Conte Sua História - Vivências LGBTQIAPN+
Entrevista de Roberto Bete
Entrevistado por Bruna Ghirardello
São Paulo, 18 de setembro de 2023
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PCSH_HV1408
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(0:24) P/1 - Roberto, para começar eu queria que você dissesse seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R - Meu nome é Roberto Bete. Nasci em São Paulo, capital, no Hospital Santa Casa, em Santa Cecília, no dia dois de maio de 1990.
(0:45) P/1 - E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Não! Minha mãe nunca falou em detalhes como que foi, porque eu sou de uma família de cinco irmãos, então quando eu nasci ela já tinha três meninas, tudo meio que escadinha.
Acredito que foi uma grande loucura a vida da minha mãe e do meu pai, mais da minha mãe, porque eles vêm de uma construção patriarcal; a sobrecarga era toda dela, então ela não tem muitos relatos. Mas eu já cheguei a perguntar para o meu pai e para minha mãe como foi o meu nascimento e o que o meu pai falou foi que eu fui muito aguardado, que eles ficaram muito felizes quando ficaram sabendo que eu já era um serzinho ali dentro da barriga dela e que ele ficou muito feliz ao saber que eu estava vindo. Mas o dia do nascimento, mesmo, não sei como foi.
(1:47) P/1 - E qual a primeira lembrança que você tem da infância?
R - Olha, é bem difícil, porque eu não sei o que aconteceu comigo, eu sofri meio que um apagamento sobre a minha infância.
Eu tenho alguns flashes assim, bem leves de uma casa que a gente morava em Cabreúva. Era uma casa bem bonita e tinha um gramado, tinha uma área externa bem grande e nessa área externa tinha um playground, tinha uma casinha lá, tinha brinquedos, enfim. Eu lembro muito desse playground, não lembro exatamente de mim brincando nele, mas eu tenho a imagem dele e do momento da infância que foi ali, que eu era do tamanho que eu era, mas a lembrança que eu tenho são pequenos...
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Entrevista de Roberto Bete
Entrevistado por Bruna Ghirardello
São Paulo, 18 de setembro de 2023
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PCSH_HV1408
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(0:24) P/1 - Roberto, para começar eu queria que você dissesse seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R - Meu nome é Roberto Bete. Nasci em São Paulo, capital, no Hospital Santa Casa, em Santa Cecília, no dia dois de maio de 1990.
(0:45) P/1 - E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Não! Minha mãe nunca falou em detalhes como que foi, porque eu sou de uma família de cinco irmãos, então quando eu nasci ela já tinha três meninas, tudo meio que escadinha.
Acredito que foi uma grande loucura a vida da minha mãe e do meu pai, mais da minha mãe, porque eles vêm de uma construção patriarcal; a sobrecarga era toda dela, então ela não tem muitos relatos. Mas eu já cheguei a perguntar para o meu pai e para minha mãe como foi o meu nascimento e o que o meu pai falou foi que eu fui muito aguardado, que eles ficaram muito felizes quando ficaram sabendo que eu já era um serzinho ali dentro da barriga dela e que ele ficou muito feliz ao saber que eu estava vindo. Mas o dia do nascimento, mesmo, não sei como foi.
(1:47) P/1 - E qual a primeira lembrança que você tem da infância?
R - Olha, é bem difícil, porque eu não sei o que aconteceu comigo, eu sofri meio que um apagamento sobre a minha infância.
Eu tenho alguns flashes assim, bem leves de uma casa que a gente morava em Cabreúva. Era uma casa bem bonita e tinha um gramado, tinha uma área externa bem grande e nessa área externa tinha um playground, tinha uma casinha lá, tinha brinquedos, enfim. Eu lembro muito desse playground, não lembro exatamente de mim brincando nele, mas eu tenho a imagem dele e do momento da infância que foi ali, que eu era do tamanho que eu era, mas a lembrança que eu tenho são pequenos flashes, como também de algumas vezes que eu fui acampar com meu pai. Meu pai levava nós todos, já eram cinco nessa época e ele levava a gente para acampar na Praia da Formiga - se eu não me engano, é litoral sul daqui. Eu me lembro muito porque o meu pai sempre foi muito metódico, sempre foi cheio das novidades, ele sempre estava por dentro do que era novo. E quando ele levava a gente para acampar, sabe aquelas fitinhas de LED que você quebra e elas ficam brilhantes? Ele fazia colar daquilo, fazia pulseira. Ele enfiava assim na gente, a gente parecia um ponto de referência na praia, porque ele falava que tinha que colocar aquilo para não perder a gente de vista.
Era legal porque também era muito gostoso, ia a família inteira. Ele tinha todos os equipamentos de acampamento; a barraca era gigante, tinha mesa, tinha muitas coisas. Acredito que é o mais forte que eu tenho da minha infância, mas é uma infância que eu devia ter já uns dez, onze anos, entende?
(3:37) P/1 - E qual o nome dos seus pais?
R - Antônio Bete Neto, e minha mãe é Maria Lúcia de Souza.
P/1 - E o que eles faziam, ou fazem?
R - Naquela época… Meu pai sempre foi um empreendedor, tanto que ele é conhecido como Rei do Lançamento, aqui na [Rua] 25 de Março. Ele criava coisas, fabricava, e quando não tinha máquina para fabricar no Brasil, ele mandava fazer de fora, trazia e fazia acontecer o negócio. E não tinha dinheiro, tá! Não tinha dinheiro, não era rico, mas não sei como… [Qual] a arte que ele tinha lá, ele conseguia montar uma empresa do zero, uma fábrica do zero e fazer a ideia dele acontecer.
Ele sempre foi um grande sonhador, meu pai. Minha mãe acompanhava ele em tudo, então a minha mãe era a parceira dele ali. Tudo que ele falava: “Isso aqui vai dar dinheiro, vamos fabricar para vender”, ela acompanhava ele, ajudando ele a trabalhar, fabricar. E nessa onda todos nós entramos também.
Ele já fabricou cavalete de quadro… Aquele bonequinho do dinossauro, Baby Dinossauro, ele que inventou aquele brinquedo. Nem existia plástico injetável no Brasil, [foi] ele que trouxe essa máquina para cá. Aquela mola maluca? Foi ele que inventou aquilo.
Meu pai é um gênio e sempre foi um sonhador, então ele sempre estava se aventurando. Ganhava muito dinheiro, mas com uma péssima administração, logo ele perdia tudo, e a gente ficava oscilando nesses altos e baixos aí.
(5:25) P/1 - E você sabe como eles se conheceram?
R - Sei, eles contaram essa história para mim. O meu pai trabalhava numa oficina de mecânico, ele era ajudante. Minha mãe veio para cá, ela morava em Pernambuco e veio para cá muito nova, acho que ela tinha quatorze, quinze anos. Veio morar com o irmão dela, porque lá onde ela morava estava bem precária a situação e aqui todo mundo acreditava que ela ia poder ter uma condição melhor de vida, uma oportunidade a mais.
Ela sofreu um pouco na casa desse irmão, justamente por conta de toda essa situação machista que vinha… Era uma família nordestina, de sítio; o irmão bebia também, então ela passava dificuldades mesmo lá, como mulher, como pessoa.
Quando conheceu meu pai… Ela sempre passava na frente da oficina que ele trabalhava, porque era a caminho da casa dela. Ele via ela passando, minha mãe era muito bonita - é até hoje! Inclusive, ela é confundida até com as minhas irmãs, de tão linda que a minha mãe é. E ele ficava paquerando ela nessas passadas dela lá na frente da oficina.
Um dia rolou deles se conhecerem, se falarem e foi tudo muito rápido. Parece que na mesma semana ele foi lá na casa do meu tio e já falou: “Ó, quero ficar com ela! Quero namorar com ela! A gente está apaixonado.” Foi tudo muito rápido, eles se casaram muito rápido. Parece que foi meio que um amor à primeira vista, os dois ficaram muito apaixonados, tanto que foi muito rápido que aconteceu.
(7:03) P/1 - Você estava contando que você tem irmãos. Quantos são? Quem são? Como era a relação com eles na infância?
R - Sim. Eu tenho quatro irmãos. A mais velha é a Paola, ela tem dois filhos hoje - a Natália e o Alexandre, são os meus dois sobrinhos. A Natália, inclusive, é a neta, sobrinha, tudo mais velha, foi a primeira que veio. Eu tenho uma ótima relação com ela, sempre tive uma ótima relação com minhas irmãs, as três.
Depois vem a Priscila, que tem o Pedro Henrique, tem um filho, já maior de idade também. E [tem] a Carol, que é a mais nova das três. A Carol tem quatro filhos, tem dois meninos mais velhos e tem duas meninas, que são crianças ainda.
As três sempre foram um porto seguro para mim. Eu nem considero elas só como minhas irmãs, porque elas são irmãs-mãe para mim e para o meu irmão. Os meus pais se separaram [quando] eu tinha nove anos, inclusive… Exato, aquela memória da praia foi antes dos meus nove, porque a conta não fecha; com nove meus pais se separaram, então eu era muito mais novo do que nove anos. Meu pai e minha mãe se separaram quando elas eram adolescentes ainda, nem maiores de idade elas eram ainda.
Elas tiveram que começar a trabalhar, porque meu pai… A gente morava em Taubaté, o meu pai veio embora para São Paulo e deixou minha mãe lá com a gente. E minha mãe é analfabeta, não trabalhava, trabalhava para ele, então quando ele foi não sobrou nada. As minhas irmãs tiveram que amadurecer muito rápido para dar conta de mim e do meu irmão e da minha mãe também, obviamente. E delas também.
As três para mim são um exemplo de mulheres. Quando eu falo delas eu me emociono, porque elas são extremamente guerreiras, é delas que eu tiro muita força vital e como eu posso dizer… Tem que dar certo! Por elas, sabe? Por elas!
Depois vem meu irmão. A gente tem onze meses de diferença, tanto que quando eu faço aniversário, a gente fica um mês com a mesma idade, e é sempre uma briga por causa disso. Eu e meu irmão, a gente sempre… Na infância, a gente era inimigo. A gente se matava assim, num nível hard mesmo. A gente se odiava, coisa de irmão mesmo, de rivalidade, da mesma idade, porque o que ele ganhava era melhor do que o meu, porque ele podia fazer aquilo que eu não podia. Aquela rivalidade louca. Mas hoje a gente se ama, depois de adulto a gente… Ele tem uma filhinha… Ele tem duas filhas e dois filhos adotivos, então ele tem quatro filhos. É um paizão, tenho muito orgulho dele e a gente se dá superbem, inclusive eu sou padrinho de uma das filhas dele.
A gente sempre se deu muito bem, a gente sempre foi uma família muito unida, isso por conta do meu pai. Meu pai sempre criou a gente para um defender o outro, tanto que… É até um absurdo falar, mas se uma apanhasse na rua, as três apanhavam em casa, porque [ele dizia]: “Como assim, você não defendeu a sua irmã?” Ele criava a gente mesmo para ser uma gangue, ninguém mexe com a gente, tá fechado aqui, então a gente sempre foi muito unido. Tanto que até hoje, como adultos… A gente tem vidas bem diferentes, a vida fez com que cada um caminhasse, trilhasse um lugar diferente. A gente pode brigar, pode discutir, a gente se desentende, só que a gente ainda é muito unido. Na necessidade a gente se junta de um jeito, com uma força… Pode estar um virado com o outro, que não interessa, naquele momento ali. É isso, sabe? Essa coisa mesmo de família, que reina.
(11:18) P/1 - Você chegou a conhecer os seus avós?
R - Conheci a mãe do meu pai, tive pouquíssima convivência com ela, e com os avós da minha mãe também, tive pouquíssima convivência. Mas da minha mãe eu conheci o meu avô e a minha avó, mas muito pouco. Eles eram de Pernambuco e minha mãe… A gente morava aqui em São Paulo, então a gente viu eles pouco, pouquíssimas vezes. Eu nunca tive um laço afetivo com eles, nem com a parte da minha mãe, nem com a parte do meu pai, só que cheguei a conhecer.
(11:55) P/1 - Você tava falando que você morava em Taubaté quando você era pequeno. Como é que foi essa… Você nasceu em São Paulo, aí se mudaram? Como foi isso?
