P/1 – Immaculada Lopes
P/2 – Eliana Reis
R – Maria Valderez dos Santos
P/1 – Bom, Valderez, para começar eu queria que você dissesse para gente seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Então, meu nome é Maria Valderez dos Santos, nasci no dia 1 de agosto de 1956, numa cidadezinha com o nome de Campo Alegre, lá em Alagoas. Foi uma infância gostosa que, pelo menos, pelo que eu lembro, era numa casinha de sapê, que a gente morava, com as paredes de barro. Os colchões eu lembro até do barulho colchão... A minha mãe fazia aquele saco de estopa e enchia de palha de milho, né? A gente deitava e ficava fazendo aquele barulhão no colchão, era tão gostoso! Então, a minha infância até os quatro, cinco anos foi aí, um lugar assim, onde eu vivia bem à vontade, era mato, não conhecia o que era sapato nem nada, andava todo mundo à vontade mesmo, era muito bom!
P/1 - Uma família de muitos irmãos, Valderez?
R – Ah, eu tenho cinco irmãos. Na época éramos em três.
P/1 - Como é que eles se chamam?
R - José Romildo dos Santos, que é meu irmão mais velho, depois eu, Maria Valderez, e a minha irmã, Maria Aparecida. Esses aí nasceram lá em Campo Alegre. Nós estávamos morando lá e aí as coisas começaram a ficar difíceis. Os pais não conseguiam... Lavoura não conseguia dar por causa da seca. A nossa vida lá era assim, de trabalhar na lavoura, de plantar mandioca. Então, lá plantava-se a mandioca, era daquilo dali que saía o pão de cada dia para nós. Então, o meu pai tinha roça, o irmão dele tinha outra. Aí, eles plantavam aquela mandioca, depois arrancavam, aí colocavam dentro de uns caçuás, que é um balaio, colocava lá. O meio de transporte era um jeguezinho que ele tinha, inclusive tem até na foto. Aí, eles levavam para casa de farinha, que era num lugar lá no fundo do quintal. Aí convidavam os vizinhos para vir ajudar a descascar a mandioca. Então, todo mundo...
Continuar leituraP/1 – Immaculada Lopes
P/2 – Eliana Reis
R – Maria Valderez dos Santos
P/1 – Bom, Valderez, para começar eu queria que você dissesse para gente seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Então, meu nome é Maria Valderez dos Santos, nasci no dia 1 de agosto de 1956, numa cidadezinha com o nome de Campo Alegre, lá em Alagoas. Foi uma infância gostosa que, pelo menos, pelo que eu lembro, era numa casinha de sapê, que a gente morava, com as paredes de barro. Os colchões eu lembro até do barulho colchão... A minha mãe fazia aquele saco de estopa e enchia de palha de milho, né? A gente deitava e ficava fazendo aquele barulhão no colchão, era tão gostoso! Então, a minha infância até os quatro, cinco anos foi aí, um lugar assim, onde eu vivia bem à vontade, era mato, não conhecia o que era sapato nem nada, andava todo mundo à vontade mesmo, era muito bom!
P/1 - Uma família de muitos irmãos, Valderez?
R – Ah, eu tenho cinco irmãos. Na época éramos em três.
P/1 - Como é que eles se chamam?
R - José Romildo dos Santos, que é meu irmão mais velho, depois eu, Maria Valderez, e a minha irmã, Maria Aparecida. Esses aí nasceram lá em Campo Alegre. Nós estávamos morando lá e aí as coisas começaram a ficar difíceis. Os pais não conseguiam... Lavoura não conseguia dar por causa da seca. A nossa vida lá era assim, de trabalhar na lavoura, de plantar mandioca. Então, lá plantava-se a mandioca, era daquilo dali que saía o pão de cada dia para nós. Então, o meu pai tinha roça, o irmão dele tinha outra. Aí, eles plantavam aquela mandioca, depois arrancavam, aí colocavam dentro de uns caçuás, que é um balaio, colocava lá. O meio de transporte era um jeguezinho que ele tinha, inclusive tem até na foto. Aí, eles levavam para casa de farinha, que era num lugar lá no fundo do quintal. Aí convidavam os vizinhos para vir ajudar a descascar a mandioca. Então, todo mundo trabalhava, inclusive o de três, quatro aninhos, que soubesse colher, segurar uma faquinha para descascar mandioca, estava ajudando. Raspava aquilo ali, colocava numa prensa, colocava num tipo de um forno, onde cada um revezava um pouco mexendo aquela farinha até ficar dourada. Estava pronta a farinha. Cada um levava um pouco, daqueles que estavam ali ajudando, que o alimento era aquilo. E o restante, eu lembro que o meu pai colocava dentro de um saco e ia vender aos quilos na feira.
P/1 - Levava como lá?
R - Levava em cima do jeguezinho que ele tinha [risos]. Levava para feira e ali vendia, e dali comprava o que não obtinha da terra, né? Que era o sal e outras coisas que a gente não tinha. Mas era um pouco complicado. Aí foi indo, foi indo, até a mandioca não estava dando mais.
P/1 - Você sabe como é que teu pai e tua mãe foram parar lá?
R - Eles nasceram lá, porque meus avós já eram de lá, né? Você imagina que lá, eu nasci em 1956, aquilo lá em 1935, 1940, aquelas datas para lá, deveria ser terrível. Era mato puro, tanto é que dizem que meus avós eram índios.
P/1 - Por parte de mãe...
R - Por parte de mãe.
P/1 - Você conheceu esses avós?
R - Não, só conheci uma avó.
P/1 - Como é que ela chamava?
R - Joventina.
P/1 - O que é que você lembra dela?
R - Dela eu lembro que era uma mulher muito trabalhadeira, que dava conta da minha mãe, dos netos dela e ela trabalhava de... Num lugar, numa fabriquinha de fumo. Ela carregava aqueles feixes de fumo, de folha de fumo, na cabeça, eu lembro, sem segurar [risos]. Ela fazia aqueles molhos bem grandes, colocava na cabeça e levava. Meio de transporte não tinha, então tinha que ser braçal até onde passavam os animais para pegar.
P/1 - Mas plantava o fumo?
R - Plantava o fumo lá em Arapiraca. Esse aí já era um outro lugar, que ela morava em Arapiraca.
P/1 - E a casa da tua avó, você lembra?
R - A casa da minha vó? Lembro! Não tinha nem telhado, que lá não usava telhado, era sapê. Então, aquele sapé e das paredes o barro caía, você estava deitado e vendo o mundo lá fora através das frestas. Batia o arzinho, mas só que era ótimo porque era índio mesmo. Ninguém mexia em nada, era uma comunidade. O que tinha, um dividia com o outro, não tinha desentendimento de família. Foi assim criada. O pouco sendo dividido com os outros. E foi assim que meus pais foram nos criando também.
P/1 - Quem que morava lá com a tua avó?
R - Morava a minha mãe, duas tias e um tio, tudo com criança pequena, também morava a avó e a gente morava em volta, né? Trabalhava todo mundo num lugar só e o pouco que tinha, se construía, era para todos também, dividir com todo mundo.
P/1 - Mas isso quando a tua mãe era criança?
R –Não, quando nós éramos crianças. A minha mãe já era casada, o que eu lembro da infância lá, no Estado de Alagoas. Aí quando as coisas começaram a apertar, falaram para o meu pai: “Vamos para o Paraná, que lá é bom. Vocês vão trabalhar na lavoura como aqui”, porque não sabiam ler, não sabiam escrever, eram do mato, bicho do mato mesmo. Aí, o meu pai sempre foi aventureiro. O que ele fez? Pegou os três filhos e foi para o Paraná. Chegamos lá, foi fácil de arrumar emprego, porque tinha aquelas fazendas de café, então você descia na... Esqueci, faltou a memória agora.
P/1 – Na rodoviária?
R - Rodoviária, já tinha os donos da fazenda a procura de pessoas para levar para trabalhar, né? Então era aquela disputa; descia um e se era nordestino então, não faltava. Era até disputa pelos fazendeiros lá.
P/1 – Só voltar um pouquinho, e a história da família do teu pai, me conta um pouquinho, lá em Alagoas ainda.
R – Meu pai morava em Campo Alegre, ele e mais três irmãos. Aí, o meu pai era o tocador de sanfona lá do baile, quando ele era solteiro, até ele conta para nós. Então, todo baile que havia lá no mato era ele que ia tocar [risos]. Até uns tempos atrás, ele ainda tinha a sanfoninha dele. É que agora já se foi a sanfona.
P/1 – E a família dele trabalhava com o quê?
R - Tudo com lavoura também, como plantador de mandioca. Em Campo Alegre plantando mandioca. Em Arapiraca, aí era o fumo, o cultivo de fumo. Então, a família do meu pai e a minha mãe... E a família da minha mãe moraram muito tempo em Alagoas, no Campo Alegre. Depois, a mandioca já não estava dando mais, aí já era o fumo que estava dando mais lucros, né? Metade da família foi para Arapiraca trabalhar com o cultivo de fumo e a outra metade ficou por lá, foi a família do meu pai.
P/1 - Você sabe como que teu pai e tua mãe se conheceram?
R - Não, isso aí... Ela fala que era num baile que ele tocava. Ela fala só isso, que era no baile que ele tocava e para namorar era o pai... a mãe dela no meio e um do lado do outro. Naquela época os pais que escolhiam os maridos para as filhas, né? Mas eles deram certo.
P/1 - Eles se casaram e foram morar em outra casa bem perto?
R - Isso, é, mais perto da família, lá em Alagoas mesmo. Aí, eles foram morar assim... É índio, tipo índio mesmo, que mora o pai e a mãe ali e os outros vão construindo tudo por perto. E a gente vem seguindo a tradição até hoje, que tem a casa do meu pai e cada um comprou as suas, que casaram e construíram suas vidas, mas tudo no mesmo bairro. Se você dá um grito, chega todo mundo [risos].
P/1 - E dos pais do teu pai, você tem alguma lembrança da tua avó ou teu avô paterno?
R- Não, não, porque quando eu nasci, eles já eram falecidos, naquela época, não tinha esse negócio, nem data de nascimento não sabiam. A mãe dele morreu, ele não sabe nem a data de nascimento dela.
P/1 - Mas ele contava alguma coisa dos pais dele?
R - Ele só contava da mãe que, quando ele nasceu, o pai dele tinha falecido. Então, ele não chegou a conhecer também. Ele conta muito da mãe dele, que ela trabalhava para sustentar os irmãos, né? Aí, depois que chega numa certa idade, continuaram com a lavoura também trabalhando, que era o que eles conheciam e foram levando a vida deles.
P/1 - E da tua vida lá em Alagoas, o que você lembra das brincadeiras?
R - Olha, das brincadeiras lá, que eu lembro das minhas brincadeiras era um irmão no colo e puxando o outro, porque a minha mãe ia trabalhar, precisava trabalhar lá na lavoura e tinha que ser os dois, para poder ganhar o pão de cada dia, porque a diária lá era muito pequena. Então, se tinha um filhinho com três anos, quatro, então lá a diferença é de um ano, dois anos de um para o outro, então os mais velhos tinham que ficar olhando. O que minha mãe fazia? Deixava tudo pronto para nós, aquele foguinho de lenha que tinha lá, ela deixava já com fogo aceso e ela só falava: “Não encosta ali que queima.” Deixava em cima do negócio, ficava morna a comida. A comida o que era? Era água... Eu lembro até hoje, era água com a farinha de mandioca e ela falava: “uma piaba”, que era um peixinho salgado para caramba. Aquilo ali é o que a gente comia, ou então mandioca. E era tudo gordo e saudável.
P/1 - E da onde vinha essa piaba?
R - Eles compravam na feira. Comprava, que a cidade era longe, então compravam assim, para passar 15 dias, um mês. Aí, o restante era pegando passarinho, tatu, essas coisas, para comer. Galinha, ovos, que eles tinham, né? Então, a gente se virava. Na minha infância, eu lembro que as minhas brincadeiras, os meus brinquedos eram meus irmãos. As minhas bonecas eram os meus irmãos menorzinhos. Não tinha assim, tempo de brincar. Tinha que olhar, cuidar. Então, você não tinha tempo né? Aí, eles foram crescendo...
P/1 - Você chegou a estudar nessa época, não? Não tinha escola?
R - Não, não tinha escola, não tinha nem como pensar em escola. Meus pais muito menos davam valor para isso por eles não saberem ler nem escrever, já vinha de gerações, então para eles não... Estava ali dentro não precisava, não precisava de escola, era o que os olhos viam.
P/1 - E você lembra de acompanhá-los para o mercado, para cidade? Tinha essas viagens ali na região?
R - Não, porque para chegar na cidade eram dois, três dias, se fosse andando e de cavalo era uns dois dias, que eles andavam. Então, tinha que dormir, andando... Que não tinha perigo para lá, eram bem distantes os locais. Era no matão mesmo, tanto é que você vê a foto, nem parece que é real, mas existe aquilo lá.
P/1 - E a terra era deles? Como é que era Valderez? Eles plantavam para eles mesmos ou a terra era dos outros?
R – Não, plantavam para eles mesmos. Era assim, onde você estava, lá não tinha documento de terra, nem nada. Você estava ali, era uma família grande se apoderava daquele pedaço ali, plantava, e ninguém ia te encher a paciência. Ia passando de geração para geração, que era do pai do meu pai, que era do pai do outro, mas na realidade, nada que comprovasse que era dele realmente, se fosse procurar pela lei. Mas ele não tinha conhecimento disso. Era a força que mandava. Eram eles que chegaram primeiro, entendeu? Era assim nessa época.
