Aquelas Mulheres
18 de fevereiro - terça-feira
Davina deixa o sobrinho Beto no bar e vai até a construção no fundo do terreno, onde está sendo erguido o sobrado da filha única. Sente uma ligeira dor de cabeça, mas decide ajudar o pedreiro a tirar as telhas, porque senão o serviço não anda. Atravessa a porta dos fundos, desce dois degraus e já está no quintalzinho. Segue o corredor que separa a rua dos três cômodos onde vive e caminha até o fundo do terreno.
É mais de uma hora da tarde e o sol castiga a Vila Curuçá Velha, na proximidades de São Miguel Paulista. Algumas vizinhas aproveitaram o tempo bom para estender as roupas nos varais, durante a manhã. Agora, estão lavando a louça do almoço. A maioria das casas, no entanto, está fechada, esperando seus donos na volta do trabalho. Alguns chegam perto das oito horas, pois além do metrô, têm de pegar um ônibus que leva quase uma hora para chegar no bairro. Outros têm carro, mas também chegam tarde, porque o trânsito é um inferno tanto na Marginal, quanto na Radial Leste.
Davina sobe a escada ainda sem revestimento e chega no segundo andar ainda por construir. Como o terreno tem um declive, a extremidade da laje encosta em sua casa num nível mais baixo. Mas com a ajuda de uma velha escada de madeira, pode retirar as telhas sobressalentes para fazer uma pequena cobertura sobre o tanque. Inicia a tarefa sem pedir ajuda ao pedreiro, que mistura massa no outro lado da laje.
Tinha sido sempre assim. Na semana anterior havia colocado para dentro mais de cinco carrinhos de areia sem esperar ajuda de ninguém. Aliás, nunca precisou de homem para dar rumo na sua vida. Não tinha criado a filha sozinha? E não era uma moça direita, estudada e trabalhadora? Pois, então, podia muito bem tirar umas telhas dali e levar para o quintal.
Tenta puxar a primeira, mas ela parece presa. Puxa com mais força, quando sente uma tontura e a dor de cabeça fica mais forte. Larga a telha e apoia a...
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18 de fevereiro - terça-feira
Davina deixa o sobrinho Beto no bar e vai até a construção no fundo do terreno, onde está sendo erguido o sobrado da filha única. Sente uma ligeira dor de cabeça, mas decide ajudar o pedreiro a tirar as telhas, porque senão o serviço não anda. Atravessa a porta dos fundos, desce dois degraus e já está no quintalzinho. Segue o corredor que separa a rua dos três cômodos onde vive e caminha até o fundo do terreno.
É mais de uma hora da tarde e o sol castiga a Vila Curuçá Velha, na proximidades de São Miguel Paulista. Algumas vizinhas aproveitaram o tempo bom para estender as roupas nos varais, durante a manhã. Agora, estão lavando a louça do almoço. A maioria das casas, no entanto, está fechada, esperando seus donos na volta do trabalho. Alguns chegam perto das oito horas, pois além do metrô, têm de pegar um ônibus que leva quase uma hora para chegar no bairro. Outros têm carro, mas também chegam tarde, porque o trânsito é um inferno tanto na Marginal, quanto na Radial Leste.
Davina sobe a escada ainda sem revestimento e chega no segundo andar ainda por construir. Como o terreno tem um declive, a extremidade da laje encosta em sua casa num nível mais baixo. Mas com a ajuda de uma velha escada de madeira, pode retirar as telhas sobressalentes para fazer uma pequena cobertura sobre o tanque. Inicia a tarefa sem pedir ajuda ao pedreiro, que mistura massa no outro lado da laje.
Tinha sido sempre assim. Na semana anterior havia colocado para dentro mais de cinco carrinhos de areia sem esperar ajuda de ninguém. Aliás, nunca precisou de homem para dar rumo na sua vida. Não tinha criado a filha sozinha? E não era uma moça direita, estudada e trabalhadora? Pois, então, podia muito bem tirar umas telhas dali e levar para o quintal.
Tenta puxar a primeira, mas ela parece presa. Puxa com mais força, quando sente uma tontura e a dor de cabeça fica mais forte. Larga a telha e apoia a mão no degrau da escada. Sente que as pernas amolecem e ouve um zumbido agudo. Perde o equilíbrio e cai.
1976
Na hora em que dona Mezinda trouxe a menina, Davina nem olhou direito. Estava passando o café. Foi quando colocou a xícara na mesa que reparou.
- Que foi isso, Davane?
- As meninas que me bateram, disse, fazendo beicinho.
Davina puxa a cadeira e se senta em frente à filha. Pega o rosto da menina e, à medida que examina o arranhão, a raiva vai aumentando até explodir em toda sorte de pragas. Que aquilo não era direito. Que a vizinha não olhava o que as faziam. Que, tá certo, olhava a menina de favor, mas não era possível deixar fazerem uma judiação daquelas. Que as filhas da vizinha eram tudo grande. Que aquilo era malvadeza. Que não ia deixar mais a menina lá. Que só deixava porque tinha que trabalhar, mas que, se fosse preciso, largava o emprego. Que podia criar a filha sozinha. Enquanto esbravejava, terminava de colocar a mesa. Olhou a menina e viu que ela chorava um chorinho miúdo. Parou de falar, pegou Davane no colo e começou a chorar também.
No Mappin, Davina se esgueira na multidão, segurando forte a mão da menina. Está contente. Já havia comprado a geladeira e está disposta a fazer outra extravagância. Como pegava o turno da tarde e da noite na Souza Cruz, o salário daria para pagar as prestações. Mas está feliz, principalmente, porque dona Pedrina havia aceitado olhar a Davane. Assim ela não precisa mais trabalhar com o coração na mão. Pára em frente a uma bancada e diz decidida:
- Davane, pode escolher a televisão que você quiser.
A menina olha maravilhada. Depois de percorrer os aparelhos com os olhos, aponta um todo vermelho.
