Programa Conte Sua História
Depoimento de Gê Black Power
Entrevistado por Júlio Mesquita, Carol Margiotte e Luísa Alves
São Paulo, 24 de setembro de 2018
Realização: Museu da Pessoa
PCSH_HV698
Transcrito por Eliane Miraglia
Revisado e editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Começando pelo seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Meu nome completo? Geraldo da Silva. Nacionalidade? B, de baiano.
P/1 – B, de baiano? Qual a cidade?
R – Caetité, Bahia.
P/2 – Qual a data?
R – 10 de maio de 1947.
P/1 – Qual o nome dos seus pais, você lembra?
R – Otacílio Sérgio da Silva.
P/1 – Está certo. O que eles faziam?
R – Lavrador.
P/1 – Lavrador?
P/2 – E o nome da sua mãe?
R – Justina Guedes da Silva.
P/2 – E você sabe como eles se conheceram?
R – Meu pai era baiano. Tinha aquela crise na Bahia, que não chovia muito. Minas, já um pouquinho melhor. Mas conheceu a minha mãe em Minas e veio para São Paulo. E aqui nós estamos hoje, na Capital.
P/2 – E além de você, eles tiveram outros filhos?
R – Nós somos quatorze irmãos... Quatorze irmãos. Por isso que, praticamente, eu nunca estudei na minha vida. Eu, para sair fora de... Tinha que aprender uma profissão, não é? Eu vim para São Paulo com dezoito anos e tinha que procurar uma profissão o mais rápido possível para viver, como se diz, como uma pessoa normal. Eu fui pelo lado do cabeleireiro. Eu queria ser garçom. Eu fiz um curso na Tiradentes. Garçom, eles não pegavam negritude. Aí falaram para mim: “Duas coisas que é bom para negro é cozinheiro. Cozinheiro é uma ótima!” Mas eu achava bonito cabeleireiro, trabalhar de avental branco, tal. Aí eu falei: “E cabeleireiro?” “Cabeleireiro é uma boa!”. Certo? “Você tem que ser sempre 150, sendo um bom cabeleireiro. É uma boa para você!” Eu fiz o curso de cabeleireiro. Não terminei o curso. Mas, o que eu fazia? Domingo ia jogar bola na Casa Verde. Ia jogar bola e depois pegava a molecada mais nova do que eu para cortar o cabelo. O primeiro corte, três domingos eu cortei de graça. Depois comecei a cobrar, porque tinha muitos. O time todo vinha. E lá onde eu morava... Falar em morar, me emociona. Porque sete meses dormindo debaixo de uma escada, sabia? E, no pé da escada, entre uma escada e uma garagem, eu cortava o cabelo da turma. O dono da casa falou assim: “Olha, do jeito que está, não dá! Está tendo muita gente na minha porta”. Eu falei: “Putz! E agora?”. Voltei de novo para a escola. Na escola, eu fiquei dois anos e meio como cabeleireiro, professor. Mas as mulheres não me escolhiam para os salões porque o meu perfil não era para trabalhar em salão de cabeleireiro. Salão de cabeleireiro, de 1974 até 1978, a preferência era por pessoas... Entendeu? Os afrodescendentes, que são os funcionários que eu tenho, que eu tinha... Eles só pegavam aqueles mais clarinhos. Mas o último tom, assim como eu, eles não pegavam. No salão não ficaria bem. Você entendeu? Aí, o que eu fiz? Continuei cortando cabelo debaixo da escada. Aí, o Serginho do... Serginho Chulapa... Olha, para você ver, Serginho Chulapa, na época, ele era do juvenil. Juvenil do São Paulo. Jogava no Marília. E ele viu aquilo lá, ele falou: “Não! Vou levar você para a minha casa. Vou falar com a minha mãe, você vai dormir na lavanderia. Fica frio! Junto com a gente, não. Mas você vai dormir na lavanderia”. “Está ótimo para mim, não é?” Aí eu fui na casa do Serginho Chulapa. O Serginho Chulapa ia treinar, ele veio do Marília... Mirandinha já cortava o cabelo comigo. Ele trouxe o Mirandinha para cortar o cabelo. Ficou o time do São Paulo em peso cortando o cabelo comigo. Serginho, Mauro, Zé Carlos, Valdir Peres ia, Muricy Ramalho era molecão, o mais novinho deles era o Muricy Ramalho, ia também. Aí, eles falaram para mim: “Só tem uma coisa que nós vamos fazer com você: tirar você dessa rua de terra”. Porque quando chovia, putz! Era um barro! E quando não chovia, era muito pó, não é? Quando chovia, era barro. Quando não chovia, era pó. Aí fizeram uma vaquinha, me levaram para a Casa Verde. Da Casa Verde Alta para a Casa Verde. Da Casa Verde, aí veio aquela onda da Chic Show, baile no Palmeiras. Quando tinha baile da Chic Show, me puseram para vender convites. Começou a vender convites para o baile da Chic Show, no Palmeiras. De lá, eles fizeram uma vaquinha, os jogadores, para eu ir para o centro da cidade. Eu fui para o centro da cidade. Galeria Presidente. Uma lojinha pequenininha, e aquela fila de fim de semana. Os vizinhos não me queriam lá porque eu estava atrapalhando o passeio das lojas. As lojinhas pequenas, perfume, lanchonete, charutaria, vários... E aquela fila para cortar cabelo comigo. Eu novinho, sabia?
P/1 – Tinha quantos anos?
R – Eu tinha... Quando eu fui para a Galeria devia ter vinte e três, vinte e quatro, porque quando o Michael veio para o Brasil... Michael Jackson veio para o Brasil, eu tinha vinte e três e ele treze, que eu falei para você. Fui no Anhembi pentear o cabelo de todos eles. Depois, cheguei no salão, tinha vinte e duas pessoas para cortar cabelo. A maioria não queria funcionário. Era eu, o Primo e a Regina. E fomos até uma hora da manhã. Ninguém foi para o baile. Mas eu me atrasei. Tive que ir lá para pentear o cabelo deles. E, dessa época para cá, até hoje eu trabalho. Ficou de pai para filho, neto. Hoje, quando o pessoal fala em fazer publicidade para mim, eu falo que não. Não pode fazer mais. Fim de semana, eu não dou conta. Então, tudo isso que eu estou falando para vocês, se eu for falar, dá uma novela.
P/2 – Qual o nome do salão, quando o senhor foi para lá?
R – Não tinha nome. Era Salão do Neguinho. Quando me levaram para o centro, para me levar para o centro, era Gegê Cabeleireiro. Quando nós fizemos o primeiro desfile de cabelo, com o Tony Tornado... Porque ele veio de Miami, aí o pessoal falou: “Está vindo um cara aí, de Miami, como é que você faz agora?” Eu vi o cabelo do Tony Tornado, deixei o meu crescer. O primeiro desfile de cabelo que eu fiz, foi com o show dos Originais do Samba. Os Originais do Samba, entre eles não podiam desfilar, porque o cabelo deles não crescia. Mussum, Bidi, Chiquinho. O único que tinha cabelo que poderia deixar crescer era o Bigode, do Originais do Samba. Aí eu comecei. Aí foi que foi. Hoje, eu não aguento mais. Mas mesmo assim tem a rapaziada que me representa. Normal. Por exemplo, o seu cabelo está precisando.
P/2 – (risos)
P/1 – O meu está precisando?
R – Corte, pouco. Como uma xerox que eu trouxe, você corta redondo, depois você usa a bucha, não é isso? Você está precisando. Mas eu vou te dar um cartão para você ir lá. Já não precisa pagar nada.
P/2 – “Seu” Gê, eu posso voltar para a infância do senhor, ainda?
R – Isso.
P/2 – Posso? É que o senhor falou que eram quatorze filhos.
R – Quatorze irmãos.
P/2 – Isso, quatorze irmãos. Quinze com o senhor?
R – Não, quatorze comigo.
P/2 – O senhor pode falar o nome de cada um, por ordem de nascimento?
R – A data de nascimento eu esqueço. É muito, não consigo.
P/2 – O nome?
R – O nome de todos os meus irmãos, sim. Mas a data de nascimento...
P/2 – Ah, não, a data... O nome por ordem de nascimento, pode ser?
R – Tem o Luís, Jorge, Aparecido e o Geraldo, não é? Agora, as mulheres... Mulher tem... Putz, agora você me pegou. Tem mais sete, não é? Nós somos sete homens e sete mulheres em casa. Tem Odete, tem Luísa, Aparecida, Ana, só que eu lembro. Um monte. Quando nasceu meu último irmão, eu era o caçula... Quando nasceu meu irmão, meu pai... Nós fizemos... Os irmãos mais velhos fizeram uma reunião e pegaram no pé do meu pai para parar, não é? Catorze é muito! A gente bem pobre, morava no interior. Quando plantava uma coisa, quando colhia uma coisa, perdia outra. Precisava de chuva, vinha sol. Porque as pessoas que moram na roça... Só quem mora é que sabe. E o governo nunca ajudou o lavrador. Hoje, por exemplo, quem mora na roça está assim. O pequeno sitiante, ele ainda tem alguma coisinha. O empregado do sitiante não tem nada. O pequeno já não tem, imagina o empregado do pequeno. Então, é por isso que o pessoal vem da roça, da lavoura... Vêm todos para as grandes cidades. Grandes, pequenas cidades. Eu fui um. Eu, com treze anos, não conhecia dinheiro. Aí, com quatorze, quinze, meu irmão mais velho falava: “Olha, você arruma, vai cortando cabelo da turma, quando você arrumar um dinheiro, leva para São Paulo”. Com quinze, dezesseis anos eu já cortava cabelo do pessoal que morava naquela região em que a gente morava, no Paraná. Cortava o cabelo de todo mundo. O pessoal que era pobre como eu, outros mais pobres, não tinham condições de ir ao barbeiro na cidade, cortava o cabelo comigo. E até hoje. Eu estou velho e onde eu tenho, tem bastante gente. O meu salão é cheio. Mas, falando para você, viu? Não foi fácil. Por isso que me emociona.
P/2 – Se o senhor quiser um lencinho, pode ficar à vontade. E aproveita e pega um para mim também.
R – Mas vocês podem perguntar à vontade.
P/2 – Posso? Então... Ainda na infância do senhor, eu queria saber por que os seus pais lhe deram esse nome?
R – Meus pais queriam... Eu não entendi.
P/2 – O nome do senhor?
R – Meu pai me deu esse nome porque eu nasci no dia dez, na época era pagamento, não era? Então, eles me deram... Data de nascimento, puseram Geraldo. Quando o tempo está bom está geral? Então, tempo bom, geral, para Geraldo... Entendeu? Aí eles puseram meu nome. E sempre o meu pai falava: “Filho, nós vamos morrer pobres. Mas fome eu tenho certeza de que você não vai passar”. E sempre naquela batalha. Trouxe meu pai do Paraná. Com dezenove anos eu trouxe os meus pais. Não, com dezoito para dezenove trouxe os meus pais para cá, com vinte eu já estava casado, sabia? Naquela época, tinha que namorar e casar. Então, arrumei uma namorada e arrumei um casamento. Era muito novo e tal. Não deu certo. Hoje eu tenho filho quase da minha idade. Você entendeu? O meu filho mais velho tem cinquenta e poucos anos de idade. Como ele mora... Minha ex, a família dela tinha fazenda em Mato Grosso - o tio tinha fazenda - e, na época, tinha preconceito, o preconceito de pele. Eles levaram a mãe do meu filho para o Mato Grosso para ficar longe de mim, para a gente não casar. Para não escurecer a família. Foi até bom, viu? Acontecer isso. Hoje meu filho tem cinquenta e poucos anos, a mãe dele tem minha idade e ela parece mais velha do que eu uns vinte anos. Setenta para vinte, quantos anos? Tem um visual de oitenta e poucos anos, quase noventa anos.
