Projeto Conte Sua História
Depoimento de Hélio Palmesan
Entrevistado por Matheus Igesca e Jader Chaine
São Paulo, 20/02/2019
PCSH _ HV729 _ Hélio Palmesan
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Liliane Custodio
Revisado e editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Então vamos lá.
R – “Bora!”.
P/1 – Vamos começar a entrevista perguntando o seu nome, local e data de nascimento.
R – Meu nome é Hélio com H - Hélio Palmesan. Esse Palmesan, eu gosto até de soletrar para as pessoas não confundirem, S, A, N no final - Hélio Palmesan. A outra pergunta?
P/1 – A data de nascimento.
R – Dezoito de novembro de 1955.
P/1 – E o local?
R – Cidade de Barra Bonita, São Paulo.
P/1 – Então, conte um pouco desse nascimento. Você nasceu em Barra Bonita...
R – Sim, eu nasci no dia dezoito, mas quase no dia dezenove. Porque, segundo mamãe e papai contavam, e os avós, eu nasci perto das onze horas da noite. Por isso acho que eu gosto muito da noite também. Trabalho muito à noite.
P/2 – E quais os nomes dos seus pais?
R – Raphael Palmesan, esse Raphael é daqueles Raphael antigo, com PH. Antigamente farmácia se escrevia também com PH. Raphael Palmesan. E mamãe, Nadir Therezinha Schiavo Palmesan.
P/1 – E o nome Palmesan vem de onde, vem dos seus avós?
R – Olha, perto de Padova, da Itália. Meu avô veio da Itália, tanto que todos nós da família hoje temos cidadania italiana já. Somos lá dessa descendência italiana. Uma cidade até interessante, que esses tempos um dos meus irmãos esteve na Itália e essa família minha está lá até hoje, e eles cuidam de praça e jardins. Engraçado, uma coincidência, eu trabalhar com meio ambiente, que adoro essa coisa de natureza, e lá atrás talvez... Será que está no gene isso aí? Porque os ancestrais... E até hoje fazem isso na Itália. E eu aqui, também, mexendo com coisas da natureza. Boa a sua pergunta. Talvez não me atentasse a me lembrar disso agora. Vou ver se depois eu lembro o nome exato da cidade de onde vieram os meus antepassados.
P/1 – E eles cuidavam de praças na Itália?
R – Até hoje.
P/1 – Até hoje?
R – Até hoje.
P/1 – E seus avós imigraram para o Brasil.
R – Exato. Isso.
P/1 – Eles vieram para cá por quê?
R – Olha, segunda consta, você sabe que naquela época a Europa... A questão da Guerra, das Guerras - Primeira e Segunda Guerras Mundiais, quase todos que vieram de lá para cá vieram por problemas de conflitos lá naquela região da Europa, infelizmente. A guerra. Outros, pelo sonho e pela... Como se diz? De se instalarem aqui no Brasil. Você sabe que lá fora, desde sempre, do Descobrimento, se falou que aqui era uma terra onde tudo que se planta, dá. Acho que muitos vieram também para fazer seu pé de meia, trabalhar com agricultura. Mas quase todos que vieram, não só da minha família, infelizmente, foi por conta das guerras.
P/1 – E seu pai e sua mãe, os dois são descendentes de italiano?
R – Sim. Por exemplo... Sim, quase todos. A minha avó por parte de pai já tem uma mistura. Você sabe que aqui no Brasil é uma miscigenação de raças - o caboclo, o negro, o branco, o índio. Eu me lembro da minha avó, porque ainda pude conhecê-la em vida - as duas - essa que eu estou dizendo, a mãe do meu pai, aquela senhora de cabelo grosso, quase descendente de índio, mas me parece também que nasceu na região de Minas e se instalou lá na região de Pederneiras, que é próximo a Piracicaba. O meu avô Fernando, que era o esposo dela, esse sim já veio da Itália. E por parte da minha mãe... Posso falar o nome dos meus avós?
P/1 – Claro. Claro. Com certeza.
R – O avô por parte de pai, Fernando, quando na verdade é Ferdinando. Esse pessoal que veio da Europa, para você conseguir depois achar a raiz da família, a gente chama árvore ge...
P/1 – Genealógica.
R – Ge...
P/1 – Genealógica.
R – Genealógica. É difícil, porque, sabe, no desembarcar aqui: “Veio de onde?” “Da região de Parma”. “Parmegiana?”. Não. Não é. Ele veio com o nome Ferdinando, mas chegou aqui, ficou Fernando, Fernando Palmesan. Benedita Alves Pereira, a esposa dele, a minha avó por parte de pai.
P/1 – Esses são os avós paternos?
R – Por parte de pai. Paternos. E por parte de mãe, Guerino Schiavo.
P/1 – Guerino?
R – Guerino. Que, aliás, eu herdei essa voz meio rouca do meu avô Guerino: “Meninão sem vergonha” (risos). Guerino Schiavo e Amábile - Amábile Bruno Schiavo.
P/1 – Os dois são...
R – Avós maternos. São por parte de mãe.
P/1 – Entendi. Os dois vieram da Itália também?
R – Também. Não. Perdoe-me. Os pais deles vieram da Itália.
P/1 – E os seus avós nasceram aqui?
R – Eles nasceram aqui.
P/1 – E os seus pais?
R – O meu avô por parte de pai, esse sim veio da Itália.
P/1 – Ah, entendi.
R – Os outros nasceram aqui.
P/1 – E seus pais nasceram aqui também?
R – Também. Também.
P/1 – Na região já de Barra Bonita?
R – Sim. Sim. Sim.
P/1 – Você sabe da história deles, como eles se conheceram?
R – Olha...
P/1 – Seu pai fazia o quê de profissão?
R – Meu pai fez muitas coisas na vida. Ele era um mecânico de mão cheia. O meu pai é uma história que está muito relacionada com a minha vida atual, sabe? Como esse meu avô Fernando, o meu avô materno Fernando, deixou a família dele em Barra Bonita, cinco filhos, tia Maria, tio Antônio, Raphael, tia Laura, tia Maria, tio Benjamin, acho que seis ou sete são meus tios, irmãos do meu pai, e num certo momento da história, ele deixou a minha avó aqui com essas crianças todas e foi embora para o Rio Grande do Sul. Esse meu avô é terrível, porque depois soubemos que ele teve mais duas famílias no Rio Grande do Sul, esse Fernando Palmesan. Danado o avô. E, sabe, tempos difíceis. E meu pai foi criado junto lá com os outros, mas teve um auxílio muito grande de uma família também tradicional da minha cidade, que é a família Momesso, o seu Joaquim e a dona...
P/1 – Família o quê?
R – Momesso.
P/1 – Momesso.
R – Eram bem próximos, sabe? A cidade era muito pequena, isso nós estamos falando, por exemplo... O meu pai nasceu em 1928 e minha mãe em 1933, então a minha cidade até hoje é uma cidade pequena, ela tem 38 mil habitantes, apesar de receber milhares de turistas por ano, é uma estância turística. E aquelas dificuldades. Então, todo mundo se conhecia, até hoje é assim. E meu pai praticamente foi criado então pela família Momesso - o seu Joaquim ngelo Momesso e dona Eglantina Momesso. O seu Joaquim, olhe, deixe-me tentar fazer vocês entenderem essa história, porque é o seguinte: o Rio Tietê, tem uma frase que até hoje, às vezes, antes de o barco sair... Porque eu sou o comandante, vocês sabem disso, nós vamos chegar nesse assunto, sou um comandante de Marinha Mercante, capitão fluvial, já transportei doze milhões de pessoas, tal, inaugurei todas as Eclusas, mas essa história acho que vem depois. Mas para eu chegar onde você está perguntando, conseguir responder suas perguntas, o rio Tietê, ele... Bom, para começar, o Tietê, mesmo se você encontrar um paulistano que viveu até a década de 30, o Tietê aqui em São Paulo foi a piscina. Não havia clubes, eles faziam os cochos, fechavam a margem do rio, faziam um trampolim, as competições de regatas. A história, para chegar aonde eu quero chegar, é mais ligada à questão da navegação. Depois, se vocês quiserem conhecer mais a história do Tietê aqui da Capital, eu posso contar também. Bom, naquela época, no final dos anos... Como fala, centenário? Desculpe, depois vocês editam isso. Milênio, os anos de 1800 para 1900.
P/1 – A década.
R – Não. Quando é década é dez em dez anos. Cem, centenário?
P/1 – Centenário.