18 de fevereiro - terça-feira
O rapaz vinha subindo a rua, quando vê que a dona do bar escorrega da pequena escada de madeira e parece desmaiar. Corre até o bar e avisa:
- A sua tia tá passando mal, lá em cima.
Beto sai correndo, sobe na laje pelo muro da vizinha. Quando chega no segundo andar, o pedreiro se esforça para amparar Davina.
- Ela desmaiou. Só não caiu no chão porque o braço ficou enganchado na escada.
Beto sustenta o corpo pesado da tia quando chega Joel, o vizinho. Os dois a carregam e descem a escada de alvenaria. Só então Beto percebe que, na correria, nem tinha se lembrado de subir pela escada.
Na sala, o vizinho tenta reanimar Davina, mas ela continua desacordada. Decidem então levá-la para o Posto de Saúde. Lá, Davina é reanimada, mas o médico diz que ela tem que ficar em observação. Beto, nervoso, não sabe o que fazer. Para não assustar a prima, liga para o noivo dela.
1996
Davane e Sérgio se conheceram em 90. No começo, Davina não gostou muito, porque o rapaz não foi falar com ela antes de iniciar o namoro. Ficou ofendida. Além do mais, o namorado anterior, Edilson, era bem mais caseiro e vivia dando presentes para toda a família. Mas com o tempo foi se afeiçoando, principalmente quando, dois anos depois, Serginho veio conversar com ela, propondo construírem o sobrado no quintal. Não se continha de satisfação.
Em 94, noivaram, num jantar a dois no Bimbo em São Miguel. Mas poucos meses depois romperam. Davina não se conformava e insistia para que voltassem. Quando reataram, ficou felicíssima. Mas algum tempo depois já estava impaciente com a demora do casamento. Dizia para Davane que Serginho estava muito devagar, que ela devia parar de comprar bobagens e começar logo a construção, que esse namoro estava demorando demais. Só deu uma trégua, quando iniciaram a construção em outubro.
Mas não ia perder uma chance como aquela. Lá na festa de ano novo em sua casa, com os pais de Sérgio presentes, aproveitou os brindes e deu o ultimato:
- Serginho, você vai me prometer que esse ano sai casamento.
19 de fevereiro - quarta-feira
Davane está na ambulância. Tem os grandes olhos redondos fixos na mãe, que dorme. Voltam de Ferraz de Vasconcelos, onde Davina foi fazer uma tomografia. Ao ser transferida para o hospital Tide Setúbal, fizeram o exame do líquido da espinha e constataram hemorragia cerebral. Davane havia sentido um vazio no estômago, quando Beto ligou avisando que sua mãe tinha passado mal. Ao descer do metrô, em Artur Alvim, o noivo já esperava no carro. O desconforto foi aumentando no caminho e quando viu sua mãe no Posto percebeu que o que sentia era medo.
A ambulância trepida nos avenidas esburacadas da zona leste. Davina acorda e se queixa de dor de cabeça. Davane não havia gostado nada quando o médico do Posto disse que a mãe seria transferida para o Tide, mas Serginho disse que não tinha outro jeito.
De volta ao hospital, Davane ouviu o médico dizer que ainda seria necessário fazer uma angiografia para saber a extensão do acidente. Mas que era preciso esperar uma semana para realizar esse exame.
1963
Naquela tarde, Davina aproveitou que não havia ninguém em casa e arrumou suas coisas. Saiu, tomando cuidado para que nenhum vizinho percebesse suas intenções. Foi até a rodoviária e tomou o primeiro ônibus que viu. Não agüentava mais aquela vida. O pai já vinha ralhando com ela há um bom tempo. Não podia fazer nada. Até com as amigas com já andava implicando. Ia procurar o seu destino.
Depois de duas horas, desembarcou em outra cidade do interior paulista. Naquela época, quando alguém fugia de casa, o povo dizia fugiu com o circo. Seu Plínio partiu dessa pista para procurar a filha desgarrada. Andou toda a região atrás de circo, vendo se em algum deles encontrava Davina. Tudo em vão. E o pior é que no interior moça que fugia de casa ficava mal falada.
Por isso, os patrões fizeram questão de arrastar Davina até Lins, para mostrar que ela estava trabalhando numa casa de família. O casal queria deixar bem claro que a moça levava uma vida honesta e de muito respeito.
Seu Plínio não teve outra saída a não ser aceitar a opção da filha. Algum tempo depois, Davina veio tentar a sorte em São Paulo e, em 67, quando o pai morreu de câncer, voltou pela última vez a Lins para buscar a mãe e a irmã caçula.
26 de fevereiro - quarta-feira
Médicos, médicos. Naquele dia já tinham sido três. O primeiro, no Santa Marcelina havia dito que Davina só sairia dali numa UTI móvel acompanhada de médico. Ela havia feito a angiografia, mas o doutor não disse nada. Nenhum esclarecimento. Depois de quatro horas de espera, chegou a tal da UTI. O médico que vinha acompanhar também não parecia de bons humores. Foi a viagem inteira calado. Não fosse a companhia da tia Glória, não teria agüentado. Quando chegaram no Tide Setúbal, o médico falou:
- O caso dela é de cirurgia. Então, ela vai ser transferida para o Ermelino Matarazzo. Até conseguirmos vaga, ela vai ficar aguardando na Sala de Emergência.
Depois foram mais algumas horas de espera interminável, vendo sua mãe gemendo de dor, sem poder entrar na Sala de Emergência. Só à noite conseguiram a transferência. Na hora da ambulância, veio o terceiro médico. Já ia se sentando ao lado do motorista, quando uma enfermeira falou:
- Doutor, é caso de acompanhamento com médico na UTI
- Não precisa.
- Doutor, precisa sim.
De muito mal gosto entrou com Davane na traseira da ambulância. Agora lá vinha o quarto médico no dia:
- Já comentaram com você o estado dela?
- Mais ou menos.
- Bom, ela está com múltiplos aneurismas no cérebro. Vai precisar de cirurgia, porque a qualquer momento pode sangrar e ela falecer. Esse tipo de cirurgia só é feito no Santa Marcelina. Assim que houver vaga, ela será transferida.