Então, uns trinta anos atrás, há mais ou menos trinta anos, meu filho falou: “Pai, minha mãe não casou até hoje. Por que é que o senhor não casa com a minha mãe?” Falei: “Não”. Devido à falta de... O estudo é bom porque abre a cabeça. Que faz e conserva, não é? A pessoa que estudou bastante tem uma cabeça mais... Eu, na época, casei quatro vezes. Quatro vezes. E faz quarenta e três anos que eu sou casado com a minha esposa. Antes da minha esposa, eu tinha casado quatro vezes. Na época, os pais falavam que a filha tinha que casar de véu e grinalda, não é isso? Eu ganhava bem na época, eu comprava o vestido, véu, grinalda e casava. Só na igreja eu casei quatro vezes. Tem uma igreja no Ipiranga, não sei se você já ouviu falar, chama Santo Antônio de Categeró, casa... Até hoje está lá a igreja. Casa desquitado, casado, desquitado, não tem problema. É só ir lá que o padre faz o casamento. Esse negócio de que só a morte que separa é mentira. Não é. Hoje, o desquite separa o casal. Então, eu sou de todas essas épocas, eu tive grandes, várias quedas financeiras, mas uma coisa eu digo para você: o pior que eu vejo por aí, nunca passei. A profissão não é rendosa, mas fome a gente não passa. Mas o que me estragou muito na época foi conhecer artistas, jogador de futebol, cantores vários. Chegava um, queria cortar o cabelo em tal horário, outro a mesma coisa, outro. Então, meu horário era aquele: das nove da manhã à meia-noite. Quando eu fui para a cidade, trabalhava escondido. No primeiro andar, numa sala pequena. E era briga o dia inteiro com as meninas que trabalhavam comigo, que não podia subir qualquer um. Aliás, tinha até trinta pessoas. Você já pensou atender trinta clientes? Hoje tem salão que não atende trinta numa semana. Eu, era por dia. Por exemplo, ele... Seu cabelo é caucasiano, você quer ele mise-em-plis. Então, vamos enrolar o seu cabelo. Permanente na época era boom. Hoje, os permanentes não deixam o cabelo mais cacheado. O afro não precisa mais. Hoje, a mistura de raça aumentou muito. Para ter um cabelo como você e o dela não precisa mais usar produto alisante para ele ficar cacheado. Mas, no meu tempo, precisava. Porque não tinha mistura de raça.
Ambas as partes eram preconceituosas. O branco, o amarelo e o preto. Meu pai falava assim: “Por que você não namora com mulher preta? Da sua cor? Tem que ser branca?” Eu falei: “No meu convívio, pai... Para mim, é o meu convívio”. Meu pai era contra. Com as meninas que eu namorava também, os pais eram contra. Muitas, os pais não queriam que eu namorasse com a filha porque eu era pretinho e a filha era branca. Eu falei: “Eu vou acabar com esse negócio!” Um amigo meu casou com uma japonesa. Teve um mestiço bonito. E outros se casaram com brancas. Têm filhos bonitos. Então, eu fui... Da minha época para cá, a maioria casou com tonalidade diferenciando. Porque não tem mais aquela... O branco tem que casar com uma branca, tem que ser da mesma cor. Sua mulher, ou pode ser noiva, namorada, pode ser branca, da sua cor, igual, mas às vezes tem diferença. Ou ela é mais branca do que você, ou... Você entendeu? Mas, na época, o pessoal, sabe... Devido a isso, não tinha mistura. Hoje, por exemplo... Eu estou na periferia, eu vejo. Os melhores cabeleireiros estão na periferia. Porque, em Jardins, não tem muita mistura de raças. Nós estamos aqui nos Jardins, nas imediações. Bairro de elite. Como é que chama aqui?
P/3 – Vila Madalena.
P/2 – Vila Madalena.
R – Vila Madalena? Então... A gente vê que não tem muito. Mas você vai para os bairros periféricos, Nossa! Tem bastante. Da minha cor, tem pouco. E da cor do meu vizinho também tem pouco. Eu e meu vizinho, a gente brinca. Ele é branco. Tem orelha... A orelha dele é desse tamanho. Juntando as duas, bate palma. Por quê? Porque ele é raça pura. E eu sou raça pura na cor. Não tem muita gente brasileira da minha cor. Quando você vê é haitiano, nigeriano, angolano. Mas o brasileiro mesmo, não tem muito raça pura. É misturado. Por exemplo, você. Você não é raça pura. Ele também não é, porque tem a orelha pequena. Raça pura é pela orelha. E o negro é o tom de pele. Eu, por exemplo, tenho índio. A minha avó era índia, o meu avô, africano. Meu cabelo é crespo por causa da minha avó. Senão, nem tinha, não é?
Então, foi bom estar com vocês, uma tarde legal. Você, jovem, tem idade para ser neto meu. E eu fiquei supercontente de vocês me localizarem e agendar para eu ter vindo aqui. Hoje é segunda-feira. Que dia que é do mês?
P/2 – Hoje é dia 24 de setembro.
R – 24 de setembro.
P/2 – Segunda-feira.
R – E se precisar, vocês podem ligar, podem ir até lá.
P/2 – Eu posso ainda fazer um monte de perguntas para o senhor?
R – Pode, mil vezes, hoje é folga. Hoje eu não trabalho.
P/2 – Porque o senhor comentou acerca dos seus avós. O senhor chegou a conhecê-los?
R – Conhecer, não conheci. Porque os meus pais... Na Bahia, era assim... Meu pai... Eram dezoito irmãos. Então, devido à situação financeira ruim, eles iam saindo fora, iam deixando os pais. E eu, mais ou menos fiz a mesma coisa. E a família grande é ruim por causa disso. Não fica. Nasce, cresce junto com os pais. Poucos. Parece animal. E a gente precisou fazer isso, devido à situação. Não podia estudar. Trabalhar na roça, difícil. O primeiro calçado que eu tive, eu tinha de treze para quatorze anos. Já queria vir embora para São Paulo. Então, não conheci meu avô. Minha mãe que falava do meu avô, do sogro dela, falava do pai dela. Mas eu mesmo não conheci.
P/2 – O que sua mãe contava deles?
R – Contava dessa situação, não é? Hoje... Hoje a televisão mostra. Os lugares meio esquecidos. Na época não tinha televisão. A pobreza vivia escondida. Se você fosse até lá, você via. Se não fosse... E a pessoa que mora no interior pensa que em São Paulo só tem flores. Mas tem espinho. Por exemplo, no meu tempo de jovem, você... Nós estamos num bairro de elite. Você não trabalhava em um bairro de elite. Não podia nem parar na porta. Jardim América na época, putz! Não podia nem parar. Como é que chama? O carro para, mostra lá dentro, quem está na frente da casa. Como é que chama mesmo? Hoje é câmera.
P/2 – Câmera?
R – Mas tinha outro nome. A gente parava, vinha o guardinha perguntar se a gente queria alguma coisa, tal, tal, tal, não podia ficar muito tempo. Hoje tem câmera. A pessoa já sabe. Por exemplo, o Jassa, cabeleireiro, naquela época trabalhava comigo. Eu troquei o Primo pelo Jassa. Até hoje, o Jassa, quando ele me encontra, ele fala: “Gê, você não tem um salão de elite ainda?” “Como? Você deu sorte, o Sílvio Santos montou para você. E eu?” Então, já até esqueci.
P/2 – A gente estava falando dos seus avós, o que sua mãe contava.
R – Então... Minha mãe contava que eles nasceram na roça, na época ninguém estudava. Eles contavam... Quando passava de vinte, trinta, tinha que ser nos pauzinhos, não é? Nos pauzinhos, para não esquecer.
P/2 – Como assim?
R – Por exemplo, ele ia contar vinte sacos de feijão, vinte sacos de arroz. Eles colocavam os pauzinhos - vinte pauzinhos daqui, vinte pauzinhos dali - para ele não esquecer. E na época, não... Na época em que tinha mais analfabeto, o Brasil era melhor. Isso é experiência minha. Porque muita gente trabalhava baratinho. Hoje, essa onda de vocês jovens acharem que têm que ganhar mais do que ganham ficou ruim para quem paga. Para enriquecer, o empresário, hoje para a frente, é difícil. Porque você sabe cobrar. Meus pais trabalhavam de graça. Meu pai... Eles eram dezoito irmãos, eles tomavam conta de uma fazenda, só eles. Uma fazenda que tinha quarenta empregados, quarenta colonos, vinte casas. O meu pai, a família dele chegava, lá na Bahia, só eles pegavam aquela terra. Meu avô conseguiu ser sitiante porque ele viu que na época tinha... Você comprava um alqueire, do lado você cercava mais um pedaço de terra. Constava que você tinha um alqueire, mas você já estava com dois. Os mais espertos cercavam quatro, cinco. Porque o pessoal ia saindo para São Paulo e deixando. Tinha filho que o pai falava: “Filho, cerca ali para você ser dono daquele pedaço”. “Não, pai, eu quero ir embora para São Paulo. Não aguento ver o senhor nessa situação”. Ninguém ficava rico.
P/2 – E antes do senhor vir para São Paulo, ainda nesse tempo na Bahia, eu queria que o senhor falasse como era a casa em que vocês moravam?
R – Na Bahia? Uma vez a minha mãe mostrou, não é? Era feita de lenha. Ia no mato, cortava uma galha de árvore. Árvore lá era fininha. Cortava as fininhas para fazer as varas, trançado, e fazia, amassava. Tirava água do poço, fazia aquele barro ali, ia tapando os buracos com barro. Era a casa que eles tinham. A casa do meu avô tinha dezesseis cômodos. Mas tudo de barro. Tudo de barro. E eles, quando vinha alguém de São Paulo passear lá, um parente, alguém chegava com roupa de passeio e aquilo para eles era uma... Você entendeu? Porque as roupas eram difíceis. Tinha gente que tinha duas calças, três. E conforme ela ia furando, ia fazendo remendo. Hoje vocês não sabem remendar roupa, não é? Na época, era assim. Então, minha mãe, quando ela casou com o meu pai, ela veio embora para São Paulo. A situação difícil mas, em vista de lá, melhor. Foi passando para nós, filhos, o que a gente tinha que fazer. E a gente foi vendo, foi vendo, foi vendo, foi embora para São Paulo. E estamos aqui.
P/2 – Então a infância do senhor não foi na Bahia?
R – Não. Foi no Paraná. Do Paraná eu vim para São Paulo. Eu vim para São Paulo em 1964.
P/2 – E no Paraná, onde que vocês ficaram?