R – Século. Oh, desculpa. Século. Do final do século XVIII para o século XIX, o Tietê e o rio Piracicaba, eram canais de uma navegação comercial que pertencia à empresa Ituana e à empresa Sorocabana, que eles possuíam vários navios, que, naquela época, eram movidos à caldeira a vapor. Houve uma época de muita atividade de transporte, porque, naquela época, a colonização que veio para o Brasil, italiana - olhe como a coisa é ligada na outra, interessante a gente chegar nisso aí para voltar à origem da conversa que nós estávamos, da vinda dos nossos antepassados para cá, que vieram para colonizar, para cultivar e tal. E foram abrindo as fazendas, começou o cultivo lá, o café principalmente. Eu estou indo para uma época de café, porque hoje a minha região é tomada por grandes canaviais. Em Barra Bonita, por exemplo, está uma das maiores usinas do mundo, se não for a maior do mundo em produção de açúcar e álcool, mas antes disso era o café - café e outros produtos, outros produtos da lavoura. Mas era uma época em que não existiam estradas, era muito difícil, época difícil. Os carros que existiam, também até por causa da Guerra muitos eram movidos a gasogênio, que eu não sei se vocês sabem o que é o gasogênio. O gasogênio era um tambor que ia atrás do carro, punha lá o carvão, como uma máquina de trem. Você imagina que os carros... Houve uma época, pela dificuldade que passamos, de escassez de petróleo, tudo, era tudo muito difícil. Bom, então houve um apogeu da história da navegação do Tietê, que isso é muito importante, que eu não sei se alguém poderia vir aqui um dia e contar isso aí para vocês. Eu agradeço o convite, porque eu consigo transmitir um pouco dessa história, o conhecimento que me foi passado pela minha família. Então, existiam os navios que eram da Ituana, depois foram comprados pela Sorocabana. Que eram navios até grandes para a época, que atrás deles iam puxando mais vinte barcaças, carregando os produtos das fazendas. Eu conheço três nomes desses navios para as pessoas poderem pesquisar - um se chamava Visconde de Itu, o outro era o Souza Queiroz, e tem mais um que eu não consigo recordar o nome. Mas os dois navios mais famosos daquela época foram o Visconde de Itu e o Souza Queiroz. Tanto que tem uma réplica, feita de alvenaria, dele, lá na minha cidade. Essa navegação, ela abrangia desde a cidade de Piracicaba, indo até a região de Avanhandava, onde tinha uma grande corredeira, então já impossibilitava os barcos passarem pela corredeira. Na verdade, era praticamente uma cachoeira. Então, existia uma navegação comercial desde Piracicaba, passando pela região de Botucatu, indo até o Salto de Avanhandava. Tinha uns terminais, um entroncamento hidroferroviário, um encontro onde chegavam os barcos, e tinha os terminais da própria empresa, que era dona dos trens na época, era a tal da Sorocabana. Porto Martins, em Botucatu, Piracicaba, Barra Bonita era um porto muito movimentado. Porque Barra Bonita também é conhecida como a terra da telha. Se você pegar uma telha do telhado de sua casa hoje, se você pegar lá, você vai ver escrito nela, com certeza, Barra Bonita. Mais de um século de tradição na fabricação das telhas. Então Barra Bonita, quem viveu naquela época de 1900, 1800 para 1900... Porque a navegação parou em 1953, 1955. Infelizmente, eu só pude ver esses navios quando eles já estavam desativados, praticamente. Então perto da Ponte Campos Salles, que é uma ponte histórica que tem na minha cidade, que ela é de 1915, que veio da Alemanha, toda rebitada, é o cartão postal da nossa cidade e da Alemanha, e bem do lado existia o barracão da Sorocabana. Então, esses barcos vinham com a carga, ou partiam dali com a carga. Do lado tinha a estação ferroviária, então toda a produção de café daquela época, que vinha das fazendas e era descarregada em Barra Bonita, ou no Porto Martins, ou em Botucatu, ou na região de Piracicaba, era passada para o trem e mandada para o Porto de Santos. De trem, seguia até o Porto de Santos para ir para fora do Brasil. O café que deu título ao Brasil, da Terra do Ouro Verde, isso é outra história. Então, meu pai, como ele é nascido em 1928, ele viu, participou, ele entrou nesses barcos, ele era amigo dos tripulantes. Soube até que ele chegou a trabalhar um pouco dentro desses barcos. Os comandantes desses barcos, os amigos do meu pai, foram tripulantes desses barcos, navios a vapor da época. Bom, 1953, com a abertura de novas estradas, começou o desenvolvimento do Estado de São Paulo, coisa e tal, aquilo foi ficando desnecessário, porque a estrada, o veículo se tornou mais rápido, entendeu? Entendeu, não é?
P/1 – Sim.
R – Com a abertura das estradas, a navegação foi perdendo um pouco da sua...
P/1 – Do espaço.
R – Do espaço. Isso mesmo. E, pelo que eu soube, o navio Visconde de Itu foi mandado lá para a região de Iguape; o Souza Queiroz para outra região, que eu não sei, não posso afirmar com exatidão aonde, mas ficaram as barcaças, que eram puxadas por esses navios. Que o navio a vapor, na verdade, nele só iam as madeiras que faziam funcionar as caldeiras que tocavam a roda que os impulsionava. E atrás vinham essas barcaças. Muitos vinham com vinte barcaças atrás, carregadas com diferentes produtos da lavoura. E essas barcaças, algumas foram adquiridas por esse Joaquim Momesso, da família em que meu pai foi criado. É interessante. É uma história bonita para deixar para a minha família e para quem se interessar, porque está trazendo de volta lá um Tietê, uma história da navegação que poucos conhecem, a não ser a narração que está no livro da história de Barra Bonita, um livro que foi lançado muito tempo atrás. Então, essa coisa de navegação... Eu vou tentar descobrir a pergunta que você me fez há alguns instantes atrás, para falar desse relacionamento da minha vida atual. Ou você me perguntou o que meu pai fazia?
P/1 – Também.
R – Isso. Essa foi a pergunta que você fez. Eu diria, então, que meu pai foi um marinheiro daquela época, ou amigo dos marinheiros, e coisa e tal.
P/1 – Por conta dessa relação com a família...
R – Momesso. Não. Ele conheceu a tripulação desses navios, interagiu com essa tripulação, trabalhou lá dentro. Com a desativação, parou. A Barra Bonita que era um porto movimentado, e as pessoas acostumadas a ouvir o apito daqueles navios, a chegada dos navios, todos iam lá para ver, com a parada dessa navegação, a cidade ficou bucólica, o rio ficou bucólico. Aquele movimento que existia, que as pessoas estavam habituadas, esse transbordo de carga, tirando do barco, indo para o barracão da Sorocabana, passando para o trem, o movimento dos marinheiros, a circulação dos marinheiros na cidade etc. e tal, na rua do Porto lá, que a gente fala, acabou. Então, o Tietê se tornou um rio bucólico. Bucólico. Que servia apenas para uns finais de tarde e uns fins de semana os casais irem até a margem do rio, romance, fotografia, namoro. A minha avó, a Amábile, da parte da minha mãe, eles tinham perto do Porto, próximo ao Porto, um hotel.
P/1 – Um motel?
R – Hotel.
P/1 – Motel não existia naquela época.
R – 1920 (risos). Essa palavra é muito nova: motel. Não. Hotel. Hotel. Eles tiveram acho que... Ou mudaram de prédio. Eles foram proprietários de hotel - avó Amábile e avô Guerino. E, claro, a próxima cidade era um ovo. E talvez... Com certeza, eles se conheceram ali pelas barrancas do Tietê. Não apenas eles, muitos casais se conheceram nas tardes bucólicas no Tietê, no passeio pela Ponte Campos Salles, que foi dada de presente para a cidade pelo coronel Campos Salles, que era dono de muitas terras da região. Ele era Presidente da República, Campos Salles. Eu digo: “Será que foi um presente, ou se foi para atender os interesses?” Nós temos uma ponte lá que tem o nome dele, somos gratos por isso, que é uma ponte histórica, que acabou ligando Barra Bonita a Igaraçu, são cidades interligadas pelo rio, é uma de frente para a outra.
P/2 – Mas em que período aconteceu essa transição para ser uma coisa mais bucólica o Tietê assim?
R – Em 1953, eu sei que parou a navegação.
P/2 – Você se lembra desse período?
R – Não, porque eu nasci em 1955. Eu vi as barcaças, essas ficaram. O Visconde Itu e os barcos que puxavam as barcaças foram levados para outras regiões, que eu disse aí, acho que lá para o Vale do Ribeira e tal. Mas as barcaças, que não tinham movimentação própria, elas foram compradas, elas foram leiloadas. E o Joaquim ngelo Momesso, pelo qual papai, praticamente, foi criado dentro da casa dele, instalou um porto de areia - areia lavada que a gente chama, que é usada no concreto, para construir uma casa, coisa e tal. Então, acho que o primeiro porto de areia - ele e o João Haise - existiam dois portos de areia, até hoje um está lá ainda... Mas deixe-me voltar um pouquinho nessa história, porque eu estou esquecendo uma parte importante. Em 1953... Bom, a pergunta sua acho que está respondida: como papai conheceu mamãe. Nas margens do Tietê, nas tardes bucólicas em passeios pela Ponte Campos Salles, e tal. Em 1953, vocês sabem que antes disso, antes das construções das barragens, das hidrelétricas, a própria cidade de São Paulo e muitas outras cidades, a iluminação era na base do lampião. “Lampião de gás, lampião de gás.” Conhece essa música?
P/1 – Não.