Qualquer coisa que um médico diz num momento de aflição tem o peso inexorável das verdades absolutas. Temos tanta necessidade de amparo e estamos tão paralisados pelo desconhecido que a palavra de um médico cai em nossas cabeças como sentenças. Como o polegar dos imperadores romanos: positivo, vida; negativo, morte.
Os gemidos de dor da mãe a deixam angustiada. Seriam o prenúncio do sangramento? Falecer. Essa palavra fica ecoando na cabeça de Davane a noite inteira.
1982
Sua mãe tinha saído no final da tarde e ainda não havia voltado. Era quase meia-noite e nada. Tia Rita já estava dormindo, mas ela ia ficar acordada até a mãe chegar. Tinha até chorado para ir junto no hospital, mas a mãe não deixou. Disse que hospital não era lugar de criança. Não era justo, ela e Márcia eram super-amigas. Queria vê-la.
A prima era quatro anos mais velha que ela e há quatro anos tinha a tal de anemia profunda. Toda vez que era internada, mandava cartas pela tia Maria. Márcia sempre respondia. Quando ficava boa, as duas não se desgrudavam. Eram iguais às mães, só que não brigavam tanto.
Achava que era só mais uma internação. Tanto que não deu muita importância, quando ligaram do hospital, pedindo para a tia Maria ir lá. Foi na casa da prima e deu o recado. Depois foi para a escola. Quando a mãe foi buscá-la é que levou o choque. Disse, a sua prima não está nada bem, eu vou pro hospital e você fica com a tia Rita. Foi aí que armou o banzé, mas não adiantou nada. Agora tinha que ficar esperando.
Escuta um barulho no portão. Prende a respiração e olha atenta para a porta. Ouve o ruído da chave. A mãe entra. O rosto cansado. Fala sem rodeios:
- Davane, se prepara que ela tá nas últimas.
Não consegue dizer nada. Corre para o quarto e começa a chorar.
Às 3 horas da madrugada um vizinho bate na porta e dá o recado:
- Dona Davina, ligaram do hospital dizendo que a sua sobrinha faleceu.
27 de fevereiro - quinta-feira
Davina havia passado a noite inteira gemendo e Davane acordada. Às 9 horas, a enfermeira entra no quarto e examina a paciente. Acha que ela está com dificuldade para respirar. Volta para o corredor e chama o primeiro médico que encontra.
Davane fica imóvel. Só os olhos correm entre a porta e a maca. Os segundos se esticam. A fisioterapeuta entra, olha a paciente e começa a fazer massagem torácica. Sem resultado. Vira-se para a enfermeira e dispara:
- Traz os equipamentos, que nós vamos entubar.
O precário dique que sustentava a serenidade de Davane se rompe. As lágrimas descem em torrente, inundando seu rosto. A fisioterapeuta tenta imprimir um pouco de tranqüilidade na voz e diz:
- É melhor você sair.
No corredor, Davane vagueia. A palavra vai se formando sutil, até que soa bem clara: falecer. E fica martelando, martelando. As duas mulheres saem, então, do quarto e a fisioterapeuta vem ao seu encontro. Diz que aquilo, provavelmente, é conseqüência do aneurisma, que sua mãe será transferida para a UTI para ter melhores cuidados e que ela deve ter calma.
Na volta para casa, Davane sente os ombros curvados e um peso muito grande. Entra em seu quarto, desaba na cama e dorme.
1990
Na última hora, Davane acabou optando por Publicidade e foi com as amigas fazer o vestibular em Mogi das Cruzes. Mas não teve coragem de ir ver o resultado. Estava na cozinha lavando a louça, quando Jerusa chegou gritando:
- Davane, Davane, nós passamos
Não acreditou. Abriu o portão para a amiga e as duas ficaram pulando e gritando no quintal.
Quando a mãe chegou da lanchonete onde trabalhava fazendo salgadinhos, na Vila Mariana, Davane contou. Davina abandonou por instantes o estilo durona, beijou e abraçou a filha. A partir daí, não conseguia se conter. Contava para todo mundo. Fosse qual fosse o assunto da conversa, achava um meio de falar que a filha fazia faculdade. Publicidade, dizia de boca cheia.
27 de março - quinta-feira
Naquele mês, Davane tinha sido liberada do trabalho no sindicato para cuidar da mãe e ficava com ela quase o tempo todo, desde que Davina saíra da UTI, no dia 3. Tia Maria imediatamente assumiu todas as tarefas da casa e passou também a cuidar do bar, junto com o filho Beto.
Nesse período, Davina mostrava as debilidades da doença. O lado direito do corpo estava paralisado. Não conseguia manter uma conversação lógica. Esquecia palavras no meio das frases. Nem sabia ao certo o que tinha acontecido com ela. Às vezes, tinha dificuldade para reconhecer as pessoas. Quando lhe contaram da cirurgia, ficou deprimida e não queria comer.
Davane chegava no Ermelino Matarazzo às 9 horas da manhã e saía às 9 da noite. Ia para casa, tomava um banho e dormia. Nos primeiros dias, a irmã de Sérgio passou a noite com Davina. Depois, era uma das tias que pernoitava no hospital. Quando não havia ninguém e nem mesmo Davane podia ficar, os acompanhantes de Lenice, a outra paciente do quarto, tomavam conta da mãe até que ela chegasse no dia seguinte. Além das tias Lena e Glória, participavam do revezamento no Ermelino, Giselda, uma amiga da família de muitos anos e Abadia, cunhada de Glória.
Glória era a mais nervosa. Já tinha feito um escândalo no hospital, quando a irmã teve uma forte crise de dor de cabeça. Foi quando Davina deixou a UTI e foi levada para o sexto andar, de clínica geral. Durante todo o dia, Glória viu a irmã gemendo de dor. Aquilo foi minando a sua resistência. Tentava pedir ajuda, mas não havia neurologista naquele andar. Já quase fora de si, questionou uma enfermeira, que pediu calma, pois a dor era normal, em função do aneurisma.