P/1 - E a viagem para o Paraná? Você lembra da viagem em si?
R - Lembro, foi o seguinte; a gente foi porque disseram que no Paraná estava bom, uma boa colheita, né? Tinha conhecidos da gente que mandavam dinheiro para lá, para o pessoal. Então estava bom. O meu pai falou: “Ah, não vou ficar mais aqui não, vamos para lá!” Aí, minha mãe também muito louca: “Vamos também.” Não sabia ler, nem escrever, mas para eles o mundo não precisava disso. Aí foi no pau-de-arara, nos carros de coco, que eu lembro até hoje, a gente foi sentado lá [risos].
P/1 - Como é que era?
R - Carro de coco, pau de arara que eles falam, é um caminhão coberto, né? Aí, eles levavam coco, não sei para que aqueles cocos, que eu não lembro até hoje para que era. Eu sei que o carro cheio de coco lá e nós estávamos lá no meio daqueles cocos. Não sei se é porque não podia passar com pessoas e era o jeito deles levarem pessoas ali naquele meio, que era coberto, que não podia ir descoberto aquele carro. Era com um encerado bem grandão, que eu lembro, um encerado preto que tinha. Um calor terrível. Assim que foi indo. Levamos um tempo para chegar no Paraná, que era o fim do mundo. Parece que nunca chegava e não tinha, não lembro de ter trem, nem nada. Foi com esse caminhão que a gente chegou lá.
P/1 - E foi com a mudança também para lá?
R - Não, porque não tinha mudança. Eram as panelas que a gente tinha no Norte, que eram de barro, essas coisas. Era só a roupa do corpo mesmo, sem sapato, sem nada. O pessoal é muito louco [risos].
P/1 - Quem é que foi para o Paraná, Valderez, nesse caminhão?
R - Foi a família, um amigo do meu pai... Dois amigos dele com a família também. Eram três famílias que iam nesse caminhão. Aí nós chegamos lá no Paraná, como eu te falei. Já tinha pessoas lá de olho em quem descia que era para trabalhar na lavoura, porque o pessoal do Nordeste era bom na enxada, né? Aí, assim que nós descemos, a gente já foi convidado por um senhor que era fazendeiro: “Opa, aqui está bom demais! Olha, vêm até dar emprego para gente aqui na porta.” Aí, a gente foi. Deram uma casa para nós, que a gente morava em casinha de sapé, que via do outro lado da rua, lá a gente estava numa casinha de tábua, bem arrumadinha. Tinha as coisas; fogão a lenha, tudo bem organizado. “Aqui, nós estamos no paraíso, né?” Aí, a gente foi, ficamos morando lá. Meu pai trabalhava, todo mundo trabalhava na lavoura de café. Aprendemos a rastelar café, a peneirar café, a diriçá, que eram os nomes que falavam lá, né? Aí, nós aprendemos, trabalhava a família inteira. Como eu era pequena e tinha meus irmãos que eram menorzinhos ainda, eu ia, minha mãe forrava lá embaixo daqueles pés de café, eu ficava ali olhando enquanto eles trabalhavam.
P/1 - Quantos anos você tinha?
R - Na época, eu tinha 5 anos de idade, mas já era responsável pelos menorzinhos, que eram de 3 e de 2 anos. Aí, a gente ficou lá trabalhando...
P/1 - Tua avó não foi junto?
R - Não, não. Aí, para se aventurar, foi só minha mãe com nós três. O pessoal lá do Nordeste ficou lá mesmo, onde eles vivem até hoje, não saíram de lá.
P/1 – Aí, você ficava embaixo do pé de café?
R - É, eles trabalhavam e tudo. Aí passou um tempo e foi fartura. A gente tinha comida, tinha... Roupa ninguém ligava. Dava roupa, a minha mãe lavava... Comprava, não era tecido, comprava sacos, lá usava muito isso. Aí desencardia aqueles sacos e fazia roupa para gente, né? Mas tinha comida, comida à vontade, fruta à vontade, que no meio dos cafés plantava-se melancia, dava aquelas melancias grandonas. Você, ali mesmo, você abria a melancia, comia. Nossa, era uma fartura que nossa! Ela convidou o pessoal lá do Norte para vir também, porque lá tinha comida, não precisava ficar agora lá no Nordeste. Aí, a gente ficou lá um bom tempo.
P/1 - Como é que era a casa lá?
R - Era uma casa de... Tinha dois cômodos, que eles constroem assim, eles colocam uns pilares assim, faz aquele assoalho na casa, depois ergue a casa de madeira, mas só que a madeira não é igual aos barracos daqui que é uma madeira toda desigual. Não, é tudo bem arrumadinho mesmo. Depois, eles pintam, fazem a janela de um lado e do outro, a portinha no meio e coberto de telha. Aí era bom.
P/1 - E eram várias famílias morando lá dentro da fazenda?
R – É, naquela fazenda, para cada família que chegava, eles construíam uma perto da outra. Então, ficavam, às vezes, 20, 30 casas, uma pertinho da outra. Quando ia para trabalhar, quando a roça era longe, aí vinha um trator com uma carroceria bem grandona, aí passava naquela rua principal da fazenda, pegando todo pessoal. Então, cada um pegava sua enxadinha nas costas, 5:30, todo mundo estava ali e 17:30, eles traziam.
P/1 - Inclusive as crianças iam junto?
R - Todo mundo porque as crianças... A parte baixa do café, a gente diriçava com a mão. O caroço quando está amarelinho, bem vermelhinho, aí é o ponto de colher. Então, você vem com a mão tirando, ia caindo no chão. Aí, depois de uns três dias, ele está mais seco, aí já vem os maiores, os irmãozinhos maiores e o pai, já vai rastelando, né? Juntando, tirando a barra do pé de café e fazendo aqueles montes e colocando na peneira, peneirando e tirando toda sujeira e passando para o saco só os grãos.
P/1 – Rastelar, o que é?
R – Rastelar é... Tinha o rastelo, parece um pente grandão assim, com um cabo. Aí você passava assim, embaixo do pé de café, arrastava e você só trazia os grãos. A areia, a terra, tudo vai ficando. Aí, o rastelo só vai trazendo os grãos e palhas. Aí, você faz aquele montinho e dali você vai peneirar na peneira. Aí fica leve, não fica pesado, porque você vai mexer só com os grãos e com a peneira. E com a peneira, aprender a peneirar, porque eles tinham as técnicas também lá para peneirar, né? E nós, lá no Nordeste, a gente peneirava assim, e eles assim, para frente. Conforme eles peneiravam assim, caía, já voava pedra com folhas, com galho. Não precisava nem você tirar com a mão. E nós para aprendermos essa técnica aí, nossa! Todo mundo começava dois, três, quatro pés de café lá na frente, nós ainda estávamos na metade do primeiro [risos]. Aí, não produzia quase nada. Depois meu pai pegou a técnica e nós também, aí começamos a ter fartura boa lá.
P/1 - E almoçava ali na plantação mesmo?
R – É, aí levava. Minha mãe fazia marmita à noite, né? As panelas de comida e fazia fogo de lenha e lá mesmo a gente comia. Aí, à tarde, vinha todo mundo para casa, tomava seu banhinho, ela ia fazer comida.
P/1 - Como é que era esse banho? Era onde?
R - Era de bacia, naquelas bacias, né? Banho de caneca. Vim conhecer chuveiro aqui em São Paulo foi em 1963, nessa época.
P/1 - E depois do banho, como é que era essa noite lá na fazenda? O pessoal se reunia?
R – Ah, depois do banho era assim; quem tinha o seu radinho, porque era difícil alguém ter um rádio lá, aí ligava aquele rádio e saía todo mundo para fora para ficar ouvindo noticiário, né? E ouvindo música até 21h, 22h, esse era o divertimento. Aí, quando acabava aquilo ali, cada um ia se deitar, aí no final de semana juntava os vizinhos né? Aí ia fazer um churrasquinho, ia assar uma batata e o meu pai tocava para eles.
P/1 - Levou a sanfona junto?
R – Ah, ele não largava.
P/2 - E quem eram esses vizinhos? Eram nordestinos na sua maioria?
R - Era nordestino, era paranaense, era de todas raças que eles pegavam lá na rodoviária, né? Eles levavam para lá. A maioria era nordestino, tinha bastante nordestino, que era nordestino que procurava mais o Paraná, por causa de trabalho, que não era diferente lá do que eles faziam.
P/1 - E para cidade, vocês nunca iam?
R - Não, a gente não conhecia o que era cidade. A nossa cidade era aquilo ali e para gente, nossa, era maravilhoso!
P/1 - E tinha missa, ia o padre lá na fazenda?
R - Não, não ia não. A gente não conhecia. Fazia as orações mesmo, ali éramos nós mesmos, pelo que meus pais aprenderam, era o que passavam para nós.
P/1 - Você teve uma formação religiosa, Valderez? Teve uma educação religiosa?
R - Na medida do possível... O que meus pais puseram para cá, que era acreditar em Deus, rezar na hora da comida, agradecer a Deus, agradecer a Deus na hora de levantar e dizer o Pai Nosso. Isso que ele ensinava para nós, foi isso que eles aprenderam, então isso eles passavam para gente. Então, foi muito bom lá no Paraná nessa época, né?
P/1 - E os bailinhos de fim de semana eram gostosos?
R - Era, a gente como era criança, só ficava na beira da fogueira, porque não tinha luz, né? Então era fogueira, que era para clarear. E era gostoso porque não tinha aquela malícia de nada, era uma coisa assim muito pura entre eles. Aí dançava todo mundo ali, meu pai cantava, outro tocava e ia indo, tomavam as pinguinhas deles lá.
P/1 - Que tipo de música era?
R - Meu pai gostava muito de cantar Asa Branca, que eu lembro. Até hoje, quando ele pega uma sanfoninha qualquer, que a dele não tem mais, a primeira musiquinha que ele vai lá no dedinho, que ele não esqueceu, é Asa Branca que ele toca. Gosta muito dessa música, ele era fã do Luiz Gonzaga.
P/1 – Como é que era o teu pai, Valderez? Como é que você descreveria o teu pai?
R – Ah, meu pai... Então, vai começar... [emocionada].
P/1 - Como ele se chama?
R - Quando falo do meu pai, eu relaciono como foi antes com o que eu vivo agora. Dá um tempinho só e eu. Eu prometi que não ia fazer isso.
P/1 - Nessa época já tinham nascido os teus outros irmãos?
R - Já, meus dois outros irmãos que nasceram no Paraná, nessa época.
P/1 - Como é que eles se chamam?
R – É, Valdemar José dos Santos, que é meu amigão também, eu falo que é meu filhão, que era esse que eu carregava nas costas, né? E a minha irmã. E o Vanderlei José dos Santos, que ele me considera assim... Tem a minha mãe viva, mas ele me considera como a mãezona dele, tanto é que você vê, deu até os filhos dele para mim, né? Não de papel passado, mas o amor e o carinho que você me deu, você dando para eles, estou feliz, estou por perto, estou olhando. Quer dizer assim, então é uma coisa muito forte entre mim e eles.
P/1 - E de você criança, Valderez, que lembrança você tem da tua mãe, do teu pai dentro de casa, nessa época de criança assim?
R – Olha, na minha época de criança, que eu tenho a imagem deles, é da minha mãe trabalhando muito e vivia pescando atrás de coisas para nós comermos. O meu pai era na roça, catando mandioca e lavando. Era assim, foi lá no Paraná, muita luta deles. Assim, muita luta deles. No final de semana bebia a pinguinha dele, mas não tinha discussão, nem briga, nem nada. Só via eles trabalhando. Agora parar para sentar, conversar como são os pais de hoje em dia, aí eles não tinham esse tempo. Mas a gente tinha aquele respeito que a gente via que era trabalhando. Não batia, não xingava, nem nada. Só mostrava: “Olha, isso não é certo. Olha, não faça assim. Olha, é assim. Olha, você tem que ter responsabilidade. Olha o outro. Você é exemplo.” Então, foi... Eu tenho um pai, o meu pai, eu o considero um herói, minha mãe também, pelo que eles já passaram, né? Meu pai, eu tenho orgulho, muito orgulho dele, porque ele passou o que passou, já foi até catador de lixo aqui em São Paulo e tudo, mas ele nunca pegou nada de ninguém e nos momentos que ele sentiu que ia faltar o nosso pão de cada dia, ele pedia e, às vezes, as pessoas até davam para nós. Mas ele sempre ensinava: “Não peguem nada de ninguém. Sigam o exemplo do seu pai.” Aí a gente até sente muito isso. Ele foi muito trabalhador, nunca teve medo de serviço, tanto é que tanto eu como meus irmãos todos puxamos a ele, ele e a minha mãe, porque foi dos dois lados que a gente via sempre lutando, que tem que trabalhar para ter as coisas, né?
P/1 - A tua mãe também ia para lavoura de café?
R- Ia, lavoura de café. Quando era assim, por exemplo, que o dinheiro não dava para comprar mistura, ela ia para o rio pescar, que era uma boa pescadora [risos].
P/1 - Pescava o quê? Você lembra?