R – Não? Vou cantar um pedacinho para vocês: “Lampião de gás, lampião de gás, quanta saudade você me traz”. Eu queria lembrar o nome do autor. Talvez ela tenha feito sucesso na voz de Inezita Barroso, se eu não estiver errado, ou outros da época. Então, precisava desenvolver o estado, precisava de energia, o governo começou a estudar a possibilidade de construir as hidrelétricas para o desenvolvimento do estado. Uma das causas... Pô, bacana, rapaz, é interessante estar com vocês aqui, porque eu estou me voltando para dentro de mim mesmo, da minha consciência. Porque uma das causas da interrupção e da finalização da navegação a vapor, no Tietê, foi que em 1953, para a produção de energia, teve início a construção da hidrelétrica de Barra Bonita, que da série de seis barragens, ela é a primeira. Uma obra que levou dez anos para ser feita, porque era praticamente uma construção feita de forma artesanal. Se você perguntar para alguém da construção civil o que é um jerico - coisa que vocês, com certeza, não sabem - o jerico é um tipo de carrinho de pedreiro, que você vê o pedreiro levar a massa, só que é um carrinho maior, com rodas maiores. Então por que a barragem de Barra Bonita levou dez anos para ser construída, e Itaipu, que ainda é uma das maiores do mundo, talvez a segunda ainda maior, que perdemos acho que para a China, Itaipu, que é uma das maiores, também levou dez anos para ser construída? E a nossa, que não é tão grande, é uma barragem de 450 metros de comprimento, ela também levou dez anos para ser concluída. Moral da história: começou em 1953 e terminou em 1963. E como teve que fechar o rio para construir a barragem, desviar... Não sei se vocês sabem como é feita a construção de uma barragem, posso mostrar em fotos, em algum momento, isso para vocês. É interessante. Primeiro, você faz uma ensecadeira, ou seja, vai pondo terra de uma margem até o meio do rio, faz o rio correr para um lado. Naquela parte em que você fez a ensecadeira, você esgota a água e começa a cavoucar até encontrar a rocha. Claro que é feita uma sondagem anterior, porque essas barragens... Eu estou falando uma coisa atual aqui para vocês saberem. Porque outro dia eu fui entrevistado, perguntando se havia algum risco de rompimento das nossas barragens do Tietê, por conta de Mariana e... A outra agora, desculpe, fugiu o nome... Essas causas horríveis que aconteceram lá em Minas Gerais, não, são construções totalmente diferentes. O que você vê de uma barragem de uma usina hidrelétrica para cima, ela tem embaixo, enfiado na pedra, a fundação dela. Então é feito um desvio do rio, constrói essa primeira parte. Construída essa primeira parte, eles deixam alguns canais provisórios e que serão depois tapados. Então, depois de construída a primeira parte, eles abrem aqueles canais que ficaram provisórios lá na parte já construída, fazem o rio correr para aquele lado, fecham o outro lado e constroem a segunda parte da barragem. Depois de tudo concluído, tapa aquilo lá e começa a passar água pelas turbinas, gerando energia, coisa e tal. Bom, o que aconteceu? Nós tínhamos a navegação, mas nós precisávamos de energia. Foi um dos fatores que fez a navegação a vapor parar no Tietê, a abertura de novas estradas e o início da construção das hidrelétricas. Não tinha mais como os navios daquela época... A própria obra da construção da barragem atrapalhou. Foi um dos fatores que fez terminar, fechar de vez a navegação daquela época. Quando você vai fechar uma barragem... Aquela região nossa tinha muita mata, então o estado buscou pessoas que pudessem ir lá desmatar aquelas partes que seriam inundadas pelo reservatório que seria criado. É isso que eu estou lembrando agora, e até me emociono ao falar, porque papai muitas vezes, na hora do almoço, do jantar, contava que ele foi uma daquelas pessoas contratadas pelo Joaquim Momesso, pelo seu Júlio Azenha, os dois, antes do porto de areia. É isso que eu queria falar para vocês, por isso que depois nós vamos ter que arrumar essa edição aí para não ficar muito perdida, muito vaga. Como tinha que tirar muita madeira, ia sobrar muita madeira, que ia ficar inundada, eles, Júlio Azenha - outra família tradicional da nossa cidade - e Joaquim Momesso, família em que papai foi criado, abriram duas serralherias. Por quê? Vai extrair madeira, a madeira tem um valor econômico. E como Barra Bonita já tinha cerâmicas, quanto mais madeiras chegassem para queimar as telhas, melhor para a construção civil, e madeiras nobres até que depois virariam móveis. Muita madeira nobre no Tietê, nas margens do Tietê. E aquilo tudo ia ficar inundado, então papai nos contava que eles iam para aquela região onde ia ser formado o lago da barragem. Porque da minha cidade para a barragem são três quilômetros e meio, mas o lago, depois da barragem, ele atinge quase cento e dez, cento e vinte quilômetros. Quer dizer, de Barra Bonita, até a região de Botucatu, Anhembi. Isso para as pessoas poderem se localizar, geograficamente falando, é importante. E também entrando numa parte lá na bacia do rio Piracicaba. Imagina quanta madeira tinha que tirar e que foi tirada. Mas sabe como eles faziam para transportar a madeira? Eles faziam uma jangada com a própria madeira, que ia depois servir para a serralheria. Então, não era barco que eles utilizavam. Alguns utilizavam algumas dessas barcaças que ficaram na cidade lá e que foram leiloadas. Mas muitos faziam sua própria jangada com a madeira que ia ser comercializada. Então eles ficavam assim um mês na mata cortando a madeira, armava a jangada e depois desciam de varejão. Varejão é uma vara que marinheiro usa, de preferência feito com a madeira guarantã, que é aquela madeira que enverga, mas não quebra. Olha a dificuldade daquela época. Eles contam que onde eles ficavam acampados, enquanto estavam lá deslenhando, cortando as madeiras, eles tinham que pousar em cima de árvore, por causa de bicho. Tinha de tudo naquela região: onça, jaguatirica, gado que vinha mastigar a coberta de um. Tempos difíceis. Quer dizer, difíceis mas as pessoas naquela época também eram um pouco mais, vamos dizer assim, a palavra rude, não é rudimentar. Então, se fosse nos dias de hoje, alguma coisa que procurássemos ali fora na rua, talvez para eles, apesar de ser um serviço difícil, mas era o que se tinha para fazer. Mas eles contavam. Inclusive, tem uma passagem interessante, que da região que eles traziam a madeira e antes de chegar à nossa cidade lá, tinha o tal do local que eles chamavam de paredão, que hoje tem uma ilhota lá, que é a Ilha do Quebra Pote, na margem da cidade de Igaraçu, Tietê. E, por ser um lugar... Esse paredão era um local que tinha um grande poço. Por exemplo, se o rio Tietê sempre teve uma profundidade média de oito, dez, doze metros, naquele local tinha trinta. Então se formava um tipo de redemoinho. E, muitas vezes, essas jangadas que eles faziam com a própria madeira que ia ser comercializada entrava naquele redemoinho e ficava um dia inteiro, mesmo com o maior esforço físico que eles pudessem impor ali, eles não conseguiam. Você tinha que ter a paciência de a própria correnteza do rio lhe tirar daquele vórtice. Ele me contou que uma vez chegaram a ficar dois dias e meio esperando um vórtice, por conta do poção e por conta de épocas de chuva e de aumento do nível da água do rio, aquilo aumentava e formava esse vórtice. Então ficavam virando em volta lá até o próprio rio liberá-los, até chegarem com essa madeira. E praticamente meu pai então sempre esteve em cima d’água, no rio. Depois, com a abertura do porto de areia, tal. Mas meu pai depois... Naquela época, o gasogênio e tudo mais, eu sei que meu pai... Nós que somos de uma família de quatro irmãos - o Edson é o mais velho, eu depois, o Edegar e o... O Élcio e o Edegar são já temporões que a gente fala. Por exemplo, o Élcio nasceu onze anos depois de mim. Então, eu e o Edson temos dois anos de diferença, porque eu nasci em 1955, o Edson nasceu em 1953, já o Élcio nasceu nove anos depois, o Edegar onze anos depois. Mas deixe-me ir lá. Meu pai foi um grande mecânico, que naquela época tinha que saber se virar. Começavam a surgir os primeiros caminhõezinhos pé de bode, Ford 29, aquela coisa toda, motor para poder pôr naqueles barcos, naquelas lanchas chatas, que a gente fala, que sobraram lá da empresa Sorocabana. Meu pai se envolveu muito com mecânica e nós somos nascidos dentro de oficina. Apesar de eu desenvolver algumas atividades hoje, uma diferente da outra, se você perguntar: capitão, qual a sua verdadeira profissão? O que você mais gosta? Eu não consigo ficar longe de oficina, tanto que nós temos um estaleiro lá, onde a gente constrói embarcações para nós. Porque meu pai foi a primeira pessoa a fabricar o primeiro barco para se tornar um barco de turismo. Era um barquinho pequeno, de doze pessoas. É uma história longa isso, viu? Não sei onde vai dar esse documento e o nosso. São coisas que vão dias, porque eu estou tentando contar para vocês... Eu ouvi durante trinta anos da minha vida, eu não sei como traduzir para vocês uma história que eu precisei de trinta anos para saber dela toda, sabe? Mas eu vou tentar resumir de uma forma assim para que as pessoas possam conhecer um pouquinho dessa história, não minha, da minha cidade, da minha família, das outras famílias. Acho muito importante. Estou muito grato de estar aqui, porque, olha, eu fiz muitas matérias, produzi alguns documentários para os outros, para o Tietê, mas ter a oportunidade de falar disso é a primeira vez. Vocês aqui do Museu da Pessoa estão de parabéns. Eu vou interromper para cumprimentá-los, para aplaudi-los, porque é muito interessante deixar registrado isso na história. Talvez nunca pudesse ter a oportunidade... Nunca teria a oportunidade de contar isso. E ninguém da minha cidade, porque muitos... Ainda bem que estou bem de saúde, estou com sessenta e três anos, disposto, estou trabalhando, vocês me convidarem para vir aqui registrar isso, uma coisa que poderia ser perder não fossem vocês estarem fazendo esse magnífico, maravilhoso trabalho de registro histórico das pessoas. E oficina. E oficina. Meu pai era do tipo daquelas pessoas, naquele tempo... Hoje em dia vocês conhecem como estacionamento de carros, onde vende carros, agências de carros. Naquele tempo eles falavam... Como é mesmo a palavra? Desculpe, não quero ofender o meu pai, é rolista: uma pessoa que fazia muito rolo, comprava, vendia carro. Eu lembro que meu pai saía muitas vezes em viagem, quando ele voltava, ele voltava com seis, sete, oito tratores, um monte de carro, comprava já usado, dava aquela arrumada na oficina, pintava novo e punha para vender. Graças a Deus lá em casa nós sempre fomos de uma família humilde, de classe média, porque papai sempre foi muito esforçado, muito fuçador. E talvez ele tenha sido um dos primeiros mecânicos da minha cidade. Eu sei que tem mecânicos de mais idade que ele que já partiram: Pintacuda, alguns que eu estou lembrando aqui agora, Manuosti, Carlito Botaro, Antônio Fuz, mecânicos históricos da minha cidade, infelizmente todos já partiram, exceto um que eu lembrei agora. Então, mecânica e tal. E por essa questão, eu vou ter que falar uma coisa agora aqui para vocês para voltar lá no que a gente estava. Deve ter ficado, assim, uma lembrança na memória do meu pai com essa questão da navegação, voltando lá, já falei como papai e mamãe se conheceram, vamos voltar para a gente não se perder, talvez precise editar e tudo mais. Mas agora eu já vou entrar na questão do pioneirismo do turismo, mas eu acho bom pararmos um pouquinho aqui pelo seguinte, eu estou contando uma coisa, eu acho que eu estou passando a carroça muito lá na frente dos burros, e vocês vão perder o roteiro de vocês, a gente pode deixar alguma coisa para trás. Você perguntou, eu só estou aqui tentando me lembrar, a última pergunta foi: como papai e mamãe se conheceram? Nas margens do bucólico Tietê daquela época, pós finalização da navegação a vapor, que era muito movimentada e tal. O Tietê ficou assim, um rio para os namorados se encontrarem nos finais da tarde, no sábado e no domingo.
P/1 – É, eu perguntei do seu pai.
R – Isso.
P/1 – Eu queria que o senhor falasse um pouquinho também da sua mãe. Porque o senhor falou do seu pai...
