorava, era superapaixonado no bom sentido, pela dona Elza que foi professora minha durante três anos, da segunda até a quarta série. E que era muito, tinha uma voz suave, doce; eu me lembro perfeitamente dela, até hoje. E que eu cheguei a visitá-la até depois que eu entrei na faculdade pra contar pra ela que tinha entrado na faculdade e tal anos depois.
P/1 – E ela tinha alguma matéria que você gostava, que que você gostava na escola?
R – Olha, no primário eu não tinha problema nenhum; agora no ginásio e científico o que eu detestava era Matemática, detestava Matemática. Todas as outras matérias em geral eu gostava muito; gostava, particularmente muito, de Português e de História, gostava demais. E o curioso é que quando eu era menor, mais por influência duma tia, eu dizia que ia fazer Engenharia. Aos quatro anos de idade eu tinha uma avó, a minha avó paterna morava em São Paulo e, às vezes, passava temporada com a gente no Rio de Janeiro. E numa dessas temporadas, quando eu tinha quatro anos de idade, ela morreu, ela teve um infarto fulminante e morreu.
P/1 – Ela era separada do seu avô?
R – Não, não.
P/1 – Eles moravam em São Paulo?
R – Eles moravam em São Paulo; às vezes vinham os dois, às vezes vinha só ela. Numa das vezes que veio só ela, ela morreu na minha casa.
P/1 – Visitando?
R – Visitando, eu era muito pequeno, eu fiquei impressionadíssimo. E dos quatro anos de idade até os doze eu não podia nem passar perto de cemitério que eu morria de medo; não podia nem ver fotografia de cemitério, morria de medo. Então eu nunca cogitei, nesse período da minha infância e começo da adolescência, pré-adolescência de fazer Medicina. Mas quando eu tinha doze anos, então já nesse colégio de jesuítas, um dia um padre entrou na sala de aula e disse assim: “Olha, você, você, você e você” – e me incluiu nessa escola – “vão representar o colégio no velório do padre tal do colégio tal”. Aí eu não podia dizer pros meus colegas que eu tinha medo de defunto, né, aí eu tive que ir; e aí não senti medo nenhum. Foi a partir daí, quer dizer, que foi o momento de superar o meu medo da morte é que eu comecei a pensar em fazer Medicina, que eu gostava de Ciências, depois de Química, de Física. Então foi aí que eu me defini profissionalmente, por volta dos doze, treze anos de idade.
P/1 – Aí com doze anos você decidiu que ia fazer?
R – Que eu decidi, mesmo assim.
P/1 – Que ia fazer Medicina?
R – Que ia fazer Medicina. Mesmo assim, depois que eu passei no vestibular, mesmo assim, antes de matricular, eu fui sozinho, sorrateiramente até a Faculdade, fui até o anfiteatro de Anatomia pra ver os cadáveres e os pedaços de cadáveres pra ver se eu aguentava ter aula de Anatomia. E pra mim foi super tranquilo; só aí então que tive peito de me matricular na Faculdade.
P/1 – E como, você saiu do Externato e foi pro Santo Inácio?
R – Isso.
P/1 – Como que foi essa diferença, essa mudança de colégio pra você?
R – Olha, foi ótima porque o Santo Inácio era uma escola particular de peso no Rio de Janeiro; tinham três escolas que eram consideradas as escolas mais fortes do Rio, uma era o Santo Inácio – que era um colégio particular de jesuíta – quatro, aliás, tem uma outra que era também religiosa que era o São Bento que ficava na cidade, era de beneditinos; tinha a Escola Militar que aí era disciplina militar e tinha o Pedro II que era uma escola pública. Mas o nível da escola pública naquela época era tal, só pra você ter uma ideia, um dos professores de Português do Pedro II, por exemplo, era o Manuel Bandeira. Então a rivalidade era entre essas escolas. Agora, o Santo Inácio, como era uma escola particular, ela tinha – como eu contei – muita, atraia muito a gente por causa da possibilidade do esporte. Então tinha dois campos de futebol, tinha duas quadras de basquete, tinha piscina. Então a transição pra mim foi assim muito feliz porque quando eu fui conhecer a escola e bati o olho nas quadras esportivas que o Colégio tinha, esse era o grande atrativo que nós crianças tínhamos pra poder ir pra escola. Porque a gente olhava o que, o esporte que a gente ia praticar. Agora a escola era muito exigente mesmo; por exemplo, não havia repetente no Colégio; então se alguém não passasse de ano tinha que sair da escola, não tinha perdão, então você tinha que sair.
P/1 – E as suas notas eram boas, você gostava de estudar?
R – Eram boas, sim, eu era um bom aluno.
P/1 – Você ia à praia?
R – Ia, quando eu era criança, eu ia a praia nas férias do meu pai; como o meu pai trabalhava sábado e domingo, quando ele estava de férias então ele levava a gente pra praia. A gente ia de bonde e o grande barato era a gente ir no reboque do bonde. O bonde tinha um reboque que era mais gostoso de andar porque ele chacoalhava; então era uma diversão ir de bonde até, a gente ia de bonde até a praia de Ipanema. Naquela época, a praia de Ipanema tinha uma vegetação rasteira e a gente levava baldinho porque a gente pegava mariscos na praia de Ipanema, imagina, enchia o baldinho a ponto de levar pra casa e a avó fazer farofa com mariscos colhidos no dia, né, que a gente pegava, então ia muito. Ou então quando não era férias do meu pai ia com o meu avô, né, eu aprendi a nadar com o meu avô. Esse meu avô paterno foi muito importante na minha vida porque era quem me levava pra cinema, teatro, esporte, tudo quanto era competição possível.
P/1 – Esse que trabalhava no Jóquei?
R – Não, esse era o avô que era dono de armazém, de quitanda.
P/1 – Materno?
