Entrei e fiquei olhando para cima e para as paredes, tal e qual um turista visitando a Capela Sistina, que admira por horas seguidas os detalhes contidos naquelas seculares obras de arte. Porém o prédio onde eu me encontrava não se tinha um valor histórico de 500 anos, tinha no máximo 50. No lugar das maravilhosas pinturas de Michelângelo, tinha apenas um forro de eucatex pintado de preto fosco, no lugar do riquíssimo altar.
Um palco também preto com cortinas de tecido brilhante e finalmente, em vez do silêncio sagrado de uma igreja, eu fui atropelado por centenas e centenas de decibéis vomitados por imensas e agressivas caixas acústicas instaladas nos dois lados do palco.
Mesas colocadas em forma de ferradura abraçavam, com certo aconchego, a pista de dança e o restante delas arrumadas no mezanino. Tudo levava a crer que se tratava de uma casa de espetáculo e dança bem grande, moderna, porém comum, isto é, sem detalhes artísticos importantes pelas paredes, teto e estrutura arquitetônica que pudessem deixar alguém parado a contemplar, mas por incrível que possa parecer, eu estava emocionado e até mesmo trêmulo por estar novamente sob o mesmo teto e paredes em que passei grande parte da minha infância e adolescência.
Quando saí de casa, eu já tinha um pensamento fixo: Apesar de totalmente reformado, o prédio ainda é o mesmo e naturalmente haverá de ter sobrado algum vestígio do passado.
Passei pela portaria com a ansiedade de um homem que retorna a sua terra depois de muitos anos ausente.
Entrei no salão, olhei para o chão, tudo diferente, mas quando olhei para cima, lá estavam as arandelas em formato de janelas de palácios árabes, perfeitamente acesas e conservadas como quando ali funcionava o velho cinema, essas luzes somente eram desligadas depois de uns cinco minutos de filme.
Continuando o meu garimpo, reconheci o forro (sim, aquele forro comum, de eucatex furadinho) denunciado à minha memória pelo recorte das placas que...
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Entrei e fiquei olhando para cima e para as paredes, tal e qual um turista visitando a Capela Sistina, que admira por horas seguidas os detalhes contidos naquelas seculares obras de arte. Porém o prédio onde eu me encontrava não se tinha um valor histórico de 500 anos, tinha no máximo 50. No lugar das maravilhosas pinturas de Michelângelo, tinha apenas um forro de eucatex pintado de preto fosco, no lugar do riquíssimo altar.
Um palco também preto com cortinas de tecido brilhante e finalmente, em vez do silêncio sagrado de uma igreja, eu fui atropelado por centenas e centenas de decibéis vomitados por imensas e agressivas caixas acústicas instaladas nos dois lados do palco.
Mesas colocadas em forma de ferradura abraçavam, com certo aconchego, a pista de dança e o restante delas arrumadas no mezanino. Tudo levava a crer que se tratava de uma casa de espetáculo e dança bem grande, moderna, porém comum, isto é, sem detalhes artísticos importantes pelas paredes, teto e estrutura arquitetônica que pudessem deixar alguém parado a contemplar, mas por incrível que possa parecer, eu estava emocionado e até mesmo trêmulo por estar novamente sob o mesmo teto e paredes em que passei grande parte da minha infância e adolescência.
Quando saí de casa, eu já tinha um pensamento fixo: Apesar de totalmente reformado, o prédio ainda é o mesmo e naturalmente haverá de ter sobrado algum vestígio do passado.
Passei pela portaria com a ansiedade de um homem que retorna a sua terra depois de muitos anos ausente.
Entrei no salão, olhei para o chão, tudo diferente, mas quando olhei para cima, lá estavam as arandelas em formato de janelas de palácios árabes, perfeitamente acesas e conservadas como quando ali funcionava o velho cinema, essas luzes somente eram desligadas depois de uns cinco minutos de filme.
Continuando o meu garimpo, reconheci o forro (sim, aquele forro comum, de eucatex furadinho) denunciado à minha memória pelo recorte das placas que formavam grandes círculos em torno das enormes saídas do ar condicionado central.
Parece-me que restaram muitos vestígios, e o que restou era familiar demais para mim. Foi gratificante constatar que boa parte da memória havia sido resgatada, não sei se por consciência do arquiteto ou do dono da obra, mas o importante é que estava lá.
Quando o cinema parou de funcionar, o prédio ficou muitos anos fechado, depois abriu como depósito de sementes e implementos agrícolas, passou alguns anos assim e novamente ficou anos fechado, até que passasse pela grande reforma que o transformaria na casa de espetáculos Olympia.
Eu precisava partilhar com alguém a minha alegria, mesmo sabendo que eu conseguiria passar somente meras informações e não a emoção, pois aquilo tudo só teria significado para quem conviveu comigo naquela época. Não me contive, peguei esposa e filha pelos braços e saí mostrando.
- Estão vendo aquela escada com corrimão estilo art-déco? Ela dá acesso ao mezanino, ao banheiro masculino e à sala de projeção. Tudo ainda está lá, nos mesmos lugares
- Logo abaixo da escada - continuei - ficava a bombonière. Nas matinês de domingo, tão logo que entrávamos, íamos direto a ela, a custo de empurrões e cotoveladas, cada um de nós queria ser atendido em primeiro lugar. Os que tinham mais dinheiro comparavam Mentex, os outros, sem melhores alternativas, optavam por bala de goma ou amendoim doce, aquele que tem cor de ferrugem. O importante não era o doce e sim o celofane para fazer de assobio. Mentex tinha uma vantagem, o proprietário adquiria o poder de assobiar mais depressa, bastando para isso desencapar a caixinha. Já o amendoim somente poderia ser usado como assobio quando terminava o seu conteúdo. Até então poderia já ter terminado o Primo Carbonari e deixar de vaiar esse filminho de notícias desatualizadas que eles insistiam em passar seria realmente muito frustrante. Esse documentário semanal tinha uma gasta e riscada vinheta de abertura na qual aparecia um chafariz numa praça, tão apagada que ninguém conseguia afirmar se fora filmado de dia ou de noite, acompanhado de um fundo musical, tão tremido e desafinado que mais parecia um disco rodando ao contrário. Era então, perfeitamente normal surpreender garotos numa atitude desesperada, despejando o saquinho de amendoim inteiro na boca, enchendo as duas bochechas de tal forma que mal podiam mastigar para poder assobiar no papel. As técnicas de arrotos em altos volumes eram altamente desenvolvidas por essa trupe de educados meninos para soltar nas horas tristes ou românticas dos filmes.
- Estão vendo aquela porta ao lado do banheiro feminino? Lá era a gerência. O gerente era um senhor com idade superior a 60 anos, ele tinha um defeito na perna e usava uma grossa bengala de madeira, era calvo e apesar da paciência que tinha conosco, nós o respeitávamos muito, não sei se pela sua aparência de vovô, se pelo seu modo de pouco falar ou se por analogia com o diretor de escola. Em compensação, os “lanterninhas” que agiam com muito rigor tornavam-se verdadeiras vítimas em nossas mãos.
- Naquela parede, à esquerda de quem entra, ficava todo o nosso orgulho. Apesar de termos sido expulsos daqui inúmeras vezes por indisciplina, nós amávamos este cinema e era ali que estava instalada uma placa de bronze com os dizeres:
LOTAÇÃO DESTE CINEMA 2.250 PESSOAS.
27-02-1992
Homenagem ao Cine Nacional
(História enviada ao Museu da Pessoa em julho de 2008)
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