R - Ah, meu pai sempre foi muito ciganão. Eu morei em Taubaté, é uma das cidades que a gente morou. A gente morou em Pernambuco já, a gente morou em Boituva, em Cabreúva, em Cerquilho, aqui no interior de São Paulo, em vários lugares. A gente ia se mudando, justamente por essa questão do meu pai que [era] muito sonhador, então ele tinha as visões dele de negócio e falava: “Vamos para lá, porque lá que tá o dinheiro.” Ele pegava a família inteira e ia atrás do sonho dele. E a gente ia, ia todo mundo junto.
Taubaté foi uma das coisas dele. Ele queria ir para o interior, montar um restaurante e a gente foi, fomos todo mundo na bagagem aí. Ele montou o restaurante lá, teve dois restaurantes de muito sucesso e a gente viveu lá por um bom tempo. Eles se separaram e a gente continuou morando lá. Eu só fui sair de lá com quinze anos - quinze não, dezesseis anos.
(13:09) P/1 - E você veio para São Paulo?
R - Não! Daí eu fui para…. Ai, foi uma loucura.
Eu vim para São Paulo. Eu morei com todas as minhas irmãs já, porque quando eu tinha quinze anos, descobriram a minha sexualidade. Quem descobriu, inclusive, foi o marido da minha irmã Carol.
Era na época do Orkut, MSN ainda. Eu estava aqui na casa da minha irmã em São Paulo, mas morava em Taubaté. Nesse negócio de MSN, a gente ficava paquerando, namorando, flertando. Eu estava lá no computador, não saía do computador, porque era um vício aquilo, na época.
O banheiro ficava atrás do computador. Meu cunhado foi usar o banheiro e ‘brechou’ assim, pela porta, a tela. Foi ver por que eu não saí do computador. Ele me viu conversando com uma menina e leu a conversa, aí contou para minha irmã, minha irmã descobriu, deu todo aquele rebuliço na família.
Entenderam que eu estava daquele jeito porque era fruto do meio, porque as minhas amizades estavam me incentivando a ser lésbica, e fizeram uma reunião de família. “Então vamos tirar ele daqui, ele vai morar em São Paulo.”
Fui morar com a minha irmã Priscilla primeiro. Vim para cá, me matriculei na escola, fiquei um ano aqui estudando com ela - reprovei esse ano, porque a minha cabeça estava bem confusa. Nessa escola que eu me matriculei, aqui em São Paulo, a primeira amizade que eu fiz foi a Anne, que era uma sapatão, era uma menina sapatão. E daí foi onde… As amizades voltaram, encontrei a galera LGBT da escola e fiz meu grupinho lá, continuou.
Depois disso, fui morar com a minha irmã Paola. E da Paola morei com a Carol e da Carol fui morar com a minha mãe, lá em Pernambuco, então morei com todas.
Fiquei dois anos morando com a minha mãe lá em Pernambuco e voltei para São Paulo. Eu estava com dezenove anos.
(15:23) P/1 - Voltando um pouquinho para sua infância, tem algum cheiro, algum gosto ou alguma data comemorativa que lembra essa época?
R - Tem! Bolo de abacaxi com ameixa, porque era os aniversários que a gente fazia. Tinha uma moça, que inclusive é madrinha da minha sobrinha Natália… Ela que fazia os bolos da gente. Ela queria presentear a gente de algum jeito; ela dava os bolos, ela era boleira, e o bolo da festa era o de abacaxi com ameixa, então esse bolo é marcado, bolo de abacaxi.
Tem outros, mas é que agora não vou conseguir lembrar. Mas tem momentos que a gente está, sei lá, passando numa rua, que a gente tá num restaurante, que a gente coloca… Chama-se comfort food, o nome disso. Quando você sente aquele perfume, aquele cheiro, quando você sente aquele sabor, você desperta. Mas agora, nesse momento, o que marca mais é esse bolo de abacaxi.
(16:22) P/1 - Na sua infância você contou um pouco como era a casa que você lembrava, mas tinha outras casas que você lembra como era, casas que você passou maior tempo na sua infância? Você lembra como era?
R - Lembro! Aí já vou para Taubaté já, porque lá é onde eu tenho a maior lembrança, tanto que o nome da casa… Chamava-se "casa da Barbie", porque meu pai, quando alugou essa casa, pintou a casa todinha de rosa bebê, azul bebê, verde bebê e amarelo bebê. Tudo era assim, dessa cor, e a galera da rua falava: “Eles moram lá na "casa da Barbie".” Porque ficou a "casa da Barbie" mesmo, ninguém tinha essa cor de casa.
Era bem bonita, essa casa. Era de murinho baixo, casa de interior. Naquela época não tinha perigo, a gente brincava na rua, a criançada ia toda pra porta de casa porque o murinho era baixo, tinha um gramadinho na frente e meu pai não deixava a gente sair de casa, então tinha momentos que a gente podia brincar, mas do portão para dentro; os meninos, nossos amigos e amigas, ficavam do portão para fora. E a gente brincava assim desse jeito, dava o nosso jeito. A mesma coisa pra conversar, minhas irmãs, que eram mais velhas, faziam dessa forma.
Foi bem marcante essa casa, inclusive foi a segunda casa que a gente morou em Taubaté, mas foi a mais gostosa, sabe? Meus pais ainda estavam juntos.
Meu pai sempre gostou de receber gente em casa e aí ele fazia festa e vinham… Nossos amigos aqui de São Paulo iam para lá. Era bem divertido, bem gostoso. Era muito, muito legal, muito bom!
Eu lembro muito da família unida. E foi essa casa, eu lembro bastante disso.
(18:14) P/1 - E do que você gostava de brincar nessa época?
R - Nossa, brincadeira de rua! Lá tinha… Eu aprendi a jogar taco lá, não sei se aqui em São Paulo tem isso. Coloca duas garrafas, aí joga o taco… “Mula, mula, quem peida pula” em que [se] encurva as costas, aí você tem que bater nas costas e pular a pessoa. Pega-pega, esconde-esconde, eram essas brincadeiras de rua que a gente brincava lá. Brincava muito, nossa, passava o dia inteiro na rua brincando, às vezes.
(18:46) P/1 - Roberto, quando você era pequeno, tinha alguma profissão que você pensava “quero ser isso quando crescer”? Ou não passava isso pela sua cabeça?
R - Olha, na minha brincadeira de RPG com meu irmão… A gente brincava muito de RPG e eu ficava nervoso com ele, porque no RPG ele tinha um Fusca, morava numa casa simples no bairro. E eu sempre quis… Eu tinha um Mustang, eu lembro, eu tinha um Mitsubishi Eclipse Spyder, o meu carro do jogo era esse.
Uma profissão mesmo não tinha, mas eu sempre vislumbrei uma vida confortável, sempre imaginei essas coisas que a gente vê em filme mesmo, em TV. Uma vida… Luxo! Mas de profissão mesmo que eu me recordo, era veterinária, porque eu gostava muito de animais. Eu acho que toda criança, por um momento, vai querer ser veterinária, né?
(19:59) P/1 - E na escola, como foi? Qual é a primeira lembrança da escola que você teve?
R - Bom, a primeira lembrança da escola, mais marcante… Se eu tentar buscar a primeira, é uma briga; foi uma briga para defender uma prima minha, a Bárbara. Ela era bem pequenininha e uma menina bateu; elas brigaram, deu um tapa na cara dela. Eu lembro que fui lá para resolver essa briga, eu olhei para menina e falei assim: “Olha, você tá vendo… Olha pra sua mão!” Ela olhou. “Olha para minha. Qual é a maior, a minha ou a sua?” “A sua!” “Então se você bater na minha prima de novo é a minha mão que vai na sua cara.” Eu lembro que eu falei desse jeito, e a menina nunca mais mexeu com a minha prima.
Hoje eu sei tudo isso, mas foi a forma que naquela época eu tinha de me defender. Foi o que eu aprendi, enfim. Mas é isso.
Lembro também muito das festinhas que tinha, que meus pais iam assistir.
Engraçado, isso. Eu nem lembrava disso antes de sentar aqui, essa memória… Nem lembro quando isso passou na minha cabeça. Uma festa que era sobre borboletas e eu era a borboleta azul e a frase da borboleta [era] “borboletas azuis são”…. E agora, meu Deus, tá aqui. Deu um breve esquecimento, mas eu lembro o que é que falava. Estavam meu pai e minha mãe no dia, nessa plateia, assistindo. E foi muito legal ver eles lá. Foi muito legal, porque eu estava muito nervoso, a gente tinha passado a semana inteira fazendo a fantasia da borboleta e a dedicação era que a fantasia ficasse linda para os nossos pais verem. E foi isso! Estavam os dois lá, os dois foram assistir à minha apresentação.
(21:54) P/1 - Você lembra do que sentiu quando você viu eles lá?
R - Não sei descrever, mas eu lembro que eu fiquei muito feliz. Fiquei muito feliz e nervoso, porque eu queria estar perfeito ali, queria que eles me elogiassem muito, sabe? Porque eles sempre fizeram isso de elogiar. Iam lá na escola, nas reuniões, ouviam coisas boas e aí tinha a competição do meu irmão. Do meu irmão, só ouviam coisa ruim: “Porque esse menino dá muito trabalho, porque ele não faz isso, não faz… E quando iam à minha reunião, era maravilhoso, só davam elogio e tudo mais. Rolava essa competição de irmão, mas também era essa questão de ser elogiado, de ser reconhecido. E nesse dia era essa sensação, que eu queria que eles me elogiassem muito.
(22:45) P/1 - E na escola tinha alguma matéria que você gostava mais, ou algum professor que foi marcante?
R - Teve! Teve uma professora de Biologia, eu não lembro o nome dela, mas eu me recordo exatamente da fisionomia dela. Essa professora de biologia, eu acredito que foi a minha primeira paixão, foi com ela.
É muito doido, porque por muito tempo eu não entendia o que eu sentia. Eu ficava dividido entre admiração, “eu quero ser como ela”, e ao mesmo tempo de admiração por mulher, “ai meu Deus, queria que ela fosse minha namorada!” Não tinha maldade, porque eu era bem criança, mas tinha esse rolê de ser como meu pai e minha mãe, sabe? Tipo isso!
Essa professora de Biologia foi muito marcante na minha vida, porque nas aulas dela eu sempre sentava na frente, eu sempre queria tirar notas boas para ela me elogiar. Eu tinha uma paixão por ela, sei lá, um fanatismo. E eu amava Biologia por causa dela, não era porque eu gostava, tanto que hoje eu nem sei nada de Biologia, mas na época eu era muito bom, queria estudar Biologia por causa dela.
Ela foi assim… Hoje eu entendo o que foi ela na minha vida, essa professora, mas na época ainda era muito confuso para mim.
(24:15) P/1 - Você contou um pouco… O que mudou na sua adolescência?
R - Como assim, o que mudou?
P/1 - Na sua vida, o que mudou quando chegou a adolescência? Mudou alguma coisa?
R - É! Porque aí a gente pensa, qual foi o momento que sai de criança para virar adolescente? Eu não sei fazer uma linha do tempo disso, o que mudou na adolescência. Talvez a adolescência chegou com essa cobrança de ter que beijar na boca, sabe? E essa cobrança chegou muito forte. “Ah, você precisa beijar! Ah, você precisa ficar com alguém! Porque você não sabe beijar.” Tanto que…
Olha, que loucura. Eu tinha uma amiga que era a melhor amiga; ela morava na rua dessa "casa da Barbie", morava lá no final, e na frente tinha o Gabriel, que era o nosso amigo. Eu e o Gabriel, a gente disputava quem chegava primeiro na casa da Kaká, porque quem chegasse primeiro na casa da Kaká era o melhor amigo da Kaká. Era uma competição de quem era mais amigo da Kaká. A Kaká para nós era tipo… Meu Deus, é a Deusa!
A Kaká falava: “Você tem que beijar na boca.” Tinha um menininho na rua que eu gostava dele e ela falou: “Mas como você vai beijar ele se você não sabe beijar? Eu falei: “Pois é. E agora, como a gente vai fazer?” “Então você vai beijar o Gabriel. Eu vou ensinar vocês a beijar e daí você beija.”
Era… Qual era o nome do menino, meu Deus? Era Rômulo, não sei! Era um nome diferente. Eu falei: “Mas, meu Deus, eu vou ter que beijar o Gabriel!” Aí ela falou: “É, mas você vai beijar só um beijo técnico, de novela. Eu vou estar aqui te falando o que você vai ter que fazer.” Falei: “Tá certo, então vamos!” “Mas olha, a gente não pode deixar o meu pai ver, então vamos fazer à noite”.