R – Lembro. Era um tal de... Ela falava caborja, traíra, essas coisas, né? Eu lembro que lá tinha um muito nesses rios, no Paraná e lá em Alagoas também.
P/1 - Pescava o quê, com rede, como é que era? Com vara?
R - Ela falava jereré e balaio, porque lá não tinha rede, essas coisas na mão. Ela pescava muito com a mão também e caranguejo também, que ela era muito boa pegadora de caranguejo [risos].
P/1 - E era gostoso o caranguejo?
R - Era. Era o prato do domingo, né? Era o caranguejo. Então, a minha mãe pescava, porque é filha de índio. Então, ela mesma fazia o balaio dela para pescar, que era um negócio lá com... Tinha boca, só sei que entrava, o peixe que entrava, não tinha por onde sair. E outras vezes, a gente ficava na beira do rio, ela mergulhava lá embaixo do rio, não sei o que ela fazia, ela vinha com o peixe na mão e dali ela fazia comida para a gente. Quando faltava o dinheiro, que não dava para comprar mistura, né?
P/1 - E dessa época do Paraná, sobrava mais tempo para brincar? Para ter aquela vida de criança, ou não, também?
R - Para mim, não. Para mim, nem para os meus irmãos, porque lá no Nordeste a gente ficava solto, porque era uma casa aqui e a outra você tinha que andar centena de quilômetro para encontrar outra. Ali, você ficava do lado de fora, era só ter cuidado com cobra, essas coisas, que ficava perto de casa, né? Você ficava à vontade, mas lá no Paraná, nós já passamos a viver em comunidade. Quer dizer, era uma rua assim, que tinha 12, 13 casas e aquelas mães tinham crianças. Então, para não brigar, não haver confusão e não correr perigo, o que minha mãe fazia? Ela trancava a gente dentro de casa e nos deixava trancados. A gente só via a luz do dia à tarde, a hora que ela chegava, quando ela não levava para o café. Falava ainda que tinha um papa-filho que pegava criança que abria a porta. Eu morria de medo do papa-filho [risos]. Tinha que ficar em casa e tinha que não abrir a porta por causa desse papa-filho que pegava a gente. Ah, meu Deus do céu! Era um barulhinho que eu ouvia, pegava meus irmãos, tchum, embaixo da cama, ficava lá, horas e horas, o suor pingava [risos].
P/1 - A cama, na época, era diferente ou era aquele colchão de palha?
R - Era colchão de palha. Faziam um negócio assim, na parede, e aí colocavam os colchões. Mas o colchão era de palha mesmo lá no Paraná, por causa do frio. E quando fazia muito frio, a casa era suspensa... Olha o perigo, eles faziam uns tachos com carvão, as cobertas eram poucas, aí eles colocavam embaixo da casa. Então, aquele vapor quentinho ia subindo, você passava, porque lá em 1960, o frio era muito grande no Paraná. Não sei agora, mas nessa época era muito frio.
P/1 – Então, a casa não era direta no chão?
R - Não, era suspensa. Então, aquele vento passava, aquele vento frio. Aí, eles faziam isso, ficava quentinho.
P/1 - E a casa do dono da fazenda, vocês frequentavam também, ou não?
R - Não, a casa do dono era bem afastada. A gente só via que era uma casa muito grande. Eu lembro que era uma casa branca, com muitas janelas, muitas portas, mas a gente não passava nem perto, que era bem separado. O dono lá e os empregado cá, mas só que, porque o leite, que ele tinha muito gado, ele mandava o capataz dele levar. Depende da quantidade de criança, ele ia levar o leite para cada casa. Pão, a gente mesmo fazia em casa.
P/1 - Pão gostoso?
R - É, até hoje, sou especialista em pão. Pão e beijinho [risos].
P/1 – Hum, pão de mandioca ou era de trigo?
R - Nessa época era de trigo no Paraná, era de trigo que a gente fazia.
P/1 - E você frequentava escolinha nessa época do Paraná ou também não tinha escolinha?
R - Não, nem ouvia falar o que era escola, nem sabia, nem tinha conhecimento que existia esse negócio de escola. Para nós, a nossa vida era o que nossos pais apresentavam ali. Viemos conhecer escola aqui em São Paulo.
P/1 - Até quando você ficou lá no Paraná?
R - Até 1962.
P/1 - Você tinha mais ou menos qual idade?
R - Eu estava com 8 anos de idade, para 9 anos de idade.
P/1 - E de lá, vocês vieram para São Paulo?
R – Isso. Aí deu uma geada que foi muito comentada na época. Acabou com tudo, com os pés de café, com a ração do gado, com o capim. Aí não teve mais condição dos patrões segurarem os empregados lá: “Sinto muito, a gente vai ter...” Porque teve que tocar fogo nos pés de café, em tudo, a boiada morreu toda. Aí voltamos à estaca zero. Tanta fartura, voltamos à estaca zero de novo.
P/1 - Você lembra dessa noite de geada?
R - Lembro. Lembro que até a água do balde virou pedra, que a gente não tinha como beber nem a água da torneira. Não foi uma noite só, foi uma semana de geada. E você assim, no chão mesmo, ficavam aquelas camadas grossonas de gelo. Então, aquelas camadas grossas ficaram no café e levaram dois ou três dias, mesmo com sol, para derreter. Quando derreteu, as folhagens já estavam todas secas, né? Tudo queimado. Aí, foi a época que começou tudo. O patrão falou: “Não vamos ter condição de manter o pessoal.” Mandou uns embora, ainda ficaram aqueles que eles consideravam. Ficaram ainda aguentando mais um pouco, que é para ver se plantava o capim pelo menos para o boi. Aí, nessa época, meu pai ainda ficou, foi um dos escolhidos, ficou lá, mas apertou de uma tal maneira, que começamos a passar necessidade lá também no Paraná.
Aí, foi quando um conhecido do meu pai, que tinha uns parentes lá no Paraná, mandou dizer que São Paulo estava bom. Que se encontrava dinheiro com facilidade, trabalho, né? Estava muito boa essa época. Quem estivesse passando necessidade desse um jeito, era a família dele, mas meu pai ouviu isso. Não conhecia ninguém em São Paulo, não sabia ler, nem escrever. Só sabia que era bom para ganhar dinheiro e se achava até as coisas na rua [risos]. Dinheiro se achava até na rua de tão bom que era. Aí o velho endoidou: “Ah, vamos para São Paulo, aqui eu não aguento mais ficar.” A minha mãe falou: “Eu, com as crianças desse jeito, né?” Já estávamos os quatro irmãos. Aí viemos para cá. Venderam as coisinhas que tinham lá, tudo, aí vieram para cá, achando que iriam construir a vida aqui em São Paulo, logo de início.
P/1 - Você lembra dessa viagem?
R - Lembro, viagem aí já foi em trem. A gente veio de trem para São Paulo. Levou, acho que, só sei que foram um monte de dias. Não sei se fez uma semana, aí chegamos ali na Estação da Luz. Desembarcamos, acho que o sonho do meu pai era que alguém iria aparecer lá e fazer igual o patrão do Paraná, pegar e levar para trabalhar em algum lugar. Mas não aconteceu isso. Aí passamos a morar embaixo da ponte, ali na Estação da Luz. Ficamos morando lá uns 15 dias. Aí sem ter o que comer, não tinha nem banheiro, sem tomar banho, aí a coisa pegou. Mas só que para nós, nossa era maravilhoso! Eu e os meus irmãos. Porque eu não precisava trabalhar e tinha comida, porque um passava dava um pão, outro passava dava um prato de comida, né? Um restaurante que tinha um pouco distante fazia aquela sobra de comida, botava tudo num caldeirão e levava lá para nós. Eu e meu irmão falávamos: “Pai, aqui é bom, não vamos sair não. Aí, o homem dá comida, todo mundo dá comida, dá roupa, dá coberta para gente.” Ele falou: “Não filha, nós não podemos ficar assim.” Aí, tudo despreparado, as cobertas eram poucas ainda, e a roupa de frio também. Era época de frio aqui em São Paulo, aqui em 1962, mais ou menos, em São Paulo fazia um frio terrível. Era frio para valer, não era igual a agora. Aí começou. A gente dormia ali, o que fazia? O meu pai, a minha mãe, eu lembro até hoje, meu pai e minha mãe de um lado, nós deitávamos ali no meio, debaixo da ponte, aí ficávamos. Quando era de madrugada tinha aqueles outros mendigos também, acho que sentiam frio, queriam se encostar todo mundo ali e outros queriam para vir carregar as coisas mesmo. Meu pai ficava com facaozão que ele tinha, desse tamanho, para nos proteger. Só via era briga, falando tudo, mas não entendia muito bem. A gente queria era dormir e no outro dia de manhã tinha comida, acabou. Ótimo [risos]!
P/1 - Era lá na Estação da Luz?
R – É, na Estação da Luz. Era bem antiga, que era a ponte assim que tinha e a gente tinha um cantinho lá que a gente ficava num dos pilares. Aí começou a fazer muito frio. O camburão passou e viu a gente lá, todos encostadinhos um no outro, por causa do frio. Eles pegaram, recolheram a gente e levaram para o albergue. Um albergue que tem no centro de São Paulo. Ficamos mais ou menos dois meses morando lá.
P/1 - O que você lembra desse albergue?
R - Terrível! Lá foi terrível porque era misturado com um monte de gente. Lá, nós pegamos piolho, pegamos sarna, tínhamos dor de barriga. E a comida era uma sopa, tinha aquelas canequinhas sujas que a gente botava e era só um pinguinho, um brigando, querendo comer mais do que o outro.
P/1 - Comia e dormia lá?
R - É, comia e dormia lá. Ficávamos ali direto. Aí conforme as pessoas davam roupa, tirávamos aquela, jogávamos fora e usávamos a que a pessoa dava. E nisso meu pai deixava a gente lá e ficava desesperado procurando emprego, né? Aqui fora: “Pelo menos, vocês estão guardados aí, eu sei que de manhã eu saio e à tarde, quando eu voltar, eu sei que vocês estarão aí. E eu vou andar, procurar emprego.” Ele imaginava, que ia achar com facilidade.
P/1 - E ele não conhecia nada?
R - Não conhecia nada. Não sabia...
P/1 - E como é que ele andava, ele saía pela cidade...
R - Não faço a mínima ideia. Eu acho, não sei nem como que ele pedia emprego, porque no centro de São Paulo, não se tinha, né? Acho que ele queria de servente de pedreiro, ajudante. Aí, ele andando, numa dessas aí, ele andando, Deus abençoou, que colocou um conhecido que era do Paraná viu ele andando: “Ô Zé, o que você está fazendo aí?” Aí ele falou: “Ah, rapaz, você caiu do céu.” Aí, contou a história para ele. Aí o outro falou: “Não, pelo amor de Deus! Onde é que está sua família? Vamos lá agora.” Aí foi lá, tirou a gente do albergue. Aí foi que... Tinha ônibus na época, aí eles trouxeram até, não sei se vocês conhecem Cumbica? A base aérea de Cumbica, só até aí que tinha ônibus. Aí ele morava lá no Jardim São João, que é um bairro bem próximo de lá. Aí, ele levou a gente até lá, até Cumbica e até o São João fomos andando a pé. Quando chegamos lá, que era um mato quase igual ao de Alagoas: “Poxa vida pai, lá onde nós estávamos, um monte de carro, todo mundo dando comida e a gente agora vai ficar aqui nesse mato?” Eu era a primeira a reclamar [risos]. Aí o homem lá, com dois cômodos e ele tinha cinco filhos também, mesmo assim ele não mediu sacrifícios. Ele colocou a gente junto e falou: “Não, pelo menos lá você não estão assim.” A mulher dele ficou assim! Chegamos nós lá, todos sujos, fedorentos, cheios de piolhos. Aí deram um banho na gente, deram roupa, comida. Ele dividiu o pouco que ele tinha com a gente.
P/1 - Como é que se chamava esse senhor?
R - Senhor Ângelo.
P/1 - Quanto tempo no albergue foi, Valderez?
R - Dois meses.
P/1 - Onde ficava este albergue?
R – Ah, se você me perguntar agora, eu não sei, porque hoje em dia ele não existe mais. Outras coisas que são construídas no lugar, que houve muitas modificações.
P/1 - Que bairro que era?
R - Só sei que era perto... A polícia nos levou dali, da Estação da Luz, levou lá perto. Só sei que não demorou muito, que foi num instante, a gente já estava lá nesse lugar.
P/1 - Que impressão, você, menina, chegando na cidade grande, com tanto prédio, com tanto carro, você lembra da tua primeira impressão da cidade de São Paulo?
R - Lembro! Eu grudei na saia da minha mãe e meus irmãos também, que a gente nunca tinha visto carro assim. O que a gente via era carro de boi, era carroça e o trator, era isso que a gente via. Aí, de repente, quando a gente chega; era trem, era carro, não tinha tanto trânsito, né? E nem prédios grandes também não tinha, mas só o fato de ser aquele monte de casas. E gente andando para lá e pra cá, todo mundo assim, a gente se grudou ali, ficou grudado ali. Aí, com o passar de dois, três dias, aí já fomos nos acostumando. Ficava ali, acordava, não estava nem pedindo nada, só o fato de ficar ali perto da mãe, um passava dava um pão, outro passava dava outra coisa e a gente foi indo.
P/1 - Vocês não ficavam dentro do albergue? Vocês iam para a rua então?