R – Então levava pras corridas de automóveis, que era a Fórmula 1 na época, que era no circuito da Gávea. Então eu vi o Fangio correr muitas vezes e o grande corredor brasileiro era o Chico Landi. Então ou eu ia ver corrida de automóvel, futebol, jogo de basquete, competição de ciclismo, natação, tudo. Tinha uma coisa muito gostosa naquela época que era assim, quase todo domingo tinha regata na Lagoa Rodrigo de Freitas; e na época não tinham construído ainda o Estádio de Remo que existe até hoje lá. Então todo domingo as famílias iam pra beira da Lagoa e ficavam lotando a beira da Lagoa pra assistir as regatas. E a água da Lagoa era tão boa na época que eu ia com o meu avô pescar tainha e meu avô mergulhava a mão na Lagoa, pegava um pouco de limo, usava como isca, jogava o anzol na Lagoa e saía com uma tainha pra levar pra minha avó fazer na hora do almoço. Então isso era muito comum no Rio de Janeiro.
P/1 – E esse armazém que seu avô tinha, quê que vendia?
R – Era aquele armazém de secos e molhados antigos que vendia tudo que você pode imaginar. Como naquela época a industrialização do Brasil era pequena, um armazém de bairro tinha muita coisa importada. Então, por exemplo, vendia vinho português, vinho espanhol, bacalhau importada, atum em lata português importado, tinha muita importada em armazém de bairro. Do lado do armazém é que tinha a quitanda que vendia verduras e legumes. Agora o armazém, o armazém vendia de tudo. Então, um grande acontecimento da minha infância foi quando meu avô comprou um refrigerador-geladeira pra sorvetes e ele começou a vender sorvete. Então fazia fila da molecada pra poder comprar picolé da Kibon, Eskibon que era o sorvete que tinha na época. Só tinha o Eskibon que existe até hoje e o de palitinho só tinha o Chicabon que era o de chocolate, o Já-já que era de coco, depois o Ton-bon que era o de limão, eram os só que tinha. Então na verdade isso acabou criando em mim muito uma certa gulodice porque assim, eu podia comer de graça qualquer doce, tomar qualquer refrigerante ou tomar sorvete porque era o armazém do meu avô (risos). Ele chegava assim: “Olha, só um antes do almoço pra não perder a fome”. Mas ele me dava alguma coisa; então tinha sempre bala, tinha sempre essas coisas.
P/1 – E você ficava lá com ele?
R – Às vezes ficava, era uma diversão. Tinha um depósito do armazém e da quitanda que tinha os grandes cestos e que você transportava a mercadoria e a gente brincava dentro do cesto. Quando chegava na época de Natal, na época que a gente ganhou uma bicicleta, eu e o meu irmão, a gente descobriu que não existia Papai Noel porque a gente descobriu olhando pelo buraco da fechadura do depósito as bicicletas escondidas no depósito do armazém (risos) porque eles não deixaram a gente entrar, porque normalmente a gente... “A gente não pode brincar no depósito?”, então olhando a gente viu as bicicletas, descobrimos que era presente de Natal e acabou o mito Papai Noel nesse dia, né?
P/1 – E a sua família se reunia, os outros tios?
R – Muito, na verdade eu posso, uma coisa muito legal que eu posso dizer é assim que eu tive uma infância muito feliz. E a minha família dos dois lados, tanto do lado de pai como no lado de mãe, era uma família que todo mundo se abraçava, se beijava, ninguém esquecia aniversário do outro. No aniversário de cada um todo mundo sabia de cor e recebia telefonema de todo mundo. Quando chegava as festas de Natal e Ano Novo então era um acontecimento fantástico porque ia todo mundo pra casa da minha avó; então ia bisavó, tia-avó, tio-avô, primo em segundo grau, enchia de gente. E a gente tinha, tradicionalmente acontecia o seguinte, na véspera de novo, o almoço de véspera de Natal era invariavelmente uma bacalhoada que minha avó fazia e à noite tinha a ceia de Natal. No dia seguinte, no almoço de Natal, tinha o peru, que na verdade era um peru que se comprava vivo e que se matava na véspera no quintal da casa. E à noite tinha o enterro dos ossos do que sobrava das refeições, eram quatro refeições com a família toda. No Ano Novo o almoço da véspera era frango; à noite era ceia; o almoço do dia seguinte era leitão e à noite o enterro dos ossos. Então tinha oito refeições pra família toda reunida e era uma farra total, né, era muito legal, muito gostoso. Fora todas as festividades, aniversário, dia de mãe, Dia das Mães ou dos Pais, sempre tinha reunião na casa dessa avó e que todo mundo…
P/1 – Essa avó cujo marido tinha o armazém?
R – Tinha o armazém.
P/1 – E esses avós de São Paulo participavam, com que frequência vocês se viam, essa avó que, ela morreu cedo, né?
R – Ela morreu eu tinha quatro anos.
P/1 – E ele?
R – Não, ele quando morreu eu devia ter. Não, ele depois que ela morreu, esse meu avô veio morar na minha casa. Aí eu já era adolescente, então aí a gente já morava em Santa Teresa. E aí esse meu avô.
P/1 – Por que que vocês saíram do Jardim Botânico pra Santa Teresa?
R – Porque meu pai conseguiu comprar um apartamento, porque até então a gente morava em casa alugada. Então ele comprou um apartamento em Santa Teresa pra onde a gente se mudou. Então, foi, era o grande sonho do meu pai ter a casa própria. Então depois que a minha avó morreu, esse meu avô continuou morando no Rio de Janeiro com uma das irmãs do meu pai que era casada mas não tinha filhos. Quando essa minha tia morreu aí meu avô foi morar conosco no Rio de Janeiro na casa, nesse apartamento em Santa Teresa. Então minha mãe ficava cuidando de cinco homens: era meu avô, meu pai e três filhos homens. E aí, na época do vestibular, eu estudava na sala e meu pai, esse meu avô tinha um quarto pra ele; e ele começou a envelhecer, começou a ficar com Alzheimer. E então eu estava estudando à noite e de madrugada, ele levantava e se dirigia pra porta e queria sair, tentava abrir a porta. Aí eu chegava: “Aonde é que você vai, vovô?”. “Não, eu quero ver, o Nelson esqueceu aberta a porta da porteira.” Já eram as recordações dele do tempo de tratador de cavalo. Aí eu respondia assim: “Pode deixar que eu falo com o Nelson”. Aí ele voltava pra cama; meia hora depois (risos) ele levantava e disse assim: “O Nelson esqueceu a porta aberta da cocheira”. “Pode deixar que eu falo com o Nelson.” Então era a noite toda assim, até que ele acabou falecendo e tal.