Ela tinha um corredorzinho do lado da casa dela que não pegava luz, então a gente ficava ali. “Vamos lá para o corredor”. E aí foi! A gente foi lá para aprender a beijar. Ela ficou do nosso lado. “Põe a língua aqui! Não, olha, fecha mais a boca. Não, faz isso!” Ficou dando a aula da gente do beijo, sabe? Foi muito engraçado! Hoje eu lembro disso e dou risada.
Esse treino durou três dias. Depois desse treino, ela falou: “Acho que você está preparado para poder beijar ele. Vamos fazer um esquema para você beijar ele.”
Eu não sei com quem ele falou… Eu lembro que ele tinha uma bicicleta, uma cross. Na época eram bem famosas, essas cross, para fazer manobra e tal. Ele ficava com essa cross para cima e para baixo, esse menino.
Ela falou que eu era apaixonado por ele, queria ficar com ele. “Menina, eu não sou apaixonado, não sou apaixonado por ele!” Ela falou: “Eu só falei isso para ele querer ficar com você.” Falei: “Tá certo!”
Eu sei que fui ficar com esse menino, gente! Ela meteu um monte de bala na minha boca. “Chupa essa bala aqui, faz o treinamento com gelo.” Aí me deu um copo com gelo. “Olha, fica fazendo o treinamento. Quando chegar a hora eu vou te dar um sinal aqui, você desce a rua.” “Tá certo!”
Eu fiquei lá na casa dela, fazendo o treinamento. Ela vai: “Tá pronto!” “Tá pronto?” E aí eu desci a rua. Ele estava lá esperando. “Meu Deus, o que eu vou fazer?”
Eu sei que ele me pegou, me encostou no muro e começou a beijar. Foi o beijo mais horrível da minha vida, era melhor ter continuado beijando o Gabriel, porque o beijo dele foi tão ruim, tão ruim! Era uma língua gelada, dura. Horrível! Tinha um gosto salgado, era… Nossa, a memória que eu tenho desse beijo é horrível, horrível!
Beleza, aí eu falei: “Não, gente, eu não quero mais beijar ninguém! Acho que eu não gosto de beijar mesmo, beijar não é pra mim.” Daí a gente continuou na amizade.
Gabriel hoje é gay - hoje não, faz muito tempo que ele é gay.
Esse negócio de beijar na boca continuou também na escola, quando eu cheguei na oitava série, mais ou menos. Minhas amigas ficavam cobrando, também: “Por que você não fica com ninguém? Por que você não beija ninguém?” Era essa cobrança, sabe? Eu lembro que eu acabava ficando com os meninos, para ter que provar que eu estava pegando alguém. Era isso.
Acho que o que mudou mais na adolescência foi essa cobrança, de ter que estar provando algo para alguém o tempo inteiro.
(28:27) P/1 - E o que você fazia para se divertir nessa época?
R - Da adolescência? Olha, eu gostava muito de brincar na rua, ainda continuava brincando na rua, mas dos quinze anos para a frente comecei a jogar bola. E esse jogar bola virou a minha vida, porque eu chegava da escola correndo, pra comer, fazer minha mala e ir para o treino.
Eu comecei a jogar bola no time da cidade de Taubaté. Treinava no campo de tarde, [quando] saía do campo ia treinar futsal. Isso todo dia. E no final de semana tinha rachão, que a gente pulava o muro da escola para fazer um rachão com o pessoal que morava lá no bairro.
A minha diversão era essa, era jogar bola. Eu era fominha de bola.
Foi lá que eu comecei a conhecer as sapataiada, as meninas - LGBT chama assim mesmo, chama viado, chama gay, chama sapatão. Eu posso falar. Foi lá que eu comecei a conhecer as meninas LGBT da cidade, o movimento LGBT estava dentro do futebol, e daí fui descobrindo outras coisas.
Comecei a me divertir de outras formas. Começou a rolar um churrasco. “No domingo, vamos fazer um churrasco do time.” Ia para o churrasco do time, foi onde eu comecei a beber. E daí as formas de diversão começaram a mudar. Continuou o futebol, mas a gente começa a perder essa questão de querer brincar na rua, de empinar pipa. Aí foi para outro lado, já foi para querer flertar, para querer beber mesmo, essas coisas.
(30:10) P/1 - E você já tinha percepção… Nessa época, você começou a ter percepção que você gostava de mulheres?
R - Nessa época eu conheci a Rafa e a Carol. A Rafa era do time de futebol. Elas moravam bem pertinho da minha casa. Elas tinham uma prima e essa prima delas era muito para frente e muito… Como eu posso dizer? Sem papas na língua. Ela falava mesmo. Quando eu conheci essa prima delas, ela começou a falar: “Você é sapatão! Eu sei que você está escondendo que você não é.” Eu ficava brigando com ela, falando que eu não era sapatão. E aí a gente ficava nessa discussão, porque ela dizia que eu era sapatão e eu falava para ela que eu não era sapatão.
Aquilo começou a me incomodar de uma forma diferente. Eu falei assim: “Mano, será que eu sou sapatão?” Porque é verdade. Comecei a analisar meus sentimentos, analisar a forma que eu olhava as meninas do futebol, tanto que eu tinha uma paixãozinha pela Suzane. A Suzane, meu Deus, ela era zagueira do time. Era uma loira de olho azul, gigantesca. Nossa, eu tinha uma paixão pela Suzane! Ela tinha uns óculos… Eu queria comprar um óculos igual o dela, para ficar igual. Queria ser estiloso pra ficar igual a ela, chamar a atenção dela de alguma forma. E daí eu fiquei: ‘Nossa, é mesmo. Será que eu sou sapatão?”
Quando eu comecei a ter essa consciência, ter esse pensamento, foi a hora que começaram a se criar os conflitos dentro da minha cabeça, sabe? Tipo “caramba! Eu sou lésbica, eu sou sapatão, Deus não vai gostar de mim.” Entra essa noia religiosa.
Foi um tempo que eu meio que me recolhi com essas minhas questões internas, para me aceitar. Ficava me autocastigando: “Porque eu não mereço, por que isso?” Dormia e falava: “Deus, por favor, faz com que eu acorde amanhã e tire isso da minha cabeça. Faz eu me apaixonar pelo homem mais feio que existe, pode ser o mais feio”, eu falava, “mais feio que for, mas me faz me apaixonar por um homem, pelo amor de Deus!”
Isso passou rápido. Aceitei. E eu aceitei no show da Pitty - da Pitty não, da Luana Camarah, que inclusive participou do The Voice e é de Taubaté. Na época, a Luana Camarah não era tão famosa, mas ela fazia uns showzinhos nos ‘pubzinhos’, nos barzinhos de lá; ela era a rainha da ‘sapataiada’ da cidade.
Num show dela, ela tocou Pitty, aquela música, “quem não tem teto de vidro que atire…” Essa música! Daí ela se juntou com as minhas amigas e a prima dessa minha amiga ficou falando: “Meu, você tá viajando, aceita”, não sei o quê. “Tá certa, é verdade!” Aí eu abri o coração.
Eu já tinha tomado uns vinhos - na época a gente tomava aqueles vinhos de galão de cinco litros, sabe? Aquilo era terrível! E daí eu, já muito bêbado, falei: “É verdade!” Comecei a chorar. Dali para frente, só foi para trás.
(33:21) P/1 - Você estava contando que o seu cunhado acabou sabendo disso e que isso gerou de certa forma algum conflito na sua família. Como foi para você esse momento?
R - Olha, eu me senti muito exposto, sabe? Eu me senti com medo, com muito medo, porque as minhas irmãs, meu pai, minha mãe, eles nunca tiveram um contato tão grande [com] alguém da família que fosse LGBT. Eu era o primeiro. E eles sempre foram muito preconceituosos, pela construção toda que vem do meu pai, dos meus tios, dos meus avós, sei lá de onde vem isso.
Eu tinha medo de, sei lá, apanhar, medo de ser rejeitado, não sei. Foi bem ruim! Eu fiquei envergonhado, muito envergonhado. Lembro que eu senti muita vergonha, porque eu achava que era uma coisa muito errada, sentia muita vergonha de mim. Mas por mais que minha família seja preconceituosa e tudo mais, tudo isso que ela fosse, eu acho que eles conseguiram conduzir de uma forma bem bonita, pelo amor que eles sentem por mim. Eles fizeram da forma que para eles era certo naquele momento e me acolheram, tentaram de diversas formas… Se fosse por amizade, teria dado certo a técnica deles, mas não é sobre isso.
Então foi isso, eu me senti dessa forma. Demorou um tempo ainda para eu conseguir ter esse empoderamento, de falar quem eu sou, porque esse assunto era muito criticado, toda vez que ele vinha, então meio que acontece o quê? Eles descobriram, mas botaram numa gavetinha lá, sabe? Ninguém mexia naquele assunto.
(35:29) P/2 - Como foi a mudança para Pernambuco? Como foi esse momento de mudanças? Você contou que se mudou várias vezes.
R - Olha, fui para Pernambuco porque a minha mãe já estava morando lá e eu fiquei morando em Taubaté com o Zeca, que era o ex-marido da minha mãe. Isso é uma loucura! Tinha feito todo esse rolê aí, voltei para Taubaté. E a Paula também morava lá. A gente falou assim: “Meu, não tem como a gente continuar morando aqui, porque minha mãe não mora mais aqui, ele não é nosso pai.” Por mais que ele tenha feito um papel gigantesco, sei lá! A gente achou que a gente tinha que sair também.
O que me motivou a sair de lá também foi a minha primeira paixão por uma mulher que se chama Larissa, foi meu primeiro amor. A gente namorava e a Larissa me traiu com uma amiga minha. Eu descobri e sofri, menina do céu, como eu sofri por causa dessa Larissa. E era um sofrimento que eu não conseguia mais sobreviver, praticamente. Foi horrível! Aí eu falei: “Eu vou embora, vou morar com a minha mãe e assim eu vou esquecer dela.” A técnica foi essa, era essa a intenção.
Eu fui para lá, fui para Pernambuco, Caruaru. Continuei sofrendo em Caruaru, eu não conhecia ninguém. Minha vida era assistir série. Minha mãe fez uma conta para mim, tinha uma locadora do lado; eu alugava todas as séries, passava a madrugada assistindo séries. Já não ia para a escola, já tinha… Nem tinha me formado ainda, mas parei de ir para escola, no segundo ano. E vivi nesse buraco aí, desse luto, desse término.
Depois de mais ou menos uns seis meses vivendo nesse luto, conheci a Carol, que é uma vizinha da minha mãe, lá em Caruaru. E a Carol é sapatão. Aí pronto, depois que eu conheci a Carol, esquece! Daí me levou para as festas, me fez conhecer a galera toda, aí já era.
Dei tanto trabalho para minha mãe em Caruaru, meu Deus do céu, que ela me botou para fora de lá. Ela falou: “Comprei a sua passagem. Você vai embora, vai morar com as suas irmãs.” Eu dei tanto trabalho, que eu saía na segunda, voltava na quinta-feira; ela não sabia nem onde eu estava. Nossa, eu dei muito trabalho nessa época.
(37:55) P/1 - E esse momento de voltar para cá, como foi? Você aceitou de boa?
R - A princípio, não, porque eu senti… Eu achava que ela estava me trocando pelo namorado. Ela tinha conhecido um cara lá que está até hoje com ele, o Carlos, que é marido dela hoje - um maridão para ela, inclusive, trata ela super bem.
Na época eu morria de ciúmes dele. Eu tinha raiva dele, achava que ela estava me trocando por ele, entendeu? Mas hoje eu entendo que não, realmente ela estava… Eu estava fora de controle e ela não sabia mais como conduzir, então o medo dela, como mãe e tudo mais, [era] medo de acontecer alguma merda. Enfim, na cabeça dela, naquela época, o melhor para mim seria eu estar aqui com as minhas irmãs, que teriam mais controle sobre mim. E foi isso. Mas na época eu me senti assim: “Ela está me mandando embora porque ela está com esse namoradinho aí”.
Hoje eu agradeço a ela [por] ter feito isso, porque se eu tivesse continuado lá, realmente ia dar merda. Aqui foi melhor.
(38:57) P/1 - E como foi a volta? Nesse momento da volta você veio morar aqui em São Paulo?
R - Vim morar com a Carol. Fiquei na casa da Carol, morei com ela lá. Comecei a trabalhar no salão - ela tinha um salão, tem até hoje, nunca mais largou essa profissão. Comecei a trabalhar com ela lá. Fazia agenda, atendia telefone, ia buscar comida.