- Normal o quê. Como pode ser normal um ser humano passar o dia inteiro sofrendo de dor?
Quando Davane chegou, Glória já estava desesperada. A sobrinha foi então até a Enfermaria e armou tamanha confusão que acabou conseguindo a transferência da mãe para o setor de neurologia.
Depois, Davina havia melhorado e o irmão Neno decidiu enfrentar o horror por hospitais e acompanhar a mulher Lena na visita daquela quinta-feira santa. Mas Davina dormiu o dia inteiro. Ninguém conseguia fazê-la acordar.
Neno não consegue conter a decepção. Sai dali e vai para a casa da irmã, onde encontra com Glória, a caçula:
- Como ela está?
- Ela não está bem, não. Dormiu o dia inteiro. Isso não é normal, são os remédios que eles dão. Precisa conseguir logo a transferência para o outro hospital.
Ouvir isso foi um transtorno para Glória. Foi o caminho inteiro até Santo André, remoendo a situação da irmã. Quando chegou em casa, já estava passando mal. O marido a levou para o hospital. Glória estava com a pressão muito alta e ficou internada para observação.
Final de março
Os médicos dizem que a operação só depende de vaga no Santa Marcelina. Por isso, há um mês, Davane tenta a transferência. Depender de uma vaga que não se sabe quando vai surgir a deixa angustiada. Já devia ter feito um plano de saúde para a mãe há muito tempo. Agora tinha um emprego bom e o salário dava para pagar. Mas nunca pensou que isso pudesse acontecer. Depois da doença, até fez o plano, mas havia as carências. Para internação, um ano. Por isso tinha que conseguir a vaga no Santa Marcelina mesmo.
Os colegas do sindicato estavam tentando ajudar. A mais obstinada era Sílvia, uma baiana que havia feito muitos amigos no meio político e sindical, desde que chegara em São Paulo. O cargo de secretária do presidente ajudava nesses contatos. Recorreu, então, a uma sindicalista da área de saúde, que lhe indicou um médico amigo do Santa Marcelina. Ele foi bastante atencioso, entrou em contato com a equipe do Ermelino, mas o resultado, frustrante. O médico garantiu que o problema não era vaga, mas sim a necessidade de se estabilizar o quadro da paciente.
Davane, no entanto, não se convencia, porque os médicos do Ermelino diziam que só estavam esperando vaga no outro hospital. Sílvia recorreu, então, a um deputado influente na área de saúde. Sem muitos avanços: o parlamentar entrou em contato com os médicos que acompanhavam Davina e nada mais. Já desanimada, Sílvia descobriu que um médico que havia dirigido o Santa Marcelina e agora assessorava o governador, era conhecido de alguns diretores do sindicato. Pediu a eles que intercedessem, mas nenhum dirigente queria dever favores a um governo ao qual faziam oposição.
Nada mais havia a fazer. Só esperar.
1975
Naquele sábado, Maria pegou Davane cedo na casa da irmã e foi visitar Celsina. Quando chegou, ela estava indo ao cabeleireiro e resolveu acompanhá-la. No salão, todos paparicavam a garotinha de rosto redondo e olhos grandes. Conversa vai, conversa vem, as duas irmãs chegaram à conclusão de que o cabelo longo da menina não realçava o rostinho rechonchudo, além de ser muito fora de moda. Decidiram cortá-lo bem curtinho, como elas próprias usavam.
Encantada com o resultado do corte, Maria trouxe Davane de volta. Mal entrou na casa da irmã, Davina arregalou os olhos.
- O que você fez com o cabelo dela?
- Eu e a Celsina cortamos. Não ficou bom?
Davina não podia acreditar no que via e ouvia. Como as irmãs tinham tido coragem de fazer aquilo? Estava furiosa e não poupava injúrias contra as duas. A indignação era tanta, que Davina perdia o bom senso.
- Você não é mãe dela para fazer isso. Aliás, eu vou batizar de novo minha filha e você não vai ser mais madrinha dela.
1º de abril - terça-feira
A médica entra no quarto e diz:
- Dona Davina, a senhora é uma mulher de sorte. Vai ser transferida para o Santa Marcelina hoje.
Davane não acredita. Depois de quase um mês e meio de expectativa, vem a notícia tão esperada numa frase curta. Chega a desconfiar que pudesse ser uma brincadeira do dia da mentira, mas acaba se convencendo, quando aparecem dois enfermeiros para buscar Davina. Não consegue conter a ansiedade e a imaginação dispara. Agora, finalmente, tudo se resolveria. Sua mãe seria transferida, operada, voltaria para casa e tudo voltaria ao normal.
1996
Davane achou que se mudasse os móveis de lugar, daria um outro toque na sala. Sabia que a mãe não gostava dessas mudanças, mas quando ela chegasse já estaria tudo no lugar. Só não imaginou que, no empurra sofá para lá, puxa poltrona para cá, o pé da estante fosse quebrar. Pressentiu o dilúvio.
Não deu outra. Foi só saber o que tinha acontecido para Davina desfiar o rosário de reclamações. Que não tinha nada que mudar os móveis de lugar. Que a filha fazia o que bem entendia. Que ela não mandava na própria casa. E para deixar bem claro a sua indignação, pegou o colchão e foi dormir no bar.
Mas Davane conhecia bem a mãe e sabia o que iria acontecer nos dias seguintes. Se puxasse conversa, Davina faria o papel de emburrada. Mas se, ao contrário, fosse ela quem fechasse a cara, a mãe trataria logo de encontrar um jeito de agradá-la. Nesses casos, era infalível fazer um dos pratos prediletos da filha.
15 de abril - terça-feira
Depois do problema de pressão alta, Glória tinha que se poupar das emoções fortes e não visitara mais a irmã no hospital. Mas Davane havia dito que a mãe se recuperava e estava bem melhor. Por isso, Glória decidiu ir até o Santa Marcelina com a amiga Giselda.