P/1 – Era grande esse apartamento de Santa Teresa?
R – Não, não, era um apartamento que tinha três quartos, mas um apartamento pequeno, não era um apartamento grande. A sala, inclusive, era uma sala pequena. Então meus irmãos dormiam num quarto, meu avô no outro, meus pais no outro e eu dormia na sala numa poltrona que se transformava em cama; então toda a minha adolescência foi assim. Até eu entrar na faculdade e até meu avô morrer; quando meu avô morreu, eu herdei o quarto dele. Então aí eu já estava fazendo vestibular, era o ano já do terceiro colegial quando eu tive meu próprio quarto.
P/1 – E a adolescência no Rio de Janeiro, qual era a diversão, o que você fazia?
R – Era mil coisas assim, era muito gostoso, acho que tinha o grupo com os amigos que tinha muito a prática de esporte. Eu joguei muito futebol e muito basquete. Então uma glória da minha vida é que eu disputei, eu era da seleção de basquete do colégio e disputei um torneio intercolegial no Rio de Janeiro. E a gente foi pra final e a final foi no Maracanãzinho; então a minha glória é que eu joguei uma vez no Maracanãzinho. A gente perdeu o campeonato, mas eu joguei no Maracanãzinho. Então isso era o lado esporte. Mas não tinha sábado que não tivesse festa em algum lugar, então a gente dançava muito, né, e dançava qualquer coisa. Então se não tinha festa dada por alguém a gente juntava, cada um levava um refrigerante e algumas coisas, escalava a casa de alguém e botava disco no conjunto de som – que na época a gente chamava de vitrola – afastava o tapete da sala e a gente dançava. Não tinha fim de semana que não tivesse, não tivesse isso. No fim do ano, então era época de festa de formatura que a gente era convidado pra várias. Então isso era tão comum que a gente acabava dando um jeito de comprar à prestação um smoking numa loja masculina que se chamava Ducal, que era mais barata e tinha, você pagava em dez prestações. Então todo mundo tinha smoking. E os lugares mais badalados eram os salões do Hotel Glória e os hotéis, os salões do Copacabana Palace porque tinham três salões cada um; então tinham três salões com três orquestras, a gente mudava.
P/1 – No Copacabana Palace, no Glória?
R – No Glória e no Copacabana Palace. Então você mudava de salão, mudava de tipo de música, né, as meninas ficavam elegantíssimas com aqueles vestidos longos. A gente saía dos bailes quatro horas da manhã, não tinha perigo nenhum, a gente voltava pra casa com elas de ônibus, elas com as joias das mães, joias das avós, não acontecia nada; não há registro de violência na minha cabeça em relação às coisas dessa época. Então era uma coisa muito legal.
P/1 – Que música que você gostava?
R – Olha, a gente dançava muito ao som das músicas americanas da época, tanto as bigbands, né, do jazz como Sinatra, como Nat King Cole, os discos que a gente ouvia muito. Então houve uma época surgiram os discos do Ray Conniff que a gente dançava muito e muitos boleros que vinham na voz do Bienvenido Granda, do Gregório Barrios, do outro que era chileno que agora não tô lembrando o nome que a gente dançava muito bolero, então era muito o dançar junto. E quando eu tinha catorze anos explodiu o rock, então assim poucos dançavam rock. Então quando tocava rock e dois ou três dentro de casa dançavam rock, ficava assim a família em volta com olhares desaprovadores, né, com aquela coisa que era escandalosa na época dançar rock. Mas isso foi acontecendo. Mais ou menos nessa época então surgiu a bossa nova e então dançar música bossa nova era uma coisa fantástica. Por exemplo, em tempos de faculdade, a minha faculdade foi construída seguindo o modelo dos prédios da Sorbonne, né, então ela tinha um jardim interno. Como a gente tinha.
P/1 – Que Faculdade que era?
R – A Nacional de Medicina aqui onde é a UFRJ. E essa Faculdade que infelizmente não foi tombada, ela foi derrubada anos depois pra ser transformada num estacionamento da Marinha, né, essas coisas de Brasil. Mas na época, nesse jardim interno, como a gente tinha aula em tempo integral, em intervalo de aula e na hora de almoço, a gente se reunia cantando as músicas da bossa nova da época, sempre tinha uns quatro ou cinco que tocavam violão e se revezavam; ou então a gente ia pro auditório da escola onde tinha um piano onde tinha um colega meu de turma que é ortopedista hoje e que ele tocava a música bossa nova no piano, a gente cantava. Então tinha muito, tanto é que a minha geração, né, não se ligou na Jovem Guarda do Roberto Carlos porque assim, porque a gente estava muito ligado à música mais sofisticada, de construção de harmonia, de letra do Vinícius. Então era, minha geração não se abdicava de cantar a música do Vinícius pra cantar “Meu Calhambeque Piu Piu” porque era uma coisa já pros nossos irmãos mais novos, que aí sim é a geração que ficou mais do rock, mais da Jovem Guarda. Mas a minha ficou mais, ficou fiel à bossa nova mesmo. Pra você ter uma ideia, eu estava no primeiro ano de faculdade, a primeira festa que os veteranos deram em homenagem aos calouros foi no salão de baile da Faculdade porque tinha um salão, eles convidaram alguns universitários de outras faculdades pra fazer um show. Então tinha uma menina meio tímida cantando naquele show e outro menino meio tímido que eram de outras faculdades, que eram, nada mais nada menos, que o Chico Buarque e a Nara Leão.
P/1 – Hum (risos).
R – (risos) Então, por exemplo, assim pra você ter uma ideia assim, nesse.
P/1 – Mas o Chico veio de São Paulo, ele não fazia parte.