R – Nós morávamos... No Paraná, nós moramos em tantos lugares! Cambé, Rolândia, Arapongas, várias cidadezinhas pequenas. Porque o meu pai, ele herdou do pai dele que ele tem que ser muito honesto, não pode... O homem honesto não compra nada para pagar depois, só compra à vista. Então, quem pensava diferente do meu pai tinha sítio. O meu pai só pensava dessa forma: “Eu vou comprar à vista”. Nunca teve nada. Meu pai morreu sem ter um metro de terra. E quando falava assim: “Olha, o cara cercou ali, o outro cercou, tem um meio...”. Meu pai falava: “Não. Não quero. Quero comprar”. Morreu sem comprar nada.
P/2 – “Seu” Gê, como era fazer essas mudanças de cidade, com dezesseis pessoas na família?
R – A mudança nossa era o caminhão. A cama, meu pai fazia de madeira. Era um cavalo de pau. Como é que chama? Pedreiro usa, põe tábua em cima. Como é que chama?
P/2 – Como?
R – Pedreiro usa. Cavalete. Meu pai tinha... Cada cama tinha dois cavaletes. Depois, colocava tábua em cima. O colchão era feito de palha de milho. Então, meu pai que fazia, minha mãe que fazia, fazia mesmo o colchão, enchia de palha, travesseiro a mesma coisa. Quando mudava, era aquele monte de tábua, não é? E galinha e cachorro. E nós ficávamos contentes, porque andava de caminhão. Só andava a pé! Quando entrava em um caminhão, meu sorriso vinha na orelha. Mas eu sempre pensando assim: tem que ser diferente, tem que ser diferente! Por isso, quando o pessoal me chama para fazer, às vezes, alguma reportagem... De vez em quando eles vão lá - a Cultura, a Band, a Record - eles vão lá, de vez em quando vão na Galeria e perguntam: “Por que essa onda de salão de cabeleireiro especializado em cabelo afro?” Eles perguntam: “quem trouxe essa onda, por quê?” O centro da cidade está ruim, não é? Mas já foi melhor. O pessoal queria saber: por que aquele movimento? Salão que só corta cabelo caucasiano, vazio. Por que de black power cheio? O pessoal queria saber. Então, um monte de... Parece com vocês, jornalistas, iam fazer matéria, iam muito lá na Galeria. Hoje, acho que parou um pouco. No meu tempo era... Eu tinha que me esconder. Senão... Olhava assim à direita, tinha uma fila para cortar cabelo. Hoje eles localizam e vão lá onde eu estou escondido, eles vão lá em Pirituba. E lá, quase todo mês, eles vão. E, às vezes, eu me emociono quando... Porque parece que, às vezes, não é verdade. Tim Maia chegava muito louco. Agepê. Todos esses caras. Jorginho do Império, Júnior – quando ele jogava no Flamengo, hoje é narrador de futebol, não é? Narrador de futebol, o Júnior. Eles vinham do Rio para cortar cabelo. Falei: “Gente, por quê?”. Porque é época, de 1974, regime militar, na ditadura, tinha uma diferença incrível. Tinha uma diferença. A mãe dela pode explicar. O pai, não é? Quem é quase negro na sua família? Pai? Mãe? Porque vocês não são raça pura, vocês dois.
P/3 – Não.
R – Não.
P/3 – Meu avô é.
R – Seu avô?
P/3 – Ele não é mestiço.
R – Não é mestiço?
P/3 – Não.
R – E sua mãe? Seu pai?
P/3 – Minha mãe também não.
R – Sua mãe, não?
P/3 – Minha mãe é. Minha mãe e meu pai são.
R – Não. O casal, um é mais do que o outro. Os dois são mestiços ou um só?
P/3 – Os dois são.
R – É? Eu falo por causa dos meus filhos. Meus filhos são mestiços. Eu ensino meu neto. Meu neto é moreno. Eu falo para ele: essa onda de quase... Existe quase, o mestiço é quase. Tem gente que fala: “Não, não existe preto”. Por que não existe? O branco aceita ser branco. O cara que tem o tom de pele igual a mim, ele não vai aceitar ser preto? Existe o preto, existe o mestiço - que é menos preto - e depois existe... Como fala? Moreno. Depois chega no moreno. O último é moreno. Quando é negro, ele... A gente vê quando ele é mestiço. Minha esposa. Minha esposa é mestiça. A minha sogra era negra e o meu sogro, branco. E minha esposa já saiu assim porque a mãe da minha esposa, ela não era pretinha como eu sou. Era negra. Porque existe uma colocação que muita gente, às vezes, não fala. Existe. Existe o quase. O preto e o quase. Por exemplo, existe... Os americanos falam assim: “Estou preto! Estou preto”. Negro, você tem cabelo crespo e pele clara, você é negro. Mas não é preto, é negro. Aqui no Brasil, devido à mistura, o pessoal não aceita muito ser preto. Um cara como eu é preto. Nigeriano é preto. O pessoal de Angola é preto. Haitiano. Senegal não é preto, eles são azuis. Passou de preto o Senegal. Já reparou neles? Não são pretinhos iguais a mim. Eles são azuis. Passaram de preto. O Senegal... Eles são o último tom.
Em 1974... A gente sofreu muito na época em que a gente veio do Paraná para São Paulo. E eu acho que o governo devia reverter um pouco. O que aconteceu? O pessoal veio para a cidade grande e tumultuou. As empresas estão fechando. Onde era empresa, hoje eu vejo galpão fechado, com placas: ‘aluga-se’. Como era difícil no Brás, era movimentado para caramba. Eu ia com um vizinho meu comprar carne seca no Brás, Nossa, um movimento incrível. Hoje eu fui ao Brás, putz! E não sei por que está acontecendo. Porque muita gente veio para São Paulo e tumultuou. Tinha que fazer alguma coisa para voltar um pouco. Eu, se voltar, vou voltar aposentado. Mas eu queria voltar para o interior. Não para o Paraná, mas eu queria voltar... Porque, no Paraná, onde a gente morava, não sei se você ouviu falar, era uma cidade... Dizem que o mundo acabou em água em alguns lugares, mas no Paraná foi em pedra, não é? Uraí tem muita pedra. Pedra mesmo. Muita pedra. Tem lugar que você não pode construir nem casa, por causa das pedras. Na roça, você vai plantar, você tem que vir com uma enxada, faz um barulho, você não joga semente ali. Porque se a semente cai ali, ela não vai nascer. Onde eu vivi, no Paraná, em Cornélio Procópio, lá era muito ruim. Aí meu pai veio para Jataizinho, Ibiporã, Londrina, Cambé, Rolândia. Depois que a gente foi crescendo, meus irmãos iam saindo de casa. Meus irmãos com treze, quatorze anos, meu pai já queria que eles casassem para diminuir a ninhada. Então eu fico olhando hoje. Hoje a gente... O pai tem poucos filhos, ele não quer que a filha case, não quer que o filho case tão cedo. Ele tem ciúme da filha, do filho. No meu tempo, não tinha esse negócio de ciúme não. Cresceu... Aí eu vim para São Paulo. Hoje eu tenho meus filhos criados. Os que estudaram pouco trabalham no ramo de cabeleireiro.
P/2 – Antes de o senhor vir para São Paulo, queria que o senhor contasse como eram as refeições em casa. Como vocês se reuniam para comer, o que sua mãe fazia? Como era reunir todo mundo? Em que momentos estava todo mundo junto?
R – Na hora do almoço, a gente comia na roça. Levava um balde de comida. Comia a comida no balde. Ali vinha...Naquele balde tinha o feijão embaixo, arroz em cima. E tinha aquelas crises. Quando precisava de chuva, vinha sol, perdia aquele roçado de feijão. Aí, ficava aquela situação difícil. Onde para comer oito, comia... No lugar de comer três, comia oito. A gente pensava em fazer alguma coisa para largar do meu pai para ganhar dinheiro fora. Estudar, não dava. Eu morava numa cidade, morava num lugar em que a cidade mais próxima tinha vinte quilômetros. Então, para você ir e voltar, quarenta quilômetros. A pé, não tinha condições de ir e voltar. Meu pai, quando ele ia a cavalo, ele ia só no cavalo porque não podia ir na carroça. O cavalo e a carroça. Porque era muito para o cavalo puxar, ida e volta. Eu tenho um irmão - dois - que morreram numa situação... Por falta de recursos. Então, nós somos cinco homens; vivos, nós somos cinco. E mulher, depois... Depois de velhas, morreram duas. Mas, quando nós morávamos lá, todo mundo, todo mundo na roça. E eu vi a situação das minhas irmãs, na hora de almoçar. A comida vinha dessa forma. Comia o que tinha. Mistura, não podia matar uma galinha, porque tinha que matar duas. Ovo, a minha mãe tinha que vender ovo para comprar remédio, roupa, nos intervalos de seis meses, às vezes. Cada seis meses se colhia feijão, se colhia arroz. Mas quando perdia o feijão, já ficava difícil. O que fazia? Aí vinha aquela situação financeira ruim. Tinha dia em que eu chegava em casa, morria de medo na hora de jantar. Porque a gente... Eu apanhava na hora de jantar. Não podia pegar um grão a mais. Meus irmãos batiam. Colocava só um pouquinho de comida assim, todo mundo fortinho, fortinho, não. Quem trabalha na roça tem músculo, não é? E a gente tinha muita fome. A minha mãe falava: “Só tem isso para comer”. A gente tinha que se virar com aquilo. Banho? Não tomava banho porque, de balde, a gente lavava o pé para tirar a poeira mais forte do pé e dormir do jeito que estava. Aquele monte. E na janta, se ia melhor, mais saudável, era briga. Porque como a gente comia mal no almoço, a gente esperava que na janta tivesse alguma coisa. Chegava, minha mãe falava: “Pior do que o almoço!. Eu quis pegar galinha, não consegui pegar. As galinhas, na hora de pegar, elas correm para o mato”. Em volta da casa tinha mato. “Não consegui pegar nada”. A gente falava: “E agora? Pegar à noite?” E tinha que correr para fazer. E minha mãe falava: “Frango não pega, porque eu vou vender na cidade para fazer dinheiro”. Ovo. E ovo? “A galinha cantou no mato, mas eu não vou no mato”. A gente ia no mato catar. Às vezes pegava ovo. Ia, no escuro, procurar ovo. Minha mãe falava: “Eu vi galinha cantando naquele meio ali”. Então, a gente ia lá para ver se pegava ovo. Com a mão assim. Tinha uma moita assim de mato. A gente enfiava a mão para ver se tinha ovo. Quando chegava, às vezes achava quatro ovos. Quatro aqui, quatro ali. Chegava em casa com uma dúzia. Mas, com o meu pai e a minha mãe, dava dezesseis pessoas. Aí, minha mãe fazia. Ela fritava o ovo esticando, não é? Para ele ficar grande.
P/1 – Como esticando?
R – Ela ficava esticando o ovo. Brincadeira. Então... Isso foram muitos anos, anos, anos. E a gente veio embora para a cidade. Hoje, eu comento por que São Paulo está dessa forma. Muita gente, devido... Como eu, tinha muitos. Igual a mim, tem muitos. Hoje meus filhos reclamam, não é? Mas eu falo para eles. É mais ou menos por aí. “Pai, o senhor sabe? O senhor conta uma história mais ou menos legal”. Mas é legal. São Paulo, quem tem, tem. Quem não tem, hoje em dia está difícil para ter. Como no interior, na minha época. Era difícil. Hoje, inverteu. Está invertido. Não está? Um pouco?