Deixa o documento na portaria e sobe até o terceiro andar. Ao se aproximar do quarto, ouve um burburinho. A porta está aberta e em torno de Davina, duas enfermeiras. Glória sente a respiração difícil e as mãos geladas. Aproxima-se e pergunta o que está acontecendo. Uma das enfermeira diz apenas que a irmã tem problemas respiratórios.
Acaba o horário da visita. Glória pede para falar com o médico, mas uma enfermeira diz que ele está ocupado.
- Não saio daqui enquanto não souber o que está acontecendo com minha irmã.
Cruza os braços e se posta diante da sala do neurologista. A porta está aberta e atrás de uma pequena mesa de metal, dr. Gustavo faz anotações de cabeça baixa. Glória vira-se para Giselda:
- Fica aí. Não deixa ele sair, que eu vou lá no quarto ver como que a Vina está.
Durante mais de uma hora, Glória vai e volta da sala do médico até o quarto da irmã. No vai e vem, vai remoendo as preocupações e a irritação com o pouco caso do médico vai aumentando. Toma uma decisão e irrompe na sala do neurologista.
- Desculpa, doutor, mas eu preciso saber o que está acontecendo com a minha irmã.
Dr. Gustavo ergue os olhos, meneia a cabeça e aponta uma cadeira:
- Pode se sentar.
E, atencioso, fala sobre o estado de saúde de Davina.
1988
Davane havia dito à tia Maria que tinha muita vontade de conhecer Lins. Maria acabou comentando com Celsina o desejo da sobrinha e como, naquele carnaval, as duas iriam juntas ver o irmão que ainda vivia lá, Celsina decidiu convidar Davane. Quando ouviu a proposta da irmã, Davina foi categórica:
- Ela não pode. Não tem dinheiro
A irmã insistiu, dizendo que só teria que pagar as passagens.
- Mas ela não tem dinheiro para isso.
Desesperada, Davane interveio.
- Tenho, sim.
Davina não se conformava e quando a irmã foi embora despejou. Que era um absurdo. Que Davane não tinha dinheiro para nada e queria viajar. Que quem ajudava a pagar o curso de secretariado era ela. Que Davane ganhava uma miséria como balconista. Sem esconder o despeito, sentenciou:
- Depois, se não tiver dinheiro para pagar a escola, vai pedir para a Celsina, vai.
No dia da partida, ainda emburrada, despediu-se da filha, olhou as irmãs e disse:
- Vocês duas não vão me inventar de cortar o cabelo dela.
15 de abril - terça-feira
Davane decide ir ao Centro Espírita Bezerra de Menezes, na Penha. Já vinha adiando há dias essa visita, mas depois que a tia telefonou dizendo que a mãe não estava bem e havia sido transferida para a UTI, tomou a decisão. Desce do metrô e toma um ônibus.
Chega no Centro e entra no pequeno saguão, onde funciona uma livraria. Aproxima-se do rapaz que atende no balcão, explica o que está passando e pergunta se há alguém com quem possa conversar. O rapaz lhe diz que naquele dia não, mas que ela pode participar das orações e das vibrações, pensando em sua mãe.
Davane passa, então, por uma grande porta e entra no auditório cheio de cadeiras, a maioria ocupada. Senta-se numa das fileiras do meio. Percebe que o local tem uma luz muito fraca e fica mais à vontade. Uma música instrumental suave a ajuda a relaxar. Alguns minutos depois, um senhor de meia idade sobe ao palco e começa a rezar o Pai-nosso. Davane acompanha.
O homem do palco tem um afundamento na face, conseqüência de algum acidente. A cicatriz e a voz grave dão um tom solene à cerimônia. No momento das vibrações, diz para as pessoas mentalizarem o que elas querem pedir. Davane pensa em sua mãe e só consegue imaginá-la forte, ativa, decidida. E é como se a estivesse vendo naquele momento.
Depois, o orador inicia uma palestra sobre o Livro dos Espíritos, de Alan Kardec. Encerrada a palestra, convida a todos para um passe magnético na Câmara Mediúnica. Forma-se, então, uma grande fila diante de uma porta atrás do palco. Davane vai para a fila. Depois de alguma espera, entra com um grupo na Câmara, onde a luz é ainda mais tênue. Em silêncio, todos se sentam. Na frente, também sentados, os mediuns. Tudo acontece em silêncio e Davane pensa novamente na mãe.
Ao sair do Centro, Davane sente uma grande tranqüilidade, que se mistura a uma sensação de força e esperança. E que para alguns é o que se chama fé. Só então percebe que a noite está fresca e que no céu piscam algumas estrelas.
16 de abril - quarta-feira
Davane chega no Santa Marcelina com a prima Andréia, filha de Lena. Sobe até a UTI e vê que a mãe está entubada. Davina abre os olhos e Davane tem a impressão que ela a reconhece. Passa a mão no cabelo da mãe e pergunta se está tudo bem. Davina faz um leve movimento com a cabeça. Já tem que sair, pois a visita é rápida.
Aguarda informações na porta, quando se aproxima uma médica jovem e oriental. É polida, mas fala com técnica e frieza:
- O que aconteceu com a paciente é que um coágulo se deslocou do cérebro e ela teve embolia pulmonar. O estado dela é muito grave. Eu quero deixar isso bem claro, para a família não ficar tendo esperança de que o quadro possa se reverter.
Davane não consegue esboçar qualquer reação. Ouve aquilo paralisada e sente outra vez uma bola comprimir o seu peito. Quando a médica volta para a UTI, olha para a prima e as duas se abraçam e começam a chorar.
17 de abril - quinta-feira
Davane não tem coragem de ir sozinha ao hospital. Tem medo de qualquer notícia ruim e precisa de alguma companhia. Tia Lena a acompanha. Ao se aproximar da maca percebe que, embora entubada, sua mãe parece respirar melhor. Fala algumas coisas sem importância e Davina mais uma vez move ligeiramente a cabeça.
No final da visita, espera o médico e vê que é a japonesa que está de plantão. Davane sente um certo desconforto, quando a médica repete o que havia dito no dia anterior. Mas consegue reagir:
- Eu achei que ela está consciente e também que está conseguindo respirar melhor.