R – Veio de São Paulo, mas pra cantar pra gente. Então, por exemplo, naquele colégio de jesuítas que eu pertenci, eu tinha como colegas meus o Edu Lobo, o Marcos Valle, o Paulo Sérgio Valle, o Sidnei Muller, o Nelsinho Motta, Cacá Diegues, Arnaldo Jabor, Pedro Malan, nós todos era a mesma turma.
P/1 – Na Faculdade?
R – Não, nesse colégio de jesuítas, no Santo Inácio.
P/1 – Nesse colégio de jesuítas, era a mesma turma sua?
R – Tudo a mesma turma, todo mundo junto. Tinha um uma turma adiante, o outro uma turma abaixo, mas era todo mundo junto, jogar futebol junto e estava sempre por ali. Então saiu de lá todo esse pessoal, né?
P/1 – Sérgio, quando foi sua primeira namorada, a primeira paixão assim?
R – Não, a primeira paixão com sete anos de idade.
P/1 – É, a primeira paixão, depois primeira, como foi essa de sete anos?
R – Primeira namorada com dezessete (risos), né?
P/1 – A primeira paixão como foi?
R – A primeira paixão era assim, eu era apaixonadíssimo por uma menina um ano mais velha do que eu, chamava Regina e que era irmã de um colega meu de colégio que até tá numa dessas fotos da turma de primário que eu mostrei aí. Era totalmente platônico, eu achava ela linda, né, me lembro perfeitamente que eu sentia bater o meu coração forte cada vez que eu via a Regina, então ficava aquela coisa de longe. E no que diz respeito à minha aproximação com meninas, na adolescência eu era muito tímido, eu ficava também repetindo essa paixão platônica com outras meninas. Até que, com dezessete anos, eu me encorajei e comecei a namorar uma menina que era normalista, que fazia escola normal na época que se chamava Rigoleta e que morava no subúrbio, no Rio, no Jacarezinho.
P/1 – Como é que você conheceu?
R – Eu conheci numa festa. Aliás, eu tinha dezoito anos porque eu estava já na faculdade. Então acontecia que eu tinha dois grandes amigos, colegas de faculdade, que também tinham namoradas que moravam perto da minha namorada também. Então, o que que acontecia? Iam os três namorar cada um a sua namorada na casa dela; aí dez horas é a hora que se decretava o fim do namoro (risos). Então, a gente saía da casa dela, aí a gente reunia, ia tomar chope, bater papo (risos). E naquela época, como um deles morava no Méier, a gente ia tomar chope num boteco supervagabundo no Méier que tinha ovo cozido com anilina naquele bar típico do Rio de Janeiro da época. Aí a gente ficava lá e tal, batendo papo, tocando violão, cantando.
P/1 – Você tocava já?
R – Não, não. Eu vim aprender a tocar violão com trinta e três anos e vim aprender a tocar sax com quarenta. E pra mim foi um prazer imenso porque é uma coisa que eu não pude fazer antes – devia ter feito porque é uma bobagem não ter feito – eu depois me via tocando as músicas da minha adolescência, da minha juventude ou até as músicas que eu dançava que eu passei a tocar sax – inclusive integrei uma banda de músicos amadores de jazz e que tocava as músicas que eu dançava na adolescência. E tem umas histórias ótimas; então, por exemplo, nessa época de adolescência, um dos conjuntos que tocava muito em baile era um conjunto do Steve Bernard, que era o primeiro que introduziu órgão elétrico num conjunto musical. Bom, o Steve Bernard, ele tinha como crooner a Valéria, que a gente adorava, a gente achava lindíssima, de cabelo escuro, usava vestido tomara-que-caia e que caia, que a gente achava assim gostosíssima; então ficava todo mundo admirando a Valéria. Então, nos bailes que tinha três salões, como o do Copa, por exemplo, o salão em que estava o Steve Bernard tocando e a Valéria cantando, ia todo mundo. Bom, o tempo passou, o Steve Bernard morreu, ninguém soube mais dessa história. Aí meus pais numa época compraram uma casinha em Sepetiba, que é uma praia do subúrbio do Rio de Janeiro. E um dia, eu estava lá passando um fim de semana, veio uma amiga da minha mãe pra jogar buraco com ela, que tinha uma casinha lá. Quem é que era? A Valéria (risos).
P/1 – (risos)
R – Anos depois, assim a Valéria ao vivo e a cores, da idade da minha mãe, jogando buraco com a minha mãe, ficou amiga dela (risos). Era aquela paixão erótico-platônica da minha adolescência (risos).
P/1 – (risos) Ô Sérgio, e a Rigoleta, que foi feito dela?
R – Rigoleta depois, a gente namorou um bom tempo porque a maior parte do tempo da faculdade eu namorei a Rigoleta. Até que, chegou numa hora, quer dizer, na verdade, a gente namorou desde muito cedo, foi gastando a relação. E ela foi fazer Serviço Social depois; depois nunca mais soube dela. E ela, na verdade, ela nasceu na cidade – acho que era Santa Maria Madalena – que era a cidade da Dercy Gonçalves. Então a Dercy Gonçalves era o grande nome da cidade dela, que eu conheci a cidade numa época que eu fui visitar a família dela numa viagem e tal.
P/1 – E esse período da faculdade, quê que você gostava de, quais as matérias, quê que te chamava atenção?
R – Não, na Faculdade de Medicina eu gostava de tudo, me dei, me dediquei muito, trabalhei muito. Eu durante a faculdade fiz estágio em maternidade, fiz mais de duzentos partos; trabalhei em Pronto Socorro. Naquela época, trabalhei no quinto e sexto ano no Souza Aguiar, a gente saía de pra fazer o que o resgate faz hoje, eu subia a favela pra atender os doentes; então, eu conheço as favelas do Rio. Então quando a gente, a ambulância ficava embaixo do morro, a gente subia naquele espaço estreito entre os barracos, vivi coisas assim terríveis porque assim quando, às vezes, a gente tinha que trazer o doente pra ambulância, a maca não cabia no espaço entre os barracos. Então, se colocava o doente sentado numa cadeira e os dois enfermeiros, dois vizinhos desciam a pessoa sentada na cadeira até à ambulância. Eu me lembro de situações assim de uma noite ter.