R – Minha mãe foi nascida num sítio que se chama Palmital, pertinho da nossa cidade - Iguatemi, Palmital, Corumbatá. Eu sei que ela veio do sítio. Como eu te disse, meu avô Guerino e avó Amábile abriram lá o primeiro hotel da cidade, não tenho certeza se eles foram os primeiros, os pioneiros do hotel. Eu sei que eles acabaram vindo da roça para abrirem um hotel na cidade. Esse hotel, eles tiveram em dois locais, um ali próximo, mais ou menos uns 150 metros desse Porto da Sorocabana, até hoje conhecido como a rua do Porto. Havia um Largo da Sorocabana, tinha um local que mais parecia uma fonte, um chafariz, mas que era o bebedouro dos animais, porque tudo lá era transportado em carroças, puxadas por animais. Então estou aqui recordando - pitorescamente falando - aquele local do pátio da Sorocabana que existia lá na minha cidade, e ali passava a linhazinha do trem. E eu fui um garoto muito maldoso, porque para o trem passar naquele trecho da cidade, a estação era um pouquinho mais à direita, ia uma senhora, o trem vinha de Mineiros do Tietê... Ah, esse terminal que levava o café, o tramo da ferrovia nossa, da Maria Fumaça - tem o número dessa Maria Fumaça: 105 - é um trem histórico, infelizmente a cidade deixou ir embora uma coisa que hoje poderia ser o maior atrativo turístico da cidade, sabe? Perdeu-se o interesse, pois as políticas... Se tivesse hoje essa estação... A estação permanece, hoje é museu histórico, foi a emissora de rádio onde eu comecei minha carreira de rádio, lá pelos meus treze, quatorze anos, eu estava já metendo a boca no microfone, falando alguma besteira lá. Primeiro lá foi estação de trem, do Sorocabana, depois Estação da Rádio Emissora da Barra, que foi a primeira e está lá até hoje, e agora museu histórico. Então, essa linha férrea, ela ligava o bairro do Barreirinho, que fica um pouco para cima da nossa barragem, passando por Barra Bonita. Porque no Barreirinho também existia uma usina de açúcar, e tinha outras fazendas de café. Passava em Barra Bonita, seguia para Mineiros do Tietê, que fica a uns dezessete, dezoito quilômetros hoje, por estrada, da nossa cidade. E era bitola estreita que eles falavam, a roda do trem, sabe? Era bitola estreita. E essa linha férrea nossa, ela ia até a cidade de Dois Córregos, um pouquinho para frente de Mineiros do Tietê, onde já entrava a bitola larga, que era o trem que descia até o Porto de Santos. Isso é importante contar, que isso aí também... Senão se perde, vai se perder com o tempo. Que na minha cidade teve uma linha férrea, que hoje não tem mais, Mineiros teve, também não tem mais, não passa mais nada. E, bom, sabe, para o trem passar naquele lugarzinho lá, que era um lugar movimentado, antes de chegar à estação, eles usavam um tipo de um... Hoje a gente, na rua... Nós temos os semáforos, os faróis, naquele tempo não. Era um braço que ficava num poste alto, que se estivesse baixado, era para o maquinista falar: “Pode vir que nós estamos aqui para o trem não atropelar nenhuma carroça, nenhuma pessoa”. Sabe essas coisas? Cara...
(risos). E esse, senhora, ele ia lá, era um mecanismo perto desse bebedouro de cavalo, ele ia lá, abaixava aquilo, fazia aquilo abaixar, mas aquilo mandava um sinal por cabo, por arame, era tipo assim, arame. Esse poste, com aquele braço, ficava lá numa curva a uns trezentos metros de onde o trem poderia chegar, naquele ponto movimentado. E eu tinha mania de ir lá e voltar, para fazer o trem parar. Eu era fascinado por trem, sabe? Aquele barulho, aquele tchi tchu tchu tchu, tchi tchu tchu, tchi tchi tchi. Era fascinado. Tanto que um dos presentes de que eu mais gostei de Natal - um dos Natais da minha vida - foi trem. Eu não sei que fascínio que eu tinha por trem. E lá eu tinha um trem. Eu ia muito ver o trem partir da estação. Engraçado que ele ia de frente para Mineiros, depois voltava com aquele vagão preto, aquilo era meio fantasmagórico que fala, esquisito, um trem que vai assim, volta de ré para cá, que é onde ficava a parte da lenha e da água que fervia, que fazia funcionar tudo aquilo. A gente fazia o trem parar e fazia depois o senhor ir lá, voltar. Muitas vezes eu fiz isso. Peço perdão para ele. Eu sei que ele faleceu há muito tempo. Conheci o chefe da estação. A gente conhecia todo mundo. Eles já eram pessoas idosas, e nós moleques judiávamos desses coitados aí. Mas eles adoravam a gente. Muitas vezes, da mesma forma que a gente fazia o trem parar... Porque ele abaixava aquilo e ia para o outro lado, sabe, fiscalizar ali. E a gente tinha um... Quando ele via, o trem estava parado, tocava de lá. Olha, eu lembro que apanhei do meu pai uma vez só (risos), assim de cinta, não se usava violência. Na verdade, foram duas cintadas que eu levei do meu pai - mais o meu irmão Edson - uma por fazer o trem parar e a segunda por ir à porta dos correios buscar jornal, que papai fazia a gente buscar o jornal toda tarde lá, o jornal chegava à nossa cidade por volta das três horas da tarde, duas, três horas. Olha que hora o jornal chegava. Ah, chegava com o trem, claro. Chegava com o trem. E ficamos lá batendo, um empurrando o outro, sabe essa brincadeira de criança? E forçando a porta do correio, e ele foi reclamar com o papai. Mas papai batia porque a mamãe falava: “Esses moleques, a reclamação chegou aqui”. Então, chegava ao quarto, a gente só dava o grito para a mamãe saber que papai estava corrigindo a gente. Mas havia muito respeito naquela época, a gente chamava pai de senhor, mãe de senhora. Foram duas vezes só. Bom, falamos aí dessa parte. Você perguntou da minha mãe.
P/1 – Isso.
R – Que veio do...
P/1 – Você parou na parte que eles estavam abrindo um hotel aqui…
R – É. Um hotel ali perto do porto, e meu pai no rio com essa história de barco da Sorocabana, de trazer madeira, eles se conheceram ali, Nadir Terezinha Schiavo Palmesan. São três irmãs...
P/1 – Mas você começou a falar do trem.
R – Do trem.
P/1 – Por causa de alguma relação com a sua mãe.
R – É porque o hotel era bem ali, pertinho da linha do trem ali.
P/1 – Esse hotel ainda existe?
R – Hã?
P/1 – O hotel ainda existe?
R – Existe. Hoje é uma... Devia ter ali uma placa de aluga. Foi ainda por muito tempo, depois o seu Abdala, uma pessoa conhecida lá na cidade, também já partiu, já faleceu. E esses tempos atrás eu reparei que ali virou uma, tipo assim, agência de turismo. Não é mais hotel. Não é.
P/2 – Mas o que fazia? Como era a personalidade dela?
R – Carinhosíssima.
P/1 – Ela chegou a trabalhar no hotel?
R – Olha, propriamente, não. Elas ficavam lá, porque eles moravam nos fundos do hotel, então, de uma forma ou de outra, tinha contato ali. Naquele tempo, era normal as pessoas morarem no mesmo local do trabalho, morarem no mesmo local do trabalho. E assim... Dizer que ela foi o tipo de camareira, de trabalhar no atendimento, não. Minha mãe sempre foi do lar. Sempre foi do lar. Aliás, minha mãe sempre gerenciou. Meu pai, de não parar para nada, muito agitado, tal, meu pai era uma pessoa tran... Eu falo agitado no modo de fazer as coisas, de ter aquela visão do empreendedorismo, dos negócios de trator dele, de oficina, tomava muito tempo. Eu lembro que foi sempre assim. Quem pagava as contas, quem gerenciava, era tudo mamãe... Que anotava tudo. O bacana é o seguinte, rapaz: no ano passado, agora em 2018, a nossa empresa completou o seu jubileu de ouro, cinquenta anos do turismo fluvial. E por sorte das anotações de Terezinha e da vovó amada Amábile, nós conseguimos fazer um fiel histórico de toda a história da navegação, dadas essas anotações da minha mãe, sabe? Ela controlava tudo. A gente que sempre trabalhou junto com o papai, ela não... Era assim... Olha, para vocês entenderem, trabalhávamos juntos, estudávamos, tal, e sempre dentro da oficina, tal, fazendo barco, coisa e tal, isso ainda na cidade, nós não tínhamos estaleiro ainda. Se a minha mãe deixasse o meu pai dar o dinheirinho do final de semana para nós - para mim e para o Edson - ela sabia que ele sempre daria um pouquinho a mais, então mãe é mãe, ela tem que cuidar da cria: “Então deixa, Raphael, que eu dou dinheiro para os meninos”. Tipo assim, vai, como falar cinco... O dinheiro daquela época, eu não lembro mais, a nossa moeda mudou tanto - cruzeiro, cruzado, teve até o...
P/1 – Os réis.
R – Não, eu não fui do tempo dos réis. Eu vi... Não, acho que eu fui sim, em 1955, se eu não manipulava, porque comecei a pôr o primeiro dinheirinho no bolso depois dos dez anos de idade... Porque a gente precisava de dinheiro. Era um dinheirinho para ir à sessão de cinema da tarde, do domingo à tarde. Dez, doze anos, doze, treze anos de idade, era isso. E fomos crescendo e continuou o sistema, porque nós fomos crescendo, mas a empresa de navegação também foi crescendo. Então, nós já nos tornamos pilotos - eu e o Edson - o salariozinho era melhor. Mas sempre depois da missa que a graninha entrava na mão, porque primeiro tinha que ir à missa, depois da missa é que mamãe e papai davam o dinheiro para ir para os bailes da vida, sabe? Então, era uma coisa bem assim. A coisa antiga era assim. Jamais poderia chegar à porta de casa uma reclamação de qualquer pessoa que fosse da escola. Eram tempos diferentes. Professor dava reguada na tampa da orelha da gente, reguada na cabeça, tacava o apagador lá da frente para pegar na testa. E aí, se reclamasse para o pai e para a mãe, apanhava em casa. Apanhava do professor e apanhava em casa. Porque o professor era o segundo pai. O professor, além de ensinar a matéria, ele fazia a parte do ensino moral. Educação Moral e Cívica era uma matéria que nós tínhamos na escola - civilidade, educação, patriotismo, essa matéria pegava tudo isso. Hoje, se um professor... Porque os alunos são terríveis, nós também fomos, mas nós éramos corrigidos ali, tempo em que ficava de pé atrás da porta da escola, de castigo, ou ajoelhado em cima do milho. Vocês conhecem essas histórias? Eu sei que vocês já devem ter entrevistado pessoas que devem ter falado disso, corretivo: “Você hoje não sai para o recreio”. Sabe? Era mais ou menos assim. E ai se eu reclamasse em casa, apanhava duas vezes: apanhava do professor e apanhava em casa, porque não foi correto na escola. E saudade de todos os professores.
P/1 – Vamos falar um pouquinho...
R – Vamos. Vamos.
P/1 – O senhor nasceu em 1955...
R – Desculpe-me, viu? Ir tão longe...
P/1 – Não, que é isso? A gente vai voltar para essa parte. Mas vamos pegar o comecinho, quando você nasceu, como era, a relação com seus irmãos.