R - Foi antes de ir para o albergue. Foi logo quando nós chegamos, uns 15 dias debaixo da ponte. No albergue, nós ficamos lá dentro dois meses. Ali, a gente não saía para nada, só meu pai que saía. Aí encontrou esse senhor, que nos deu a mão.
P/1 - Como é que chamava esse senhor?
R - Seu Ângelo.
P/1 – Ângelo. Ele morava em Guarulhos?
R - Era Guarulhos, bem assim, bem no mato mesmo. Mas ele já tinha emprego e já tinha essa casinha que ele tinha feito para ele e os cinco filhinhos dele. Aí, mesmo assim, a mulher dele nos acolheu muito bem e ele também. Dali, a gente começou, pelo menos, à noite, quando era para dormir, não tinha lugar para todo mundo, aí botava a mesa para fora, o fogão era do lado de fora. Botava mesa, cadeira, tudo para fora, então a gente ficava na cozinha, que era todo mundo dormindo no chão. Ele desmontou a cama dele, botava colchão no chão também, que era para sobrar para mais pessoas. Então, era todo mundo dormindo junto ali. Mas estava ótimo para gente, né?
P/1 - Quanto tempo vocês passaram nessa casa?
R - Nós passamos lá, mais ou menos uns seis meses nessa vida.
P/1 - E o teu pai saía de manhã?
R – Aí, o meu pai começou a trabalhar. Ele já arrumou emprego numa chácara, de capinar. Aí, esse senhor, seu Ângelo falou: “Eu trabalho numa fábrica de papel, assim que surgir uma vaga, eu vou prometer que coloco você lá.” Aí, meu pai falou: “Está maravilhoso!” Aí, a gente ficou lá.
Como eu estava com 8 anos, aí ele pegou, arrumou serviço nessa fábrica de papel, aí começou a ter um salário todo mês. Era pouquinho e com 5 filhos, né? Mas aí já deu para ele alugar um cômodo e sair de lá, deixar o homem sossegado. Nesse cômodo, a gente entrava para dormir. Minha mãe fez uma cabaninha com a coberta, embaixo era fogo de lenha, aí tinha um fogo de lenha, no cantinho lá a bacia, a gente tomava banho, esquentava água e tomava banho ali, e só entrava dentro do quarto para dormir, quando cabia todo mundo. Isso nós levamos até a idade de 9 anos, foi um ano isso. Com 9 anos, aí apareceu uma mulher lá, que queria uma babá. Como eu não tinha idade para trabalhar fora ainda, aí eu fui trabalhar com essa senhora. Fui ser babá do menino dela.
P/1 - Onde é que era esse cômodo, Valderez? Ali perto?
R - Era perto da casa desse moço que tinha levado a gente para morar na casa dele, lá no São João. Aí, a gente ficou lá um determinado tempo. Depois eu trabalhei como babá. A mulher não tinha condições de dar nada, que era só em troca da comida e de uma roupa. A comida ela dava, mas uma roupa, uma coisa, já não dava. Aí minha mãe arrumou emprego na chácara, de capinar, tirar matinhos da alface, em volta. Aí a mulher falou “Ah, se você tiver filhos com idade de trabalhar, pode trazer que a gente também paga para eles.” Aí, eu saí da casa da mulher e fui trabalhar lá na chácara junto com a minha mãe. Dali, já começou surgir um dinheirinho daqui um dinheirinho dali. Aí vinha... A mulher trabalhava para fora, uma vizinha nossa que trabalhava lá fora, que ajudava também a gente, que a gente não tinha pão, aí ela trazia aqueles pães todos mofados, às vezes até pão com cabelo [risos]. Aqueles fungos, né? Ela trazia aquela sacolona. Nossa, aí era festa! A gente comia aqueles pães. Só raspava com a faca por cima e achava que estava tudo bem e ninguém ficava doente. A gente tinha o nosso pão todos os dias porque a mulher trazia lá de onde ela trabalhava. E nós trabalhando na chácara. Meu pai, minha mãe e nós trabalhando devagarinho, devagarinho, a gente conseguiu arrumar uma casinha maior, de dois cômodos, uma casinha maior. Aí já melhorou.
P/1 - Teus irmãos pequenos ficavam em casa?
R - Ficavam em casa. Aí já tinha minha irmã, que já era maiorzinha. Aí ela já cuidava dos outros dois. Eu, meu irmão e minha mãe já saíamos para ganhar o pão de cada dia. Aí a gente foi indo.
Com a idade de 10 anos, eu não sabia ler, nem escrever ainda. Aí eu via aquelas crianças indo para a escola, lendo as coisas. Os coleguinhas que você arruma ali, da chácara, que trabalhavam também, mas eles iam para escola, né? E a minha sede era aprender. Meu pai não sabia, minha mãe não sabia, ninguém sabia ensinar nada, eu via a pessoa pegar aqueles gibis e ficar olhando. Eu via as figurinhas: “O que o pessoal olha e ri?” Eu ficava... Nossa, aquilo me marcava muito! “Mas um dia eu vou saber ler e escrever, vou!” Aí foi indo, foi indo, eu trabalhei na chácara. Aí, depois voltei a ser babá de novo. A chácara da mulher lá não deu certo, aí minha mãe passou a ficar lavando roupa, consertando cerca de um, de outro, para ganhar. O que ela sabia fazer, né? Ganhava uma roupa usada daqui, ganhava um sapato dali. Aí foi equilibrando. Aí apareceu outra senhora lá: “Olha, se você trabalhar para mim, eu te dou um caderno e um lápis e arrumo um jeito de você ir para escola.” Aí, eu olhei para mãe: “Você quer filha? Já vai ser menos um e eu sei que você está bem cuidada, porque a mulher é boa.” Eu falei: “Ah, quero sim, lógico! Eu quero ir para escola.” Aí eu fui lá trabalhar para essa senhora, cuidar de três crianças, mas como eu já era acostumada, já sofria com criança nas costas, para mim aquilo era bico. Aí, a mulher me matriculou lá na escola, eu fui para escola, tinha aquele caderninho que a mulher me deu. Falava que todo mês ela ia me dar uma coisa, mas ela não tinha condições. Então, me deu só uma vez e acabou. O resto era comida, mas para mim estava ótimo.
P/1 - Você morava com ela?
R - Morava com ela, praticamente. Fiquei um bom tempo, porque ela chegava tarde do serviço, não dava para voltar para casa. Aí eu fiquei lá, trabalhando com ela, mas em torno da escola.
P/1 - E a escola, como é que era?
R - A escola era... Até o vereador, que já é falecido, desse bairro, né? Foi ele que montou a primeira escola lá no São João. Não tinha carteira, a gente sentava no chão. Era no chão, cruzava as pernas, o caderninho em cima e nem bolsa não tinha. E ali, a gente ia fazendo. A professora não tinha lousa, ela passava no próprio caderno mesmo, ensinando fazer aquelas cobrinhas, aquelas coisas. A gente foi indo, foi indo, foi indo. Era Amélia, o nome dessa professora, uma professora bonita. Nossa, era linda! Eu olhava para ela, falei: “Um dia vou aprender a ensinar igual a ela.” Aquele maior orgulho, pegava o caderno e ia para a escola. Aí eu comecei a conhecer as letrinhas e juntar as palavrinhas. Quando eu ia para casa, ensinava meus irmãos, fui incentivando, porque até então, ninguém... A escola era trabalho: “Imagina, deixar de brincar. Não vou para escola não.” Até quando foi para o meu irmãozinho aí, a minha mãe teve que ir e ficar junto, porque não conhecia o que era, né? Aí foi indo, e aí começou minha sede de aprender. Eu falei: “Se Deus me der oportunidade, enquanto eu tiver vida e saúde, vou aprendendo, vou ensinando.” Aí, foi. Aí, eu terminei. Fiz o primeiro ano. Teve um concurso de quem tirasse a melhor nota nas matérias, eu consegui tirar. Esse vereador dava um vestido. Ganhei um vestido roxinho. Aquele ali era meu vestido da festa. Todo lugar que ia, era aquele vestidinho.
P/1 – Como é que era esse vestidinho?
R - Era um vestido evazesinho, tinha um bolsinho na frente e de alcinha, com decote quadrado. Nossa, aquilo ali era minha paixão, aquele vestido! Ainda que tenha sido um prêmio que eu ganhei era o primeiro vestido novo que eu tive, que ninguém tinha usado. Era eu que ia usar. Aí, foi maravilhoso aquilo ali. Aí, eu comecei. Fiz o primeiro ano, fiz o segundo, aí com 13 anos, aí meu pai estava trabalhando, meu pai arrumou serviço para o meu irmão que tinha... 15, ele conseguiu tirar da chácara e colocou meu irmão na firma. Aí, com 14 anos, aí eu entrei também nessa firma. Meu pai conseguiu arrumar lá para mim, já com registro e tudo.
P/1 - Ficava em Guarulhos?
R - Ficava em Guarulhos. Ali onde era a pista principal do Aeroporto Internacional, que ela teve que sair. Faliu, né? E o Aeroporto derrubou. Era até de papel higiênico. Aí, era ali a firma. Aí, eu comecei a trabalhar ali.
P/1 - Fazendo o quê?
R –Eles falavam que era embaladeira de papel, cortava, fazia uns rolos bem grandões de papel, aí tinha o serralheiro que era um homem, ficava na ponta de uma esteira que era assim, era regulado o tamanho do papel, que era de 40 centímetros, ele colocava e na serra ele ia serrando assim. Aqueles papéis iam descendo na esteira. Uma menina de um lado, uma menina do outro, pegavam aquele papel e iam embrulhando. Aquilo ali era produtividade, você tinha que produzir mesmo. Eu tinha uma rapidez na mão, que era fora do normal. Um fardo de papel eu gastava quatro minutos para fazer. E um fardo de papel tinha 50 rolos daqueles.
P/1 - Embrulhava o quê?
R - O papel higiênico que ia sem... o papel de embrulho dele, por fora. Ele vinha descendo desembrulhado, aí eles colocavam aquela pilha, que te davam mil papeizinhos, um empilhadinho junto do outro. Aí, você pegava o papel, tinha que centralizar ele direitinho e embrulhar e enfiar as duas pontas. Aí soltava na esteira. Tinha produtividade, você tinha que alcançar aquela produtividade lá, né?
P/1 - Era com registro esse trabalho?
R - Esse trabalho já era com registro. Aí as coisas já começaram a melhorar.
P/1 - Você lembra do primeiro salário, Valderez?
R - Lembro! Meu primeiro salário, que peguei, quando recebi, que o homem me deu, eu não acreditei que aquele dinheiro era meu. Peguei o dinheiro assim, olhei: “Mãe, olha!” Aí, eu dei para ela, né? Falei: “Compra uma roupa para mim, outra para a senhora!” Aí, ela comprou. Comprou uma saia branca, parecia um laise, até que era bonita a saia e uma blusinha para ela, como andava muito de pé no chão, ela comprou um chinelo. Já deu para comprar, que era bem merrequinha mesmo, mas, nossa foi uma maravilha aquele dinheiro! Dali a gente não se preocupava em coisas para gente. A gente dava para mãe, porque sabia que a mãe sabia o que fazer. Aí, dali ela tirava, comprava alguma coisinha para gente e o restante ela comprava comida para os outros menores. Comprava o caderninho, fui estudando. Aí, eu fiz o primeiro ano. Aí foi a hora de fazer o ginásio... O colégio, né? O ginásio, a quinta série. Aí, consegui arrumar à noite e era gratuito, não pagava nada. Então, deu para fazer até a oitava série. Aí quando eu estava na oitava série, aí já tinha alguns, quatro, cinco anos que eu estava trabalhando nessa outra firma. Passando aqui, em frente ao Aché, um dia que meu pai ia indo para cidade, eu ia com ele para o centro de São Paulo, aí estava uma plaquinha no Aché que estava precisando. E eu ouvia muito falar dessa firma, que era uma firma boa. Lá, eu carregava marmita. Como era um lugar muito baixo, agora não é, porque tem aterro, né? A água dava aqui, quando chovia, né?
P/1 – Lá na fábrica?
R – Lá, nessa fábrica de papel. A gente passava, às vezes, com a água aqui, água na cintura, para ir trabalhar. Aí, eu passei em frente, eu falei: “Olha pai, está pegando.” Eu conhecia uma pessoa que trabalhava aqui, por nome de Zenaide, aí ela pegou e falou para mim: “Olha, lá está pegando sim e lá não precisa levar marmita. Vamos lá! Você vai junto comigo.” Eu falei: “Ah, está bom.” Faltei um dia e vim. O Aché, na época que estava iniciando, eu acho que estava vendendo muito, estava precisando da gente. “Vocês me trazem isso e isso e isso, fazem o teste”, aquele teste era prático, né? Eu como era craque lá no negócio de embrulhar o papel, então montar aquelas caixinhas para mim, todo mundo ficou assim! O teste era prático, era montar aquelas caixinhas de remédio para colocar o remédio dentro. Era só montar a caixa. Então, num instante, fiz uma pilha. Todo mundo ficou: “Ah não, você já está contratada.”
P/1 - Que ano foi isso?
R – Isso aí foi em 1979, dia 01 de janeiro de 1979. Aí ele falou assim: “Dá para você começar depois de amanhã?” Eu falei: “É que eu trabalho, estou em outra firma, tudo.” Aí eu contei, né? Eles falaram: “Tudo bem, a gente espera. Você legaliza lá e a gente já fica te esperando aqui.” Eu falei: “Tudo bem.” Me legalizei lá, pedi para eles me mandarem embora. Aí eles me mandaram, com todos os meus direitos: “Como você é uma boa funcionária, tudo bem.” Aí, foi quando eu vim parar no Aché.