Com o tempo ela me deu uma moto. Nessa motinha eu fazia umas entregas, fazia… Sei lá, o que ela pedisse eu estava lá, disponível para fazer para ela. Aprendi a fazer escova, aprendi a fazer barba; de vez em quando eu escovava um cabelo, de vez em quando eu fazia uma barba. E foi indo.
Conheci a Tati no salão mesmo e nessas saidinhas de lá por Guarulhos… Foi onde eu fui morar, em Guarulhos. Conheci a Tati, que foi a minha primeira esposa. A gente viveu três anos juntos.
A Tati era uma mulher hétero, tinha acabado de separar de um casamento de sei lá quantos anos, com um cara cis da igreja. Ela era evangélica assim, assídua - a mãe dela, o pai dela, a família dela inteira. E aí ela conhece uma mulher, se apaixona por essa mulher e mete o pé em todo mundo, fala: “Vou viver com essa mulher!” Ela foi corajosíssima. Até hoje a gente é superamigo.
Ela foi muito apaixonada por mim para fazer tudo isso. A gente viveu uma história de amor bem linda também, bem legal e bem libertadora. Foi através da Tati que eu saí de casa, porque minha família não aceitou meu namoro com ela, aí eu falei: “Então tá bom, então eu tô saindo.” Não tinha emprego, trabalhava com a minha irmã, então se eu morava na casa da minha irmã e saí da casa dela, também saí do meu emprego, né? Larguei tudo! E comecei a me virar na vida.
A Tati tinha uma lojinha de açaí e falou assim: “Ah, meu, vamos fazer uns lanches naturais e você sai para vender no carrinho.” E foi isso, cara! Eu fiz isso. A gente fazia um monte de lanchinho natural, suquinho natural, embalava bem bonitinho. Sabe aqueles carrinhos de feira que são laminados? Eu botava uma caixa de isopor ali dentro, botava os lanchinhos lá dentro e arrastava isso até o shopping, vendia para os lojistas lá. Vendia fiado, para eles pagarem no pagamento.
Fui vendendo, fui pagando meu aluguel, comprando o meu colchão, comprando meu fogão, e assim foi indo. A gente abriu outra loja de açaí, aí a gente parou de vender os lanches na rua. A gente ficou com as lojinhas de açaí e vivemos superbem.
(41:42) P/1 - E como foi esse momento de sair de casa, viver a primeira vez sozinho?
R - Foi assustador, foi bem assustador, porque a forma que eu saí foi bem ruim. O que acontece? Eu fui expulso, né? E não pelas minhas irmãs, pela mãe do meu cunhado. Como eu morava com a Carol, minha irmã, ela foi viajar com o marido dela, foram fazer um cruzeiro, e a sogra dela ficou com as crianças, porque o Rogerinho era bebê ainda, era criança, tinha uns dois, três anos. Ela foi para cuidar das crianças.
Eles já sabiam que eu estava namorando com a Tati, já conheciam a Tati, eu já tinha levado à Tati lá para eles conheceram. Eu liguei para eles e falei assim: “Olha, a Tati pode dormir comigo aqui hoje?” Na época eu fazia faculdade e ela também fazia faculdade, a gente saía cedo para estudar. Aí eles falaram: “Tá, pode dormir, tá tudo bem. Ok!” Ela foi lá dormir comigo.
No outro dia de manhã a gente acordou para ir para a faculdade, descemos para tomar café, aí tava a mãe do Rogério lá. Ela viu a gente, olhou com uma cara feia, mal cumprimentou. Beleza, a gente saiu, foi para a faculdade. Quando eu voltei ela estava transtornada, já; ela começou a me xingar de tudo que é nome, coisas bem terríveis, que eu nem vou falar aqui. Na frente dos meus sobrinhos, falava: “Olha lá, Rogerinho, a sua tia, ela faz…” Vários palavrões, várias coisas obscenas. E simplesmente falou: “Eu não quero você aqui, eu não quero você convivendo com os meus sobrinhos.” E foi horrível!
Meu irmão já tinha saído de casa, por uma briga também. Ele morava na mesma rua num quartinho - era um quarto, mesmo, quarto e banheiro, era o que tinha na casa dele. Eu liguei para ele e falei: “É o seguinte: aconteceu isso, isso e isso, meu! Não dá, não posso ficar aqui! Consigo dormir na sua casa aí, ficar uns dias aí até eu ver o que eu vou fazer da minha vida?” Ele falou: “Demorou! Vem para cá! Vem ficar aqui comigo.” Fiquei lá, acho que eu fiquei um mês mais ou menos, na casa dele.
A Tati foi muito parceira também. A Tati me ajudou a alugar uma casa. Não tinha nada, ela tinha um colchão lá, que a gente dormia. Depois disso começou a rolar essa lojinha.
(44:12) P/1 - Você contou da faculdade. Como foi escolher um curso, como foi esse momento da sua vida?
R - Bom, a faculdade… Eu escolhi Engenharia Civil, porque…. Que louco, as figuras masculinas da minha vida foram muito fortes. O Rogério, que é esse meu cunhado… Tanto que antes de eu escolher Engenharia Civil, eu queria ser polícia, tanto que eu prestei até concurso, prestei vários concursos para polícia; estudava para ser policial, queria muito passar, porque ele era policial. Ele para mim era um modelo de homem, de masculinidade, que eu queria ser igual, que eu queria me inspirar. Depois de todo esse atrito que eu tive com ele, a minha admiração por ele foi embora.
Quem que a outra pessoa que eu admirava muito? Era o meu outro cunhado, que é o Marcelo. O Marcelo é engenheiro civil, então… “O Marcelo é um cara legal, nossa, hein? A profissão dele é ‘maior’ legal, ele contava dos projetos dele. Quero ser engenheiro.” E aí fui fazer Engenharia. E é isso!
Eu fui transitando nisso porque o meu pai… Nessa minha fase de entender, quando eu comecei a me ver… Como posso explicar? Até então eu me reconhecia como uma pessoa lésbica, como uma pessoa homossexual, porque era isso que eu sabia que existia. Não sabia que existia a transgeneridade, nunca tinha visto um homem trans. Eu tinha consciência que existia travestis, mas para mim travesti era o quê? Era um homem vestido de mulher. Não tinha essa coisa que a gente sabe hoje da transgeneridade, de mulher trans, homem trans. Para mim era aquilo, não tinha esse lado [de] hoje, então eu meio que me via como uma mulher lésbica, caminhoneira, que fala - hoje tem outros nomes mais modernos, mas na minha época era sapatão caminhoneira. E nessa visão minha, eu tinha que ser o mais parecida possível com um homem, porque era o que me fazia bem, me sentia bem. Eu preciso ser como homem, eu quero pagar as contas de casa, tanto que eu reproduzia toda aquela masculinidade que eu tinha aprendido, sabe? De ser violento, de ser controlador, de tudo isso!
Nessa fase minha, dessa construção de ser homem interno, meu pai não estava presente, então eu não tinha muitas referências do meu pai. Os homens mais presentes na minha vida eram os meus cunhados. Como eu disse, minhas irmãs acabaram virando nossas mães, então os agregados, quando entraram na nossa família, eles também cuidaram da gente, sabe? Por mais peculiar que tenha sido cada um, a personalidade de cada um, eles cuidaram muito da gente.
O Rogério foi um cara superparceiro. Ele ajuda muito a gente, a todos da nossa família. Tenho muita gratidão por ele também, só que hoje eu entendo qual é o modelo de masculinidade dele e é um modelo que eu não quero seguir, mas respeito ele. O Marcelo entrou num outro modelo de masculinidade, que não é tão tóxico assim, mas continua sendo; ele tem uma particularidade, só que era uma coisa mais aceitável, vamos dizer, e aí ele foi a minha próxima inspiração.
(47:43) P/1 - Em que momento você começa a entender publicamente que você é uma pessoa trans?
R - Olha, eu fui descobrir o que era transgeneridade quando eu conheci o Tarso no Programa Pânico, quando assisti ele na televisão. Hoje eu vejo que exposição ridícula que fizeram com ele, que coisa triste. Só que foi necessário. Por mais que tenha sido tudo isso, ele impactou a vida de milhares de pessoas; acredite que eu fui uma delas, porque eu descobri que existia isso. Quando eu olhei ele lá na televisão, falei: “Não é possível!”
Eu lembro que mostraram a CNH dele e era Tereza Brant. Eu olhava, era um homem, mas tem nome de mulher, e aí falava: “Não, nasceu no corpo de mulher, mas agora ele se transformou em um homem.” Eu falava: “Meu Deus, é isso!”
É como se tivesse caído uma pedra na minha cabeça, sabe? Eu era casado com a Tati, eu lembro que a gente estava no quarto quando a gente assistiu. Ela era viciada em Pânico, porque ela queria ser uma Panicat, era o sonho dela ser Panicat. Ela assistia Pânico toda semana. Lembro que a gente estava junto, eu assisti e falei: “Meu Deus do céu, é isso! É isso!”
No outro dia eu cheguei para o meu professor da academia e mostrei a reportagem para ele, mostrei a foto do Tarso. Falei: “Olha, eu sou isso aqui! Eu quero ser isso aqui! Como é que faz? Eu não sei!” Eu pesquisava no Google, não achava informação nenhuma; não tinha médico, não tinha nada que falava sobre o assunto. Ele falou: “Você tem certeza?” Eu falei: “Eu tenho certeza!” “Eu sempre desconfiei que você era diferente.” Falava assim: “Eu sempre fui!”
Eu tinha cabelo curto, já me apresentava com pronome neutro. Eu me apresentava como B, porque não queria muito ficar vinculando minha imagem ao feminino. Eu já usava as roupas, meu guarda-roupa era masculino… Obviamente, não tem masculino e feminino. A forma que eu quero me expressar, de entender visualmente é o que eu tô querendo dizer. Aí ele começou… Nossa, ele foi demais, cara! Ele começou a me hormonizar, sabe? Era hormônio de academia? Era ‘ciclo’ de academia? Era, só que foram as ferramentas que a gente tinha ali, ao nosso alcance. E deu certo. Sei que depois de um ano eu já tinha barba, já tinha… Foi muito rápido!
(50:24) P/1 - E foi nesse momento que você tinha acabado de sair de casa?
R - Não, tinha acabado. Fazia uns dois anos já que eu tinha saído de casa. Mas foi bem na sequência.
P/1 - E com o que que você foi trabalhar depois?
R - Eu continuei trabalhando com comércio. A gente teve o açaí, continuamos com o açaí. Nessa época ainda tinha o açaí, quando eu descobri a minha transgeneridade.
(50:48) P/1 - E como foi seguindo a sua vida?
R - Bom, do açaí… Nossa, foram tantos comércios que eu já tive, gente! Já tive uns quatro CNPJ, fora os informais que eu tive.
Do açaí eu pulei para… Eu terminei com a Tati…. Ah, tá! Terminei com a Tati, fechamos a loja de açaí e fui trabalhar com Uber, fiz Uber.
Foi isso? Não, me desculpa! Tá errado, não foi isso. Quando eu me separei da Tati, a gente fechou a loja de açaí, dividimos as coisas, enfim, e aí beleza, cada um para o seu canto. O que eu fiz? Montei um carrinho de lanche na garagem da minha casa. Eu morava com o meu irmão, a gente dividia o aluguel; tinha uma garagem e montei um carrinho de lanche lá. Comprei uma chapa, uma geladeira e comecei a fazer hambúrguer lá, vender hambúrguer.
Conheci a Jéssica, que foi minha próxima namorada, e a Jéssica me impulsionou para outras coisas, sabe? Nesse meio tempo com a Jéssica, eu saí da hamburgueria. Fui para o Brás, trabalhar com jeans. Fiquei de representante comercial de uma cooperativa de jeans que tinha lá em Toritama, eles mandavam os jeans e a gente vendia lá no box, tanto no box quanto para o pessoal, os lojistas - a gente vendia no atacado, enfim.
Saí dessa cooperativa. A Jéssica entrou de sócia comigo e a gente foi lá para Toritama, compramos um monte de jeans, trouxemos para São Paulo e fomos vender no Brás também. Fiquei um tempo lá, vendendo; não deu certo, eu e a Jéssica brigamos, separamos, acabou o negócio. E aí eu fui fazer Uber. Fiz Uber por um bom tempo.