R – Eu nasci em casa, na mão de parteira. Eram poucas as pessoas que nasciam em maternidade, em hospitais. Era tudo parto em casa. Nós tivemos uma senhora lá em Barra Bonita, muito famosa, “dona Maria Loura” - Amélia Lode - ela foi a minha parteira, assim como foi de todo mundo, praticamente. Quem nascia naquela época, nascia na mão dessa senhora.
P/1 – Seus irmãos também?
R – Ou na mão da própria avó, a mãe da mãe, tal. Eu nasci em casa, meu irmão, quase todos nasciam em casa e quase tudo era parto normal. Era diferente. Eram outros tempos. Eu nasci em casa às onze e uns quebradinhos da noite.
P/1 – E como era a relação com o seu irmão, com os seus pais, essa parte, antes de você entrar na escola? Você brincava na rua? Você lembra?
R – Sim. Eram umas brincadeiras muito sadias. As nossas brincadeiras eram jogo de burquinha, rodar pião. Como a cidade tinha muitas cerâmicas, então a matéria-prima, que é a argila, eles faziam aqueles depósitos imensos, que se tornavam assim montes altos, chamava de montanha de argila. Então, a gente pegava uma daquelas partes quando chovia - hoje vocês chamam isso de toboágua, de tobogã (risos) - meu Deus do céu, aquilo a gente descia de barriga, de costa, punha pneu, descia dentro do pneu rodando, quando não, entrava no pneu, alguém punha o pneu de pé, a gente descia dentro do pneu rodando, para sentir a pancada lá embaixo. As outras brincadeiras eram carrinho de rolimã... Nós quase não tínhamos as pontas dos dedos, de tanto passar rolimã em cima do dedo. Sola de pé não existia. Nunca tive uma bicicleta zero quilômetro. Hoje as pessoas, no consumismo, todo mundo ficou... E, olha, de certa forma, me dá uma pena dessa geração atual, porque deixaram de viver a simplicidade das coisas. A alegria de ver a televisão preto e branco chegar em casa foi uma coisa fantástica, mas que também distanciou as pessoas, sabe por quê? Antigamente, a gente sentava com as cadeiras na calçada. Você conhece uma música, ‘Gente Humilde’?
P/1 – Conheço.
R – “Tem certos dias em que eu penso em minha gente...”. Essa música retrata uma realidade muito interessante. Os vizinhos daquela rua sentavam todos, levavam as cadeiras e conversavam. Quando se formava a roda das crianças, sempre tinha o contador de história, que contava história de assombração. As luzes da cidade se apagavam às nove horas da noite, então nós pegávamos o mamão verde, qualquer quintal tinha mamão, qualquer quintal tinha sua plantaçãozinha de salsinha, cebolinha, alface, que, aliás, é uma dica hoje, as pessoas hoje tapam o quintal de concreto, quando poderiam deixar um espaçozinho para cultivar. Ninguém mais quer cultivar mais nada, isso é muito triste. Então, nós pegávamos o mamão, furávamos o mamão, o deixávamos oco, furávamos embaixo, fazíamos dois olhos, o nariz, a boca, acendíamos, fazíamos daquilo uma lanterna, que mais parecia uma caveira acesa. Interessante que todo mundo, a molecada, saía com aquilo para a cidade. Soltar pipa, não tinha nada de cerol, que fala hoje. Tinha a guerra das pipas. E eles escreviam nas pipas: furacão... Dava nome para as pipas. Então, de cima daqueles barrancos ficava soltando pipa. Brincadeira saudável. Aquelas ‘mães de rua’, que eles falam, tinha que atravessar na rua com um pé só, e o que ficava no meio tinha direito de dar aqueles tabefes nas costas, em que ficava a marca da mão do cara. E azar daquele que... O azar era de quem tomava o tapa, que não conseguia chegar do outro lado da calçada. Acho que a gente chamava a isso de ‘mãe da rua’, não lembro o nome disso tudo aí. Olha, lembro também de meu pai... Meu pai, como eu disse, ele fazia muitos negócios, e alguns sítios que nós tivemos, um deles, inclusive, até um pouco mais distante, no Paraná, a coisa mais gostosa que tem é você voltar um pouco para as origens do que os antepassados viviam fora da cidade, porque a cidade começou, todas as cidades começam numa pequena vila. E essa coisa de você ir dormir num silêncio total, mal e mal escutar ali a cigarra, você tem um céu diferente, porque você não tem a iluminação, que a luz da cidade ofusca, você consegue ver a Via Láctea no esplendor total dela. É fantástico. Eu me lembro de algumas vezes ter voltado para as origens lá dos meus avós, porque todos vieram do sítio, de sítios, vieram para a cidade. E como papai, em alguns desses rolos, comprava, vendia... Papai foi o tipo de pessoa assim que só não vendeu os filhos, a mulher... Como ele adorava fazer rolo. Era o negócio dele. Fantástico. Muito divertido, sabe? Era tradição também o nosso churrasquinho de sábado, que eu me conheço por gente, desde sempre, eu sempre vi no sábado, no comecinho da noite, a churrasqueira em casa acesa. E tem uma época do meu pai também, você perguntou da minha mãe, mas eu vou falar um pouquinho mais do meu pai, que eu lembro que ele comprou um caminhão Fenemê, que é esse Alfa Romeo - Fábrica Nacional de Motores - e fazia umas viagens para aquele Paraná, que não tinha nem um quilômetro de asfalto, quando voltava, parecia assim... Não sei nem dar o nome, um boneco feito de pó, que só dá para ver o branco dos olhos, de tanta terra. E em algumas viagens ele levava a família também. Lembro-me de ter feito muitas viagens, papai, mamãe, eu e o Edson na cabine de um Fenemê indo para o Paraná. Levava telha, voltava com café. Teve um período também, antes da navegação, antes do papai inventar o tal do turismo do Tietê. E minha mãe então, com as suas duas irmãs, Odete e Odila, e uma de criação, que é a tia Noêmia, era essa família da parte da minha mãe. Ah, minha mãe era ruiva e meu filho puxou, minha filha puxa até hoje essa parte ruiva, eu até uns tempos ainda tinha até o cabelo, e seu deixasse a minha barba um pouco crescer, também era uma coisa meio avermelhada. Meu pai, de cabelos lisos, mas ondeados. Vocês vão ver a fotografia deles em algum local. As minhas três tias são ruivas. Sabe esse pessoal de cabelo meio vermelho, bonito? Bronze, nem vermelho. Saudade. E, olha, infelizmente eu perdi o meu pai e minha mãe muito jovens. O meu pai nos deixou com cinquenta e um anos, no auge da criatividade dele, e a minha mãe tinha quarenta e seis anos, uma perda irreparável. Para mim e para o Edson, por exemplo. Acho que quando o meu pai morreu eu tinha dezessete anos, o Edson vinte. Já o Élcio e o Edegar, que foram os filhos mais... Que vieram temporões, para eles o baque foi muito maior, porque eles não tiveram... Tiveram pai e mãe por pouco tempo. Acho que o Edegarzinho tinha oito anos. Foi muito triste para nós a perda, e foi um perto do outro, questão de dois anos. Minha mãe foi primeiro, um câncer no seio, sabe? Do lado da nossa cidade, hoje, já existia naquela época, um dos melhores hospitais do Brasil para o câncer, que é o Amaral Carvalho. E meu pai, ele no final de uma tarde, em plena construção o primeiro grande navio nosso, que é o São Raphael, que leva o nome dele em homenagem, de manhã ele tomou... Sabe essas máquinas de solda Ger? Meu irmão viu, a máquina estava lá com um probleminha de solda, e como a gente sempre fez tudo, junto já com os funcionários, os colaboradores nossos, mas a gente sempre pôs a mão na massa junto ali. Meu pai viu o Edson, eu não estava, estava no Mato Grosso nessa época, eu já trabalhava para a Portobrás, que é uma empresa extinta, eu fui fazer uma expedição no rio Paraná e seus afluentes pela Portobrás lá, uma história, depois, de trabalho, porque acho que, em algum momento, nós vamos falar em que hora eu comecei a trabalhar na vida, não é isso? E meu irmão disse... Eu estava longe, foi uma notícia que veio assim, eu tinha perdido a mãe há menos de dois anos, de repente, estou lá no meio do mato, no meio do nada, quase lá perto de Rio Brilhante, lá para aqueles lados de Dourado, perto lá de Ponta Porã, num dos afluentes do rio Paraná, por coincidência o barco quebrou, esse barco em que eu estava, que é um barco com apartamentos, tal, que eu levava os engenheiros da Portobrás para fazer as pesquisas de batiometria e topografia. Eu era o comandante já nesses barcos. Aí, fui eu que levei, fui com esse barco, que era o barco da Portobrás, e eu fui de comandante já nele. Engraçado, a quebra da manga de eixo lá da cruzeta desse barco veio como um aviso, numa tarde, por volta das quatro horas da tarde, por coincidência - acreditem ou não - a hora em que o meu pai morreu. Porque não fosse isso, eu estava num local isolado, nós não teríamos que ter pegado os meios que a gente tinha lá - o barco, o bote - para sair daquele rio, para ir até a cidade de Rio Brilhante. Foi onde eu tive a notícia, para tentar conseguir comprar a peça do barco que tinha quebrado. O meu superior, o Renzo, o Carlos Tomenzoli, falou: “Olha, eu vou passar no centro telefônico” – celular, nem pensar, não existia – “Para ver se está tudo bem lá em casa, minha região lá, e vou ligar também para o seu pai, para a sua...”. Quando ele chegou lá, a telefonista... Foi espalhada a notícia, porque tinham que me encontrar para eu voltar para ir ao velório, para o enterro do meu pai. Sabendo da impossibilidade da falta de... Da impossibilidade de comunicação direta para a gente, o que eles fizeram? Eles soltaram aquilo: “Olha, eles estão em tal região, ali tem tal cidade, tal cidade, tal cidade”. E o único jeito de se transmitir notícia naquele tempo era através dos centros telefônicos, onde ficava a telefonista enfiando o pino para completar as ligações: “Olha, tem alguém com você de tal, sobrenome Palmesan, Hélio? Tem uma notícia, o pai dele faleceu”. Eu tomei a notícia lá no meio do mato. E foi duro voltar de lá para cá, porque eu voltei apenas com o short que eu estava e uma capa de chuva, sem camisa, tomando vários ônibus dada a distância, que eu estava quase na divisa do fim do Brasil, divisa do Brasil com o Paraguai. E essa viagem parecia não ter fim. E eu achando que poderia ter sido um dos meus irmãos, sabe? Tipo assim, falaram que é meu pai, que é mais velho, para não chocar tanto. Uma viagem, é melhor. São coisas que a gente lembra, mas que dá vontade de não tocar muito no assunto, dada a tamanha tristeza. E meu pai... A causa da morte dele... Pela manhã parece que ele tomou uns choques elétricos nessa máquina de solda, que culminou com um desfibrilamento do coração no período da tarde. A gente não sabe. Sabe, meu pai, acho que ele já tinha um pouquinho desse tal que se chama colesterol, diabetes, porque ele gostava de uma carninha um pouco mais gorda, talvez até um diabetes, a gente não sabe direito. A gente percebia que, de vez em quando, ele dava uma tratadinha, coisa e tal. Mas foram momentos tristes. Minha mãe e meu pai, todos que partem. Meus avós até que viveram mais. A avó Benedita não, que ela partiu muito antes disso daí, e o avô Fernando. Mas por parte da mãe, a avó Amábile... Isso impactou muito a vida dos meus avós também, porque eles viram a filha ir, o genro ir, que era meu pai. Mas minha mãe, Nadir Terezinha, ruiva, carinhosa, amorosa, daquelas mães que passavam madrugadas na cabeceira da cama quando a gente tinha uma febre ou alguma coisa assim. Aquela comidinha gostosa, aquela roupinha limpa, cheirosa. E a controladora das coisas, das documentações: no dia tal - Raphael comprou esse carro, vendeu aquele carro. A nossa contadora. A nossa administradora. As missas, as quermesses, as festas em família, gostoso ver papai, aquelas vitrolas que caíam o disco, sabe? Era rádio vitrola. A gente via papai e mamãe, às vezes, dançando na sala de casa, isso é muito gostoso de se lembrar. Isso sim vale a pena lembrar, um casal dançando dentro de casa, como se dançava antigamente, de rostinho colado. Em bailes de carnaval do clube da cidade, uma vida social bacana, uma convivência com toda a comunidade da cidade, com todos os moradores. A cidade era uma família só, sabe? Todo mundo se conhecia, o quarteirão, a vila, o bairro, a cidade era pequena, até hoje quase é assim, mudou um pouquinho. Mas, sabe, a grande herança que ele nos deixou é, tipo assim, o respeito com as outras pessoas. Por exemplo, nós somos uma família de quatro irmãos, nós não tivemos nenhuma irmã, então lembro bem a voz dele dizendo para nós: “Escuta aqui, vocês são quatro filhos homens, vocês não tiveram uma irmã, então vocês não sabem o que é ter uma irmã, vocês tratem a filha dos outros, as moças, como se fossem a irmã que vocês não tiveram, e coisa e tal”. Tipo assim, não abuse, respeite. Com certeza, se tivesse uma irmã, se chamaria Edna. Eu vi muitas vezes o meu pai falando isso - minha mãe e meu pai. Edson, Hélio - faltou a Edna - Élcio, Edegar, tudo com E, não sei por quê. Se eu tivesse uma irmã, com certeza, ela se chamaria Edna. Não tive essa irmã. E meu irmão Edson já tem quatro filhas mulheres. Olha como é diferente, está vendo? Minha mãe teve quatro filhos homens, meu irmão tem quatro filhas.