P/1 - O que você tinha ouvido falar sobre o Aché, Valderez?
R – Ah, que o Aché era uma das melhores firmas na época e que não precisava levar marmita. Era só isso que o Aché oferecia. Você tinha comida aqui dentro, não precisava levar marmita para cima e para baixo. Não tinha condução, não tinha nada e o salário, a diferença na época, que eu lembro, eu acho que era de uns 20 a 30 reais das outras, mas nossa! Para gente já... né? Sabe onde é ali a telefonista? Então, aquela parte dali da frente era onde era o Aché.
P/1 – Como é que era o Aché daquela época?
R - Era um prédio assim, pequeno. Para você ter uma ideia, só naquela parte ali, cabia...Quanto tinha? Eu acho que umas seis esteiras só de produto, tudo no manual. Ali, junto das esteiras, já era perto, já era envelopamento junto também. As salas muito pequenas, os tamanhos das salas eram isso aqui. De pomada era isso, tudo pequena. Na época, a Doris, era num cantinho, que ela era a líder, a supervisora lá do setor, não tinha nem um lugar para ela, era num cantinho lá da parede, que era a salinha dela. Não tinha divisória, não tinha nada. Aí, depois era o Carlão, também que passou a ser líder, supervisor. Era num corredor que tinha, onde passavam os carrinhos, tudo, montaram, colocou uma mesa para ele ali. Era tudo muito apertado.
P/1 - Você foi trabalhar em qual setor?
R - Entrei como embaladeira, trabalhando com a Dóris. Montando as caixinhas de remédio. Fiquei lá durante um ano, depois se você desenvolvia um bom trabalho, tinha aqueles setores, ia passando, que nem envelopamento, já era mais desenvolvido, hipodérmica, que era ampola, você já era mais desenvolvido, tinha diferença de salário, ia para um outro. Você tinha que passar no teste, se passava ia. Aí eu fui, fui indo. Passei pela Dóris, passei pela Marli, pela Marlene e pela Vanda. Uma que tomava conta da parte das ampolas que, hoje, ela não trabalha mais lá e não existe também mais esse setor. Aí fui indo, e nisso fui estudando, não parei de estudar.
P/1 – Deixa eu voltar um pouquinho, você lembra do teu primeiro dia de trabalho lá no Aché, Valderez?
R - Lembro. Quando eu entrei lá no primeiro dia, foi até a Dóris que me recebeu. Não fui só eu, foram várias meninas, um grupo de meninas que entraram. Quando eu entrei, quando a gente fez o teste, foi só na esteira, bem no cantinho. Aí quando eu vi tudo limpinho, nossa! Aquela higiene toda, que eu olhei assim: “Meu Deus, será que esse lugar existe?” Porque lá onde eu trabalhava era num prédio, era papel higiênico, não tinha condições de limpeza nenhuma. Era terrível a coisa lá. De repente você sai para um contraste, eu ficava assim, abismada. E quando eu peguei a comida? Nossa! Todo dia o arrozinho, tinha dia que tinha mistura, tinha dia que não tinha. Daí esquentava no álcool, você taca fogo no álcool, que esse negócio de banho-maria não existia, no álcool ali. Ficava com aquele gosto na comida, mas você estava com fome, era maravilhoso. E aqui era tudo quentinho.
P/1 - Já tinha restaurante naquela época?
R - Tinha, era bem pequenininho o restaurante. Era ali onde é o ambulatório, era na parte de baixo, que agora é o almoxarifado, bem em frente. Era pequeno, mas ali era até a Alice, que hoje ela tem a empresa dela lá. Era ela que tomava conta na época. Tinha o arroz fresquinho, não tinha dois tipos de mistura, um tipo de mistura só, dois tipos de salada, uma sobremesa e o suco. Nossa, aquilo ali era um paraíso! Quando comi a comida e cheguei em casa: “Mãe, a senhora não sabe.” Eu ia começar a falar, aí eu parei: “Não, é que lá não precisa levar marmita.” Porque tinha tudo ali e em casa meus irmãos não tinham. Às vezes, eu pegava aquelas bandejas assim e olhava: “Ô vontade de pegar um pedaço daquela mistura para levar para casa”, que às vezes até sobrava. Eu não conseguia comer tudo. Às vezes, o olho é maior que a barriga, né? Olhava assim, dava uma vontade de pegar, mas meu pai me ensinou que a gente não pega coisa de ninguém e aqui também não pode. Eu com um emprego caído do céu, jamais vou fazer isso.
Aí, eu procurava pegar sempre a quantidade que dava para eu comer, mas aquilo ali, quando eu chegava em casa, que era hora da janta, olhava para os meus irmãos e olhava o que eu comia aqui, aí eu falei: “Ai, meu Deus do céu, mas um dia eles vão ter para dar. Me dá condições, que eu vou ter para dar para eles. Meu pai pode estar velhinho, mas eu vou ter para dar para eles. Esse conforto eu vou dar”, que é comer. E nossa luta toda, nesse corre-corre, esse sufoco tudo, só atrás de uma coisa: “Comida.” Eu falei: “Meu Deus, o que é isso?” Nem esse direito a gente tinha, né? Viemos lá no Nordeste, tivemos épocas boas e ruins também, eu falei: “Não, um dia eu vou ter.” Aí foi indo. Passei em todos os setores, trabalhando.
P/1 - E o uniforme, como é que era?
R - O uniforme era um uniforme amarelo. Eu, pretinha, dentro daquele uniforme amarelo, com uma toquinha branca na cabeça, ficava linda [risos]. E tinha que levar para casa para lavar. Cada um lavava o seu. Era maravilhoso! Maior orgulho era pendurar aquele uniforme amarelo lá, mostrar que eu trabalhava no Aché, entendeu? E todo mundo sentia: “Pô, você está numa firma boa. Nossa, você vai longe”, meus vizinhos me falavam. Eu falei: “Não, eu trabalho num lugar bom sim, não preciso levar marmita.” Eu não gostava da marmita, porque a vida inteira só comida requentada e fria, né? Desde a lavoura até na outra firma. Aí, a gente foi, trabalhei...
P/1 – Depois de ser embaladeira, qual foi o passo seguinte?
R – Passei a trabalhar no envelopamento, que era a parte de colocar as máquinas, envelopar o próprio comprimido, colocar as placas e os comprimidos dentro do alvéolo, aí lacrava. Daí, já ia para embalagem que era a parte final. Dali, passei um ano trabalhando, peguei uma boa experiência. Depois fui para área da hipodermia, que mexia com ampolas. Era uma área assim, bem delicada mesmo, que o Aché sempre foi muito dez, no negócio de higiene, no trabalho dos produtos deles. Então, tinha que ser pessoas selecionadas para colocar ali, tanto para revisar, quanto para trabalhar na parte de enchimento, eu passei.
P/1 - O que era exatamente essa área de hipodermia?
R – Era assim, hipodermia, era fazer o líquido, daquela dextrovitase. A gente fazia as ampolas de glicose e outras ampolas também. Tinha a sala esterilizada, tudo. Você vestia aquela roupa toda branca, trabalhava de luva, de máscara, parecia um astronauta. Dali você não tinha contato com o líquido. A própria máquina injetava. Tua função era sentar, colocar a ampola vazia com a mão e tirar cheia com a outra e colocar dentro do cestinho, na velocidade da máquina. Você tinha que desenvolver aquilo, a agilidade. Então era tchum, tchum, rapidinho. Eu peguei rapidinho aquilo ali e fiquei mais um ano. Depois, fui para parte de fora, da esterilização, fiquei mais um ano, que era revisar ampola, esterilizar, na parte da hipodermia.
P/1 – Nessa época, a produção era organizada de uma forma muito diferente do que é hoje, Valderez?
R - Era assim: não tinha espaço, entendeu? Espaço era pequeno para gente, era tudo apertadinho. Se trabalhava com calor aqui, tinha que lavar coisas no frio, aqui de costas, para autoclave, entendeu? Para o lugar quente, não tinha espaço na época, né. Fiquei lá, mais ou menos, assim também, fiquei quase dois anos. Depois fui para parte de comprimidos, na operadora de máquinas. Só alimentar a máquina e o restante ela fazia. Dali, eu passei para manipulação do produto, que era peneirar o pó e fazia o mesmo trabalho que os meninos faziam, a gente ajudava os meninos naquela outra parte, a manipulação, manipular o produto.
P/1 - Que produto que era?
R – Ah, tinha bastante produto. Tinha Tandrilax, Combiron, Dorilax, cada um manipulava sua parte.
P/1 - O que era? Era comprimido?
R - É o pó para fazer o comprimido. Vinha da área de pesar, tudo pesadinho, bonitinho. Era como se fosse uma receita de bolo. Tinha as batedeiras, você tinha que peneirar aquilo ali, misturar. Daquela mistura, aí vinha o controle de qualidade que pegava a amostra, levava para analisar. Se estivesse aprovado, ia para máquina. A gente ia abastecendo a máquina e a máquina que dava formato no produto para você. Se é o comprido redondo, se é o comprimido... É determinado formato do produto. Eu trabalhei ali também. Passei a conhecer toda a área de produção do Aché, porque trabalhei nelas todas. Fase de um ano de experiência, dois anos, em cada uma delas e estudando ainda. Aí terminei o colegial.
P/1 - Você estudava onde nessa época?
R - Nove de Julho. Aí terminei o colegial. Aí, eu peguei, falei assim...
P/1 - Você estudava à noite?
R – À noite, é. Eu trabalhava de dia e sempre estudando à noite. Aí surgiu uma vaga lá para Inspetor de Qualidade no laboratório. Falei: “Puxa vida, eu queria tanto fazer parte disso daí”, que era pegar as amostras, eu via as meninas fazendo. Olhava espessura, diâmetro do produto, friabilidade, se estava rachando ou se não estava, o aspecto, tudo, só para poder liberar para a fase seguinte. Elas faziam isso por amostragem e levavam lá para o controle, para os analistas. Se estava aprovado, eles mandavam a aprovação. Aí continuava o trabalho. Falei: “Ainda vou conseguir trabalhar nisso daí”, achava legal. Surgiu a oportunidade na Continental, de fazer um curso de Inspetor de Qualidade. Aí eu fiz esse curso.
P/1 - Dentro do Aché?
R - Não, fora do Aché. Eu mesmo paguei. Aí, eu falei: “Eu fiz esse curso.” Terminei de fazer e surgiu a oportunidade de Inspetor de Qualidade, que estavam precisando. Fiz o teste e fui aprovada. Passei a fazer essa função de Inspetor de Qualidade.
P/1 - Que ano era mais ou menos, você lembra?
R – Ah, esse ano, não sei se foi em 1986, não marquei as datas assim.
P/1 - Quando você estava estudando... [pequena interrupção]
R - ...salário? O que ele trazia? Um quilo de sal, uma coisinha de comer, já acabou o dinheiro...
[Intervenção] Eu não sei se posso fazer a entrevista?
P/3 - Porque você vai perguntar tudo, tudo
R - Entendeu? Era assim, aquele tipo, mas como para gente, que vem do Nordeste, onde procura, trabalha de graça, se eles te dão um grão de feijão é um grande pagamento, você chega num lugar que dá casa, comida...
P/3 - E quando a ficha caiu?
P/1 - Tudo você valoriza, né? Tudo você valoriza
R - Foi quando nós chegamos aqui em São Paulo, que a gente começou a trabalhar em empresa, viu o que era um salário, o quanto valia um dia de trabalho da gente. Aí que a gente falou: “Puxa vida! Trabalhar só em troca da comida?” E achava que estava bem pago, entendeu? Porque você não dormia na chuva e tinha o amparo...
P/1 – Mas assim, na verdade, apesar dos momentos difíceis, o que dá força... [retorno a entrevista].
Eu queria que você contasse um pouquinho dessa tua época de estudo, do ginásio ainda, você trabalhava no Aché durante o dia?
R - Trabalhava no Aché durante o dia e daqui eu ia para a aula. Na época, eu estava fazendo o colegial, lá no Colégio 9 de Julho. Eu ia para lá, estudava até às 23h, de lá as condições eram precárias, a condução lá para o Jardim São João, até hoje ainda é um pouquinho, mas naquela época era mais terrível ainda! Chegava 1h, chegava meia-noite, mas nunca senti cansaço não. Aí, no outro dia, eu tava preparadinha para luta de novo.
P/1 - E a empresa aceitava que você estudasse? Tinha incentivo, tinha alguma coisa?
R - Sim, o lema do Aché: “Estudem, porque quando a gente precisar de um profissional, nós não vamos buscar lá fora, vamos escolher aqui dentro.” Então, aquilo era constante dentro de mim. Quando eu fiz o curso de Inspetor de Qualidade, que vivenciei isso, que pude, através de um teste, passar e exercer a função de Inspetor de Qualidade, então eu falei: “Aqui é o meu lugar.” Tantas portas se fecharam, agora começaram a se abrir. “Então, Deus que me dê sorte, me dê saúde, que, enquanto eu puder, tiver vida e saúde, vou lutar”.
P/1 - Você lembra da notícia de que você foi a escolhida?