Nessa loucura da Jéssica, comecei a morar com ela. A Jéssica tinha um padrão de vida totalmente diferente do meu e eu não tinha… Eu era moleque, maloqueiro, sabe? De baile funk. Eu tinha um Voyage 87, pegava esse Voyage e ia para esses forrós. Eu era muito louco, muito louco. A Jéssica é da zona sul, morava nos Jardins; uma realidade de vida totalmente diferente. Ela começou a me apresentar lugares, eu lembro que ela me levou para… Um dia ela me levou para jantar. Nossa, eu lembro até hoje, a conta deu R$ 1.500,00. Quando eu olhei para a conta, falei: “Meu Deus, eu preciso trabalhar o mês inteiro para pagar essa conta.”
Foi bem lúdico o nosso relacionamento, porque nunca tive contato com experiências como essa. A Jéssica chegou, um puta mulherão, eu apaixonado por ela e ela me mostrou toda essa vida assim, sabe? Luxuosa, esse glamour, essa coisa boa. Ela me levou para viajar, me levou… Vixe, fez muita coisa! Acabei vivendo essa paixão. Larguei tudo, parei de trabalhar e fui viver com ela de amor, sabe? Fui viver de amor com ela.
É óbvio que isso não ia dar certo, uma hora isso ia… Não ia dar certo! A gente começou a brigar e enfim, não deu certo. A gente se separou. Nessas separações, ela realmente me botava para fora e “se vira”, sabe? Eu ia para casa da minha amiga, da Vera, era lá o meu abrigo. E ela chegava com… Ela botava minhas roupas no saco de lixo, botava na porta da casa da Vera. “Olha, teu amigo, não quero mais ele na minha casa.” Era assim, e depois a gente voltava.
Eu era muito apaixonado por ela. A gente voltava e era aquele love, construir uma casa do zero de novo. Ela alugava, mobiliava; em dois dias a casa estava pronta. Era assim, uma loucura, mas foi maravilhoso. É uma loucura que hoje eu olho pra trás, puta que pariu, que delícia ter vivido isso também!
Fiquei transitando nisso, em Uber, em jeans, em camelô; pegava roupa e ia vender em barraquinha mesmo, na feira da madrugada, porque quando ela terminava comigo eu ficava sem nada mesmo, não tinha nem onde morar. Morava na casa de alguém. Pra casa da minha família eu me recusava a voltar, porque depois de tudo, sapatão voltar para casa… Que humilhação, eu não aceitava um negócio desses. Eu pedia abrigo na casa dessa minha amiga; ela sempre me deu esse abrigo. [Era] maravilhosa, sempre me ajudou muito.
Depois dessas idas e vindas, a Jéssica falou: “Vamos fazer o seguinte: vou te ajudar.” Ela falou: “O que você quer fazer?” “Olha, eu queria montar a minha hamburgueria de novo, queria voltar a fazer o que eu fazia.” Falou: “Tá bom. De quanto você precisa para abrir a sua hamburgueria?” Fiz uma conta assim… Eu nem sabia como fazer essas contas, fiz meio por cima. “Ah, preciso de R$ 35.000,00.” “Toma, tá na mão, tá aqui o dinheiro, R$ 35.000,00.” Ela me deu esse dinheiro e falou assim: “Abre sua hamburgueria.”
Meu, eu estava num sonho. Era o meu sonho mesmo ter uma hamburgueria, uma loja. Aluguei um ponto, reformei tudo e ficou a coisa mais linda. Fui trabalhar, tanto que essa hamburgueria, ela ficou… Eu fechei ela no ano passado. Vivi esse sonho, dessa hamburgueria. Ficou superconhecida, meu hambúrguer era top, um dos melhores de Guarulhos. Eu mandei muito bem, segui muito certinho nesse negócio.
Eu e a Jessica acabamos nos separando, nunca mais nos vimos. A gente teve um reencontro agora, mas foi só um reencontro. E foi isso, segui na hamburgueria. A hamburgueria só foi fechada depois que o Noah nasceu.
(56:48) P/1 - Nessa época da hamburgueria você morava em Guarulhos, né? O que você fazia para se divertir nessa época?
R - Bom, na época da hamburgueria eu saía muito pouco, mas às vezes eu ia para uma baladinha, para um barzinho. Gostava muito de sair para o parque lá também, correr, fazer um exercício; eu treinava também. Mas eu era bem workaholic, então eu saía muito pouco.
Eu tinha pouquíssima socialização. A socialização que eu tinha era com alguns amigos bem restritos, ali do local, mesmo. Dificilmente saía para algum outro lugar.
P/1 - Você não vinha tanto assim para São Paulo?
R - Não. Na época da hamburgueria, não.
(57:32) P/1 - Entendi. E como você decide ser pai? Como foi esse momento?
R - Nossa, para [tomar a] decisão de ser pai… Foi uma coisa bem longa, sabe? Demorou um pouco.
Até então eu não me relacionava com mulheres trans, eu era superpreconceituoso. Nossa, eu era realmente o padrão do hetero top, eu era esse cara! Foi uma desconstrução que eu fui fazendo ao longo da minha vida, com pessoas que eu fui conhecendo também. E a Uber me possibilitou muito isso, porque ela me introduziu no meio, quando… O primeiro vídeo que eu fiz, que viralizou, foi quando eu falei que eu era motorista Uber e que eu usava meu nome social e meu nome social era respeitado na plataforma, e esse vídeo meio que viralizou. Aí a Uber me convidou para fazer alguns projetos, como imagem, como presença física.
Eu fiz uma mesa com algumas pessoas, tipo Pedro HMC, Liniker, Lorelay Fox. Tinha várias pessoas do movimento LGBT e eu era o caipirão, vamos dizer, de Guarulhos, héterotop. Quando eu sentei naquela mesa, eu fiquei quieto, fiquei calado, porque aquilo, a forma que aquelas pessoas conversavam, a forma que eles falavam e tratavam do assunto era totalmente fora do que eu vivia, da minha realidade; eu só ficava quieto, ouvindo. Falei: “Caramba, gente. Eu tô totalmente fora da caixinha mesmo, que absurdo!”
Nessas conexões que eu fui fazendo ali, a minha mente foi expandido. Eu fui conhecendo outras pessoas trans, fui conhecendo outras pessoas LGBT e aquilo foi me transformando assim, de dentro para fora. Foi quando começou a acontecer a minha primeira… Como eu falo? Desconstrução, para ficar com uma mulher trans, por exemplo. E não foi a Érica, a minha mulher trans, foi a Júlia. Eu estava um dia lá, tinha saído da hamburgueria; eu trabalhava até tarde, a hamburgueria fechava à meia-noite, então geralmente eu chegava em casa às uma e meia, duas da manhã. E eu lá, entediado, triste, ainda sofrendo por causa da Jéssica.
‘Peguei’ o meu Instagram, fui olhar lá, fui ver o que tinha de bom. Aí encontrei com a Júlia, [que] me mandava mensagem, várias mensagens eu não respondia. Nesse dia eu fui: “Vou abrir, vai! Vou responder essa menina.”
Fui olhar o Instagram dela. Olhei, olhei… Falei: “Meu Deus do céu, nossa! Será que é mulher?” Aquele pensamento de homem, enfim. E aí eu chamei, eu respondi. A gente começou a conversar e o papo [foi] fluindo. Eu nem tive coragem de perguntar, nem nada, e aí fluiu. Foi aí que ela falou que ela era uma menina trans e tal. Falei: “Nossa, meu Deus!” Aquele papo, “nem parece”, aquele velho papo de gente cis. E daí foi fluindo o papo, a gente foi conversando, foi se interessando um pelo outro.
Ela nunca tinha ficado com homem trans, eu também não. E ela falou uma coisa para mim que foi onde virou a chave, falando: “Não, eu quero te conhecer agora!” Ela falou assim: “Se eu te invalido como homem, eu to me invalidando como mulher também.” Quando ela falou isso, falei: “É verdade, mano, se eu não vejo ela como uma mulher, eu também não sou homem, caramba!” Depois disso, falei: “Vamos nos ver”.
A gente marcou de ser ver. Onde que a gente se viu? Na minha casa, porque eu saía super tarde. Eu falei: “Olha, vem aqui para minha casa, a gente… Eu compro uma bebida, a gente toma.” E a gente foi conversando, beleza.
Detalhe: na minha casa não tinha sofá, só tinha uma cama e cozinha, mais nada; o banheiro nem porta tinha. Ela foi. Muito doida, essa menina, ela foi na minha casa. Chegou lá, sentou na cama, eu sentei na cadeira e fiquei assim… A gente ficou conversando, fluiu o papo também pessoalmente, mas na hora da gente ficar foi bem estranho, foi bem louco.
Beleza, a gente ficou. No outro dia ela foi embora e a gente ficou um mês sem se falar porque a gente não conseguia processar o que aconteceu. Foi muito estranha, a primeira vez, e aí a gente ficou um mês sem se falar. Depois desse mês, ela me mandou mensagem, falando: “Olha, desculpa. Não foi nada sobre você, foi sobre mim. Eu tava digerindo tudo que aconteceu.” Aí eu falei: “Eu também, eu tava com essa mesma sensação, mas gostei de te ver.” E aí ela falou: “Vamos nos ver de novo”.
A gente se viu depois, aí começou a rolar, a gente começou a ficar. E [foi] ela que começou a desconstruir essa coisa em mim de engravidar, sabe? “Pô, você tem útero. Você pode ser pai, você pode gerar.” Eu sempre quis ser pai, meu sonho sempre foi ser pai, porque… Como posso dizer? A gente quer ser o que a gente não teve, praticamente. Eu sempre tive essa sensação do meu pai muito ausente na minha vida. Aí eu falei: “Mano, eu quero ser pai. Eu quero fazer tudo diferente do que fizeram comigo. Eu quero ser um pai muito foda.”
Nunca tinha passado na minha cabeça engravidar, era uma ofensa falar um negócio desse para mim. Eu sempre tive consciência de que eu tinha que ter dinheiro para um dia pagar uma inseminação para minha mulher, porque eu só namorava com mulher cis. Quando eu comecei a ficar com essa menina trans, eu comecei a entender que poderia ter uma outra possibilidade. “Opa!” Acendeu uma luzinha, beleza!
Ela não morava aqui, foi embora. Aí eu conheço a Érica. O sonho dela ser mãe… A Érica já veio pronta, já tinha ficado com outros caras trans, já era experiente do rolê e já chegou com essa ideia pronta, esse negócio pronto: “Olha, eu quero ser mãe. Quero que você engravide.” E começou a encher minha cabeça. Falei: “Meu Deus, será? Meu Deus do céu, tô com trinta anos, tomo hormônio desde os 23, será que vai dar certo? Quanto tempo eu tenho mais?”
Isso começou a entrar na minha cabeça. “Se não for para ser agora, não vai ser nunca mais, talvez eu nunca mais vou ser… Lá na frente eu vou chorar pelo quê? Por não ter tido um filho. Não é melhor chorar por ter tido?” Fiquei nessa onda. Foi onde a gente decidiu.
Comecei a namorar com a Érica e [tivemos] vários altos e baixos também, a nossa relação teve vários altos e baixos. A gente separou, voltou, separou, voltou. Quando a gente firmou, começou a namorar mesmo, depois de um ano a gente [disse]: “Ah, tá, vamos ter o nosso filho.” Aí a gente começou o projeto, a gente procurou um médico e foi fazendo tudo bonitinho.
(1:04:31) P/1 - E como vocês se conheceram?
R - Eu e a Érica, a gente se conheceu pelo Instagram também. Nossa, o Instagram é o meu Tinder, praticamente. A gente se conheceu por lá.
Eu a vi no Instagram de um outro cara que eu sigo. Depois eu a vi sozinha, aí eu mandei um ‘foguinho’ para ela. Ela respondeu o ‘foguinho’ e a gente começou a conversar.
Ela estava no Rio de Janeiro essa época, ela morava lá e estava para voltar para São Paulo. A gente começou a conversar, um flerte… E no dia que ela chegou, ela foi me ver. Ela só deixou a mala na casa dela e foi para a minha casa, me conhecer. E dali já era, a gente começou a ficar direto.
(1:05:05) P/1 - Você estava contando dessa palestra que te chamaram. Eu queria saber se até então você tinha contato com outros homens trans, ou não.