P/1 – E conte um pouco como foi o começo da escola. E eu não sei também, a trajetória profissional já estava ligada ali?
R – Na escola?
P/1 – Estava trabalhando com o seu pai?
R – Sempre. Olha, eu lembro assim de ter oito, nove, onze anos de idade, segurando um pedaço de vigota, e papai ali colocando a montagem dos motores. Vou te falar uma coisa, eu com doze, treze anos de idade, eu já era um mecânico, eu já sabia praticamente montar um motor, motor diesel. A gente mexia muito com tratores, papai comprava muito trator para reformar. Então, da minha primeira profissão mesmo, além de ser coroinha, ir lá beber todo o vinho do padre, comer as hóstias do padre (risos)... Eh, meu pai do céu. O Natal, naquele tempo, demorava a chegar, meninada. Era uma data muito esperada. Parecia que o ano tinha dez anos para chegar o Natal, para a gente ganhar aquele presentinho feito de madeira, um caminhãozinho feito de madeira, aquela kombizinha de plástico bem... O trenzinho que eu falei para vocês. Mas você me perguntou mesmo da...
P/1 – Escola.
R – Da escola?
P/1 – Mas pode falar também do Natal.
R – Houve um momento na minha infância em que eu tive algumas complicações com garganta, que eu tive uma nefrite, que eu lembro, problemas de saúde, que até complicou um pouco o meu funcionamento de fígado, e tal. Então, eu fui um aluno fraco no primário, porque eu tive que perder algumas aulas, ficar quase três meses, seis meses sem ir à escola, isso num ano, depois em um ano. Já tomou uma benzetacil, ou não? Conhece o nome da fera? Essa dói. Eu lembro assim, dia sim, dia não, tomar uma benzetacil de mil e duzentas unidades. Olha a cara dele (risos).
P/1 – Hoje em dia dói menos.
R – É. A inflamação de amígdalas, acho que eu engoli muito pus naquela época, meu deu uma nefrite, que é uma infecção sanguínea, não sei te dizer bem o que é. Então eu perdi muito... Eu fui um aluno fraco, tanto que até hoje, não sei se por conta disso ou não, eu sou bom em algumas matérias - Geografia eu sou ótimo. Adorava Ciências, até por causa do “seu” Lori, que é uma pessoa muito aberta, extrovertida, a professora. Isso já no ginásio eu estou te falando, minhas professoras de infância, a dona Cleide foi... Naquele tempo, tinha Jardim da Infância, a gente ia para a escola com seis, sete anos de idade. Um ano, dois anos, acho que até três anos de Jardim da Infância, depois é que você entrava no primeiro ano. Primeiro ano, cabeça de pano, segundo ano... Falava-se assim, não sei como era, até chegar ao quarto ano, que era o Primário nosso. Eu não sei como era, Primário, depois Ginasial... Naquele tempo nosso, entre o Primário e o Ginasial tinha a tal de Admissão, para você depois entrar na primeira série do Ginásio. Olha, na minha infância, eu tive esses problemas de saúde que atrapalharam um pouco. Fui bem, não repeti nenhum ano no Primário, tá? Mas, cara, aí aconteceu o seguinte... Voltando com o Tietê, voltando com os barcos, em 1966, já dentro de uma dessas oficinas do meu pai, meu pai inventou de fazer um barquinho, que é uma história que eu vou te contar já mais ligada à minha questão de escola. Então, no Primário, eu fiz isso, mas quando entrei no Admissão, para ir para o Ginasial lá, para o Colegial, eu já não era um bom aluno. Pô, eram os anos 60, não é? Cara, eu fui conhecendo mais o outro lado da vida, o lado mais extrovertido da vida. Nós ficamos conhecendo Beatles; a gente ouvia Beatles no rádio; Roberto Carlos cantando Calhambeque; essas coisas todas a gente foi conhecendo; chegou a televisão preto e branco, Embratel, não lembro o nome dessa primeira. E filho homem, tal, o papai sempre deixou a gente muito à vontade... Outra história que eu vou contar, talvez numa outra história aqui, que é mais da juventude. Sabe, eu vou ter que ir embora daqui hoje com vocês. Eu acho que eu vou ter que voltar num segundo momento, a não ser que vocês, em algum momento, possam ir para a minha cidade terminar essa matéria, porque daqui a pouco o meu motorista vai estar aí, eu vou ter que embarcar de volta. Essa história é muito comprida. No Ginásio, meu pai...
P/1 – Rapidinho, você tem horário para ir embora?
R – Eu tenho.
P/1 – A que horas você tem que ir embora?
R – Olha, se o meu pessoal não estiver aí fora me esperando, ainda... Eu falei para eles que aqui foi marcado de uma até às duas, eu falei para eles que talvez três horas.
P/1 – Que horas são?
R – Mas eu acho que eles podem ficar até um pouco mais. Escola, mau aluno. Não sou um bom exemplo de aluno, sabe por quê? Como estava falando do Primário, tudo bem aqueles problemas de saúde, mas já no Ginasial... Até no primário, papai e mamãe acompanhavam muito bem o boletim, nas depois a gente matava o boletim já no Colegial, no Ginasial. Olha, de Admissão para frente, eu já com os meus... O quê? Meus sete anos, eu estava na... Sete, oito, nove. É. Então, meu Primário foi dos sete, oito, nove, dez, onze, doze anos. Eu preciso arrumar a cronologia disso, até para eu me situar. Acho que com doze anos eu estava fazendo Admissão para ir para o Ginásio - Ginásio que fala, Colegial. Mas papai já tinha inventado o tal do barco do turismo, que é o Cidade Simpatia, que é uma história comprida essa, é bonita também. E eu nunca vi repetir Admissão, mas eu consegui repetir o Admissão. Eu falava que era ruim de Matemática, mas é mentira, eu matava a aula.
P/1 – O senhor matava a aula para quê?
R – Muito. Para ir para a margem do rio nadar de noite, de dia, não tinha hora. Nadar. Sabe qual era uma das brincadeiras nossas? O Tietê, na frente, na minha cidade, ele tem uns cento e oitenta, duzentos metros de comprimento na largura. Era sair do barranco, bater o pé no outro e voltar. Atravessar o rio oito, nove, dez vezes por dia. Então, quer dizer, eu sou um exímio nadador. Naquela época, como papai já tinha feito barquinho, tal, já estava começando a construir o Porto, comprou um monte de madeira assim, uns eucaliptos, para fazer o Píer. Bom, sabe, na escola a gente conhece novos amigos, que têm as mesmas ideologias (risos). Sabe aquele negócio, ou é trigo ou é joio? Trigo e joio? Tudo homem e tudo em busca de novas aventuras, namoro e tal, juventude. Vocês passaram por isso, em épocas diferentes. Mas... Então, a gente praticamente tinha os mesmos gostos pela vida. Na esquina do Ginásio, do CENI onde fazíamos o Colegial, tinha uma padaria, que também era bar. Na esquina de cima tinha um bar que tinha um pebolim - o pebolim e o bilhar. O Anésio era o nosso... Não sei como chama. Esse que toma conta dos alunos, esqueci o nome. Tinha um nome. Tipo assim, o cara que ficava olhando.
P/1 – Inspetor.