R - Lembro, eu não acreditei! Eu falei: “Ai meu Deus, será que é verdade?” A gente não conhecia. O setor era perto, mas a gente trabalhava assim, muito dedicada, saía daquela portinha, já ia, não ficava vasculhando as coisas, né? Aí, quando me deram a notícia, que eu fui uma das escolhidas, fiquei super contente! Foi quando a Eni foi a minha chefe, que a Eni era supervisora do Controle de Qualidade, ela já era farmacêutica e respondia pelos produtos. Mas como era um ovo, só quatro pessoas trabalhando no Controle, ela mesma era chefe, era líder, ela fazia tudo e analista também. Respondia pelo Aché e fazia tudo ao mesmo tempo. Era ela, a Fátima e mais outras duas meninas, porque tão pequenininho que era. Aí, eu entrei como Inspetora de Qualidade. Para mim foi excelente, porque eu conhecia o produto desde a raiz, desde como peneirar o pó. Só de você olhar para ele, se ele está legal para tal mistura, o ponto de molhagem dele se estava bom, se não estava. Então, aquilo ali, pra mim, foi excelente e para o pessoal, pelos setores que eu passei por todos novamente, para eles foi bom porque o que eu falava, nossa aquilo ali é tão gratificante! “Olha gente, o produto não tá assim, mas se vocês fizerem assim, vai ficar legal. Molha mais um pouco para gente ver.” O líder do setor acreditava e confiava. E tinha resultado final que estava bom mesmo, porque eu já vivi aquilo ali, fiz com as minhas mãos tudo aquilo.
P/1 - O teu dia a dia de trabalho mudou muito, Valderez? O que você fazia como inspetora?
R –A minha função era chegar lá, “o produto está pronto?” Coletar a amostra, colocar dentro de um recipiente, tanto do pó, do pozinho do produto... Aí no caso do comprimido, que eu estou me referindo, porque eu passei por outras áreas, do pozinho que eles misturaram. Eu pego naquela fase e levo para analisar, para o controle analisar. Tinha uns formados em Química, que faziam a análise. Passavam para o supervisor, ele aprovava, estava bom o produto, aí trazia o rótulo, colocava naquela barrica. “Agora está pronto.” Dali, eles pegavam, levavam para o operador de máquina e o operador ia colocar o pozinho dentro da máquina e a máquina ia fazer o formato do comprimido. Ia caindo o comprimido já feito dentro de uma barrica. Aquelas barricas estavam cheias, eu mexia com luva, tudo, com os equipamentos que a gente tem. Pegava amostra daqueles comprimidos, colocava num saquinho, aí levava para lá também, para o pessoal analisar. “O comprimido está bom?” Mas no decorrer da máquina, ia trabalhando, eu ia pesando, vendo o peso se estava correto, a espessura do comprimido se estava correto, a cor, a friabilidade, que a gente fala, que era passar no equipamento para ver se desgastavam as laterais do comprimido, até quanto ele resiste. Essas coisas que a gente aprende. Aí, levava para lá, analisava e levava para o controle também, para fazer análise química. Estava aprovado, dali ia para o envelopamento. No envelopamento, já havia passado também, eu sabia de todos os processos que ele ia sofrer ali. Aí passou, colocou no blister no strip que fala hoje. Ia para embalagem, colocar a bula e o remédio dentro da caixinha e fechar. Hoje em dia já é diferente. Tem as máquinas que fazem tudo isso. Aí, eu fui fazendo. Foi legal. Eu tinha experiência, a minha função era essa, mas eu era sempre abelhuda: “Não gente, vocês estão misturando de forma errada, a velocidade não é essa”, porque eu já passei por ali. Às vezes, as pessoas que estão iniciando até pegar prática, né? E o outro, o líder, não dá para todo instante ficar olhando. O inspetor não, de meia em meia hora é obrigação passar em todas aquelas máquinas, fazer a vistoria.
P/1 - Você trabalhava no setor?
R - No setor, então eu acompanhava e auxiliava ao mesmo tempo, porque eu já havia passado por tudo aquilo ali, e eles gostavam...
P/1 - Que setor que era?
R - Passei pelos Líquidos, pela Pomada, pela Embalagens, Envelopamento, Comprimido e Hipodermia, passei por todos eles novamente, os quais eu já tinha trabalhado como operadora, manipuladora e tudo.
P/1 - As técnicas de inspeção dessa época que você começou, eram muito diferentes do que é hoje?
R - Eram porque, em termos de equipamentos para serem usados, hoje são mais sofisticados. Tem as máquinas que você coloca, só liga o botãozinho, ela já te mostra se está... E as próprias máquinas, essas máquinas que eles compraram agora, elas mesmas, se sai um comprimido fora da espessura, fora do peso, ou se tem algum resíduo nele, a máquina mesmo para, já te mostra, rejeita e você tira aquilo ali, já sabe que tem algum problema. Aí, você vai inspecionar. Antigamente não, você tinha que descobrir tudo ali. Era com paquímetro, medindo espessura, era fazendo friabilidade, às vezes, na mão, no equipamento, que tinha bem rústico mesmo. Era bem diferente. Hoje em dia a maioria das coisas a máquina faz, entendeu? E era coisa que a gente tinha que fazer manualmente, estava de olho vivo, tinha que, de meia em meia hora, passar em todas as máquinas, porque no final da tarde, você dava aquele relatório para o teu chefe . Se você passou todas as ordens, a gente fazia o fechamento do produto, para ver se estava legal mesmo.
P/1 - E quando você passou para a Inspeção, o Aché também já tinha crescido um pouco, né?
R - Tinha crescido um pouquinho. O laboratório já tinha mudado, era maior. Os setores também já tinham construído mais para trás um pouco e a expedição do lado. Quer dizer, já tinha expandido mais.
P/1 - E o restaurante também tinha mudado já?
R - Não, o restaurante ainda continuava lá, só que os tipos de comida tinham mudado. Era muito melhores do que antes. Eu continuei estudando. Fiz o cursinho de Inspetor de Qualidade, depois que terminei o colegial, mas não dava para eu dar continuidade, fazer uma faculdade, porque o salário era pouco na época e a faculdade era bem puxada. Eu falei: “Mas um dia, eu vou conseguir.” Aí, terminei o colegial, fiz o curso, mas sempre estou olhando as coisas que já vivi. Por curiosidade eu vou prestar vestibular, vou ver o que é esse vestibular, de perto. Eu escolhi a mais cara ainda a UNG [risos].
P/2 - Quantos anos você tinha na época?
R - Na época, acho que estava com 22 ou 23 anos, era isso. Eu falei: “Vou prestar um vestibular na UNG.
P/1 - O que é a UNG?
R – É a Universidade Guarulhos. Lá só os filhinhos de papai que frequentavam, era uma das mais caras. “Não vou passar, eu quero apenas conhecer”, porque se eu for na outra... “Que pretensão, vai que eu consigo passar em outra, aí eu vou ficar muito frustrada.” Era esse meu pensamento. E na UNG, eu sei que exige muito, é muito exigente, aí eu sei que não vou passar mesmo, então só para eu conhecer como é, para não ficar fora de forma, que o dia que eu tiver condições mesmo eu vou. Aí, eu fui lá, passei por todas aquelas angústias do pessoal, tudo, né? Aí, eu falei: “Nossa, é interessante!” Mas valeu a pena. Da próxima vez, eu sei que vou passar e vou conseguir. Aí escolhi o que logo? Química. Está na área, ainda vou ser uma analista química. Eu via o pessoal analisando aqueles balões coloridos, aquelas coisas, me fascinava por aquilo, né? Achava o máximo: “Um dia, eu ainda vou sentar numa cadeira dessas!”
P/1 - O que você gostava desse trabalho, Valderez?
R - Do analista? Eu achava interessantes aquelas coisas, a pessoa saber, como é que separa as coisas ali. Um comprimido mínimo, um monte de coisa. Eu quero saber por exemplo, quanto que tem de vitamina C. Eu conseguiria saber, o pessoal conseguia saber: “Não, tem tanto.” Como que eles veem isso, como é que ocorre? Essas curiosidades, né? Aí: “Um dia eu ainda vou sentar e vou ver o que são as coisas nesses balõezinhos vermelhos, amarelos.” É bonito, é uma coisa bonita ver os equipamentos, os materiais. Aí eu falei: “Tudo bem.” Prestei o vestibular. Quando saiu o resultado, terceiro lugar, quem estava lá? Dona Valderez.. Falei: “Putz, eu não acredito!”
P/1 - De qual?
R - Da UNG, da universidade. Não fui nem eu que vi, que não fui nem atrás, tinha certeza que não... Eu fiz, mas parecia que tudo aquilo que eu estava fazendo conhecia os resultados: “Não, isso aqui é sim, as perguntas todas que tinham, né?” Vai a dona Valderez e passa. Aí, falei: “Jesus...” Aí, nessa época, era o Gaspar que era o meu líder do setor, lá vem ele com o jornalzinho na mão: “Valderez, o que você fez menina?” Eu falei: “O que foi?” Eu trabalhava ainda como inspetora. “O que você fez?” Eu falei assim: “O que eu fiz? Fui lá, trouxe o comprimido, agora ele está prontinho, só esperando o resultado e o rótulo.” Ele falou: “Não, isso aqui.” Eu olhei para o jornal e falei: “Ah, eu não peguei nada de ninguém não, viu?” Ele deu risada e falou: “Não, você passou em terceiro lugar aqui na Universidade Guarulhos, para Química.” Ao invés de ficar contente, abri foi a boca, chorei. Aí, ele me abraçou: “Isso tudo é alegria?” Eu falei: “Por incrível que pareça, não é alegria, não. É tristeza mesmo.” Aí, ele falou: “O Valderez, mas o que é isso? Você passou, que não sei o quê.” Aí, eu peguei e não falei nada. Aí, saí com os olhos cheio de água, ele estava com caderno na mão lá. Depois voltei e falei: “Desculpa Gaspar, te deixar daquele jeito, é que eu não queria passar, não era para eu passar”, falei para ele. Aí, ele falou assim: “Mas por quê? Você não vai estudar?” Aí eu falei assim: “Não, não vai dar. Pelo menos por enquanto não vai dar. Se eu conseguir arrumar um outro emprego, que encaixe com este aqui no Aché e arrumar uns troquinhos, quem sabe aí eu consiga.” Aí ele olhou para mim assim, os olhos dele encheram d’água, aí encheram os meus também, ele olhou para mim e falou: “Você vai estudar!” Eu falei: “O que é isso, rapaz?” Ele falou: “O dinheiro da matrícula eu te dou.” Aí, eu olhei para ele e falei: “Não acredito, Gaspar.” “Faça a sua matrícula, tire as suas fotos e faça sua matrícula!” Eu falei: “Tudo bem, eu tiro e faço. E depois para eu pagar? Quem é que vai pagar para mim? O salário do Aché não dá não. Ainda fui escolher essa! Se eu soubesse que eu ia estudar, eu tinha escolhido uma que fosse, ou um curso inferior.” Aí, ele falou assim: “Não, faz, faz a tua matrícula, acredita em mim, faz a tua matrícula.” Aí, ele me deu aquele dinheiro. Eu olhei. Aí fui lá e fiz. Voltei com o papel na mão, o coração apertado, né? Cheguei em casa, falei para o pai e para mãe o que é que tinha acontecido. “Iii, filha, você é doida. Você não vai poder, você está em condições difíceis agora, você não pode estudar.” Aí começou, né? Que eles não tinham conhecimento, né? Aí: “Tudo bem. Quem precisava fazer uma faculdade são teus irmãos, teu irmão mais velho, esse outro teu irmão, mas você é mulher, logo, logo você casa e não há necessidade de você fazer isso, né? O colegial já está bom. Olha o pai e a mãe.” Eles não sabem ler nem escrever. “Eu sei agora porque você me ensinou, está certo eu fazer umas contas, já sei pegar o ônibus, escrever meu nome.” A minha mãe já sabe juntar os numerozinhos, né? “A gente não está vivendo? Olha aqui, onde nós chegamos!” Isso, a gente já tinha nossa casinha. Já tinha terminado de pagar...
P/1 – Naquele bairro mesmo?
R - Naquele bairro mesmo. Mas meio apertadinha, mas estava [pequena interrupção]. Gastei o dinheiro do Gaspar e agora vou ficar devendo para ele. Aí falei: “Ó Gaspar...” Contei para ele e falei: “Um dia eu vou poder te pagar esse dinheiro, mas infelizmente não vai dar porquê...”. “Mas por que, Valderez?” “Porque a situação da casa não está boa.” O valor, se eu não me engano, não sei se era 150 reais. Era um absurdo e o meu salário era metade daquilo. Falei para ele: “Ah, não tem.” Aí, ele abaixou a cabeça, ficou quieto e falou: “Tá, guarda esse papel, guarda esse papel.” Aí, sei lá o que ele arrumou para lá, só sei que dois dias depois ele falou: “Ô Valderez, o Toninho, Químico, conseguiu uma bolsa para você. Ele vai te pagar o que puder pagar. Depois a gente vê o que faz.” Aí consegui essa bolsa. Pensei: “Nossa, a maior alegria né? Aí fui na garra mesmo, com unhas e dentes, eu falei: “Não, pegar DP jamais, é estudar mesmo, eram noites varadas, era o curso que eu queria, era Química.” Aí fui, fui. No segundo ano, já me passaram como auxiliar de laboratório, que era lavar material, esterilizar, secar, né? Aí o salário melhorou um pouquinho.