- Ela não está respirando melhor. Apenas se acostumou com os aparelhos. Sem os aparelhos ela não consegue respirar.
Davane sai dali com a certeza de que aquela médica parece sentir um certo prazer em tirar a esperança das pessoas, como se aquilo fosse uma obrigação profissional mais importante até do que curar os doentes.
18 de abril - sexta-feira
Dessa vez é Giselda quem acompanha Davane na visita. As duas entram juntas na UTI e quando se aproximam, Davane leva um susto.
- Ela está sem o tubo.
Davina tinha somente uma máscara de oxigênio e parecia serena. Davane se tranqüiliza, beija a mãe e segura a sua mão. A amiga, sempre otimista, diz que era muito bom vê-la assim. Davina sorri. Giselda se anima e brinca:
- Ih, Vina, você tá muito branca. Quando você sair daqui, a gente vai descer para a praia.
- Vamos sim.
Davane arregala os olhos, olha para Giselda e as duas riem satisfeitas. Davane sente uma energia muito grande e tem vontade de sair dali e ver o sol lá fora, andar pelas ruas, contar a novidade para Sérgio, para tia Maria, tia Glória, tia Lena. Está tão animada, que nem se importa se tiver que enfrentar outra vez a médica japonesa.
Mas é outro médico que vem dessa vez. É jovem e parece muito simpático:
- Olha, foi ela mesma quem retirou o tubo e isso é muito positivo, mas nós não temos certeza se está oxigenando o sangue, por isso, ela pode ser novamente entubada a qualquer momento. Nós estamos fazendo exame de sangue a todo instante. Se continuar conseguindo respirar sozinha, vai ter alta da UTI.
Davane não se contém. Realmente aquele era um grande dia.
1971
Glória estava radiante. Era a primeira tia a segurar a sobrinha no colo. Davane tinha nascido com três quilos e trezentos, de parto normal no dia 8 de junho. Ela e Alcebíades, marido de Maria, tinham ido ao Tide Setúbal buscar Davina. A irmã estava abatida, mas seu rosto resplandecia a uma felicidade serena.
Escolhera o nome Davane para combinar com o seu. Sabia que muita gente torcia o nariz por ser mãe solteira. Mas ninguém tinha coragem de enfrentá-la. E era melhor assim. Era independente, garantia seu próprio sustento. Portanto, ninguém tinha o direito de falar um A que fosse. Não era pra isso que tinha fugido de casa há oito anos? Pra não ter que dar satisfação da sua vida a ninguém? A menina não tinha pai e ponto final. Era só dela. Iria criá-la sozinha. Para isso, não ia lhe faltar força e coragem.
22 de abril - terça-feira
Davane sai do quarto contente. Sua mãe tinha saído da UTI naquela manhã e parecia mais consciente. Já sabia o que tinha se passado com ela. Procura o neurologista para saber mais informações. Dr. Gustavo é jovem e descontraído:
- É sobre a dona Davina?
- O senhor já sabe?
- É que você é a cara da sua mãe.
Davane sorri.
- Ela tem um anjo da guarda muito forte, viu. É muito difícil uma recuperação tão rápida. Agora ela vai continuar o tratamento dos pulmões e quando estiver boa, vai poder operar.
1996
Quando Davane veio com a notícia de que tinha passado no exame da auto-escola, ficou feliz da vida. A filha realizava um antigo sonho seu. Na primeira vez, tinha comprado uma Variant velha, mas no exame o fiscal disse: a senhora está reprovada, esqueceu de dar seta. Ficou com tamanha raiva, que não teve dúvida. Parou o carro, abriu a porta e disse: se eu estou reprovada, leva o carro você. E voltou a pé.
Muito tempo depois, comprou um Fusca verde. Tinha decidido primeiro aprender a dirigir em Mogi e depois tentar tirar a carta. Mas não deu certo, o carro ficou encostado e acabou sendo vendido. Passou a insistir para que Davane aprendesse. Mas, dois anos antes, a garota foi reprovada e desistiu. Mas ela não perdia a esperança. Sugeriu comprarem outro carro. A filha aceitou e as duas juntaram as economias e compraram um Gol.
Feliz estava, mas preferia esperar que Davane tivesse um pouco de prática para andar com ela. Sempre arrumava uma desculpa e não ia. Mas naquele dia, não teve jeito. Precisavam ir ao mercado e só ela sabia fazer compras para o bar. Como não havia outra pessoa que pudesse dirigir, não teve saída. Entrou insegura no carro, colocou o cinto de segurança e agarrou firme no aparador sobre a janela da porta.
Mas bastaram alguns minutos para que Davina relaxasse e se pusesse toda prosa. Estava no seu próprio carro com sua filha ao volante.
3 de junho - terça-feira
Durante todo o mês de maio, Davina foi tratada do problema no pulmão e passou por avaliações de pneumologia, cirurgia vascular e cardiologia. Tudo para verificar se estava em condições de ser submetida a uma cirurgia tão delicada. O longo tempo no hospital, no entanto, a deixava nervosa. Queria fazer logo a cirurgia e não entendia porque demorava tanto. Era sempre a mesma história: dr. Gustavo dizia que na semana seguinte ela seria operada. O tempo passava e a cirurgia era sempre adiada. Não comia nada do hospital, somente o que a filha lhe trazia. Davane tinha passado à mãe a expectativa de que após a operação ela voltaria para casa. Mas já sabia que não era bem assim.
Naquele dia, nova frustração. Davina chegou a ser levada para a sala de cirurgia, mas o médico anestesista se recusou a iniciar a operação porque não havia o parecer do cardiologista.
1986
Davane fazia datilografia e resolveu seguir os conselhos da tia Maria. Foi escondida procurar um emprego. Acabou sendo aceita como arrematadeira numa confecção da Celso Garcia, no Tatuapé. O salário não era grande coisa, mas para começar, estava bom. O problema agora era contar para a mãe. Quando Davina chegou do trabalho, à tarde, Davane ficou sondando. Tomou coragem e disparou:
- Mãe, arrumei um emprego.