R – Inspetor de aluno. Inspetor. Tivemos vários. Mas fui muito sacana. Então, a gente matava... O ano, 365 dias, na metade do ano a gente já tinha 300 faltas. A gente pulava o muro e ia embora, não ligava nada, escola nada, o ano que vem eu termino esse ano. Eu acabei ficando quatro anos na primeira série e quatro anos na segunda série. Quer dizer, sou um péssimo aluno, que eu precisei de oito anos para fazer duas séries. Oito anos. Eu vi todas as minhas amigas de classe irem para o Ginásio, depois o Colegial que falam. Tinha o Colegial? Isso. Era o Ginasial e o Colegial. Que o Ginásio hoje é o segundo grau. O primeiro grau é o Primário, o segundo grau... Hoje é tudo emendado, porque vai até a oitava série, não é isso? Então, é o segundo grau. Por isso que eu falei, você perguntou: “sua formação”. Dentro da escola, eu fui até o segundo grau, depois eu acabei indo me formar dentro da própria Marinha, dezoito anos de estudo para chegar a capitão. Porque a gente matava aula. Se não era para ir nadar no Tietê de noite, tinha um trampolim... Em frente à minha cidade tinha uma praia, uma praia artificial, onde morreu muita gente por ser uma praia artificial. Mas tinha trampolim, tinha os pedalinhos, a gente pulava de cima do barco. Quer dizer, se não dava para ir nadar de dia, ou às vezes passava o dia inteiro nadando no rio mas não se contentava com aquilo, ia de noite também nadar no rio. Ou senão pulava simplesmente o muro para jogar pebolim no boteco da esquina da escola. Trezentas faltas na metade do ano, aí já fechava tudo. E cumpria até o fim, porque não podia, tinha que sair de casa falando que ia para a escola. “Mas repetiu de novo?” E meu pai era o tipo de pessoa assim que dizia: “A vida ensina”. Sabe? Minha mãe chorava: “Repetiu de novo”. Sabe aquelas coisas de mãe, de pai: “Mas repetiu de novo?” Ia conversar com os professores: “Mas meu filho não está indo bem no quê?” Ia até àquelas reuniões de pais de aluno: “Olha, o Hélio mata aula”. Sabe, a gente era muito livre, independente. Rapaz, deixa isso para lá. Anos 60, início do rock and roll - como eu falei para vocês - ia para a casa dos amigos, tinha as brincadeiras dançantes, que às vezes fazia naquelas garagens de fundo, mas o nosso negócio mesmo era rio. Rio, rio, rio, vamos nadar de noite, roubava o barquinho do pai para dar a volta... Não é roubar, pegava. Porque de dia quem trabalhava com o barco éramos nós mesmos. Comecei muito cedo a embarcar, tanto que quando eu fiz quarenta e cinco anos de idade, chegaram em mim, falaram: “Você está aposentado por tempo de serviço”. Porque naquele tempo, antes de começar os cursos, a gente tirava um documento que se chamava Licença Avulsa. Moral da história, dezesseis anos, praticamente eu já era um comandante. Eu já saía do porto sozinho, com os passageiros, levava até à prainha, voltava. Porque a gente ajudou a construir, sabia como funcionava, sabia dos perigos da navegação, já entendia o que era vento e corrente, que nada melhor você fazer para aprender, sabe? Essa coisa de navegação é uma coisa que se você é tudo, se começa a fazer bem muito cedo, você fica bom naquilo. Principalmente se você gosta, ama aquilo que faz. E aquilo, para nós, era tudo. Se o rio era uma fonte de lazer, o barco era o brinquedo. Cara, é como você pegar uma criança hoje e dar um kart, sei lá o quê, na mão da criança. O que uma criança mais gosta hoje de fazer, eu sei que é a internet, esses jogos, tal, que não são muito saudáveis. Mas o lazer era o rio, durante o dia era o trampolim. E tinha o barco como brinquedo, que o trabalho nosso era um brinquedo, cara, então você acaba gostando, se apaixonando por aquilo, ficando bom naquilo que você faz, sabendo o perigo. Meu pai era daquelas pessoas que falavam: “Vai lá, faz isso. E faça, hein? Vai e volta”. Eu lembro que eu ia buscar o barco assim a nado. Nós não deixávamos no barranco para não furar nas pedras e tal, para a turma não mexer, o primeiro barquinho, o Cidade Simpatia. E, de manhã, quando ia buscar o barco para trazer para o barranco, eu punha a cordinha... A gente chama cabo, na Marinha não tem corda, a única corda que tem na Marinha é a do relógio, é cabo, não pode falar corda, ainda mais um comandante. Pegava o cabinho, amarrava na mão, ia nadando até o barco, meu pai ficava com a outra ponta na margem. Ou o Edson. Então ia lá, buscava, amarrava no barco, soltava o barco da bóia, e o que estava na margem puxava o barco. Moral da história: o que eu estou querendo dizer para vocês é que o nosso lazer maior era o Tietê. Bicho d’água, peixe. Só faltou eu ter escama, cara, de tanto ficar dentro do rio. E se criou um amor pelo rio, que depois... Já desde criança. Tanto que meus filhos, nossos filhos, eles são exímios esquiadores, navegadores. Que nasceram conosco, já está dentro do barco. Nasceu, praticamente o batismo é jogar no rio. Todos os filhos meus acho que com quatro anos de idade já sabiam nadar. E eu também aprendi a nadar muito cedo no corregozinho da Barra, não foi diretamente no Tietê. Sete, oito anos, eu já estava nadando também, talvez até antes disso. Então, rapaz, isso atrapalhou muito meus estudos, por esse lado da visão da coisa. E também a gente era sacana, viu? A gente arrancava o fusível do relógio da escola em dia de prova, deixava a escola às escuras. O que eu disse no comecinho das suas perguntas, eu não fui, eu não sou um bom exemplo de aluno. Eu tenho dificuldade para dividir com dois na chave até hoje (risos).
P/2 – Mas me fala um pouco sobre o começo na Marinha. Você tinha essa dificuldade também de disciplina? Como foi esse início?
R – Não. Sabe o que aconteceu?
P/2 – E como você…
R – Bom, eu parei os meus estudos, eu os interrompi na segunda série. Isso... Você quer ver? Se com treze eu estava na primeira série, repeti oito, treze, quatorze, quinze, dezesseis, dezessete, dezoito, dezenove, vinte, vinte e um, e se eu não me engano, eu me casei com vinte e dois anos, ou vinte e quatro. Eu morei em barco antes de casar, junto com a Adélia, minha mulher - eu e ela - só boas aventuras, só boas lembranças. Você falou de Marinha, minha história com a Marinha. Você não quer que eu fale primeiro de como surgiu, por que eu fui parar dentro da Marinha, estou na Marinha, sou da Marinha?
P/1 – Seu pai faleceu quando você tinha dezessete. Com dezessete anos você estava em...
P/2 – Viajando.
P/1 – Você estava viajando. É isso?
R – Sim.
P/1 – E como aconteceu? Como você entrou?
R – Olha, a minha vida profissional... Vamos direto ao assunto?
P/2 – Fale do seu interesse e de como foi esse começo na Marinha.
R – O Edson, quando... A barragem foi construída em 1953, terminou em 1963, a barragem. Mas a Eclusa... Eu não sei se preciso explicar o que é uma Eclusa. Uma Eclusa é uma parte da barragem, um vão que existe na barragem, onde entram as embarcações para passarem de um lado para o outro. Canal do Panamá fica mais fácil de entender, ou a própria Eclusa de Barra Bonita por si só, foi ela que tornou Barra Bonita a mais conhecida, quase que internacionalmente. Primeira Eclusa da América do Sul, inaugurada em 1973. Então, em 1963 foi inaugurada a barragem. A montagem dos equipamentos da Eclusa, as comportas, o término da obra dela, só teve início em 1969. Você vê, a barragem foi inaugurada em 1963 e a Eclusa em 1973, quer dizer, foram dez anos. E o que aconteceu? Não tem como fugir de novo da história do primeiro barco, cara. Meu pai, visionário - muitos, na época, o chamavam de louco porque ele construiu a primeira chatinha, que se chamava Cidade Simpatia, com aquela lembrança que ele ficou dos navios a vapor, lembra? Porque eu acho isso... Isso foi o que levou o meu pai a ter a visão, ou a vontade de ver a cidade de novo alegre, ou a tornar uma estância turística, ou se a visão empresarial, que eu quero dizer para vocês. Quando o meu pai fez o primeiro barquinho, o Cidade Simpatia, que está nas fotos aí, ele era para doze pessoas. E as pessoas viram o meu pai ali, construiu no barracão da oficina, levou para o rio. Foi para o rio, botou o barco na água, mas lá a margem era toda desarrumada, era matagal. Naquele momento, a administração... A Prefeitura da Barra estava começando a abrir a Avenida Pedro Ometto. Porque Barra Bonita é uma mini Rio de Janeiro, sabe? Tudo vai para o rio. A cidade vai e se debruça em cima do rio. Então, a nossa orla é muito bonita hoje, mas em 1966 não era. Tinha a estação antiga do trem, tinha a linha, aquilo era um matagal. O Porto da Sorocabana ficava mais abaixo e tem a rua que sai de frente da igreja matriz nossa, que o padroeiro é São José, que até hoje ainda está no nosso porto. Meu pai pega, vai lá, constrói esse barco, vai à beira do rio, coloca o barco na água, começa a limpar aquela margem do rio ali, o mato, as coisas, começa a construir cavoucando no barranco uma escadinha que chegava até a parte mais alta, onde está a Avenida Pedro Ometto hoje, e coisa e tal. O Celso, um dos amigos dele, da mesma idade dele na época... Depois ele contou para o meu irmão isso aí: “Edson, eu cheguei a comentar com os outros amigos nossos, amigos do seu pai, que o seu pai estava ficando louco, porque eu fui falar com ele, quando ele pôs o barquinho na água em 1966, falei: ‘Raphael, o que você está fazendo aí com esse barquinho?’” Já tinha o toldinho no barquinho, já dava impressão de que era um barquinho que ia pôr pessoas dentro, o colorido, o formato. “Que está limpando aí? O que você está pondo?” “Vou fazer turismo”. O Celso falou: “Ah, o Raphael não está batendo bem”. Era a coisa mais improvável que poderia acontecer, alguém distante de São Paulo, sabe, a Rodovia Castelo Branco ainda era praticamente, não sei se já 60, eu preciso lembrar a construção da Castelo Branco, mas acho que não batem as datas, não sei se ela havia sido iniciada, ou se já tinha concluído. Moral da história: Barra Bonita era longe de tudo, uma cidade pequena. Jaú, tal, Mineiros do Tietê… As cidades da região, a cidade maior do estado de São Paulo