P/1 – Paciente, onde foi seu primeiro consultório que você alugava a sala. Você chegou a viver algum tipo de preconceito por essa escolha dentro da Psiquiatria, tinha, existia historicamente algum tipo de rixa em relação a isso, à essa escolha?
R – Olha, no Hospital do Servidor, não. Como tinha uma diversidade muito grande de maneiras de trabalhar e atuar, o Psicodrama era muito bem aceito nessa época. Era muito divulgado, muita gente fazia terapia com psicodramatistas, mas tinha uma certa discriminação – hoje muito menos, mas ainda tem um pouco – por parte das pessoas mais rígidas – não é todas – de outras correntes de pensamento de Psicoterapia, isso na época tinha. Como se fosse assim, como se o Psicodrama não fosse sério, não fosse oba-oba e tal. Isso até, de uma certa forma, nos beneficiou porque fez com que a gente produzisse muito, como eu disse, existem mais de cem livros de Psicodrama publicados no Brasil – nenhum país do mundo tem isso, né?
P/1 – Você tem quantos livros publicados?
R – Bom, eu na verdade tenho uma participação – de uma maneira geral – em aproximadamente quarenta livros; ou seja, eu sou autor de quatro livros de Psicodrama, sou autor de um capítulo em doze ou treze livros de Psicodrama de vários autores, escrevi prefácio de doze livros de Psicodrama, já escrevi cinquenta e cinco artigos de Psicodrama – tanto no Brasil como também publicados em espanhol, publicados em inglês, então tem isso. Então tem capítulo de livro que eu escrevi, de livro espanhol de Psicodrama, mais de um; tem tradução de textos meus pro húngaro, pro espanhol, pro inglês.
P/1 – Como é que você foi se tornando essa referência?
R – É que eu sempre gostei de escrever. Vou chegar aí. Quer dizer, primeiro sempre gostei de ler; minha grande influência primeira – vamos dizer assim – são os livros infantis do Monteiro Lobato. Logo que eu aprendi a ler comecei Monteiro e nunca mais parei de ler. Então, até hoje na minha casa tem sempre uma pilha de livros que eu tô lendo sempre. Nunca deixei de responder carta, sempre gostei de escrever. Tive uma influência muito forte, um professor de Português maravilhoso – era o Professor Dutra – e que me criou uma paixão pela língua, pela literatura. Então eu sempre escrevi, lá no Colégio Santo Inácio que eu pertenci, tinha uma revista muito bem feita, que chamava Vitória Colegial que era publicada pelo Colégio mensalmente com artigos, com matérias todas escritas pelos alunos. A primeira poesia que eu tenho publicada saiu nessa revista do Colégio. Daí eu escrevi várias poesias até durante a minha adolescência e depois, naqueles ataques de vergonha e de exagero, de autocrítica, joguei tudo fora. A partir de 1972 eu voltei a escrever poesias, até que um amigo meu me encorajou: “Mas você escreve e não mostra pra ninguém?”. Então eu juntei, em 2001, as poesias que eu tinha escrito de 1972 até 2001, que compôs um livro de poesias que eu chamei de Croemas, né, que é um livro de quatrocentas páginas que tá publicado.
P/1 – Quatrocentas?
R – Quatrocentas páginas de poesia. Então, na verdade, eu podia ter selecionado as melhores, mas eu resolvi ser fiel a mim mesmo e publicar todas, até dando uma ideia da evolução da minha maneira de escrever e também como pessoa. Então esse livro foi publicado, mas não foi distribuído porque foi uma edição que eu tive que bancar. Depois disso, uma dessas minha poesias recebeu um prêmio da Associação Paulista de Medicina e eu fui convidado a participar, como membro, da SOBRAMES, da qual sou membro até hoje, que é a Sociedade Brasileira de Médicos Escritores. A gente se reúne uma vez por mês numa pizzaria que se chama Pizza Literária em que cada um lê ou um conto, uma poesia, um texto seu, uma crônica, o que me estimulou muito a escrever. Então, depois disso eu escrevi um outro livro de poesia que tá pronto, que se chama “O Quintal de Joaquina” – em homenagem à minha avó portuguesa – e que tem umas duzentas e cinquenta páginas, por aí. E outro.
P/1 – Esses são o quê, crônicas?
R – Não, esse é de poesias, “O Quintal de Joaquina”. E outro, que é um livro que também tá pronto, que tem umas duzentas e cinquenta páginas por aí, que é assim, são crônicas, contos e crônicas que a música ou é protagonista ou pano de fundo em todos os contos – são trinta e oito contos, eu acho – e que se chama “Contos em Clave de Sol”. E eu tô escrevendo agora um livro sobre a relação médico-paciente que se chama “Medicina ao Pé do Ouvido”; um outro psicodrama que se chama “A Metodologia do Improviso” e um novo de contos que se chama “Guia de bolso de uma paixão e outros cronicontos”, tudo.
P/1 – Tudo ao mesmo tempo você tá escrevendo?
R – Tô escrevendo ao mesmo tempo; e então é isso. Então Croemas, o nome assim que eu justifico, eu começo o livro dizendo assim: “Esse versejar cotidiano, não sei se crônica ou poema”. E o Cronicontos, é óbvio, são textos que, às vezes são contos às vezes crônicas e às vezes uma mistura dos dois, né? Então, tem muito conto meu, crônica e poesia que estão publicadas em antologias da própria SOBRAMES e no jornalzinho mensal da SOBRAMES, que se chama Bandeirantes, em que de vez em quando sai um texto meu publicado. Então os dois contos.
P/1 – Mas você tem um público leitor seu?
R – Tenho; eu tenho dois livros que estão prontos e que eu não publiquei ainda porque eu tô atrás de uma editora que publique, banque e distribua nas livrarias, que não aconteça como aconteceu com o Croemas, que eu distribuí pros amigos e parou por aí. É difícil a gente conseguir uma leitura crítica favorável da editora que aposte na gente, que publique aquilo que você escreva. Então, na verdade, uma das coisas que eu mais desejo é pelo menos publicar esse livro meu “Contos em Clave de Sol” porque eu gosto muito e porque também, pelo retorno das pessoas que eu mando e que leem, o retorno é sempre muito positivo. E, modéstia à parte, eu acho que esse livro merece ser publicado, gostaria muito de vê-lo publicado.