P/1 – No interior, está?
R – Estava. Hoje eu vejo. O meu dentista me fala que ganha menos do que eu, o meu dentista. Ele ganha menos do que eu. Ele estava comentando que, antigamente, quando ele se formou, ele sonhava ser... Mas hoje ele viu que as coisas mudaram. São Paulo está muito tumultuado. Não está mesmo? São Paulo tumultuou muito.
P/2 – E, “seu” Gê, ainda na infância do senhor, quem cortava o seu cabelo?
R – Eu, de ver. Meu pai cortava o cabelo dos meus irmãos. Porque quando a gente ia no salão, eles não queriam cortar o nosso cabelo. Hoje, ainda é assim. Se chegarem três pretinhos num salão de cabeleireiro por aqui, eles não atendem. Fala que é com hora marcada. Mas a gente sabe, naquele momento o cabeleireiro está parado. Ele não atende. Hoje ainda existe, em bairro da elite... Que um cabeleireiro... Eu, ele ou ela ali, fala que não dá para atender. Se está com hora marcada. Você imagina na minha época, que o militarismo... Se o presidente era militar, você imagina como que era a situação na época. O preconceito existia de ambas as partes. Existia o preto que não queria se relacionar com o branco. Existia o branco que não queria se relacionar com o preto. Na época. Hoje, acabou um pouco. Ainda existe um restinho dessas pessoas mais velhas. Uma mulher de meia idade, ela sempre acha que eu estou novo. “Ah, não parece que tem setenta e um anos”. “Tenho, e trabalho”. “Puxa, meu marido tem a sua idade. Só o pó”. Essa época em que eu vivi era para estar mais velho do que eu estou hoje. Eu sofria mais, entendeu? Comida, eu degustava a pior comida, não a melhor, na época. Então. Às vezes, eu me empolgo um pouco. Mas não tem problema. De umas mil, umas quatro você aproveita. Então, na época, eu vi que a situação tinha essa... A gente ia ao restaurante, os caras falavam assim... Até hoje eu comento com a minha esposa... As namoradas de pele clara era para acabar com essa imagem. Mas mesmo assim... Eu mandava a minha esposa, as minhas namoradas sentar aqui e o lanterninha falava assim para mim... Um dia, eu falei para ele: “Escuta, você vai pagar a janta da menina?” “Não, o que é isso moreno?” “Moreno, não! Negro. Porque eu não sou moreno. Negro”. Aí ele: “Não, porque não sei o quê”, querendo me agradar. Porque os restaurantes, na época, tinham os chefs... Tinha outro nome que eu me esqueci. Aí o chef viu o garçom, o chef levantou a cabeça. Eu falei: “Eu não quero que você me atenda. Eu vou jantar, mas eu não quero que você me atenda, não. Mande outro garçom, você eu não quero”. Aí, não podia. Cada lado tinha um garçom. Ele estava fazendo o lado direito, o outro o lado esquerdo. “Chama ele para mim”. “Pô, eu vou perder o emprego, cara! Eu estou aqui há quatro dias. Se o gerente vier até aqui, ele me manda embora”. Eu falei: “Então você vai ser mandado embora. Porque você eu não quero. Você, cara, me discriminou. É feio! Você pode ter uma preferência. Mas tem que ser educado. Não precisa mostrar. Você entendeu? Você: do meu lado, só vou atender corintiano, sou corintiano. Pode fazer isso, mas tem que ter educação. Só porque sou são-paulino, você não vai me atender?” Aí ele: “Não, puxa vida, me desculpa, tal, tal”. “Não, você eu não quero”. Aí veio o chef: “Ô, moreno...”. “Moreno, não! Negro. Eu sou negro. Não sou moreno. Morena é ela”. Eu estava com minha esposa na época. “Ela é morena, eu não”, falei para o garçom e para o... Então existia. Até hoje, na escola, por exemplo, você sabe que tem professora que esquece de ensinar para o aluno tonalidade de pele, o porquê das tonalidades diferentes? Deus, quando andou no mundo, deixou um casal de cada espécie e cada casalzinho de espécie e cor. Devia ensinar. Mas a maioria não ensina. Eu não estudei nada. Eu fiz segundo ano primário, à noite, em São Paulo. Depois eu me levantei, não tinha mais como estudar. Não tinha como estudar. E o meu tempo todo... Eu tenho cinquenta anos de cabeleireiro, o meu tempo é só trabalhar. Mas, graças a Deus, não posso reclamar. Sem estudar, para ganhar o que eu ganho hoje, tem que ralar. Tem que estudar, mesmo.
P/2 – E antes do senhor vir para São Paulo, ainda entrando nessa parte da adolescência, o senhor tinha vontade de ser alguma coisa quando crescesse? Tinha vontade de ser...
R – Eu tinha vontade de ser uma pessoa normal. Estou com fome, vou almoçar. Arroz, feijão, bife, uma salada. Não tinha. Eu comia almeirão do mato, chama... Você já ouviu falar em serraia? Almeirão. Tomate você já viu, não é? Ibiúna tem bastante. Tem uma chácara em Ibiúna que tem. Almeirão, ninguém comprava almeirão. No mato tem. E tem serraia também, que parece almeirão, para fazer salada. Então, minha mãe mandava a gente sair e procurar, longe de casa, para onde cachorro não ia. Porque você não pode ter esse tipo de verdura onde tem cachorro. Eles fazem xixi. Minha mãe falava: “Vai buscar”. A gente trazia aquele monte para fazer cozido. Que chama. Não é salada, que amarga muito. É fazer cozidinho, não é? Mas eu sempre tinha vontade. Eu vim conhecer pizza aqui em São Paulo. Lá no Paraná ninguém comia pizza. Coxinha, quibe, aquele quadradinho, diagonal, como chama? Esfiha. Uma série de coisas eu vim conhecer aqui.
P/2 – E o senhor lembra, em casa, quando vocês decidiram vir para São Paulo? Vocês conversaram? Qual era a expectativa?
R – Eu não via a hora, menina. Eu trabalhava com o meu pai na roça. Depois, chegava em casa, seis horas da tarde não podia fazer mais nada. Tinha aquela briga para lavar o pé. Lamparina. Não tinha luz. Na roça. E tinha que ter uma lamparina com querosene. Tinha que lavar o pé rápido, para o outro vir pegar. Então, tinha uma lamparina na cozinha e uma na sala. E, nos quartos, escuro. Cada um que ia dormir, tinha que dividir. Cada três quartos tinha uma lamparina. Depois das oito tinha que dormir no escuro, porque não podia deixar acesa. Então eu via aquela situação, não via a hora de fazer quinze, dezesseis anos para vir embora. Naquela época, para vir embora para São Paulo tinha que ter dezoito anos. Hoje eu vejo, menor viaja para onde quer. Mas, no meu tempo, só com dezoito anos. Eu me achava velho com dezoito. Eu não via a hora de ir embora. Uma coisa que hoje eu gosto: mortadela. Eu como mortadela da boa. Eu gosto de mortadela. Porque, na época... Nossa, quando eu ia para a cidade, eu sentia cheiro de mortadela e não podia comprar. E depois quando eu vim para São Paulo eu não via a hora de ter uma profissão, alguma coisa, porque não tinha estudo nenhum, o que eu ia fazer?
O meu irmão, mais velho que eu, trabalhou de guarda noturno na época para tirar documento dele para mim. E eu comecei já a cortar cabelo da molecada. Aí, ele viu que eu ia ajudá-lo. E eu fazia... O meu primeiro emprego foi faxineiro. Eu trabalhava no salão de cabeleireiro, fazia faxina, comprando cigarro para aluno, para as professoras. E de lá eu fiz um curso de cabeleireiro. Queria fazer garçom. Falei: “Sai fora!” Eu fiz cabeleireiro. Aí, depois, eu estava formado, era cabeleireiro já, ninguém me chamava. Um dia, um cara ficou bobo de ver: “Você, cabelereiro, professor, e trabalha aqui. “Trabalha aqui?” “Trabalho, ninguém me escolhe, ninguém quer”. Ele falou: “Meu pai é português. Meu pai é mão-de-vaca. Meu pai está doente. E o médico desenganou meu pai. Se meu pai morrer, eu vou vender uma casa - ele tem várias casas - e vou comprar um fusquinha para mim e montar um salão”. O aluno falou para mim. “Vou montar um salão. E quero você para trabalhar comigo”. Eu falei: “Não acredito, cara!”. “Você vai trabalhar comigo”. E todo mundo que chegava procurando aluno... Procurando, não, chegavam as madames e falavam: “Professor, você tem algum aluno que já está finalizando o curso de corte de cabelo?” Eu falava: “Putz, eu tenho!”. Mas não falava: “Você é aluno? Você é professor?” Professor. Mas não me queriam, porque meu perfil... Esse menino, o pai dele morreu, montou um salão. Coisa mais linda. Na Casa Verde. Montou um salão. Mas quando a mãe dele me viu, a mãe dele falou que não. Eu ia trabalhar de sócio com ele. E meu aluno: “Eu vou montar um salão da hora, eu preciso de você, um profissional que corte qualquer tipo de cabelo. Eu preciso que você entre de sócio comigo”. Podia me dar 2% só, ou 3%, não tinha problema nenhum. Quando a mãe me viu, a mãe falou que não. Eu continuei na escola. Continuei na escola, tal, tal. Um dia, eu me invoquei na escola. “Vou cortar cabelo aonde eu durmo”. Dormia embaixo de uma escada. “E lá pela escada eu vou cortar”. O homem tinha dó de mim. Deixava eu dormir lá. Normal. Quando ele começou a ver a turma cortando cabelo, ele falou: “Não, não acredito!”. Eu fazia a altura do corte de cabelo, a um, a zero, a um baixo, tudo no pente fino. Tudo no pente fino. Não tinha maquininha de corte. Naquele tempo era máquina manual, não é? E eu não tinha dinheiro para comprar maquininha manual. Eu cortava no pente, tesoura, tesoura. Baixinho. Com risquinha, tal. Tudo dessa forma. Aí ele ficou bravo comigo. Eu falei: “Pô, e agora?” Aí apareceu um senhor português, falou assim: “Vou te dar minha garagem para você cortar cabelo. Só que é o seguinte: eu vou te dar a garagem para cortar cabelo e você pode dormir lá também. Só que, à noite, quando eu chegar...”, ele era feirante, “... quando eu chegar do Ceasa para pôr o caminhão para dentro, você tem que levantar para eu pôr o caminhão e você deitar de novo”. Por causa do barulho. Às vezes ele chegava do Ceasa, eu tinha que levantar. Onze horas, meia-noite. Ele guardava o caminhão, eu deitava de novo. No outro dia, ele ia para a feira, eu… Aí foi, foi, depois que apareceu o Serginho, do São Paulo, cortou o cabelo comigo. Aí, o Serginho chegou no São Paulo - Juvenil - para os treinos, aí viram e falaram: “Você é o cara! Vai vir fulano, fulano, fulano”. Não acreditava. Falava: “Vai vir o Mirandinha”. O Mirandinha estava no auge, na época. Mirandinha quebrou a perna e o Serginho ficou no lugar do Mirandinha. Falou: “Vai vir o time todo”. Vai vir branco, preto, amarelo. Jogador de futebol não tem preconceito, não. Igual bandido. Bandido não tem preconceito. Falou: “Vai vir todo mundo. O time todo”. Falei: “Não acredito!” “Vai vir”. Não tinha nem água para eles beberem. Eu tinha um filtrozinho pequeno com água, aquele monte. Cada um veio com um carro, que era aquela poeira danada. Lembro como se fosse hoje. O falecido Valdir Peres falou: “Vamos ajudar esse. Vamos ajudar ele”. O Valdir falou: “Só tem eu que não sou black!”. O Valdir morreu careca. Tinha o cabelo igual ao dele, assim. Corte francês. O Valdir falou: “Só eu, de branco! E quando eu voltar agora, quando os meninos vierem, eu vou vir junto e trazer o Muricy”. O Muricy era boyzinho. Muricy Ramalho. Aí veio o Muricy Ramalho. Aí me tirou do barro, não é?”.