P/1 - Era no Controle de Qualidade?
R – É, já estava como inspetora, passei para auxiliar, lavando material, tudo. Daí, o que aconteceu? O pessoal começou a reclamar: “Pô, por que ela? Eu também não tenho condições.” Começou a gerar uma certa coisa, aí o Toninho falou para mim: “Ó Valderez, vamos cortar tua bolsa, a gente não vai ter condições mais de pagar, porque você está vendo como é que está. Um tem direito, todos têm, todo mundo é sofrido aqui, não vai dar para gente continuar pagando. Mas não faz mal, como você já está no segundo ano de Química, a gente vai tentar colocar você dentro da sua profissão, se você desenvolver bem, aí você fica. Se você passar os três meses de experiência você fica, aí a gente vai ter condições de acertar o seu salário e você vai seguir seu caminho sozinha, pagando a faculdade.” Eu falei: “Toninho, eu te agradeço do fundo do coração.” Aí, foi o que ele fez, me colocou lá. Eu falei: “Essa faculdade eu não perco.” Fui indo, passei na experiência. Aí me registraram como Analista 1. Dali comecei. Antes de terminar a faculdade passei para Analista Sênior, depois analista Pleno, que é o mais alto estágio. Terminei a faculdade, isso foi em 1994, que eu terminei.
P/1 - Que lembranças que você tem da faculdade, Valderez?
R – Olha, eu tenho lembranças muito boas, eu convivia com pessoas bem de vida. Estava eu lá no meio deles, pagando uma coisa que eu jamais sonhei em pagar, em estudar num lugar assim. O pessoal me tratava por igual, não tinha discriminação. Quando as minhas coleguinhas mais chegadas, que a gente sempre arrumou um grupo de amigos que, às vezes, iam lá em casa, eu ficava meio chateada, eles viam. Aí, um dia, uma vinha com um caderno, outra me dava um sapato, outra me dava alguma coisa, me ajudaram muito com roupas, para não andar mal vestida no meio dos outros. O lanche, elas dividiam comigo. Então, foram amigas que tenho guardadas no coração. Aí aquilo foi passando, foi, foi... Graças a Deus, cheguei como Analista.
P/1 - E a tua formatura, você lembra dela?
R - Não pude participar.
P/1 – Não?
R – Dessa não, mas agora de Farmácia eu vou. Daquela lá, eu não pude, não tive condições. Tinha até esse anelzinho aqui, foi minha irmã que me deu, que ela tinha ganhado da patroa dela, que ela trabalhou e eu não pude comprar, ela disse: “Ó minha irmã, esse é o meu anel de formatura que te dou.” É bem velhinho, uma coisinha assim, não sei do que é. Sei que está caindo tudo em cacos. Ele vai sair, mas a marca vai ficar, o dia que ele acabar. O anel de formatura foi esse. Hoje em dia, graças a Deus, tenho condições de comprar um outro, mas vai não ter o valor deste aqui, entendeu? Tem que ser ele, foi ele que eu ganhei. Aí, a gente foi, comecei a trabalhar como analista, tudo, e as coisas começaram a melhorar. Aí o salário já aumentou, terminei a faculdade, dei umas aulinhas, juntei mais um dinheirinho daqui e dali. Aí comecei botar em casa, meus pais viram que deu fruto em casa. Foi o orgulho da família. Dar comida do melhor para eles, quase igual do nível que eu comia aqui, mas eles tinham todos os dias para comer. Aqueles irmãos que não tinham, como a gente era daquele costume que vinha lá do interior: “Por que você está comendo bife e o teu irmão está comendo ovo, você vai sentir que você é melhor que ele? ele é teu irmão!” O que a gente faz? Eu falei: “Não, eu vou seguir essa risca do meu pai. Eles já estão velhos, cansados, mas os meus irmãos...” Como eu fui uma das irmãs mais velhas, sempre fui eu que cuidei, então eles têm aquele respeito por mim. Eu tento até hoje, juntar isso, porque essas novas gerações que vêm vindo, fiquem da mesma forma. Reuni a família e falei: “Olha, hoje que tem bife para comer. Eu sei que na casa de vocês não tem, vamos nos reunir e dividir o nosso bife?” “Vamos.”
Hoje, eu tenho casa para morar. Meu irmão mais velho mora aqui nos fundos, ele não tem casa. Casou-se, foi precipitado, não pôde esperar, não quis esperar, o dinheiro pouco. “Vamos fazer uma jura entre nós. Cada um dos nossos irmãos deve ter uma casa para morar e comida para comer, todo mundo igual?” Aí, um olhou para o outro: “Igual lá no Norte, igual lá no Paraná?” “Sim”. “Vamos?” “Vamos.” Aí foi isso que a gente fez, demos as mãos. Aí todo mundo trabalhou junto daqui. Sempre, como eu sacrificava mais um pouquinho porque ganhava mais, né? Meu irmão mais velho tem sua casinha, tem seu comer, está lá com a família dele. Os outros têm a casinha do milagre que a gente fala, que fica lá no fundo de casa, né? Aí o outro se casou também não tinha para onde ir. Eu falei: “Ô, seu precipitado, não podia esperar?” Não sei o que. Está lá. Casou-se, juntou todo mundo, comprou o seu terreninho. “Está certo.” Por isso que eu te falo, “é igual índio, está todo mundo por perto. Deu um grito, o outro escuta.” Mas como as condições lá dos terrenos são mais em conta, levantou uma casinha para um, ficou lá. Casou o outro também, juntou todo mundo, cada um depositava seu pouquinho lá, juntava, comprava as coisas, montamos a casinha do outro. Aí todo mundo, graças a Deus. Aí fiquei eu por último, né? A minha, eu quero comprar com o meu próprio suor. Não quero ser melhor do que ninguém. Deus vai me abençoar, eu vou comprar com meu próprio suor. Tem a casa dos meus velhos, mas eu quero ter a minha própria também. Aí, fui. Com trabalho daqui, trabalho dali, aí meu velho falou: “Ah, filha, eu já estou para me aposentar e eu não sei fazer nada. Sabe o que eu tenho vontade? Eu tenho um sonho de fazer um barzinho aí na frente. Vender docinho, vou ficar fazendo amizade com os meus amiguinhos que são as crianças. E tem espaço no terreno lá na frente, aí eu vou fazer um... Gostaria tanto, vou lutar para fazer um barzinho aí na frente. O que você acha?” Porque tudo que eles vão fazer, eles acham que eu sei tudo. Quem sou eu? A opinião que eu dou para eles, acatam aquilo ali. “Ah, ela tem razão.” Aí, eu falei: “Não pai, eu concordo.O senhor tem que ter o seu lugarzinho para trabalhar sim. Ficar, vender o seu docinho. Um centavo que o senhor ganhar, o senhor pode deixar, que o seu médico, seu convênio e o seu arroz, o seu feijão, enquanto eu viver e tiver força para trabalhar, eu te garanto. Então, se o senhor tiver seu lugar para passar seus dias, vou ficar muito contente.” Ele falou: “Tá.” Aí, fomos daqui e dali, juntou todo mundo, montou o barzinho dele lá, né?
P/1 - Ele se aposentou como o quê?
R - Como assim?
P/1 - Ele se aposentou, trabalhando naquela fábrica?
R - Não, ele trabalhou... Não, foi em outra fábrica, né? Ele trabalhou em fábrica de pedra, na pedreira dos Martello, não sei se vocês já ouviram falar. Depois ele trabalhou em fábrica de borracha. Por não saber ler, nem escrever, então ele só trabalhava em serviços muito terríveis mesmo. Sem ter conhecimento de EPI [Equipamento de Proteção Individual], nem nada, que o pessoal não ligava para isso, nem os donos das firmas, então ele foi trabalhando, trabalhando. Aí, depois que ele se aposentou, depois de quatro anos de aposentado, ele começou a apresentar sequelas na saúde. Quando foi ver era por causa desse trabalho que ele tinha feito. Mas aí, pulando essa parte, a gente construiu lá. Ele estava trabalhando ainda na época, aí montamos os docinhos dele lá, que é onde ele fica hoje, cuidando dos docinhos dele lá.
P/1 - É na frente da casa de vocês?
R – É, na frente da minha casa, da casa dele, eu moro junto com ele. Tenho a minha, mas moro junto com eles, que enquanto eles viverem, eu vou estar junto com eles.
P/1 - A tua, você já construiu também?
R – Tenho, construí com meu próprio suor, graças a Deus. Está lá. Eles ficam lá todos os dias, vendendo os docinhos, fazendo amizade com crianças. As amizades deles, na maioria, são crianças. Chegou lá na rua e perguntou: “Cadê o seu Zé do doce?” Todo mundo sabe. Qualquer um a rua, te leva. Tem uns lá que não sabem nem pedir:” Seu Zé?” Já mostram o docinho. Outros também vão porque é um bairro meio carente, né? Chega lá, às vezes, com 50 centavos e querem todos os doces da prateleira. Aí ele pega dá uma balinha daqui, dá uma ali, e a criança sai sorrindo. Então, com isso, ele cativou muito as crianças. Então, ele lá, eu vendo a cabecinha branquinha, mas é o querido da criançada. Chegou na rua e perguntou por ele, todo mundo conhece.
P/1 - E lá no Aché, você estava na fase de Analista...
R - É Analista, Analista Química.
P/1 - E o teu dia a dia como Analista já era muito diferente daquela época da inspeção?
R – Era, porque como inspeção, eu me preocupava de pegar o produto e levar lá para eles analisarem. E como Analista não, eu tinha que ter a preocupação de que aquilo ali era uma vida. Se eu errasse e dissesse na bula que tem 100 mg de um princípio ativo e fizesse alguma coisa errada, passasse uma análise errada, iria prejudicar milhões de vidas. Então, a responsabilidade foi bem maior. Então, quando eu pego um produto daqueles, vejo como meus pais dependem de remédio, nossa aquilo ali eu escarafuncho, dou mais ritmo que puder. Só sai da minha mão quando tem a garantia. “Está bom mesmo, porque aquilo ali eu garanto.” Se precisar dar a vida por aquele produto ali, eu dou, porque eu tenho certeza de que fiz e está bom, e o paciente vai tomar e vai ficar curado. Então, foi essa a responsabilidade bem diferente, porque, às vezes, quando dá algum probleminha que não consigo descobrir, fico de cabeça quente, me preocupo: “Caramba, o que está acontecendo?” Você segura daqui, segura dali. Enquanto não descobre, pelo menos, todos os funcionários do Aché são assim. Mexem com aquele produto, mas como se fosse com a vida. O que acontece depois daquilo ali, não se sabe mais. Pelo menos, até a hora de sair, temos consciência que o produto está bom.
P/1 - E o passo seguinte qual foi, Valderez?
R - O passo seguinte, aí começou, o Aché maravilhoso, com tantos benefícios, tantas coisas boas para gente.
P/1 - Quais outros benefícios?
R - Por exemplo, tinha cestas básicas da melhor qualidade para gente, o restaurante como você vê, que é de deixar qualquer um de queixo caído, quando chega ali, naquele restaurante. Convênios excelentes, a família tem direito de participar das coisinhas que têm. Por exemplo, se tem Festa das Crianças, você pode trazer teus parentes para participar, tem colônia de férias, você traz o seu sobrinho ou conhecido assim, uma pessoa que você se responsabilize por ela, você pode trazer também, tem o clube que pode participar também a família. Então, bastantes coisas boas para gente. Aquela parte do... Como é que se diz? Um bônus que eles davam para gente, né? Um bônus não, um salário e mais um pouco da gente. Então, era maravilhoso isso daí. Aí, estava excelente! Aí, de repente, começa a fase que a gente não está acreditando que o Aché estava passando por fase crítica, por fase tão complicada. A gente ficou meio assim, eu falei: “Mas de que forma eu vou poder ajudar o Aché e a mim mesma?” Sei que Química estou fazendo, estou preparada para dar uma aula e para trabalhar aqui como analista. Mas eu tenho saúde, tenho vontade de continuar estudando, a firma está modificando tanto, abrindo tanto. Assim, comunicava para gente falando dos fitoterápicos, vários campos que iriam abrir. E, como química, eu estaria mais restrita. Se eu fizer Farmácia, poderia atuar em mais campos. Iria ajudar o próprio Aché e quando o Aché me achar, que eu não sou mais conveniente, eu estaria preparada também para sair. Ter mais campos de trabalho, além do que eu já tenho, né? Eu quero trabalhar enquanto viver, não quero ficar parada. Aí eu falei: “Não, eu vou tentar de novo.” Aí, meus pais só faltaram falar nas paredes: “Você está louca! Nessa idade, em vez de casar-se, vai voltar para escola de novo? O que você quer? Encher a parede de diploma para contar historinha e ter o comprovante para provar?” Eu falei: “É isso que eu quero.” Eu falei: “Não pai, quanto mais eu tiver, o senhor está vendo, mais vocês vão ter. Quanto mais eu tiver, mais os meus irmãos vão ter. Se um dia eu me for, tenho para quem deixar, não é gula por dinheiro, nem por nada, porque graças a Deus a gente já tem o suficiente para comer e beber. Eu quero é conhecer e poder ajudar mais e ter mais conhecimento. Quero aprender. As oportunidades para mim surgiram tão tarde, as portas começaram a se abrir tão tarde. A minha mente está boa, estou bem de saúde, graças a Deus, por que vou ficar em casa assistindo televisão?” Não, não! Tem tanta gente que precisa da gente. Eu vejo lá na igreja, o pessoal com tanta necessidade, a gente sai para distribuir o sopão nas noites, nas madrugadas. A gente vê... Nossa, quantas pessoas carentes! Na minha comunidade mesmo, a gente vai, junta as pessoas, a equipe, um enfermeiro, um cabeleireiro, um que sabe dar banho, junta aqueles mendigos, monta um banheiro lá no meio do caminho e dá banho, corta unha, corta cabelo. É tão gratificante, eu posso ser útil. E se eu estudar mais, vou ter mais condições, mais conhecimentos e a gente vai ver o que faz. Aí, os meus pais, no início, ficaram contra. Eu falei: “Velhona de 40 anos. Fica quieta, eles vão ver os frutos depois” [risos]. Aí, fui, prestei vestibular de novo. Dona Valderez passa de novo, está lá. Aí, eu falei: “Graças a Deus.”