P/1 – Tem algum poema seu que você sabe de cor, que você adora?
R – De cor? Você sabe que eu não sei nenhum, eu até pensei em trazer algum pra ler aqui, pra mostrar aqui, mas tem muitos. Posso falar sobre um, por exemplo. O livro “O Quintal de Joaquina” tem esse nome porque nele existe um poema que se chama “O Quintal de Joaquina” que é em homenagem à essa minha avó materna que é portuguesa. A história dessa poesia é muito simples, eu uma vez fui num Congresso em Portugal em Prova do Varzim, que é a terra natal do Éça de Queiroz e que fica muito perto da cidade do Porto, que é no norte de Portugal e perto de Braga, que é a terra natal da minha avó. Então, eu andei de trem pelos arredores de Braga e a linha do trem passava pelos fundos das casas. E eu fiquei emocionadíssimo porque os quintais portugueses de Braga eram quase que uma cópia do quintal da casa da minha avó no Rio de Janeiro de que ela cuidava. Então é como se ela tivesse transplantado um pedaço de Portugal pro Rio de Janeiro, pro quintal da casa dela. Então eu escrevi uma poesia sobre isso e que se chama “O Quintal de Joaquina”, que dá nome ao livro “O Quintal de Joaquina”.
P/1 – Que lindo! Vamos voltar lá pro seu casamento. Aí você casou com essa filha do diplomata e quanto tempo vocês foram casados?
R – Nós ficamos casados sete anos; não tivemos filhos, nos separamos. E depois de alguns anos eu voltei a me casar – embora não tenha casado no papel, mas que eu considero casamento – com uma sansei, que também era psicodramatista e nosso casamento durou dois anos. Depois de alguns anos eu voltei a casar uma terceira vez; aí eu casei, inclusive no papel, com uma gaúcha que era agente de Turismo.
P/1 – Nossa (risos).
R – E foi um casamento que durou cinco anos e um casamento muito difícil com coisas muito duras.
P/1 – Como você conheceu, o quê que era uma agente de Turismo?
R – Porque ela era uma das pessoas que ajudava na organização turística dum Congresso do qual eu participei; foi aí que eu a conheci. Foi um casamento muito complicado por situações de alterações mentais sérias. Não tive filho nenhum desses três casamentos. Então, mais tarde, eu vim a me casar com uma professora de francês – que foi, inclusive, professora da Aliança muito tempo – aí sim, nós tivemos uma filha, que é a Clara, que essa é a grande realização da minha vida. E ficamos casados durante dezessete anos e ela não quis mais continuar casada porque ela cansou de casamento e tal. Mas somos amigos até hoje, frequentamos a casa um do outro, não tem nenhum problema nesse sentido, temos uma relação muito boa.
P/1 – E como é que foi ser pai?
R – Foi fantástico.
P/1 – Que ano que a Clara nasceu?
R – Em 1990. Esse, o nascimento da Clara foi um milagre porque como eu tinha dois irmãos, não tinha irmãs; mas eu sempre tinha um desejo de ter uma irmã, né? E, como não foi possível, então passava a ter o desejo de ter uma filha. E nos três casamentos que eu tive eu nunca hesitei em ter filhos, mas a minha fertilidade era muito baixa, então a probabilidade de gravidez era muito pequena. E eu desencanei, achei que não ia ter mais filhos e ponto final. Quando eu estava casado com a Cecília, que é o meu último casamento, ela não tinha sintoma de coisa nenhuma, mas foi fazer uma ultrassonografia de rotina, indicada pelo ginecologista dela. Aí eu disse: “Ah, faz numa sexta-feira que eu vou junto com você”. Então eu fui junto com ela e estamos nós conversando, a médica tá lá manejando o aparelho e a médica chega assim: “Ué, tem um nenê aqui”. Aí eu vi um coraçãozinho batendo e eu fiquei sabendo que ia ter um filho, vendo o coraçãozinho bater. Seguramente foi a maior emoção da minha vida; claro que foi e não deixaria de ser. E o nome Clara é um nome que eu gostei de imediato, era ligado em duas coisas: na Casa dos Espíritas Isabel Allende tinha uma personagem fantástica chamada Clara e uma poesia do Carlos Drummond de Andrade, que se chama “Lembrança do Tempo Antigo”, que começava assim: “Clara” – como é que era – “Clara”, acho que contava histórias. É, começa assim falando em Clara, Clara, pegava o bonde, contava histórias pras crianças. Então é toda uma poesia bastante bonita do Drummond falando de Clara, Clara, Clara. Então o nome da minha filha veio daí. E que, é claro, que eu sou um coruja completo e tinha essas coisas de contar histórias pra ela muito, à noite. E ela desenvolveu um gosto muito grande pela leitura e ela escreve muito bem, embora a carreira dela seja dirigida em outra direção, que ela faz Moda.
P/1 – Ela mora com a mãe?
R – Ela faz Moda e fez Fotografia. Mora com a mãe e ela gosta, gostaria de trabalhar com Fotografia e Moda, uma coisa ligada à outra.
P/1 – E você a vê frequentemente?
R – Vejo frequentemente.
P/1 – Como que é seu cotidiano hoje, como que é?
R – Meu cotidiano é assim: eu acordo às cinco e meia da manhã; seis horas tô no consultório, me organizo; seis e meia começo a atender e trabalho até às nove, dez horas da noite. Mas sexta-feira eu não trabalho no consultório porque é um dia dedicado à atividade didática. Viajo muito porque eu sou muito convidado pra dar curso, supervisão fora. No passado eu cheguei a fazer quinze viagens; esse ano eu tenho uma viagem pra Costa Rica no fim de semana que eles querem que eu trabalhe com eles durante uma semana. Então tem isso e o resto é assim, meu lazer tem várias direções: escuto música, vejo filme, toco sax, toco violão, namoro, vou ao cinema; a vida como todo mundo tem com essas coisas. Minha vida tem muita coisa.