P/2 – E como o Serginho chegou até o senhor?
R – O Serginho?
P/2 – Que foi o primeiro, não é?
R – É. Porque o Serginho tinha o cabelo ruim. Maltratado. Porque o cabelo afro, ele tem uma forma que fica melhor. Porque não existe cabelo ruim, existe cabelo que precisa de um... Por exemplo, o seu. O seu está “precisê”. Não está mesmo “precisê”? Você viu as fotos dos meninos lá? Black, redondo, mas aí você pode usar com bucha, cabelinho enrolado. Não usa ele igual a antigamente. Aí o pessoal... O Serginho viu, porque o vizinho do Serginho cortava cabelo comigo. Viu. Serginho viu e falou: “Pô, maneiro o seu corte de cabelo”. “Lá no Neguinho, lá em cima”. Ele foi, cortei o cabelo dele, várias vezes. Ele falou: “Eu vou trazer o time”. E o cabelo do Serginho não era bonito. Na época, tinha que ter o cabelo... Quanto mais volume, mais ele estava... não é? Por exemplo, o cabelo do Serginho não chegava a ser igual ao seu. Por isso que eu falei: raça pura, o cabelo não cresce! Não é isso? O negro raça pura, o cabelo não... E o dele, o do Serginho, não crescia. Já o do Zé Carlos crescia. Do Gilberto crescia, porque o Gilberto é misturado, não é? A mãe branca, o pai negro. Como o Neymar. Neymar é quase branco, mas o cabelo é afro. Por quê? São misturas. Ele me trouxe o time todo! Depois eles fizeram uma vaquinha. “Vamos te levar...”. Eu saí da Casa Verde Alta, uma rua de terra. Aí eu fui para a Casa Verde. Na Casa Verde, o Chic Show me acolheu para o centro. E o Jassa queria armar um esquema com ele. Mas o salão do Jassa foi o Sílvio Santos quem montou. Tem que seguir o sistema. Eu falei: “Não, deixa comigo”. O Jassa é meu amigo. Quando o Primo foi trabalhar comigo, o Jassa era para trabalhar comigo. E eu tinha dó do Jassa, porque ele trabalhava na rua Aurora. E eu nas Grandes Galerias. Dois salões: na Galeria Presidente e nas Grandes Galerias. E o Jassa, na rua Aurora. Rua Aurora, Timbiras, ali, você sabe, não é? Ali, urubu voa de costas. E o Jassa trabalhava num salãozinho ali, menina. Mas eu fui chamado para cortar cabelo afro dos caras que usavam black. Wilson Simonal, Jair Rodrigues, Jorge Ben. Porque tinha a turma do Jorge Ben, o conjunto todo. Então, fiquei no afro. Aí, o Silvio Santos pediu para eu ir aos domingos, uns lugares lá, cantava, fazer cabelo. Porque eu era diferente. Aí o Jassa ia para cortar de graça, pentear de graça o cabelo dos meninos. Na época, tinha Roberto Carlos, Carlos Fontana, Zé Luís, Jerry Adriani, vários que morreram daquela época. Do meu tempo, poucos estão vivos. O Jassa ficou cortando o cabelo caucasiano e eu black power. Aí eu peguei e saí, porque para black tinha muito. Não dava para mim. Eu chegava oito horas no salão, já tinha fila. E eu sempre trabalhei na segunda-feira. E o programa do Sílvio Santos era gravado às terças. Até hoje é às terças-feiras. Tinha que ir terça-feira lá. Chegava às dez horas e ficava o dia inteiro, para a gravação. E eu fui uma vez e não fui mais. Não fui porque... O Jassa é meu amiguíssimo. Até hoje, quando eu encontro com ele, de vez em quando, nos Congressos, ele fala: “Poxa, Gê!”. Aí, eu falei para ele: “Eu não tenho salão elite, porque o meu público é diferente”. Não é o público elite. E para mim que nunca tive um sócio que chegasse com dinheiro e falasse: “Vamos montar!”... Já apareceu sócio que tinha menos do que eu. Se tem menos do que eu, eu não preciso de sócio. Não é verdade? Então, continuou dessa forma.
P/2 – E quando o senhor virou o Gê Black Power?
R – Foi quando trouxeram o James Brown. James Brown veio para o Brasil. Mas na verdade mesmo, eu comecei a me destacar quando veio a família Jackson. Jackson Five. Quando veio para o Brasil. Isso me levou. Eu morava de lá, começou a fazer fila para cortar o cabelo comigo, na Casa Verde, e de lá eu saí para o centro da cidade. Como é que eu vou vender convite na Casa Verde, aquele monte de gente para comprar convite para o baile no Palmeiras? Tinha que estar no centro. Porque é a preferência das pessoas de todos os bairros - Guaianazes, Guarulhos, Zona Leste. Todos os lados que você pensar tem. Tudo. Vinha esse pessoal, Franco da Rocha, Morato. Tudo. Campinas. Tem cabeleireiro em Campinas, até hoje ele me conhece. Ele vinha de lá fazer cabelo aqui. O finado Waldick, que já morreu. Um monte! Mas o conhecimento, eu reconheço, seria melhor o dinheiro, não era? Não é verdade? Mas eu sou bastante conhecido. Eu já montei salão em lugar em que eu falei para minha esposa: “Vai ser duro para mim”. Não passou uma semana, minha esposa falou: “Fulano de tal te conhece”. É mole? “Te conhece”. Eu parei em Ibiúna, o pessoal me conhece. Vinha de Ibiúna cortar o cabelo. Putz. Fiquei bobo. Cara começou a olhar para mim, um senhor olhava para mim: “Você é irmão do Gê Black Power?” Eu falei: “Olha, tem pouca gente, eu vou falar: sou eu mesmo”. Ele falou para mim que ele ia na Galeria para cortar o cabelo. Então, em São Paulo inteiro, eu sou bastante conhecido.
P/2 – Mas o senhor lembra desse momento em que o senhor começou a ser o Gê Black Power? Assumiu essa identidade? Conta para a gente?
R – Lembro! Lembro! Lembro!
P/2 – Quando foi?
R – Quando o James Brown veio para o Brasil. Ficou dois dias com show no Palmeiras, porque o Palmeiras não suportava tanta gente. O Palmeiras cheio, cheio, oito mil pessoas. Tinha mais ou menos quatorze mil. O estádio com quatorze mil pessoas. Aí, teve show sábado e domingo. Aquele dia foi fogo para mim. Depois daquilo lá, foi fogo. Mas ficou difícil para mim porque quando você passa a ser bastante conhecido, não é a mesma coisa que se você para, fica sentado, escondido e ganhando. O pessoal ia para mim. Até hoje. Se você for no meu salão fazer o seu cabelo, você vai cortar com quem?
P/1 – Com o Gê!
R – Você entendeu? Então fica difícil para a gente ficar... O cabeleireiro ficar rico. Devido a isso! E a negritude é diferente da cobran. Eu lancei uma gíria que ela está há muitos anos. Existe o gronê, cloprê e o cobran. O branco, ele vai a um salão famoso, lava o cabelo com qualquer um e corta com qualquer um. Ele está no salão, salão de grife, ele chega ali, não quer nem saber. O dono fica sentado, fica no escritório dele. Ele não é nem cabeleireiro. A maioria é investidor, não é profissional da área. É um cara que dá sorte. Eu não. Eu monto um salão. Quanto mais bonito, mais eu trabalho. Quanto mais eu trabalho... Então, até hoje...
P/2 – O senhor estava falando, quando o James Brown veio fazer o show...
R – O pessoal queria me bater, porque não tinha mais convite. Já não tinha mais convite. Veio gente de Campinas, de Jundiaí, veio caravana. E não tinha mais convite. Na sexta-feira, acabou. O pessoal queria... “Não sai na rua!” Igual a torcida do Corinthians quando eles estão mesmo querendo bater no adversário, não é? Em massa. “Não sai!”. Eu fui ao show, fiquei escondido. Uma que cada show que eles faziam com o James Brown, o pente que ele trouxe de Miami ele penteava o cabelo, alisando. Penteava alisando. E ele transpirava muito. Cada intervalo tinha que passar o pente, e com cuidado para não queimar o couro cabeludo. Hoje tem chapinha. Antigamente era o pente elétrico. Penteava e a pontinha não podia grudar no couro cabeludo, se não queimava. Esse dia, me lembrou... O cabelo tinha que ser eu. E vários! Como quando vieram os jogadores de basquete, quando vieram para o Brasil, também. Teve que ir na Galeria. Todos os cantores que usavam black power, todo mundo tinha que ir na Galeria. O Hilton Hotel mandava serviço, já mandava para eu tomar cuidado com o cliente. Aí começaram a fazer coisas erradas. Foi o que fez eu sair. Você esqueceu de perguntar: por que eu saí da Galeria? Estava esperando você perguntar. Porque coisas boas, quando fala bem. Coisas ruins, quanto mais fala mal. Galeria do Gê. O pessoal ia para comprar droga, Galeria do Gê. Queria vender droga, Galeria do Gê. Roubavam um cordão de ouro, Galeria do Gê. Ia vender lá. Aí, ficou chato para mim. Começaram roubando as pessoas de cor clara. O negro ladrão, ele roubava o branco. O negro, não. Vocês não sabiam. Ficou difícil aguentar aquilo. As primas da minha esposa iam para lá, tinha que eu ir esperar na porta da Galeria. Ana Davis vinha do Rio de Janeiro cortar cabelo comigo, tudo bem. Que ela era, na gíria, ela era granê, normal. Mas se fosse cobran, tinha que tomar cuidado. Acabava de comprar os convites, os caras tomavam. Ana Davis vinha cortar o cabelo e falava isso: “Gê, eu estou chegando, estou no estacionamento, esperando no Paissandú”. Eu ia no Paissandú para entrar com a cliente. A ex-mulher do Faustão... Não tinha o programa Perdidos na Noite? Esqueci o nome dela, não sei o quê lá, Maria. Ia com a Ana Davis. A Ana Davis entrava, a Maria não podia. Os caras roubavam. Casagrande foi fazer o cabelo mise-en-plis lá comigo. Na hora em que ele saiu, roubaram o Casagrande. Tomaram o cordão de ouro dele, rasgaram o pescoço. Chicão, mesma coisa. Então, os jogadores que iam lá junto, colegas do Serginho, os mais escuros ficaram. Os mais claros pararam de ir. Isso doeu em mim. Nunca mais. Até hoje os caras falam: “Gê, vem para cá, vem para cá”. “Não”.