na época era Bauru, até hoje é uma mini Capital do interior do estado. Ribeirão Preto mais distante. Turismo, aqui no meio do nada? O Celso olhou, falou, comentou com os outros: “O Raphael, acho que não está batendo bem, ele pôs um barco lá, disse que vai fazer turismo nas águas do Tietê”. O local rodeado de canaviais, não tinha um atrativo. O atrativo era o rio. Era o rio. Aquelas lembranças dele dos tempos do apogeu da navegação, a cidade em movimento, aquela coisa mais alegre e tal, depois um rio bucólico, não servindo mais para nada. E lá vai o Raphael Palmesan construir, o vi construir, acompanhei, ajudei, bati solda no martelinho de solda. A gente sempre estava junto. A maior saudade que ficou do meu pai mesmo, de todas, é ele chegar sete horas da manhã, pegar no dedão do pé: “Vamos! Acorda! Vamos trabalhar”. Aprendi muito. Muita saudade do meu pai. Muita saudade de ficar junto com ele, sabe? Apesar das viagens que ele fazia, às vezes, que a gente não ia junto, atrás de comprar, vender veículo, que sempre eram serviços paralelos. O turismo chegou a um ponto... Naquela época, meu pai continuou comprando, vendendo carros e tratores, tal, nunca abandonou o ramo da oficina, mas inventou o turismo. Foi ele quem inventou o turismo. Mas não parou com os outros, porque até então não dava condições de sobrevivência. Turismo. Cadê o turista? Mas Barra Bonita se tornaria a sétima cidade turística do estado de São Paulo, com o barquinho de turismo do Raphael, Cidade Simpatia. Mais os prefeitos visionários que vieram - doutor Tatinho, doutor Duba, Kyelce - que foram dando um trato na cidade, fazendo jus ao nome Barra Bonita, aí começa a se expandir a orla do rio, a cidade começa a ficar bonita, os jardins, as praças, mudou completamente. Se você vir uma foto antiga da margem do rio da Barra, que era todo irregular, matagal, cerâmica, sabe, não era nada do que você tem hoje. Como eu disse, a Barra Bonita hoje é um mini Rio de Janeiro, ela agrega, no final de semana, todas as cidades da região, você não consegue andar em Barra Bonita direito aos sábados e domingos. Você vê placas de veículos de tudo quanto é lugar. Tudo converge lá, por ser essa estância turística. E meu pai tem muita contribuição nele, porque o turismo hoje é o carro-chefe, ele alavancou. Apesar de nós termos indústrias ceramistas e a usina de açúcar, o turismo passou a ser a terceira indústria da cidade. Hoje um pouquinho com a decadência das cerâmicas, é o segundo que talvez mais gera emprego. Mas começou com um barquinho de doze pessoas. Hoje na cidade tem oito navios e está chegando mais um novo - nove - que, juntos, têm capacidade para atender, num dia só, cinco mil turistas. Mas teve que ter o pioneirismo, e o meu pai foi o pioneiro disso. Mas o ano passado, que eu disse para vocês, nossa empresa abriu o selo lá do Jubileu de Ouro, cinquenta anos dedicados ao turismo - Cidade Simpatia. Eu vou fazer um cronograma para vocês: Cidade Simpatia, primeiro barco, doze passageiros; Crepúsculo Romântico, que já parecia quase um tipo de um ônibus na água, não bem parecido com um ônibus, mas quarenta e seis pessoas para a época era um barco grande. Cara, o Cidade Simpatia... O povo estava com tanta saudade do Tietê... Porque a única coisa que você viu do Tietê do fim da navegação - de 1953 até 1966 - é algum barco de areia passando lá, um bote de pescador, feito de madeira, bote de madeira, bucólico. Pensa numa coisa assim, marasmo. Só servia mesmo para ir no final de tarde, no domingo, lá com a família. E nada era muito arrumado. O footing, já ouviu falar do footing? Não sei se é assim que fala a palavra. Footing é o encontro de pessoas, de casais, de namorados, que rolava ali, olhava nos olhos, amor à primeira vista, ou iam se conhecendo, depois se formavam os casais, tal. Era feito em cima da Ponte Campos Salles, que, de vez em quando, passava um pé de bode ou outro, um carro - tinha meia dúzia de carros na cidade, dez, quinze carros, poucos passavam. O que eu vi passar muito em cima da Ponte Campos Salles era boiada. Boiadas assim de quinhentos metros de bois, aquelas pernas de bois passando em cima da ponte, essa imagem está dentro de mim até hoje. Hoje, Barra Bonita é uma cidade conhecida, muito conhecida. Aonde você vai, que as pessoas leem na placa: Barra Bonita, inevitavelmente você ouve: “Já estive lá” – ou – “Já ouvi falar”. Praticamente: “já estive lá fazendo o bendito passeio de barco”. Só que tem uma coisa, veja bem, eu ia falar do meu emprego, misturei para o barco, mas porque não teve jeito. Porque eu ia falar o seguinte: a barragem em 1953, ser inaugurada em 1963, a Eclusa em 1973, mas como... Depois a gente volta na sequência dos barcos, o crescimento, a evolução do turismo. Como o meu pai fez o primeiro barco, já estava no rio o Cidade Simpatia e o Crepúsculo Romântico, que é de 1968, vem para Barra Bonita um tal de Carlos Renzo Tomezzoli, daqui da Capital ele, que era funcionário de uma Comissão, funcionário do estado, da Secretaria de Transportes, mais precisamente, Carlos Renzo Tomezzoli, se eu estiver errado é Renzo Carlos Tomezzoli, mas acho que é Carlos Renzo. Ou Renzo Carlos Tomezzoli. Morou... Acabou morando junto com a nossa família depois, dada a tamanha amizade que se formou. Em 1969, engraçado que se você fosse perto da barragem naquele tempo e você olhasse a Eclusa sem as comportas, era apenas uma ala. Aquilo era fantasmagórico para você olhar. Não sei nem se... As pessoas nem se atreviam ir muito lá perto, porque aquilo ficou abandonado, a parte direita, onde fica a Eclusa, dez anos depois de a barragem construída. Então, ninguém ia lá. Era um negócio esquisito de olhar. Hoje tem a liga de paramento, a comporta, então você olha nela, é outra coisa, é uma obra, engenharia de arte. Mas quando havia apenas as duas alas e aquele buraco grande, fundo, escuro, não. Ninguém se atrevia nem a ir lá perto. Chega a Barra Bonita em 1968 o Renzo. Como o meu pai já estava estabelecido na margem do rio, quem ele procurou? Porque como a Eclusa é uma obra praticamente aquática, ele ia precisar de apoio de embarcações para chegar lá, para abrir a ensecadeira, para conhecer outras pessoas na cidade, se apresentar, dizer que ele era do governo, que estava chegando para montar as comportas da Eclusa, que aquilo ia entrar em funcionamento, ele foi procurar o meu pai. E, claro, meu pai deu toda a assistência. Com isso, eu e o Edson, estando ali, praticamente o Renzo já precisava da gente, a gente já era jovem, éramos moços. Eu só sei que o meu irmão foi contratado. A Cenat, a sigla significa Comissão Executiva da Navegação do Sistema Tietê-Paraná, uma comissão mista montada entre o governo do estado e o governo federal para montar a primeira Eclusa, que é a da Barra Bonita. As comportas, os equipamentos, os sistemas hidráulicos, elétricos, para fazer aquilo funcionar, porque até então barco nenhum passava. A navegação estava interditada. A visão do Catullo Branco é uma coisa que eu não posso deixar de falar para vocês. Porque quando o governo se propôs... Catullo Branco, esse é o maior nome da história. Esse Catullo Branco, se vocês virem a história da energia de São Paulo e aqui da Capital, ele é uma pessoa muito influente. No ano 2000, ele faria cem anos, Catullo Branco hoje então estaria com 119 anos. Procure saber da vida de Catullo Branco. A família dele está estabelecida aqui na Capital. Quando o governo se propôs a fazer as barragens do Tietê, na década de 40, para gerar energia, lembra que eu falei do lampião de gás? Esse Catullo Branco chegou para o governo e disse: “Olha, vocês vão fazer, eu estou sabendo” – até ele deve ter participado do projeto das barragens – “Mas tem um detalhe: se essas barragens do rio Tietê e do rio Paraná não tiverem Eclusas, nós vamos perder uma grande estrada de água para escoamento dos produtos agrícolas do Oeste brasileiro. Olha o que é a visão do homem. O Oeste naquela época, que ele falava, era Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, que era selva fechada, mata virgem, mas que se tornou a maior região produtora de grãos de soja do Brasil, e talvez do mundo. O governo falou: “Doutor Catullo Branco, o senhor tem razão. O que é esse negócio de Eclusa? Traz esse projeto das Eclusas”. Porque a Eclusa é uma coisa muito antiga na Europa. Tem Eclusas na Europa que foram construídas de madeira, as alas delas, sabe? Muito antigo. E a nossa hidrovia, praticamente hidrovia Tietê-Paraná que estamos falando agora, é uma cópia fiel assim da hidrovia do Vale do Tennessee, americano, do rio Tennessee. O Catullo Branco, com todo conhecimento que ele tinha, elevado conhecimento: “Olha, Eclusa é isso aqui, é montado assim, assim, assado e tal”. Então quando foram construir as barragens dos rios Tietê e Paraná, já construíram as Eclusas, só não montaram os equipamentos que as fariam funcionar. Entendeu? E hoje nós temos uma grande estrada de água lá. Bom, então o Catullo Branco é um nome que não pode ser esquecido nessa história. O projetor das Eclusas no Tietê e no Paraná, que tornou os dois rios navegáveis, uniu o estado de São Paulo a mais cinco estados, estendeu a navegação num raio de dois mil e 400 quilômetros, por onde são transportados hoje quase seis milhões de toneladas de carga que vêm de Goiás, descarrega em Pederneira, portos intermodais, Anhembi, depois vai de trem para Santos. Quase o mesmo papel que o Tietê cumpria num pequeno trecho entre os anos 1800 e 1900. Hoje, a amplitude é grande. Se você tiver um barco, por exemplo, colocar o barco em Barra Bonita, Anhembi, Barra Bonita, e se descer todo o Tietê, o Paraná, você vai chegar navegando até Foz de Iguaçu. Se você tomar o extremo Norte da hidrovia, você vai chegar até o centro do Brasil, em São Simão e Goiás. É tudo navegável.
P/2 – São quase quatro. Você quer ver se o pessoal chegou?
R – Vamos. E vamos fazer o seguinte: se eles chegarem, para eles baterem aqui avi...
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