R - Não, não conhecia nenhum. Desse negócio da Uber que me chamaram para essa mesa… Não conhecia nenhum, até então, não! Foi lá que eu comecei a conhecer outros caras trans, lá na Casa 1 - foi na Casa 1 a gravação. Lá tinha vários caras trans, conheci alguns lá; conheci o Popó [Vaz] também, através do Pedro, lá. E aí comecei a conhecer, me conectar, não sei como… Acho que comecei a mudar as rotas, sair daquela caixinha hetero cisnormativa e comecei a expandir meu olhar, começou a aparecer, tanto que o Paulinho, um amigo meu de Guarulhos, a gente era sapatão junto e comecei a transição. A gente se conheceu e ele começou a me ver e falar: “Mano, eu sou assim também, só que eu tenho medo, não sei!” Eu falei: “Mano, vamos embora, o que que você está esperando? A vida tá aí! Vamos embora!” E aí ele começou a fazer a transição.
Eu que aplicava os hormônios nele, porque a gente não tinha médico, então a gente fazia meio que por conta. A gente comprava o negócio no clandestino ali da academia e a gente mesmo se aplicava. A gente ficou um ano fazendo isso, aí o Paulinho que achou o CRT [Centro de Referência e Treinamento], que é onde eu faço tratamento até hoje; ele que achou lá, me falou. Até a cirurgia, até a ‘mastec´ - eu que consegui fazer o esquema, consegui a nossa psicóloga, que a gente não tinha, e levei ele comigo também. A gente fez na sequência, eu e ele, foi bem legal! Meio que a gente foi parceiro de transição.
(1:06:56) P/1 - E nesse momento que você decidiu ser pai, você teve que abandonar a hormonização? Como foi esse momento?
R - Sim, a gente teve que parar, tanto eu quanto a Érica. A gente teve que parar de se hormonizar para voltar a ovular, porque eu já não menstruava há muito tempo, não lembro nem quanto tempo eu fiquei sem menstruar. Tinha que voltar esse fluxo novamente, para ter a possibilidade de uma gestação, aí a gente parou. A gente ficou um ano e meio sem tomar, para poder conseguir engravidar.
Depois de um ano e meio sem tomar nada, o Noah veio.
(1:07:33) P/1 - E como foi a vinda do Noah?
R - Olha, foi uma coisa louca, porque eu queria muito! Só que demorou muito também, demorou um ano e meio, pra mim foi muito. Foi um período longo, por quê? Porque eu tava na expectativa, eu já tinha decidido que queria um filho. A partir daquele momento que eu decidi que queria um filho, eu já estava esperando por ele. Esse negócio de não vir, de nunca dar certo, nunca dar positivo, aquilo começou a desgastar… Aquela ansiedade, a gente começou entrar em conflito.
Quando eu descobri a gestação, eu e a Érica estávamos separados, inclusive. A gente tinha tretado. “Não, eu não quero mais!” Ela estava reformando o apartamento dela. Eu falei: “Olha, [quando] terminar a reforma do seu apartamento, você vai e eu vou seguir a minha vida por aqui. Tá tudo certo, mas não quero mais!” Foi quando descobri o positivo.
Uma coisa é você querer, imaginar, e outra coisa é o real, ali. “Meu Deus, eu tô grávido, e agora?” Deu um leve pânico, sabe? Pensei várias vezes em desistir até da gravidez, por causa dessa onda com a Érica, de ter brigado com ela. “Não vou conseguir sozinho. Será que eu faço sozinho?” Várias dúvidas vieram à minha cabeça, sabe? “Será que eu vou dar conta de criar uma criança?”
No projeto estava tudo lindo; quando o positivo veio, eu fiquei com muito medo. As incertezas tomaram conta de mim, sabe? O que era muito certo, depois ficou uma grande dúvida, um cagaço mesmo, um medo de não dar conta, sabe? Eu falava: “Meu Deus do céu. E agora, como vou trabalhar? Eu sou hamburgueiro, como vou trabalhar grávido?” Várias coisas, várias. Mas também passou rápido isso, sabe? A gente fez uma viagem para o Rio de Janeiro, passou acho que uns quatro dias lá e depois dessa viagem eu voltei mais tranquilo. “É isso que eu quero, tô feliz!”
Foi quando a gente começou a viver a parte lúdica da gestação também. A gente viveu momentos incríveis na gestação, foi bem linda a nossa gestação. A gente ficou superconectado, a gente ficou superunido. Foi bonito. A gente teve muitos privilégios tanto no nosso pré-natal, nos médicos, todo mundo que passou na nossa vida, sabe? A gente não passou por sofrimento nenhum, pelo contrário, as pessoas amavam saber, cuidavam, se preocupavam. Foi linda a nossa gestação, por conta disso.
(1:10:21) P/1 - Eu ia te perguntar se você acha que teve acolhimento.
R - Muito! Total, total! O que também eu acredito.. Eu enxergo os meus privilégios, uma delas é essa merda - desculpa a palavra - da passabilidade também, porque as pessoas me viam na rua e vinham falar que era um homem grávido, iam falar que era uma barriga de chope, sei lá, um verme, menos uma criança. Isso me blindou de muita coisa. Tanto que eu fui para a praia barrigudo, usei sunga com a barriga gigante, o povo olhava meio assim, sabe? Mas nem ‘tchum’! Tive muito acolhimento.
É um privilégio também, mas eu acredito muito na força do astral, da energia, que a gente recebe o que a gente emana. Eu sempre fui um cara que pensa muito nessa questão positiva, que tudo pode ter uma maneira de ser legal, tudo tem uma maneira de ser boa, então acredito que as pessoas que passaram no nosso caminho também, de certa forma, foram tocadas por essa energia. Se elas eram preconceituosas, elas não conseguiram ser na minha frente, por exemplo. Eu fui sempre muito acolhido em todos os lugares que eu fui, em todos os médicos que eu passei, então foi uma coisa muito linda mesmo, sabe?
A minha doula foi a coisa mais maravilhosa da minha gestação, me ajudou muito com várias questões internas. Por eu ser um cara trans e ter pouco tempo de desconstrução e já engravidar, durante a gestação eu tive meus momentos de vistoria, sabe? Eu tive meus momentos de pico de pânico com meu corpo, com aquilo que estava acontecendo comigo, mas eu tive pessoas maravilhosas que conseguiram dar a mão para mim naquele momento e mostrar uma outra perspectiva. Sim, eu tinha aquele momentinho da fossa, aquele momentinho da tristeza, mas logo isso passava, porque eu conseguia pegar forças com essas pessoas.
(1:12:32) P/1 - E como foi se tornar pai? O que a paternidade representou na sua vida?
R - Nossa! Olha, eu vou falar, falar do meu filho é loucura, gente. Nossa Senhora! Depois que o Noah nasceu eu ganhei uma coragem indescritível, tanto que eu era hamburgueiro, era a única coisa que eu sabia fazer, e quando o Noah nasceu, depois de quinze dias eu tive que voltar a trabalhar numa chapa, aí a Érica teve que ficar com ele sozinha em casa. Foi bem difícil para ela também, porque o puerpério é uma coisa bem complicada. A gente tem privação de sono, a gente está se adaptando com uma nova rotina, é um serzinho ali que depende de você 24 horas. Você não tem tempo para você, a demanda é só para a criança, então ela, sozinha… Também foi bem difícil para ela. E eu trabalhando longe, o meu filho… Eu não to ali, cuidando dele, sabe? Aquilo foi terrível pra mim.
Foi o que me deu coragem de meter o pé mesmo naquela profissão. Por mais que eu amasse aquela profissão, viver aquilo me fez pegar um certo ranço, sabe? De domingo a domingo ter que trabalhar, de “a loja fechou, mas a cabeça tem que trabalhar, porque tem que fazer compra, tem que fazer isso, tem que fazer aquilo”... Eu era funcionário 24 horas por dia do meu negócio, ganhava supermal e não tinha tempo para ficar com o meu filho, então aquilo mexeu muito comigo.
O Noah me fez ter a coragem de meter o pé e falar: “Eu vou respirar novos ares, vou viver outras coisas.” Obviamente, não foi do nada, né? Eu vi na internet essa possibilidade de fazer uma renda. E não pagava minhas contas, não pagava! Mas a Erica tinha a renda dela, eu falava assim: “Se eu focar 100% na internet agora, seu eu largar a hamburgueria e focar 100% na internet, pode virar uma renda, pode pagar o meu aluguel, entendeu? E enquanto isso não vira uma renda, eu vou me agarrar na Érica.”
Sentei com ela, conversei com ela. Falei dos meus sentimentos, falei o que estava acontecendo. Ela falou: “Meu, o que você decidir, tá tudo certo!” Ela me apoiou também. Falei: “Então tá bom!”
Olha, não peguei um real da hamburgueria, não peguei nada. Larguei tudo para trás e fui embora. A gente já não aguentava mais morar em Guarulhos, a gente logo em seguida fechou a hamburgueria; a gente começou a procurar apartamento para cá e se mudou. Transformou nossa vida, tanto a minha quanto a dela. A gente mudou nossa vida pra melhor.
E o Noah, a gente se separou quando ele tinha um ano. A gente se separou por vários motivos. Eu nunca falei sobre esse assunto, mas a gente é muito amigo hoje. Eu entendi que eu não poderia esperar uma coisa muito terrível acontecer para gente se separar. Eu precisava me separar dela ainda gostando dela. E quando eu falo ainda gostando dela, não é como mulher, porque se fosse como mulher, talvez isso teria tentado mais, mas gostando dela como pessoa mesmo, como mãe do meu filho, e ela de mim também.
A gente conversou muito sobre isso, porque eu não queria repetir com o Noah o que eu vivi com os meus pais. Os meus pais se separaram e nunca mais se viram, nunca mais reuniram a família com eles, entendeu? Eles não tem uma foto de nós todos juntos, porque eles, não sei, viraram inimigos, não sei porquê. Já se passaram vinte anos da separação e por que ainda isso, por que ainda?
Eu não quero que isso se repita com a minha vida, como o meu filho. Eu quero no Natal poder estar junto, eu quero que no aniversário dele a minha família esteja com a dela e todo mundo estar se divertindo e brincando. Eu quero fazer um café da manhã um dia e “pô, vem aqui tomar um café com a gente!” Eu quero ter isso!
A gente conversou muito sobre isso e decidiu se separar antes que uma coisa terrível acontecesse e a gente oficialmente tivesse que se separar como inimigo. Foi a melhor coisa que a gente fez, acredito, e agora a gente pratica a guarda compartilhada.
Bom, o que o Noah representa pra mim? É aquilo que a gente estava conversando lá fora, sobre, desde sempre, eu acreditar que não queria vir para cá e morrer e acabou, sabe? Não aceito isso, morreu e acabou. Vem muito do legado que eu quero deixar aqui. E o Noah, ele faz parte desse legado, ele é a semente que eu estou deixando aqui para depois, quando eu morrer.
E não só isso. O Noah representa todos os nãos que eu recebi, todas as vezes que muitas pessoas falaram assim, quando eu falava… A minha irmã, vou falar dela, mas é uma memória que eu tenho. Eu amo você, Paula, mas ela falava para mim… Ela namorava no quarto, ficava conversando e eu queria acordar cedo para no outro dia ir para a escola. Eu falava: “Quando eu casar eu vou sair daqui também, eu vou embora dessa casa.” Aí ela falava: “Você não vai casar, seu casamento não é permitido.” Ela também tinha as limitações dela na época. Hoje ela é superparceira, mas são coisas que vão marcando nosso coração, sabe? Muitas vezes eu ouvi isso, que eu não ia ter filho, que eu nunca ia ser pai, que isso não era para mim. O Noah representa a disruptura de tudo isso, sabe? Ninguém vai falar para mim o que eu vou ser, ninguém vai falar! Eu comando a minha vida, entendeu? Eu vou ser o que eu quiser, da forma que eu quiser.
Enfim, o Noah é um conjunto de coisas. Ele é uma segunda chance - não uma segunda, ele é uma nova chance pra eu fazer… Não vou dizer aquilo que não fizeram por mim, que meu pai não fez por mim, porque eu também não quero para ele o que eu quero pra mim; eu quero pra ele o que ele quiser pra ele, é muito diferente.
Então é isso. O Noah representa um legado.
(1:19:07) P/1 - E como foi o momento de transição de carreira na internet?
R - Bom, como eu disse, eu tinha uma hamburgueria, aí eu comecei… Eu já fazia alguns trabalhos quando eu tinha hamburgueria ainda, como empreendedor. E tomei tudo dentro desse início LGBTQIAP+. Mas eram umas coisas esporádicas, nada que pagasse meu aluguel, nada que pagasse as minhas contas e falar: “Dá para viver disso.”