E eu sou a favor da mistura. Igualdade não tem cor. Por que os meus amigos têm que ser só pretos? Sou contra também o branco fazer uma festa e não convidar um negro. Uma festa de duzentas pessoas não ter um negro. Às vezes, eu discuto isso. É, tem racismo ali. Hoje, duzentas pessoas, não tem duzentas pessoas só brancas. Sempre tem negro nisso. Embora o cara possa não querer assumir. Mas tem, porque misturou muito. No meu tempo não tinha muito. E quando tinha, tinha, sabe? Aquela diferença. Que eu sou contra isso. Aí eu saí da cidade e não quero voltar mais. Não quero. Não adianta. Até o Toninho Cabelo Crespo, músico, ele conhece vários que eu conheço, Como, por exemplo, tem o – morreu há pouco tempo – como é o nome dele? Luís Melodia, Jorge Ben – está já velho mas está por aí – e vários cantores. Eles falaram para mim: “Tu devias ter uma casa aqui, aconchegante, que podia pegar, por exemplo, governador da África, Angola, seja de onde for, quando chega, eles querem se...”. Você entendeu? Eu não tenho. Quando eles vinham, esse pessoal ficava na Galeria, no meio dos outros, com medo. Mas, muitas vezes, se misturavam. Ninguém sabia quem era quem. Por exemplo, Silvestre, Cheroline, Gloria Gaynor, Betty Wrigh, Barry White, eles todos iam para a Galeria. Até o Péricles, antes de ser cantor, ele trabalhou lá. Cabelereiro, o Péricles. Do Exaltasamba. Rodriguinho. Rodriguinho, a mãe dele era colega da minha esposa. Eu conheci a minha esposa através da mãe do Rodriguinho. É compositor, não é? Ele é do... Esqueci o nome. Então, tem uma série de fatores que me chatearam. Saí do centro e não volto. Só volto se for dessa forma. Posso atender um, dois, três. Mas não eu... Fazer féria para bancar uma casa bem montada, onde o aluguel é caríssimo, um só trabalhando não paga o aluguel. Tinha que ter vários iguais ou melhores para você chegar e, com um pouco de cada um, você faz o montante. Mas, no meu caso, não! Era tudo para mim. Hoje eu vou no salão do Jassa, eu vejo. Dois, três para o Jassa, eu vejo como é que funciona. Comigo é diferente. O negritude dá uma preferência incrível para mim. Dá! Mas eles são muito assim. São muito “pegativos”, e aí fica difícil para mim.
P/2 – “Seu” Gê, e quando começou a chegar esse tanto de famosos no salão, o que o senhor sentia?
R – Eu sentia normal. Porque nessa época, 1974 até 1978, era normal o cantor andar na cidade. Normal. Não tinha... Depois começou essa onda de trombadinha, não tinha ladrão como tem hoje. Não tinha... Como é que chama? As pessoas pegam o artista e somem com ele? Sequestro. Não tinha. Então, o cantor andava à vontade. Só não ia na Galeria, na Grande Galeria - eu nunca vi - Roberto Carlos. Porque ele sofreu um acidente, acho que com vinte anos, eu não estava na Galeria ainda. Roberto Carlos não andava por ali a pé porque ele tem uma perna mecânica. Mas o resto, normal, normal. Eu pensava assim: “Eu sou famoso, eles também são. Tudo em casa”. E o público não roubava ninguém. Quando não, eles chegavam e... “Me dá um autógrafo?” Pedacinho de papel, às vezes procuravam e não tinha. Quando encontravam estudantes, eles sempre tinham um bloco, tal. Davam autógrafo. Mas a maioria olhava: “Ah, é fulano de tal”. Como no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, o artista anda normal na praia. Eu tinha... Quando eu vendi minha rede de salão, eu fui e montei um salão em Copacabana, na Avenida Atlântica. Quem fez questão que eu fosse para lá foi a Ana Davis, Jorginho do Império, Martinho da Vila. Ele me encheram o saco para montar salão no Rio. Eu cheguei no Rio de Janeiro e vi que o Rio de Janeiro é uma pobreza danada. No Rio de Janeiro, quem tem, tem; quem não tem, não tem. Eu vi que o pessoal mora no morro. Até eu quis alugar uma casa lá, fiquei com medo. Porque casa como a gente mora aqui, na época não alugava para ‘negão’, para preto. Casas normais lá alugam por dia. Para turista. E eu estou acostumado a morar... Porque, em São Paulo, área de risco é beira de córrego. No Rio, é em cima da pedra, no morro. Aí eu falei para a minha esposa: “Eu vou vender o salão e vou embora para São Paulo”. Eu já tinha vendido o salão e fui para o Rio. Morei em Niterói, eu com todo esse conhecimento, tal. Os caras ali: “Não. Vai montar. Você vai montar. No Rio não tem, não tem”. Mas quando eu vi... Rio de Janeiro! O Rio de Janeiro hoje, na minha opinião, o Rio de Janeiro vai acabar. O carioca vai morar, vai descer. Vai sair do morro, vai descer. Vai morar lá embaixo. E o turismo no Rio de Janeiro, os turistas, os gringos que têm dinheiro, vão sair fora. O pessoal vai tomar conta do Rio de Janeiro. Porque quando eu fui, eu fiquei com dó. Em 1978, eu estive no Rio. Fiquei com dó de ver meus irmãozinhos em cima da pedra. E os caras rasgando dinheiro lá embaixo. E, no Rio de Janeiro... O Rio de Janeiro é lindo! Mas o carioca não desfruta da lindeza do Rio de Janeiro. Não desfruta. Vocês conhecem o Rio de Janeiro? Não é mesmo? E a maioria que tem grana não curte o Rio de Janeiro, não curte mar. As mulheres, no Rio de Janeiro, são brancas, brancas. Elas não vão na água. Salvador, a mesma coisa. Salvador também. As mulheres de Salvador não curtem praia. Quem curte praia em Salvador é o turismo. E fez a Bahia crescer. Mas os baianos mesmo
P/2 – E, “seu” Gê, nesse tempo de salão o senhor recebeu algum pedido super diferente para cabelo?
R – Já. Foi bom você falar. Todo ano eu tinha fechamento com o Tim Maia lá no Palmeiras, com estilo diferente. Ali tem... Minha esposa colocava um black, com cabelo comprido. Cada ano eu fechava o ano com um estilo diferente. Masculino e feminino. E tinha o corte Miss Conceição, que ela está usando ali.
P/2 – Fale um pouco sobre como eram esses estilos que o senhor fechava? Explique para a gente como eles eram.
R – Fechava com desfile. Cabelo masculino e tinha o feminino, que a minha esposa... Eu fiz no cabelo da minha esposa, que ganhou e ficou o Miss Conceição, que é ela que está aí. Hoje, minha esposa está com sessenta e dois anos de idade - sessenta e um - e está sempre com o cabelo arrumado, porque eu pego no pé. Eu também. Mas ela não usa, hoje, o cabelo afro-descendente porque na idade da minha esposa não fica bem. Mas a maioria... Lá onde eu moro, todo mundo usa, sabia? Cabelo afro-descendente. E o cabelo cacheado está voltando.
Faz mais ou menos um ano - foi no ano passado - eu recebi um cachê para ir lá na rua Oscar Freire... Hoje, o salão do Jassa é perto de onde eu fui. Por que o produto mais bem vendido é para o cabelo afro? Aí eu falei para o cara, para o químico: “Boa pergunta! O produto mais bem vendido é para cabelo afro porque o cabelo liso, o superliso, que é o caucasiano, você não precisa de nada. Vocês não precisam de oleosidade. O couro cabeludo de vocês já tem. E se passar muito, fica meloso. O nosso... O nosso é seco, precisa de mais oleosidade. Os produtos que são vendidos em prateleira são para cabelo caucasiano e não para o cabelo afro. O que mais tem na prateleira. Não vende. Você vai na drogaria aqui, a parte de cima tem aquele monte de produto. O ano inteiro está no mesmo lugar. Porque não vende. Para o seu cabelo. O seu cabelo ainda tem, eu estou vendo, ainda tem ressecamento. O dele lá. Aí, ele falou para mim, perguntou para mim: “Até que número vai o cabelo afro?” “Até o cinco pertence ao afro”. De zero a cinco. De cinco para cima, nada a ver com o afro, não tem ondulação, não tem nem frizz. O cabelo não frisa. São cabelos de japonês, boliviano, chinês. Mas o brasileiro, branco com branco, já nasce com o cabelo meio que... Um liso que faz isso. Eles me deram R$ 200,00 só para eu fazer isso, concordar. Tinha várias cabeleireiras lá, foram convidadas, que não aceitavam o cabelo delas com progressiva. Tinham vergonha de falar. Tinha umas... “E aquele cabelo lá?” “Aquele cabelo lá pertence ao afro, aquele também, aquele também”. Só tinha duas que não. Porque se tem progressiva... Por que tem progressiva? Para quebrar a ondulação. Se tem que quebrar a ondulação, a progressiva é um produto de estante. Aí foi, foi, Nossa, só eu que tinha o que falar. Aí, todo mundo: “Não, deixa o “seu” Gê falar. Deixa o Gê Black falar”. Eles lançaram... Sabe o produto que lançou? Produto para hidratar cabelo. Aí tinha o pezinho da Hebe Camargo. Porque ele era sócio do filho da Hebe Camargo. Lançaram Vital, já ouviu falar? Vita Derme, não é? Que é um produto para hidratar cabelo. Sabe o químico, o que ele é? Gaúcho, ele é de Barra Velha, Santa Catarina. Santa Catarina é onde tem o branco legítimo. É uma cidade que tem mais pessoas estrangeiras, na época, do que brasileiras. Santa Catarina, Rio Grande do Sul. O produto foi feito... Fizeram lá o produto, não foi aceito. Porque lá o pessoal não precisa do produto. A Xuxa precisa hidratar o cabelo dela? Então um liso que acaba, não tem. Ela tem tão pouco por ser liso demais. Então fizeram esse produto, fabricaram lá e veio para São Paulo. Aí me convidaram para ir lá. Eu falei que esse produto para cabelo afro era uma boa, mas tinha que ter pelo menos uma negra na capa. Eu tenho um CD, vou mandar para você. Tem que ter pelo menos uma negra na capa. Se o produto é especial para cabelo afro, por que não? Sabe o que eles fizeram? Deixaram falir o produto. Para não fazer o que eu pedi. Eu dei uma opinião. Por exemplo, um produto que é bom para o cabelo dele e o meu, por que vocês dois têm que falar se o produto é bom? Por que eu não posso falar? Ainda existe. Porque parece que o produto não é feito... Aí vem o preconceito. A tinta de cabelo muito preto, na capa tem uma loira. Já reparou? Até hoje eu vejo coisas que eu não entendo por quê. Produto muito preto não precisa ser uma negra, um cabelo preto. Põe uma loira. Tem muita diferença. Aí, quando me convidam eu já sei, mais ou menos, que o que eu digo para você pode ter muitas coisas que podem ser mudadas. Mas tem outras... Tem que mudar muita coisa. Mas elas são verdades nacionais. Por exemplo, em 1974, na época mesmo da ditadura, nós estávamos aqui cinco pessoas, era duro chegar aqui para falar com vocês dois. E a preferência só para vocês. Hoje, a gente vê tanto casal bonito, com diferenças legais, o espírito é igual, a bondade não tem cor, ou a igualdade. Mas, antigamente, eles não deixavam chegar. Eu cheguei e falei para a minha esposa. Falei: “Alguém aqui faz ou fez aqui... Tem a ver com jornalismo”. Eu falei para você também, não é? Ele deu uma risadinha. Porque o jornalista mais novo... Eles são legais. “Os ‘veião’ é fogo! Os ‘véião’ é terrível!” Médico também. Você vai, os médicos mais novos são legais. Mas aqueles médicos antigos...