P/1 – Vamos voltar um pouco. Você falou que com quarenta anos você foi aprender um instrumento; foi o primeiro, não?
R – Com trinta e três fui aprender violão e, com quarenta, sax.
P/1 – Por que que você foi, quê que aconteceu que te impulsionou?
R – Porque eu sempre fui apaixonado por música, por violão e por bossa nova, em particular. E quando eu me separei da Ana Lúcia, uma das [coisas] que eu fui fazer foi resolver aprender a tocar violão; e aprendi, e toquei durante muito tempo. E depois, quer dizer eu sempre fui ligado em jazz também, muito. E um determinado momento resolvi aprender a tocar sax; e fui aprender e aprendi. Então eu cheguei a integrar a orquestra de médicos do Einstein. O Einstein tem uma orquestra de médicos, não são médicos só que trabalham no Einstein, qualquer médico pode participar. Então toquei durante um certo tempo; então tinham umas coisas engraçadas, inclusive, que ali era música erudita que a gente tocava. E, na época, a gente fazia uma vaquinha pra pagar o maestro que ensaiava a gente. E a gente queria que o Einstein contratasse um maestro como funcionário pra gente não ter que pagar, pro Einstein pagar. Então a primeira audição (risos) que a gente fez de música erudita, um dos colegas nossos que era judeu, que é judeu, ele propôs que a gente tocasse uma música que é uma homenagem à mãe judia, que todo judeu conhece e se comove, que se chama Yiddishe Momma. Então, a gente incluiu Yiddishe Momma no repertório pra amolecer o coração dos diretores do Einstein (risos) e aí a gente conseguiu o patrocínio pra pagar o maestro (risos).
P/1 – (risos)
R – Né, que virou funcionário do Hospital. Então aconteciam coisas muito engraçadas. Então, o que aconteceu é que um professor de piano, que era o, ele estava organizando uma banda de jazz com músicos, com estudantes de música de várias idades e me convidou pra participar. Aí eu fui participar e por isso que eu saí da orquestra de médicos porque não tinha tempo pras duas coisas. Então, eu escolhi a banda de jazz. E essa banda era sensacional porque tinha piano, baixo, bateria, guitarra, um clarinete, dois trompetes, dois trombones, dois sax altos e dois sax tenores. Então, esse professor de música, ele escrevia os arranjos pra gente de jazz e de bossa nova. Então ele tocava profissionalmente na banda dele e onde ele ia tocar levava a gente como preliminar. Então a gente tocou em vários lugares de São Paulo, o Piu Piu, o Opus dois mil e.
P/1 – Opus 2005, né?
R – Cinco, né? Opus 2005 e em congressos e umas convenções. Então, o que a gente tocava e era uma banda muito boa. E era engraçado porque tinha gente de catorze até sessenta e tantos anos.
P/1 – Que ano isso?
R – Isso foi no começo dos anos 1990, por aí. Então era engraçado porque assim, o baixista de catorze anos levava pau na escola, o pai proibia de ensaiar, a gente ficava sem baixista. Então (risos) tinham umas coisas que eram engraçadas. Então, tinha, era muito legal e a gente tocava. E depois se dissolveu porque é São Paulo, né? Então esse grupo todo se reunia pra tocar sempre; aí um faltava, um não podia, outro ia viajar a trabalho e tal e existiu durante alguns anos, depois a banda. Então tinha gente de tudo quanto era tipo. A pianista que era ótima, fabulosa, a Célia, né, ela é uma técnica do Instituto Médico Legal.
P/1 – (risos)
R – Especialista em examinar vísceras de cadáveres à procura de envenenamento e outras coisas. E era uma pianista que ela quando ia tocar o Diu Keller, Tom Jobim assim ela arrasava, improvisava e tal, uma coisa fantástica. Então tinha advogado criminalista na banda (risos).
P/1 – (risos)
R – Tinha de tudo, tinha bancário, tudo e era muito legal, foi uma experiência fascinante essa da banda. E o nome também era engraçado porque a gente levava os parentes e amigos pra assistirem às apresentações. E os bares não livraram a cara da gente, dos músicos; a gente tinha que pagar consumação igualzinho, couvert artístico e tal. Aí, o pessoal mais jovem da banda dizia que o bar dava a oportunidade pra gente tocar, mas tirava o nosso dinheiro. Então, ficou assim: O Bar dá, o Bar tira; a banda virou assim: Banda Bar dá, Bar tira (risos), que era o nome da banda.
P/1 – (risos) E depois você não teve mais banda?
R – Não, depois não, até tô um tempão sem tocar. Não, aí depois eu resolvi retomar o violão e aprender canto. Aí fui aprender canto com uma professora de canto fabulosa, que é a Sônia Polonca, que ela é psicóloga também, também é psicodramatista e professora de canto e de piano. E que ela toca piano desde os cinco anos de idade; quer dizer, ela é um Mozart brasileiro assim que começa, ela toca qualquer coisa. Você cantarola uma música que ela não conhece, ela vai e toca, acompanha e vai adiante. E era muito legal porque era assim, duas ou três vezes por ano a Sônia organizava uma audição dos alunos da escola nos bares mesmo de Moema. Então eu cantei em vários lugares aí, cantei com ela e essas coisas. Então, alguns cinco anos eu fui aluno da Sônia; depois por questões de vida, dessas correrias, dessas coisas eu parei, mas eu ainda vou voltar. A Sônia virou uma grande amiga minha, né? Então, por exemplo, no Centro Cultural São Paulo, todo sábado, de dez e meia à uma e meia da tarde existe um psicodrama público aberto pra qualquer pessoa.
P/1 – É mesmo?
R – Né, eu já dirigi várias vezes lá. Então, às vezes que eu dirijo lá eu levo a Sônia porque eu acabo trabalhando com música ao vivo, lá tem um piano de cauda. E a Sônia já três vezes ela trabalhou comigo nesse psicodrama público em que eu uso música pra aquecimento, pra seguimento das ações dramáticas e tal. Então acabo juntando também aquilo que é lazer meu, encaixo na utilização técnica da música dentro da profissão, que é uma coisa que eu também faço. Então eu posso falar qualquer coisa da minha vida, menos que minha vida não é movimentada, né?