Davina parou o que estava fazendo, olhou a filha e disse seca:
- Pra quê?
- Porque eu quero trabalhar.
- Você é muito nova pra trabalhar.
- Mas eu quero.
- Mas não precisa. Você só precisa estudar.
- Eu posso estudar e trabalhar.
Davane falava num tom meloso, quase que pedindo, na tentativa de amolecer a mãe. Davina, cada vez mais irritada, subia o tom de voz.
- Que emprego é esse?
- Numa confecção.
- Você vai fazer o quê lá?
- Vou ser arrematadeira.
- Não é um serviço bom.
- Por quê?
- Porque você vai ficar o dia inteiro em pé.
- O quê que tem?
- Você não vai agüentar.
- Se eu não agüentar, eu desisto.
A batalha foi travada durante todo o final de semana. Davane sem desistir do primeiro emprego, mas não encontrando meios de convencer a mãe e Davina resistindo duramente, mas também não vendo uma forma concreta de proibir a filha. No domingo à noite, veio o armistício. Davina aceitou o emprego da filha, mas com uma condição. Iria acompanhar Davane todos os dias até a porta do emprego, porque sair às seis horas da manhã era muito perigoso para uma menina de 15 anos.
13 de junho - sexta-feira
Davane chega no hospital e vai até o terceiro andar. Quando abre a porta do quarto não vê a mãe. Uma enfermeira diz que ela foi transferida para a Neuro. Sobe, então, mais um lance de escadas e também não encontra Davina. Desce novamente e pergunta a outra enfermeira.
- Eu queria saber onde está a dona Davina. Falaram que ela foi para a Neuro, mas eu passei lá e ela não estava.
- Ah. Acho que ela foi para o Centro Cirúrgico.
Era estranho, finalmente o dia havia chegado e ela não estava feliz. Também não estava tensa. Só meio vazia. Não sabia o que fazer. Resolve ficar esperando ali mesmo no corredor. Depois decide telefonar, avisando a tia. Está no orelhão, quando passa o dr. Gustavo, vestindo a capa verde do Centro Cirúrgico. Larga a tia no telefone e pára o médico.
- Doutor, e minha mãe?
- Já acabou a cirurgia e eles estão fechando.
Não tem tempo de perguntar mais nada, porque o médico continua apressado. Mas tem uma sensação muito nítida de que tudo está bem.
1974
Glória levou a mãe ao hospital. Tinha câncer no pâncreas e nos últimos três meses havia piorado muito. Tanto que Davina abandonou a casa e voltou a morar com a irmã só para cuidar da mãe. Dona Benedita tinha freqüentemente crises nervosas e, por isso, ela e Davina brigavam muito. Davina era a filha que mais se impunha nesses momentos.
No hospital, dona Benedita não parava de falar na irmã que morava em Campinas. Queria vê-la. Tanto insistiu que Glória e Celsina decidiram pegar um ônibus e buscar a tia. A amiga Giselda acompanhou as duas irmãs. Davina ficou com a mãe no hospital.
Mas não foi nada fácil, pois a tia não queria vir. Finalmente quando regressaram, dona Benedita já estava em coma. Às 2h30 da madrugada, faleceu.
15 de junho - domingo
Ao chegar no hospital, Davane encontra sua tia Glória e família. Apesar de ser a xodó de Davina, Tati não pode subir, porque é muito nova. Davane sobe com a prima Fabiana e está contente porque, depois da cirurgia, a mãe passou a comer a própria comida do hospital e sozinha. Ao entrarem, Davina sorri e, nova surpresa:
- A Tati não pode entrar porque é pequena.
Cada sentença lógica dá um novo alento à filha. Mostra que é possível superar às possíveis seqüelas, de que tanto falam os médicos.
- Outro, outro.
Davane não entende e pergunta outro o quê? Mas Davina não consegue completar a frase e aponta a cabeça.
- Outro aneurisma?
- É.
Davane pergunta ao médico da UTI se é verdade. Mas ele responde que ela deve conversar com o neurologista. Terminada a visita, procura o dr. Gustavo, que confirma a existência de outro aneurisma.
1988
Davane havia pedido demissão da loja em que trabalhava como balconista. Por isso, tinham ido fazer a homologação no sindicato. Depois, aproveitaram e fizeram umas compras no Brás. Era quase meio-dia e já íam voltar para casa, quando Davane teve a idéia.
- Mãe, vamos na casa da tia Celsina. Faz tempo que a gente não vai lá.
Davina concordou. No terminal, chegaram a subir no ônibus para Sapopemba. Mas, de repente, mudou de idéia e puxou Davane para fora do ônibus.
- Não vamos não. Eu tenho que abrir o bar.
Teve que se resignar e voltaram para casa. Quando estavam chegando, um vizinho chamou Davina. Enquanto a mãe atravessava a rua, Davane foi entrando em casa. Sem perceber, havia trancado o portão. Não tardou muito, ouviu os berros da mãe.
- Davane, abre aqui.
Achou graça no escândalo e resolveu remedar a mãe, empostando a voz:
- Davane, abre aqui.
- Eu estou com uma notícia séria que a Celsina morreu e você fica brincando.
Sentiu um calafrio subir pela coluna. Ficou imóvel.
- Anda menina, abre aqui e vai já ligar pra saber direito o que aconteceu.
No ônibus para Sapopemba, Davina perdeu a dureza e chorou todo o caminho.
25 de junho - quarta-feira
Quando chega no quarto da mãe, Davane vê um médico que não conhecia conversando com ela. Jovem e bonito, o dr. Eric parecia muito simpático e cheio de energia. Ao vê-la foi logo explicando:
- Nós vamos ter que fazer outra cirurgia, mas é coisa de rotina. Em geral, quem tem aneurisma ou tumores, o cérebro passa a acumular água. Nós vamos colocar uma válvula, que não deixa acumular essa água. É um procedimento absolutamente normal. Ela nem vai sentir dor.