P/2 – Que diferença que o senhor sente?
R – Dos mais novos? Melhores! Melhores. Mais iguais. Eles têm uma consciência de espírito, que a igualdade não tem cor. Porque, por exemplo, o Brasil está assim por falta de consciência. Muitos querem ganhar muito. Outros, nada. Vamos dividir um pouquinho. Deixa um pouquinho para cada um, assim está ajudando. Não! Pega tudo. Hoje melhorou. Hoje, se vem uma coleguinha sua, você fala: “É minha colega!” Não precisa falar a cor da colega. Antigamente, tinha que falar para trazer na sua casa. “Mãe, é uma amiga minha”. Se fosse pretinha, você tinha que falar dez vezes para sua mãe. Se não a sua mãe falava: “Por que tem que ser pretinha, minha filha?” “Ela estuda comigo, é legal”. “Minha filha, mas não tem outras?” Na época. Hoje, não. Hoje não é mais assim. Já namorei com uma menina, com esse meu filho mais velho que tem cinquenta e poucos anos que eu falei para você, eles levaram para o Mato Grosso para não ter mais contato comigo. Café no leite não tinge? Tinge, não é? Meu filho é da sua cor, só que tem os olhos verdes, porque a mãe era ‘branquelinha’ dos olhos verdes. Me puxou na pele e os olhos da mãe. Então, lá em Mato Grosso, é o neto mais cobiçado na família. Porque é difícil de ver negro de olhos... Mas não deixaram eu me aproximar e casar com a menina. Mas eu continuei. Eu falei: “Eu vou continuar misturando com branco. Não quero saber. Porque a igualdade não tem cor”. Até hoje eu sou assim. Meus filhos todos casaram com branca. Por que tem que casar com uma pretinha? Minha filha é igual a ela ali. Meu neto não tem nada a ver comigo. A mãe mestiça tem um filho com um branco. Meu neto não tem nada a ver comigo. Cabelo bom, claro, nada a ver. Se eu corresse com o moleque, quando ele era pequeno, os caras falavam: “Pega”. Então, o Brasil... Hoje eu vejo o Brasil assim. Legal, misturado. No meu tempo? Se você visse um cara montado num cavalo era negro, dentro de um carro era branco. Hoje mudou. Hoje não tem essa. Mas, olha, eu... Fogo! Eu fui o primeiro, na época... Às vezes eu via, hoje eu vejo amanhã, eu tinha carro na época, não tinha como não ter. Eu tinha, mas poucos tinham. Pretinho como eu tinha carro? Poucos. Eu levei o Serginho para comprar um Fusca na época, numa agência de um colega meu. Para comprar um Fusca, porque a televisão aumentava muito. E hoje ainda aumenta, não aumenta? O Serginho ganhava R$ 24 mil, na época era cruzeiros - Cr$ 24 mil - ele estava no time de cima do São Paulo, foi comprar um Fusca, não deu. A gente viu o contratinho dele, não dava para comprar um carro porque não tinha holerite. Era só aquela folha. O cara queria holerite, alguma coisa. Não deu para ele comprar. Eu pendurei no cara da agência e ele conseguiu comprar um Fusca. Hoje ainda a televisão... Eles pedem para mentir um pouco. Tem gente que aumenta um pouco. E fica todo mundo bonito lá dentro. Todo mundo bonito ali. A volta para casa é que é o problema, não é? Eu falo para minha filha: “Não mente! Porque tem a volta para casa”. Na rua é uma coisa. E a volta para casa? Gastar tudo o que tem na rua, a volta para casa vem sem dinheiro? E no outro dia? Não é verdade? No outro dia, na hora de pôr o pirão na mesa não vem, não é? Então eu sempre falo: “Cuidado, cuidado, cuidado!”. Hoje, por exemplo, eu estou conversando com vocês, não parece a minha idade, estou agendado amanhã o dia inteiro. O dia inteiro. O dia inteiro. O dia inteiro trabalho amanhã. Hoje é folga. Domingo... Às vezes, domingo eu vou no salão para ver se deixei alguma coisa ligada. Mas se eu vou no domingo tem que entrar e sair correndo por causa dos vizinhos, alguém que vai passando. Então hoje, eu continuo sendo o Gê Black Power. Eu continuo sendo. Não participo de Chic Show. Deram mancada, Chic Show, não é? Por que não existe mais Chic Show? Vocês não sabem, não é?
P/1 – Por que não existe?
R – Chic Show desviava o pessoal da bilheteria para atrás do campo. Por exemplo, na época... Na época era assim. Era. Em 1983, era. Na hora de você entrar era urna... Você pagava, recebia um papelzinho, colocava na urna para os diretores do Palmeiras saberem que entraram tantas pessoas, a tanto, a tanto, a tanto. E os que entravam pelo campo não constavam. Aí, a Chic Show fez isso. O ‘seu’ Antônio, o falecido diretor do Palmeiras - um dos diretores - falou: “Nunca mais Chic Show trabalha aqui”. A Chic Show nunca mais achou um salão de baile igual ao Palmeiras. E, na época, a Chic Show já tinha nome ali no Palmeiras, que eles iam para o Rio de Janeiro, faziam contrato com cantores famosos e o Marcos Lázaro na época era vivo... Marcos Lázaro, antes de morrer, era empresário do Roberto Carlos. Devido a isso, ele trazia o cantor nacional, internacional, todos, para o Palmeiras. Todo mês tinha baile. E convite lá comigo. Gê de Pinheiros, Gê de Osasco, todo salão que eu tive vendia convite. E para mim era bom, porque eu tinha 10% de cada. Aí, depois que a Chic Show fez essa palhaçada, não teve mais baile. Eu continuei como profissional e a Chic Show hoje... Hoje... Eu vi o Luizão uma vez, da Chic Show. Ele me viu, se escondeu de mim. Ele tinha uma perua velha, fazendo carreto. Podia ter pelo menos uma perua dessas novas aí, que a Marta liberou as peruas, essas de micro-ônibus. Até hoje eu sou fã da Marta porque a Marta tirou aquele negócio de perua velha fazendo lotação. O Luizão, da Chic Show, tem uma perua velha, antiga, fazendo lotação. Lotação, não. Trabalhando, fazendo carreto. E olha que os caras ganharam dinheiro, heim? Putz, como ganhava dinheiro. E até me ajudou na época. As chamadas de rádio. Porque tinha quatorze chamadas por dia, então isso me ajudava muito. Você é de São Paulo? Seus pais são daqui?
P/1 – Minha mãe é do interior de São Paulo.
R – Então tinha chamada de rádio também. Isso me ajudou muito. Televisão, na época, era um pouco devagar. Não tinha essas publicidades como eu vejo agora. Televisão, na época, era SBT, Globo, e tinha qual outra? Rede Globo... Só se ouvia falar das duas. A Record está meio devagar, tal. Naquele tempo era assim. Lembra que eu brinquei com vocês? Quando você via... Como é que chama esse aparelho?
P/2 – Câmera?
R - Câmera? Então... Na época, eu tinha uma daquelas pequenininhas que o cara tirava, igual à dela ali, pequena. Máquina de tirar fotografia. Não tinha flash, não é? Quando era eu, não saía. Eu tirei uma vez fotografia para inscrição para o Exército... Eu fui dispensado lá no Paraná, fui lá, fui dispensado e depois vim para São Paulo. Eu tirei uma foto lá, saiu muito escura. Eles pediram outra. Eu fui lá, o cara falou: “Só sai assim”. Aí tirei aqui em São Paulo, falei para o cara: “Capricha aí, porque lá no Paraná essa foto eles não aceitaram”. Aí o cara caprichou, saí branco na foto. Aí cheguei lá no Paraná, não aceitaram a foto porque estava muito claro. O cara falou: “Já sei!. Mesmo preto e branco aqui, saiu melhor do que lá”. Porque lá não saía. Você sabia, menina? Na época era... Hoje eu vejo: coisa linda!. Os caras tiram fotos. Vocês mesmos, olham, perfil. Eu vejo neto pequenininho, ninja, com celular na mão. Eu, telefone só sei ligar e desligar. “Oi, falou, tchau”. Eu sou daquele tempo.
P/2 – “Seu” Gê, eu queria que o senhor falasse dos seus clientes de hoje. Quem são?
R – Meus clientes... Hoje eu tenho... Não tenho muito cliente como naquela época porque eu não tenho equipe como tinha no centro. Por isso que eu falei para você: se eu montar um salão no centro da cidade e falar assim: “Eu vou!”. Eu vou trabalhar muito. Porque a despesa é grande e eu tenho que trabalhar para caramba para poder bancar a despesa. Porque 90% do meu conhecimento é o lado negritude, negritude. Cobran não me conhece. Muitos da época. Por exemplo, o rapaz ali mesmo. O pai dele, da época... São de São Paulo mesmo, vocês? Você lembra daquele movimento da Galeria? Não é do seu tempo, não é? Em 1983 você tinha quantos anos?
P/1 – Seis.
R – Foi quando eu saí. Tinha três anos. Na época, as meninas iam lá, as brancas iam lá para ver neguinho bonito. Ia lá para ver neguinho bonito. E ali tinham as preferências. Quando eu saí do centro da cidade devido... O lado bom e tem o lado ruim, eu saí pelo lado que estava ficando ruim para mim. Porque, quando tinha um baile no Palmeiras e morria alguém no baile, Chic Show não aparecia. Aparecia eu, porque o salão... As chamadas eram do meu salão. Convite à venda. Baile de Fulano de Tal. Convite à venda no Palmeiras. Convite à venda, Gê Black Power. Então, quando morria alguém assim vinha intimação do DEIC para mim. E o DEIC, na época, quando era um pretinho para tomar um tapa, eles queriam matar. Era diferente. Já ouviu falar isso? Não sei se você ouviu falar? Que polícia, antigamente, parava mais pretinho. Já ouviu falar? Já ouviu, sim! (risos) Não quer falar para mim, mas... Era mais ou menos assim. A polícia judiava mais dos pretinhos. Batia. Pedia documento já batendo. De 1978 para cá, as coisas mudaram. Apanha quem tem que apanhar. Presídio, mostravam só os pretinhos, os branquinhos não mostravam. Hoje tem que mostrar tudo. Então, quando mostra, tem que mostrar. Como, por exemplo, eu sou contra. Rio de Janeiro. Mostra Rio de Janeiro lá embaixo. Mas não mostra lá em cima. Lá em cima não mostra. Rio de Janeiro não é só bonito, não. Só tem coisa linda. É feio! São Paulo é 10 X 0 no Rio. Eu vou à praia em Santos, Praia Grande, pelo amor de Deus! Acho mais bonito que Copacabana. Copacabana é assim: aqui é prédio, não é? Atrás do prédio tem morro mais alto que o prédio. Já foram em Copacabana? É lindo. Mas é dessa forma. Aí mostra Copacabana só lá embaixo. Por que não mostra lá em cima? São Paulo... Já investiram em São Paulo. São Paulo é lindo. Praia Grande tem praias boas. Capital. É bonito São Paulo. Agora eles mostram Rio de Janeiro, por quê? Porque Rede Globo é Rio de Janeiro. Rede Globo é de lá. Rede Globo, qualquer coisinha Rede Globo está ali. Bateu palma, fez um barulho, aparece. No morro, eles têm medo. Mas lá embaixo...