P/1 - Onde dessa vez?
R - Na UNG de novo. Lá eu já conheço tudo, aí quando eu vou para fazer matrícula: “Olha Valderez, você tem 50% de desconto, porque você é ex-aluna.” Pô, numa faculdade de 600, eu ia pagar a metade, falei: “Que maravilha!” “Como você fez curso de Química, você elimina tal, tal, quatro matérias. Você ainda tem mais tantas.” Eu falei: “Pô, fazer Farmácia de graça. Isso é bom demais!” Aí, eu peguei de novo. Já estou no segundo ano. E qual é meu objetivo com isso? Conforme a empresa está modificando tanto, não sei qual rumo de lá, a gente sabe que é para melhor, muitas coisas novas tão surgindo, eu quero estar assim, uma profissional capacitada para qualquer área que eles quiserem me usar, eu quero estar capacitada para isso, entendeu? Eu já tenho Química e eu fazendo Farmácia e Bioquímica, vou estar preparada para fitoterápicos, para qualquer coisa que vier. Se o Aché não me aceitar, a gente parte para outra lá fora, mas estou consciente e preparada já para isso. Então, eu quero atuar em outras áreas, fora análise, lá dentro da empresa ou fora da empresa, que a gente sabe que Farmácia é um campo muito grande. Mas Farmácia e Bioquímica é muito grande, grande mesmo. E quando o dia que não puder mais trabalhar, que a idade vai chegar, quero montar minha própria farmácia e ter consciência daquilo que eu estou fazendo, do trabalho que estou fazendo, entendeu? Porque eu vou conhecer a química do produto e o que ela vai fazer no ser humano. Então, eu quero ajudar mesmo. E de preferência, procurar o lugar mais carente que tiver, aí é onde eu vou abrir a minha.
P/1 - Lá atrás, você imaginava que era esse o seu caminho no Aché? Você desejava isso?
R - Jamais. Nem esperava de um dia entrar no Aché. E quando eu entrei, eu jamais pensei que eu ia passar de uma embaladeira de produto. Mas isso que foi, o Aché ajudou bastante nessa parte como ajuda a todos. A maioria estuda, por quê? Na hora que ele precisa de um profissional, não vai procurar lá fora, procura lá dentro, faz a seleção lá dentro. Aí, se ninguém couber ali dentro daquela parte, aí sim, que sai para buscar fora. Pelo menos, o lema sempre foi esse. Acredito que com essa nova direção não vai mudar. A gente espera que seja isso, porque isso incentiva, você vê que é bem gratificante porque a maioria do meu setor, o pessoal não estava estudando. Terminou já a faculdade e estavam dando aquela parada, né? Um fez um cursinho de inglês, outro fez de computação e deram aquela paradinha, light, dar um descanso. Mas quando me viram: “Pô, com essa idade, a meninada toda nova, todo mundo voltando a estudar de novo.” Eu falei: “Pô, acho que eu servi de alguma coisa pelo menos” [risos].
P/1 - E hoje, como é que é? Você trabalha durante o dia e estuda à noite?
R – Trabalho durante o dia, das 7:30 às 17:00, o Aché dá a jantinha para gente. Tomo meu banhinho, janto, vou para faculdade de novo. Aí, o meu velhinho agora, por esse problema que ele trabalhou em firmas tão precárias, afetou o pulmão dele, né? Então, às vezes, a maioria das vezes, eu nem durmo em casa. É no hospital lá com ele, sentada numa cadeira ou dormindo no sofá. Falei: “Não, mas eu vou, eu vou porque eu posso ajudar meu velho, estou podendo ajudar o meu velho agora. Com meus conhecimentos posso ajudá-lo fisicamente e materialmente dar um bom hospital para ele se tratar, os remédios são caríssimos, a aposentadoria não dá nem para comprar a metade. Graças a Deus, eu ajudo. Agora, ele não se preocupa com o arroz, com o feijão, nem com a luz, o telefone.Cuida da tua vida, come e bebe e desfruta do que você puder.” Ele e a velhinha junto, né? E os irmãos, cada hora que um está passando necessidade, alguma coisa, se junta todo mundo, dá aquela força, põe de pé e aí vai cada um para o seu caminho. Outro está querendo capengar, fica desempregado, alguma coisa, junta todo mundo de novo, um paga a conta, outro já dá uma cesta básica, outro já cuida do filho que está na escola. Tudo isso foi onde meus... Que eu falo que são meus pimpolhos, que eu passei a ser, considero como mãe adotiva. Nessas fases que meu irmão estava passando, eu peguei como adotivos os três.
P/1 - Como é que eles se chamam?
R - O Rafael, que é minha paixão... Para mim, todos são, né? A Elaine, tudo o que eu posso ajudar eles, eu estou sempre junto com eles.
P/1 - E quando chega o fim de semana, o que você gosta de fazer?
R – O que eu gosto de fazer? É que eu não tenho muito tempo, mas quando eu tenho, é juntar todos eles, deitar lá no chão e a gente começar contar história, contar piada, o que foi do dia a dia, fazer brincadeira. Aí, junta os outros também que... Os que eu sou mais chegada. Mais chegados, esses daí que eu crio porque eles moram lá no fundo da minha casa. Aí, a gente se junta, junta a família toda. Sentamos no chão, de chinelo, chega todo mundo inesperado, a gente faz um raio de uma garrafa de café, coloca lá no quintal, que é tudo fechadinho, né? Então, cimento, tudo, comprei já umas cadeirinhas de bar, daquela lá, deixei lá no quintal, chega a familiarada toda, a gente já monta aquilo rapidinho, o bolo assa rapidinho, ainda está saindo fumaça quente, não pode se não vai doer a barriga, mas todo mundo come, conta piada, ri e é isso que a gente gosta no final de semana. Tudo é motivo para fazer um churrasquinho, tudo é motivo para comemorar e a gente vai levando, graças a Deus.
P/1- E para ir terminando, você já falou um pouco de futuro, mas eu queria perguntar se tem mais algum sonho que você tem?
R - Mais algum sonho? Vários. Um que, para mim, eu sei que vai ser impossível, que eu não sei, seria ter o meu próprio filho. Cuidei tanto dos outros que esqueci de mim. E o tempo está passando, passou. E não sei se um dia vou ter essa oportunidade ainda. Vamos ver. Se Deus abençoar, eu queria ter o meu próprio. Você ama, talvez seja diferente, não sei. Mas eu vivo tão intensamente para minha família, que dediquei a minha vida para eles, porque o que eu vivi, jamais vou querer que um sobrinho meu passe, ou alguém da minha família venha passar tudo aquilo de novo, não. Dessa vida, a gente não leva nada. O que a gente tem, tem mais é que distribuir, dar. Conquistar sim, porque é para o seu ego, para você saber “eu posso, eu consigo, eu tenho força!” Não é só o dinheiro que faz isso, é a vontade e a fé, que tem Um lá em cima, que ele dá os direitos para todo mundo, os direitos todos iguais. Falta você ter assim, aquela visão e aquela fé, que você consegue. É ralando, é chorando, é sem dormir, mas você consegue. Esse fato assim, é muito bom. Sinto muito orgulho por ter conseguido, de onde eu vim e o que a gente já passou, jamais... Para mim, um prato de comida que eu tivesse era suficiente, eu imaginava assim. Mas, conforme o passar dos anos e as experiências que eu fui tendo na vida, a gente pode ter tanto quanto... E chegar tanto quanto qualquer um que está lá em cima hoje em dia. Uns que têm sorte, os pais já nasceram bem, já te deram tudo, né? Meu sobrinho, eu falo: “Eu posso pagar uma boa escola para você.” Ele não vai precisar passar pelo que eu passei, mas todo mundo pode. Pode e consegue, e se viver honestamente e se tiver fé, coragem, acreditar, que pode. Só que é com luta, de braços cruzados você não consegue.
P/1 - Para terminar, eu queria saber o que você achou de ter contado um pouco da tua história?
R – Olha, eu achei maravilhoso, porque estando nessa correria da vida, a gente vai falando: “Poxa vida, será que eu vivi tudo isso mesmo? Será que eu passei por tudo isso e estou aqui inteira e ainda querendo mais [risos]?” Achei maravilhoso recordar um pouco. Porque a gente bota mais o pé no chão e valoriza mais as coisas, valoriza mais às pessoas, entendeu? Porque quando você vê um caído lá embaixo, jamais deve dar as costas. Se puder, dá uma força, porque se esse vizinho nosso, não pegasse meu pai lá na Estação da Luz e trouxesse para colocar junto com ele, eu não sei o que teria sido nosso futuro. O que teria acontecido? Mas graças a esse homem que hoje, Deus o tenha em bom lugar, ele que nos coletou de lá, pôs dentro da casa dele, não mediu sacrifício, não sabia se ia caber ou não, se a mulher ia aceitar ou não, mas ele colocou a gente. Dali foi o empurrãozinho que a gente precisou. Então, sempre que eu posso, sempre estou ajudando alguém, sempre estou dividindo o que tenho com alguém, sempre gosto assim, de... Por exemplo, eu não falei das comunidades. Nossa, aquilo você vai, aquelas pessoas deitadas lá daquele jeito, você chega com um copinho de sopa bem quentinho, você dá. A pessoa... O outro nem fala nada, só enche os olhos de água, você sofre junto com ele ali também. Puxa vida! Eu falo: “Ele poderia sair daí também, faltou alguém dar uma força, dar um empurrãozinho.”
P/2 - Você já retornou alguma vez à Estação da Luz?
R - Já, sempre quando eu posso, dou uma andada no centro, gosto de passar por ali, dar uma olhada, você vê aquelas pessoas: “Ai, Jesus, eu já estive aqui, meu Senhor. O Senhor me tirou, tira eles também? Mostra alguém que possa dar uma força! Eu não posso ajudar todo mundo, que eu não tenho condições. Ajuda eles também, bota alguém no caminho deles também.” E a gente vai e eu agradeço muito o Grandioso Senhor. E foi através desse sofrimento todo, que a nossa família, que conhecemos o evangelho, que a gente era católico né? Não tem nada contra, que a gente já viveu o catolicismo, mas foi através do evangelho que a gente aprendeu a ter mais força, conhecer mais a Bíblia, e a gente via que podia também. Aí foi melhorando cada vez mais. Nenhum da família bebe, fuma, porque procurou todo mundo seguir o caminho certo. Vícios, bebida, cigarro, isso não traz bem para ninguém. E graças a Deus a gente vive tranquilo. Essa nova geração que está vindo agora, a gente está levando pelo mesmo caminho. Vemos o desenvolvimento deles também. Vou sair, saio despreocupada, porque sei onde estão, os caminhos que estão. A gente fica tranquilo, graças a Deus. No mundo violento que a gente vive, crítico mesmo, se você souber fazer a pessoa ter amor de Deus no coração, você pode... Ele aprendeu isso, a criança aprendeu isso, pode soltar ela à vontade que ela sabe se livrar do mal.
P/1 e P/2 – Muito obrigada! Muito obrigada mesmo!
R - Fico feliz também de poder participar de alguma coisa, porque é a primeira vez que alguém para e ouve. Às vezes as pessoas só olham para você: “Ô Valderez, você comprou seu carro. Ô Valderez, tem sua casa. Ô Valderez, o sapato que você está hoje!” Mas ninguém sabe quanto me custou para chegar até aqui, para comprar. E se eu tenho, a pessoa também poderia ter. Então, ninguém nunca parou... Nem em casa mesmo, a gente nunca para e revive as histórias da gente. Eu acho que já está na hora de fazer isso, sabia? Com os meus baixinhos [risos].
P/1 e P/2 – Obrigada.
R – Eu que agradeço.
[Voz de homem] Faz uma pergunta para ela, para mim...
P/1 – Fazer uma pergunta?
[Voz de homem] Só para gravar assim. Como se estivesse realmente gravando.
P/1 – Essa pergunta que eu fiz do sonho, você já falou do futuro, mas se você ainda tem algum outro sonho que você gostaria de comentar?
R - É o que eu falei do meu sonho, é realizar esse sonho de ser mãe um dia, que todo mundo fala que é tão maravilhoso. Para mim, o amor que eu sinto por aqueles meus pimpolhos é o amor de mãe verdadeiro. Não sei se existe outro amor, é diferente da mãe de verdade.
---FIM DA ENTREVISTA---
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