Quando o Noah chegou, foi esse start. Eu falei assim: “Não tenho outra opção. Qual é a minha opção? Ou eu continuo vivendo essa vida que eu tô vivendo, trabalhando dia e noite, ganhando pouco e não vendo meu filho… Não participando da criação dele, dos cuidados dele, dos primeiros cuidados, porque é um bebê, ou eu arrisco um novo, que vai continuar ganhando pouco, só que eu vou estar arriscando uma coisa nova, fazendo algo diferente.” Foi quando eu atirei para as redes sociais, atirei para o digital, e as coisas começaram a fluir de uma forma absurda, porque eu comecei a ter renda não só na internet, começaram a aparecer outras coisas para me rentabilizar, como comunicador. Além disso, comecei a aprender coisas que eu nem sabia também.
Quando eu me separei da Érica… Ela era a renda maior da casa. Quando eu me separei dela, eu falei: “Putz, eu tenho que morar perto dela”, por causa da guarda compartilhada, e os aluguéis lá são caríssimos, na Mooca. Eu estava acostumado a morar em Guarulhos, que eu pagava quinhentos reais; obviamente, eu morava numa casinha de fundo, mas era a minha realidade. “Morar na Mooca, pagar um absurdo de aluguel? Não tenho garantia nenhuma, não sei como eu vou fazer. Eu só sei que eu tô infeliz, que preciso dar um jeito na minha vida.”
Comecei a pensar nas pessoas que eu conhecia e em como eu poderia trabalhar para essas pessoas, no que eu tenho de habilidade que poderia servir para essas pessoas. E eu comecei, cara, a mandar mensagem para todo mundo. “Eu tenho uma moto, posso ser office boy, posso fazer trabalho de assistente de câmera, de assistente de foto; eu posso passar fio, eu sei fazer parte elétrica.” Comecei a passar o currículo de tudo que eu tinha aprendido na minha vida a fazer e meu, [foi] muito legal, as pessoas começaram a me responder. “Beto, olha, tem esse trampo aqui!”
Começou a aparecer tanto trabalho que eu não dava conta de fazer todos, tive que começar a escolher. A Vivi, uma amiga minha, me chamou para ser assistente de foto dela. Nunca tinha feito isso na vida, só que… Eu falei: “Meu, eu sou desenrolado. Eu sei da parte elétrica, eu sei… É só você falar uma vez que eu aprendo.” E daí eu fui!
Realmente, eu sou muito desenrolado. Isso eu acredito que eu herdei do meu pai, esse negócio de [ser] sonhador, de criar, de tudo, tanto que a hamburgueria fui eu que reformei. Eu faço o que você imaginar, tipo móveis, eu faço tudo, marcenaria, solda. Eu sou aventureiro em tudo.
Ela me chamou para ser assistente de foto dela, mesmo que eu nunca tivesse sido. Fui no primeiro dia e eles me amaram lá. Nossa, me amaram tanto que no segundo dia me deram aumento, já; no quarto dia, aumentaram de novo o meu salário. Eu falei: “Meu Deus do céu!” E aí foi!
Tô com ela até hoje também, faço assistência com ela lá. E é isso, eu vou me arriscando.
E nessa questão de ser comunicador, de falar sobre transgeneridade, de falar sobre família, diversidade de família, paternidade trans, é a minha vida, falar sobre a minha vida. Eu percebi que falar sobre a minha vida hoje também pode ser um negócio, porque é uma coisa que eu posso estar desbravando para outras pessoas, porque automaticamente é um conhecimento, é uma coisa que eu posso gerar business através disso, então eu falei: “Nossa, por que não, também?”
Comecei a fazer palestras corporativas sobre gênero, sobre… Como eu posso dizer… Que agora eu não tô… Vamos lá, contextualizar. Palestras corporativas [sobre] como tratar pessoas transgêneras dentro de um lugar desse, entendeu? Tipo banheiro, como fazer um emplacamento de banheiro correto. Coisas básicas, só que você vê que o mundo corporativo não sabe como fazer ainda. Comecei a entender, ver negócios e forma de ganhar dinheiro em várias áreas, em vários lugares.
E hoje… Foi essa a minha transição. Fui indo onde eu achei que poderia fazer dinheiro e manter a minha vida, conseguir dar as coisas para o meu filho, pagar meu aluguel. Tá funcionando, tá dando certo, tô indo. Cada dia é uma coisa!
Graças a Deus tem vezes que eu ainda preciso dizer não, porque eu não consigo dar conta de todos esses trabalhos, mas é isso.
Eu sou um cara que nunca teve medo de trabalho, sabe? Eu sempre fiz o que precisei fazer para ganhar o meu dinheiro. E sempre de uma forma bem honesta, com o meu próprio trabalho. Também sou muito grato ao meu pai por causa disso. Meu pai sempre foi desenrolado, sempre. “Tá dando dinheiro aqui, vamos fazer isso aqui”, então eu sempre tive essa visão meio que empreendedora da vida, de onde eu posso ganhar dinheiro.
(1:25:28) P/1 - E quando o Noah nasceu? Acabei não perguntando.
R - Olha só, o Noah nasceu no dia dez de maio de 2022. E que loucura essa data, dez de maio! Foram as duas datas mais importantes da minha vida: no dia dez de maio de 2019 eu fiz a minha mastectomia, que foi a data mais marcante, e logo após [teve] o nascimento do meu filho, que foi a data mais marcante. A ‘mastec’ ficou em segundo lugar, depois do Noah, mas foram as duas datas mais importantes da minha vida. Aconteceram num dia dez de maio.
(1:26:10) P/1 - E como foi esse momento da mastectomia? O que que você sentiu, o que representou?
R - Isso aí foi pesado, hein! Foi pesado, emocionalmente falando, porque para todo cara trans, acredito que é um objetivo que a gente… É onde a gente mira, porque realmente é onde fala assim: “Tô livre! A liberdade é essa!”
Eu demorei um tempo para conseguir, consegui fazer pelo SUS, inclusive eu sou apaixonado pelo SUS. Fiz minha ‘mastec’ pelo SUS, faço meu tratamento hormonal todinho pelo SUS; meu filho fez pré-natal no SUS, meu filho nasceu no hospital do SUS, então SUS pra mim é love.
Fiz a ‘mastec’ pelo SUS, consegui fazer depois de três anos na fila. Saiu minha vaga lá e eu nem acreditava quando isso aconteceu, porque era só o que faltava para eu estar realizado, completo, tanto que - olha só, que loucura - depois da minha ‘mastec’ foi quando eu consegui ter uma relação sexual de verdade, porque até então eu nunca tinha tirado a roupa na vida, nunca tinha ficado pelado com alguém na vida. Depois da ‘mastec’ eu tive coragem de ficar nu, pela primeira vez, numa relação. Você vê por aí, né?
A ‘mastec’ pra mim representou a minha liberdade por inteiro, tanto que até a minha vida profissional melhorou, porque eu tive mais segurança de mim, eu tive mais empoderamento, sabe? Mais amor por mim mesmo, entender que meu corpo é bonito, olhar para o meu corpo e sentir beleza, sentir prazer em ver. “Nossa, como você é bonito!” É a sensação.
Um outro vídeo viral meu foi o dia que eu tirei a camiseta pela primeira vez, eu gravei esse dia. Foi num campo que tinha lá perto de casa, eu estava de alta do binder e podia tirar a camiseta assim, ao ar livre, pela primeira vez. Quando eu tirei o binder, na hora que eu já estava tirando, já não tinha nada ali, sabe! Já tava liso, reto, aquela sensação de estar reto.
Comecei a correr, sem camiseta. Nossa, foi lindo! Foi libertador, foi uma sensação… Não sei explicar, de tão gostosa que foi.
A ‘mastec’ significou muitas coisas para mim. Ela me deu uma força, um empoderamento de vida, de homem, que sem ela talvez eu não tivesse conseguido sozinha alcançar isso, sabe? Ela foi necessária.
(1:29:00) P/1 - Hoje em dia, você tem algum relacionamento? Você só responde se você quiser também.
R - Não, não tenho. Depois que eu me separei da Érica eu não fiquei mais com ninguém, e não porque eu não quero, porque eu tô sofrendo, nada! Meu relacionamento com a Érica foi muito bem, tá muito bem… Como é que eu falo? Definido, muito bem resolvido. Respeito ela, amo ela como pessoa, mas eu, meu coração realmente tá livre.
Depois de muitos anos eu estou sentindo essa sensação de liberdade, de estar limpo mesmo. Sabe quando você ouve um sertanejo e não pensa em ninguém? É nessa situação que eu me encontro hoje. Eu consigo ouvir um sertanejo sem pensar em ninguém, e tá tudo bem!
Não é uma coisa que eu quero mudar agora, sabe? Nesse momento da minha vida eu estou vivendo muito meu profissional e a paternidade também. É muito difícil ser pai, ser profissional, se dedicar. [Pra] ter uma relação agora, você vai precisar também doar seu tempo de vida para aquela pessoa, porque nada que a gente não investe tempo e energia dá certo.
Nesse momento eu estou muito focado no meu profissional, porque eu estou com 33 anos e até agora eu não consegui, vamos dizer, construir algo sólido. O Noah, ele me traz esse negócio, que eu preciso ter uma segurança, não só por mim, mas por ele também, então eu estou aproveitando essa onda positiva que o universo está me trazendo, focando muito no meu profissional, até porque eu tenho muitas metas pessoais mesmo para atingir. E tá tudo bem!
Estou bem, estou muito feliz! Estou vivendo uma fase incrível da minha vida, estou me amando, estou… Eu gosto da minha solitude.
Quando o Noah está na casa da mãe dele, mesmo quando ele está em casa, eu tiro um momento à noite para meditar. Eu faço rapé. Você conhece? Eu faço rapé, que é uma medicina indígena. Ela me dá um momento assim… Ela me deixa num estado meditativo muito profundo. Eu sempre faço isso e amo fazer isso sozinho. Quando eu tô nesse momento de meditação, meditativo, nossa, eu sinto uma energia de gratidão, uma sensação de gratidão muito forte, da vida, de como está a minha vida. Enfim, eu tô muito feliz, mas se acontecesse… Não significa que tudo isso… “Ai, não, tá fechado!” Não estou fechado, só que para mudar esse meu status hoje tem que ser uma pessoa muito… Como eu posso dizer, muito alinhada às coisas que eu acredito, muito dentro de tudo que eu venho trilhando.
Acredito que as possibilidades de mim doam bastante, então não é uma coisa que está engessada nisso. Se acontecer, [é] legal, mas pra acontecer tem um critério gigantesco aí atrás, pra poder mudar isso.
(1:32:26) P/1 - E como é o seu dia a dia hoje?
R - Bom, meu dia a dia é assim: eu acordo às sete da manhã com o Noah, ele já acorda e acorda pedindo pelos cachorros dele, a Íris e o Jack, que eram meus, mas agora são dele. A gente tem dois bulldogs franceses, que também são [de] guarda compartilhada, então quando vai o filho, vão os cachorros também. A gente tentou fazer mesclado, os cachorros e os filhos separados, só que o Noah é apaixonado pelos cachorros; ele acorda chamando os cachorros, passa o dia inteiro chamando os cachorros, então se os cachorros não estão lá ele sofre, então não tem jeito, vai ter que ser um pacote completo.
A gente acorda, abre a porta, os cachorros entram no quarto. Aí a gente começa a nossa rotina. A gente vai escovar os dentes e depois vai fazer nosso café da manhã - ele agora ajuda a fazer o nosso café da manhã. Então ele já… É muito engraçado, hoje eu até gravei um vídeo. Ele me vê na cozinha, mexendo na pia, já pega a cadeira e sai arrastando a cadeira, para eu botar a cadeira lá e ele ajudar a fazer a comida. É lindo, isso!
A gente prepara o nosso café da manhã, toma nosso café, depois disso a gente pega os cachorros e vai dar uma volta com os cachorros, para os cachorros andarem. Boto ele no carrinho dele, a gente sai andando.
A gente vai para casa, aí eu boto um pouquinho de televisão enquanto eu faço o almoço. Faço o almoço, ele come, eu como, depois ele dorme, aí eu vou trabalhar. Trabalho, vou para internet, vou gravar, editar vídeo, vou fazer o que tem que fazer. Ele acorda e a gente mantém a rotina ali, come alguma coisa, [isso] quando a gente não sai, porque a gente sai bastante também, a gente faz muitas coisas fora; eu gosto muito de sair com ele para fazer coisas. A gente vai muito pra parque, aí eu levo os cachorros juntos.