Quando entra outro médico no quarto, ele brinca:
- Pergunta se ela quer operar. Eu nunca vi uma pessoa tão animada para entrar na faca. Mas vamos cortar esse cabelo, porque ele me deu muito trabalho na última cirurgia.
Existem aquelas pessoas que parecem exalar sucesso. Os seus gestos e palavras são impregnados de segurança e satisfação. Dr. Eric era uma dessas pessoas e transmitia confiança para quem estivesse por perto. Davane decide aguardar no corredor.
Duas horas e meia depois, dr. Eric sai do Centro Cirúrgico. Nem parece a mesma pessoa. Tem o rosto cansado e as costas levemente curvadas. Passa por ela e a tranqüiliza:
- Correu tudo bem.
1980
Todas estavam indignadas. Uma filha colocar a mãe no asilo. É uma falta de consideração. Ainda mais uma mãe que tinha feito tudo pela filha, desde a adoção. Ninguém se conformava com o destino da tia Rita. O problema no coração não justificava essa atitude da prima. A verdade era que o marido dela não gostava da sogra. Por isso, iam colocar a velha no asilo. Celsina, que era afilhada, lamentava:
- Se eu tivesse condições, trazia ela pra morar comigo.
Davina tem um estalo e toma a decisão.
- Pois ela vai vir morar aqui.
Todas olharam para a irmã.
- É verdade. Onde comem duas, comem três. E além disso, ela pode fazer companhia pra Davane.
Assim, durante três anos, tia Rita morou com as duas. Davane e a prima Márcia se encarregavam de cuidar dela. Faziam comida, levavam no banheiro, punham para dormir. Depois da morte da filha, os netos nunca mais vieram vê-la. Davina deu o troco, quando tia Rita morreu. Não avisou ninguém. Alguns meses depois, quando um neto apareceu, disse com a maior desfaçatez que tentara avisar, mas que não tinha conseguido.
15 de julho - terça-feira
Na segunda-feira, o dr. Gustavo havia dito que Davina seria operada na terça para a retirada do segundo aneurisma. Às onze horas, Davane telefona para o hospital, mas a enfermeira que atendeu disse que ela ainda não havia ido para o Centro Cirúrgico. Ao meio dia e meia, liga novamente, pois se a mãe fosse ser operada, não conseguiria visitá-la. Outra enfermeira atende e diz que Davina está na mesa de operações desde as nove horas. Davane se surpreende, mas decide aguardar.
Às duas horas da tarde telefona mais uma vez. A mãe continua na cirurgia. Às quatro, outra ligação. Nenhuma novidade. Davane já começa a ficar aflita. Sabe que as cirurgias delicadas demoram. Mas a falta de notícias a deixa angustiada. Às seis, chama o hospital mais uma vez e pede para falar diretamente no Centro Cirúrgico. Atende uma voz masculina e cansada. Pergunta sobre sua mãe. A voz é atenciosa, mas sucinta:
- A cirurgia terminou há meia hora e correu tudo bem. Ela ainda está anestesiada, mas passa bem.
Depois, Davane ficou sabendo que a voz era do dr. Mário, chefe da equipe cirúrgica.
21 de julho - segunda-feira
Davane chega pontualmente às duas da tarde para mais uma visita. Beija a mãe e pergunta se sabe de alguma coisa. Davina diz que não. Ela volta para o corredor e vê o dr. Gustavo caminhando. Vai atrás dele e toca seu ombro. Ele se vira, sorri e pergunta:
- Você quer levar a sua mãe hoje?
- Eu quero.
- Então aguarda, que nós vamos dar alta para ela.
Davane vai correndo contar para a mãe. Mal acaba de falar, Davina já quer descer da cama. - Calma, tem que esperar o dr. Gustavo passar aqui, diz achando graça da pressa da mãe.
Depois de convencer Davina que era preciso esperar a liberação oficial, Davane vai até o orelhão pedir ao primo que viesse buscá-las com o carro. Não consegue ligar para sua casa e telefona para Sérgio, pedindo que ele avise o primo. Depois de meia hora, chega Beto todo eufórico. Mas só às 6 horas, o dr. Gustavo aparece com a liberação:
- Dona Davina, eu estou dando alta para a senhora com muita satisfação, porque a senhora é muito forte. Agora a senhora vai ter que fazer muita fisioterapia para melhorar os movimentos do lado direito e voltar aqui para alguns exames de acompanhamento.
Davina pediu para não avisar muita gente, que ela não queria a casa cheia. Mas assim que o carro estaciona, Maria e Joel aparecem na porta do bar. O vizinho corre para abrir a porta:
- Eu faço questão de levar a senhora para dentro.
Pega Davina nos braços, enquanto Davane abre o pequeno portão ao lado do bar.
1993
Davina decidiu reabrir o bar.
O problema foi ter acreditado que uma lanchonete em Itaquera daria mais dinheiro. Zé Luiz insistiu tanto na sociedade que acabou aceitando. Não durou nem dois meses. Mas podia recomeçar. Um tombo não impede ninguém de andar. Tinha o salãozinho ali do lado. Era só reabrir. Está certo que tinha perdido a estufa, os vasilhames, o balcão emprestando para aquele outro. Considerava perdido, porque devolver ele não ia. Mas aos poucos podia ir comprando tudo de novo. Tinha até uma idéia. Aproveitar o carrinho de churros para fritar salgadinhos. Isso sabia fazer de mão cheia. Porque não dava para continuar vendendo churros. Era muito trabalhoso. E a coitada da Davane ainda tinha que ajudar a buscar o carrinho em frente a escola. Com o salão ali do lado era um desperdício não reabrir o bar. Não tinha nada a perder. Afinal estava desempregada.
27 de julho - domingo
Davina está deitada no sofá, recostada em algumas almofadas. Sinto que seus grandes olhos me espreitam com curiosidade. Por falta de assunto, pergunto:
- Está com saudade do bar, dona Davina? Tem vontade de voltar para lá?
- Eu vou voltar.
E diz isso com tanta segurança, que é difícil não acreditar.
(Este depoimento foi enviado para o Museu da Pessoa por Alex Criado)
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