P/1 – E seus pais, a sua ligação com o Rio?
R – Muito forte, isso se vê até nas coisas que eu escrevo. Têm muitas coisas que têm aspecto, que têm o lado de memória naquilo que eu escrevo. E nesse tempo todo que eu vivo em São Paulo não é que eu ia ao Rio muitas vezes por ano; não. Mas, às vezes que eu ia, estava lá em contato com a minha família, até hoje. Eu sou o único que veio pra cá. Então, no Rio eu tenho irmãos, primos, primas, sobrinhos, primo de segundo grau, pessoas que eu vejo quando eu vou ao Rio. Aquela ligação com a família existe até hoje, aquela característica familiar de se ligar nos aniversários e ninguém esquece, acontece. Existe uma uma certa disputa até de quem se telefona primeiro. Então, quando eu acordo sete horas da manhã já tem gente telefonando me desejando feliz aniversário e vice-versa. Então a disputa de quem lembra primeiro e fala. Eu sei de cabeça a data de aniversário dos meus tios, tias, primos, né?
P/1 – É mesmo?
R – E vice-versa, eles sabem também. Então essa coisa carinhosa que existe em família sempre, sempre foi uma bagagem que eu sempre carreguei que me ajudou muito na vida e ajuda até hoje.
P/1 – Se você passasse, quer dizer, retomando tudo que a gente disse, várias coisas ficaram, a gente pode depois refletir sobre o depoimento e marcar uma outra, um outro dia pra revisitar e fazer esse apanhado. Mas hoje, assim, passando o que a gente comentou, se você pudesse mudar alguma coisa na sua trajetória de vida você mudaria?
R – Acho que poucas coisas, não é? Não me arrependo das coisas que eu vivi, nada; a única, uma que eu arrependo e gostaria de ter feito diferente foi o meu terceiro casamento, os outros (risos).
P/1 – (risos)
R – Que até teve aspectos bons, mas teve aspectos infernais realmente assim; aí eu acho que algumas coisas, me arrependo. A gente dizer assim: “Não me arrependo de nada, tudo é experiência” isso é bola fora, né? Acho que tem coisas na vida que a gente tem que se arrepender, sim, e que ó, têm coisas que era melhor não ter feito.
P/1 – (risos)
R – Ou ter feito doutro jeito (risos).
P/1 – Qual que é o seu maior sonho hoje ou seus sonhos? Você falou de publicar, não sei se entra nisso ou uma coisa?
R – É, tem coisas que já são até realizações. Eu, o modo como minha filha lida com a vida dela, que é dum jeito muito legal; e assim, nem é sonho, é um desejo que ela continue do jeito que ela está. E assim, acho que se um dia se desse de publicar esse meu livro de contos, esse livro de poesia, esse é um sonho que eu tenho, que eu gostaria. E coisas que estão dentro de um projeto, retomar a música; isso aí eu já aprendi o suficiente pra poder retomar. Não é quando você aprende pouco e depois desaprende o instrumento que você aprendeu, não; eu já aprendi até o ponto em que você pode pegar a partitura, retomar, ensaiar e pegar de novo, e tal. Mas a vida como tá, tá; não está melhor porque, no meu ponto de vista, o mundo tá muito difícil e a gente acaba se contaminando com um certo tipo de escravidão hoje que leva a gente pra um trabalho, a gente trabalha demais, tem chateação demais, tem que todo dia ficar abrindo computador pra deletar mensagem que não interessa, atendendo ligação que é telemarketing enchendo o saco da gente, então a gente… Eu acho que um grande problema que a gente vive hoje é a utilização do tempo num sentido mais prazeroso pra gente. A vida da gente é muito congestionada de chateações, isso não gosto, a vida que a gente tem, não gosto mesmo. A vida se complicou nesse sentido, então as coisas que a gente criou pra facilitar a vida, às vezes, se volta contra a gente. Até essa própria situação em que eu digo assim de escrever poesias, de escrever conto e crônica, se hoje você se candidatar, se inscrever pra um concurso qualquer literário, fico imaginando que o Drummond, o Fernando Pessoa e tal eles teriam os trabalhos, as poesias deles recusadas porque passam dum determinado tamanho que os concursos exigem e é tudo desse jeito. Então fica quase que com uma imposição estética de que a poesia tem que ter um determinado tamanho encaixável, num tamanho específico que se exige num concurso. Então, quer dizer, a própria SOBRAMES a qual eu pertenço, quando ela organiza um congresso de literatura, então têm especificações de tamanho de poesia que você tem que escrever, de duração de um conto e tal; então a criatividade é violentada todo dia por essa coisa maluca que a gente tem de relação com o tempo. Então todo mundo assim tem um tempo precioso, né, hoje o paulistano, a estimativa é que ele passe quatro anos da vida dele num engarrafamento de trânsito. E é uma loucura e a gente vai ocupando os espaços possíveis. Hoje, quer dizer, a minha preocupação é mais desenvolver uma tolerância razoável em relação a essas coisas pra poder ter uma vida dentro de um prazer, de um desfrute que seja razoável; ótimo nunca vai ter.
P/1 – Quê que você achou da experiência de dar um depoimento pro Museu da Pessoa?
R – Muito bom, eu acho que é fantástico, mas assim, a gente – que é como eu procurei fazer – não ficar preocupado com o que vai dizer; na hora, sai espontaneamente porque significa assim, se você tem o que dizer, alguma coisa você consegue sintetizar da sua vida. E você sintetiza aquilo que é importante, aquilo que é doação, aquilo que é intensidade. E poder compartilhar isso com as pessoas que possa eventualmente entrar em contato com o que eu tô dizendo, isso aí cumpre uma finalidade que eu acho que pra mim é muito sadio, é muito intensa, muito prazerosa. Tá bom assim?
P/1 – Obrigada. Nossa, um depoimento lindo, doação. A gente estava falando hoje, tem essa.
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