Tem um shopping aqui, o Anália Franco, que tem um parque externo ali. Ontem mesmo, eu estava entediado em casa com ele; peguei ele, botei dentro do carro e a gente foi para lá, ficou umas duas horas lá, brincando. A gente sai bastante também, faz muita coisa externa.
Tem muito evento também, a agência me manda muito evento para fazer com ele, então já fui para o teatro. Nossa, quando eu fui para o teatro com ele foi maravilhoso, gente, ele ficou encantado. Para o cinema… A gente tem uma vida bem agitada; a gente não fica só em casa, a gente sai bastante.
Quando ele não está em casa, quando está com a mãe dele, fora a saudade - eu já acordo com saudade dele, ligando, “cadê o meu filho?” - eu trabalho, trabalho bastante.
Comecei a sair um pouco agora, um dia ou outro. Nesse sábado mesmo eu fui para uma baladinha, mas não é uma coisa que eu gosto. Não gosto. Meu negócio é o dia mesmo, é parque, é isso. Mas é bem agitada nossa rotina, ultimamente está sendo bem agitado.
(1:35:07) P/2 - E o que é importante para você hoje?
R - Como o que?
P/1 - Na sua vida, o que que é importante?
R - Olha, o que é importante para o Roberto hoje? Eu estou fazendo um exercício de ser melhor a cada dia. O que é importante para mim é ser uma pessoa melhor, porque eu tive a certeza de várias… Como é que eu falo… Atitudes do Noah, porque ele é um papagaio, ele é um disco que está sendo escrito agora. O que eu faço ele faz! O que eu faço, se eu botar esse sapato no pé, ele bota o sapato no pé! Eu boto o óculos na cara, ele quer por o óculos na cara. Qualquer coisa que eu faço ele imita; conscientemente ou inconscientemente, o que eu fizer ele vai imitar, então o que é importante para mim hoje é ser o melhor que eu puder ser e corrigir o maior número de erros que eu puder corrigir, para que ele não reproduza as coisas que eu não quero que ele reproduza.
Eu parei de fumar. Eu até fumei na gestação; não parei de fumar na gestação, não consegui. Mas depois que eu tive essa consciência de que ele é um papagaiozinho, eu parei de fumar. Falei: “Eu não quero que ele veja eu fumando.” Comecei a me exercitar, comecei a comer melhor, não falo mais palavrão dentro de casa.
O que é importante para mim hoje é a criação do Noah, em primeiro lugar. É como vai ser a criação do meu filho.
(1:36:35) P/1 - E quais são os seus sonhos?
R - Isso aí é ambicioso, hein? Eu sou ambicioso.
Bom, o meu sonho principal é a liberdade financeira. Por que eu falo da liberdade financeira? Porque eu acredito que a gente, nesse modelo social, romantiza muito a pobreza, romantiza muito a escassez, e isso está errado. O mundo tem lugares maravilhosos, a gente tem culinárias e gastronomias maravilhosas. Eu sou taurino, eu amo comer! E comer coisa boa é caro, não tem como a gente falar, romantizar isso.
O meu sonho hoje é ter liberdade financeira para poder viajar, conhecer o mundo e levar ele comigo. Comer coisas diferentes, culinária de qualquer lugar do mundo que tiver vontade, sabe? Poder escolher o que eu quero comer, porque isso é uma pequena parcela da população que pode fazer e acho isso um absurdo. Como a gente não escolhe o que a gente vai comer, cara? Quero comer um hambúrguer hoje! Não posso escolher porque eu não tenho dinheiro para pagar o hambúrguer. Não é ser rico, milionário, mas é poder viajar para onde eu quiser, comer o que eu quiser, ter uma uma casa confortável, poder dar uma educação maravilhosa pro meu filho. E é isso! Meu sonho é a liberdade financeira.
(1:38:05) P/1 - Eu queria saber… Você já acabou falando um pouco sobre isso, mas eu queria que você pensasse um pouco. Qual é o seu legado para o futuro?
R - Qual é o meu legado? Olha, esses dias eu estava pensando muito sobre isso. Me perguntam: “Qual é o futuro que você espera para o Noah?” por eu ser uma pessoa LGBT, por ele ser filho de duas pessoas trans. Acredito que o legado eu já estou fazendo diariamente; tornar a minha vida exposta, pública, já é um legado, já é uma militância, porque eu, como um cara trans passável, padrão bonito, social, eu entro onde eu quiser entrar, então eu me vejo como um infiltrado, um agente infiltrado. Eu entro em qualquer meio social e dentro desse meio social eu dou minhas carteiradas. Lá dentro ninguém vai falar nada para mim, porque às vezes, muitas vezes as pessoas têm resistência aos nossos corpos, elas têm resistências de conhecer a nós, porque estamos ligados à marginalidade, entendeu?
O que eu tento construir na minha vida? Eu quero desassociar essa imagem da marginalidade, quero me botar numa posição em que eu possa conversar com qualquer pessoa, mesmo ela sendo preconceituosa. Eu me infiltro ali, converso, tenho acesso a ela e depois eu dou minha carteirada. E nessa carteirada as coisas vão se transformando, porque eles vão entendendo que a gente não é isso que vem vem falando da gente a vida inteira, por anos e anos. Que a gente é marginal, que a gente é drogado, que a gente é isso, que a gente é aquilo.
Meu, tem tanta gente maravilhosa LGBT! A gente tem médico, a gente tem Erika Hilton, maravilhosa, arrasando! A gente tem pessoas LGBT em todas posições sociais. Eu acredito que a militância vai ser alcançar os maiores níveis sociais, porque lá de cima ninguém vai poder falar para gente. Por que eles falam? Por que a comunidade é tão marginalizada? Porque quem está olhando de cima está falando para quem está embaixo, mas se você estiver lá em cima, ninguém vai falar nada.
Qual é o legado que eu estou deixando? O legado que eu estou deixando é desbravar os caminhos, é isso que eu vejo. Eu estou abrindo portas, desbravando caminhos. Amaciando aquela carne que é dura de mastigar, estou amaciando ela para ficar mais fácil de ser comida, de ser mastigada, entendeu?
Tem alguma certeza? Não tenho certeza de nada, não sei como vai ser lá na frente. Só que uma coisa que eu estava pensando muito forte esses dias, com muita intensidade para mim, é assim: uma coisa eu tenho certeza, que o meu filho vai ter amigos com famílias iguais à dele. Eu tenho o Benjamin, que tem duas mães. Eu tenho o Mark e a Maya, que tem dois pais. Eu tenho o Antônio, que tem duas mães. [São] crianças que convivem com meu filho, que vão crescer junto com meu filho, então lá na frente ele não vai estar sozinho. Ele vai ter uma equipe, uma gangue de crianças filhas de LGBT, entendeu?
Acredito que o que a gente está fazendo aqui [é] amaciando essa carne, mas eles vão ter, lá na frente, um suporte emocional, um suporte social entre eles mesmos, pra poder fazer muito mais, lá na frente. O que me tranquiliza é isso, falar: “Pô, eles não estão sozinhos.”
(1:42:00) P/1 - A gente já está chegando ao fim, tem só mais duas perguntas. A primeira delas é se eu não perguntei alguma coisa que você queria contar ou se você quer deixar alguma mensagem.
R - Bom, eu acho que a gente caminhou bastante coisa da minha vida. O que eu quero deixar claro é que eu não nasci numa família rica. Eu tenho os meus privilégios, tenho por ser uma pessoa branca, por ter nascido aqui no sudeste, por ter adquirido uma passabilidade. Sim, tenho esses privilégios, reconheço eles. Só que a minha vida… O que eu tenho nunca foi me dado de mão beijada, não foi herança, não tenho pai rico. Eu sempre trabalhei muito, sempre foquei no que realmente eu queria que crescesse.
O preconceito, ele existe, está aí. A violência existe. Tudo isso existe, é real! Só que eu acredito muito que a gente tem que alimentar o bicho que a gente quer que cresça, e eu sempre quis alimentar o bicho da prosperidade. Eu sempre quis alimentar isso na minha vida, porque a transição não virou a única coisa. A coisa principal na minha vida sempre foi o profissional, então eu sempre trabalhei muito. Nunca tive vergonha de trabalho, fui camelô da 25 de Março… Meu, eu fiz muita coisa, muita coisa.
A mensagem que eu quero deixar é que a gente tem que sempre estar em movimento, não ficar se vitimizando e ficar entrando num lugar que nos paralisa, sabe? Eu sei que o medo paralisa, sei que o julgamento paralisa, sei de tudo isso, só que a gente tem que ter uma força interior muito mais forte. Se você não tem por si só, busca em algo, busca em alguém, sei lá, na sua mãe, busca no seu filho, se você tiver, busca num sonho que você quer realizar.
A gente tem que ter ambição. O ser humano sem ambição não sai do lugar, os sonhos são feitos para isso, sonhos são feitos para a gente correr atrás deles. Se a gente não tem essa ambição, a gente se acostuma, a gente cai nessa zona de conforto.
Ambição não é ganância, tá? São duas coisas diferentes. Ser ambicioso é o que faz a gente estar em movimento.
A outra coisa é sobre a questão das nossas famílias, nossas famílias diversas. Vamos ter filhos! As sapatonas, gays, as trans, os homens trans, vamos ter filhos! A gente tem que povoar esse mundo de filhos nossos, porque é através disso que a gente também vai mudar a realidade, entendeu? Porque não vai ser mais uma questão só cisgênero, uma questão só hetero cis. A gente vai ter filhos nossos nas escolas, a gente vai ter filhos nossos em concursos públicos. É isso! A gente precisa. Agora que a gente abriu essa cabeça, abriu esse campo, vamos povoar o mundo com nossos filhos também, porque acredito que tudo isso vem… A transformação, ela está na infância. Se a gente conseguir transformar a infância, a gente consegue também transformar a sociedade.
(1:45:40) P/1 - Roberto, antes da gente ir para a última pergunta… Eu fiquei curiosa se você encontrou acolhimento dentro da comunidade sendo pai.
R - Sim, muito! A grande maioria das pessoas que me seguem são da comunidade. Óbvio que tem muito homem gay, homem cis gay que tem preconceito, assim como também tem homem trans, mas eu encontrei muito… Pelo contrário, as pessoas que têm proximidade comigo, que me mandam mensagem, elas amam minha história. Eu hoje consigo vestir essa roupa, porque até então eu achava que era um impostor, que eu não merecia. “Que é isso? Que história, você tá tipo… Que história você está achando legal?” Eu achava que, sei lá, estava vivendo algo que não era meu, entende? Mas hoje eu consigo vestir essa roupa, hoje eu consegui entender como a minha história impacta a vida de outras pessoas, como a minha história consegue estimular outras pessoas a sair, talvez deixar essa zona de conforto e desse lugar onde elas se encontram, de que o mundo não é para elas. E justamente essas pessoas LGBTs, sabe?
Eu encontrei muito apoio, muito acolhimento, sou muito… Meu filho tem muitos tios e tias, muitos, a galera ama ele.
(1:47:07) P/1 - Como foi contar a sua história hoje?
R - Olha, foi diferente, porque eu não fiquei nervoso em nenhum momento, foi uma coisa muito fluida. Acredito também que as perguntas direcionam bastante a gente, porque eu tenho 33 anos, então lembrar da minha história de memória sadia, que eu consigo lembrar, é difícil, ainda mais por várias coisas que aconteceram, traumas, enfim. A gente acaba caindo no esquecimento de várias coisas e hoje foi tranquilo falar sobre isso.
Eu até consegui revisitar coisas que eu não lembrava, sentir emoções que estavam presas, adormecidas. E falando, contar minha história para um museu, onde vai ficar registrado junto com várias outras histórias incríveis… Eu também vou sair daqui com aquele empoderamento que a ‘mastec’ me trouxe, que meu filho me trouxe; isso aqui também vai me dar um empoderamento a mais para continuar. Como eu disse lá fora para você, esse convite de estar aqui hoje me mostra que eu estou no meu caminho, do tal do legado. Eu estou no caminho certo. E é isso, continua. “Roberto, continua, que a gente precisa de você.”
(1:48:37) P/1 - Muito obrigada, Roberto. Em nome do Museu da Pessoa, em meu nome, em nome do Alisson, muito obrigada mesmo! Foi muito legal!
R - Foi, foi ótimo! É isso aí!
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