P/2 – “Seu” Gê, eu queria que o senhor nos contasse como conheceu sua esposa.
R – Como eu conheci minha esposa? Eu conheci minha esposa no baile do Palmeiras. Do Tim Maia. Baile, show com o Tim Maia. Ela estava com uma colega dela, eu peguei e perguntei para ela se ela era solteira. E tinha também a gíria na época: ‘solteira, tem juízo, há interesse’. Eu vi que ela ficou olhando para mim. Eu falei: “Então ela está a fim”. Quando não olha mais, gostou só da brincadeira. Estamos aí até hoje, estamos com quarenta e três anos de casados. E antes dela eu havia sido um cara zoeira. Zoeira é tipo assim: eu tinha que mostrar muitas coisas erradas. O cabeleireiro, no meu tempo, tinha um lado ruim, o cabeleireiro eram todos... Tinha! Cabeleireiros eram todos afeminados. Tinha bastante? Tem como hoje, tem um monte. Mas eu fui obrigado a ser cabeleireiro devido a ter uma situação, foi uma profissão. Eu conheci minha esposa no baile e a todos os bailes ela ia comigo. Aí o pessoal falava: “Pô, você mudou mesmo! Sempre com essa moça aí do lado. Legal!”. E, na época, existia o preconceito. Quando eu conheci minha esposa, eu já tinha sido casado quatro vezes. Quando eu conheci minha esposa, eles achavam que eu não ia ficar com ela. Tinha o preconceito do desquitado. Desquitado, divorciado. Antigamente falava desquite. Não arrumava ninguém. Se ela arrumasse um namorado e dissesse para a mãe que o cara já tinha sido casado, a mãe já não deixava. Era contra. E nem as meninas queriam também. Porque o cara já tinha sido casado. Então, quando eu conheci minha esposa, eu sempre fui um cara pontual. Senti esse problema. Do homem afeminado, que tinha a profissão de cabeleireiro, e sofri esse problema do cara quanto a ter sido casado; não arrumava mais ninguém, porque ninguém queria. Putz! Eu fui casado. Por ter casado novo demais, sem experiência nenhuma, e quando eu vi que tinha que passear, curtir... Porque lá no Paraná... Vim de lá com dezoito anos, cheguei aqui, só trabalho. Não conhecia nada. Essa menina, primeira namorada que eu arrumei aqui em São Paulo, me levou para andar. Eu tinha medo de ir à Rio Branco sozinho. Da Casa Verde à Rio Branco eu tinha medo de ir e não voltar. Porque a avenida Rio Branco era assim, antigamente... Hoje, você passa lá, não tem ninguém. Então, eu tinha medo. A primeira namorada foi quem me ensinou. Quando conheci minha esposa, legal. A gente... A minha esposa era bancária. Trabalhava em banco. Eu fui indo, falei para a minha esposa: “Eu preciso de você porque eu tenho que ir nuns lugares legais, e aonde tiver preconceito você vai mostrar para a pessoa que não é bem por aí”. Uma vez, eu conheci uma menina por telefone. Sabe o que a menina falou para mim? “Eu fui no seu salão e perguntei quem era o dono. Aí falaram que era você, mas você é muito preto. Se você fosse um pouquinho mais claro eu casava com você”. Aí eu falei para ela: “Então... Mas você... Pelo jeito, você é bonita. Se eu tivesse um filho com você ia nascer bonito. Ou ia nascer com doença. Retardamento forte”. Como é que chama aquela doença? No meu tempo era mongolóide. Hoje é um nome que eu já não consigo falar. Sabe como é que chama? Aquela doença que nasce bobinho. Especial?
P/2 – Síndrome de Down.
R – Isso! Aí ela falou: “Não, mas estou brincando!” “Eu também estou brincando. Já pensou? Eu pretinho, feio. Você, bonita. Ter um filho com aquela doença? Certo? Melhor ter um feinho, sarado”. Foi indo, foi indo, foi indo, um monte de coisas. Mas, depois que eu conheci a minha esposa, misturado, a gente está aí até hoje, não vejo, não me arrependi até hoje.
P/2 – E como foi arrumar o seu cabelo e o cabelo dela para o casamento?
R – Então, menina... Eu tinha várias cabeleireiras, vizinhas minhas, na Galeria. Tinha bastante cabeleireira nos primeiro e segundo andares. Mas cabelo black, cabelo afro, elas não mexiam e nem sabiam colocar o arranjo. E o arranjo não tinha como colocar no cabelo black. Arranjo. Aí eu comprei as florzinhas, coloquei um araminho fininho. Enfiava o araminho assim, o outro dedo eu virava o araminho e amassava a ponta, puxava e não saía. Eu que bolei aquele cabelo da minha esposa. E também não tinha quem arrumasse o cabelo dela, porque ela gostava que eu arrumasse o cabelo dela. E funcionário, coitado, tinha um monte, uma fila danada. No dia do meu casamento, trabalhei até quatro horas da tarde. Aí eu precisei fugir da Galeria, fazer o cabelo dela, para depois eu... E eu casei no sítio do meu tio, lá em Franco da Rocha. Porque, vocês não conhecem, mas o ex-massagista da Portuguesa era meu tio. Eu casei em um sítio em Franco da Rocha. O maior barato, na época. Estava falando da minha esposa, não é? E daí para cá... Hoje eu sei que se tiver uma noiva de novo, de black power, e ela não quiser o cabelo preso, passa para mim. Porque usa enroladinho. “Eu quero meu cabelo do jeito que está”. O pessoal só sabe prender o cabelo e colocar um veuzinho, tal. Não! Pode enfeitar. Pode enfeitar. Fica mais bonito.
P/2 – E hoje, quais cuidados o senhor tem com o seu cabelo?
R – Eu tenho medo de que o cabelo caia. Só de uma coisa eu tenho medo: é de ficar careca. Mas não tenho cuidado nenhum, não. Normal. Se deixar ficar assim... Porque você sabe, queda de cabelo... Eu brinco com uns clientes meus, queda de cabelo é nível. Todas as pessoas que têm nível financeiro bom têm queda de cabelo. Cabelo de mendigo não cai. Não tem nível. Todos que têm nível financeiro invejável têm deficiência capilar. É brincadeira, mas tem sentido. Você já viu mendigo careca? Ganha... Você ganha pouco, então você vai ver. O dia em que você estiver lá em cima, seu cabelo vai cair. Eu sempre ganhei pouco, por isso é que eu tenho essa juba. Pode ir perguntando mais.
P/2 – A gente está caminhando para o fim e eu acho que a gente pode fazer as perguntas avaliativas, mas vocês têm alguma pergunta?
P/3 – Casou. E os filhos? Como é... Como foi a paternidade para você? E logo em seguida, os netos. Como é a sua relação com os netos?
R – Ah, eu briguei muito quando nasceu a minha filha, com a minha esposa. Quando nasceu a minha filha. O mais velho não deixaram, não é? Registraram. E o terceiro também foi uma briga. O quarto foi minha filha. Nós morávamos no Taboão. Taboão da Serra é comarca de... Como chama? Só mora rico ali. Como chama aquele bairro?... Morumbi. Fui registrar a minha filha num cartório do Taboão, minha esposa com os documentos para registrar a minha filha, e puseram branco. Puseram a minha filha cor branca. Eu falei para minha esposa: “Estou vendo, o rapaz falou cor branca ali. Então o pai não sou eu?” A minha esposa falou: “Opa, espera aí! Espera aí! O pai é ele aqui”. Quando o cara me viu, o cara fez assim e pegou outra folha para bater. O cara fez confusão. Olhou na minha esposa e estava colocando branca. A minha esposa brincou: “Negão. Ó, o negão. Como minha filha vai ser branca?” Colocou a minha filha como sendo cor parda. É errado, também. Hoje eles precisam corrigir.
A história do Brasil fala que o índio é vermelho. Mentira! Minha avó era morena. Minha avó era da cor dela ali, só tinha cabelo de japonês. O índio não é moreno? E diz que o índio é vermelho. Mentira! Olha eu. Vermelho o quê, aqui? Minha avó era índia. E o meu avô, africano. Então, eles pegaram e puseram mulata. Como é que chama? Cor parda. E eu acho que devia mudar, não é? Pele clara, branco com negro dá o quê? Que cor é que sai? Preto com branco? Que cor? Sai que cor? Negro! O negro é descendente. E branco é negro. Não sai moreno. Moreno é... Moreno com branco sai moreno. O negro com branco pode sair moreno. Mas preto com branco não nasce moreno. Nasce negro. Mas existem pessoas que confundem o preto e o moreno. Têm diferenças o moreno e o preto. Não tem? Tonalidades diferentes. Um é mais claro. Eu sou o último tom. Meus filhos são negros. Como você e ela ali, meus filhos. Mas eu sou preto. Ensinei meus filhos. “Eu, preto. Eles, negros”. Quando é um mulato claro é grone. Mulata clara, grane. Tem que falar em negro, é negro ao contrário, grane. Isso é gíria minha, porque às vezes falam: “Gê, tem uma cliente para você, oito horas da noite”. Eu pergunto: “Vem aqui? Marcou?” “Marcou”. “Cobran ou granê?”. Tem que falar: “granê”. Então o cabelo já dá mais trabalho. Se eu pegar duas, não dá para atender. Cobran já dá para atender, porque é mais rápido.
P/2 – E por que inverter a ordem da palavra?
R – Para a pessoa marcar para mim de uma forma que cada cabelo é um cabelo. E cada um de nós tem uma tonalidade de pele e cabelo. Se uma cliente pega um cabelo mais demorado, duas é muito para mim. Por exemplo, o dela, ela só corta o cabelo dela. Mas tem muitas... Antigamente, chegavam e queriam alisamento. Queria meio grau, grau total, totalmente liso, queria ele... Então, são coisas que demoram. Chega um cabelinho fininho só para cortar e secar. Rapidinho! Como os caras ali. Os caras gostam de cabelo lisinho, que não tem um fiozinho que enrola, porque eles cortam conversando assim. E o secador ali. O cabelo não precisa nem fazer muita escova. E quando você pega um cabelo crespo para fazer escova, você tem que secar bem a raiz dele. Esticar desde a raiz. Então, demora mais. Então, são gírias profissionais. Eu criei dentro do salão e as meninas concordam comigo. Concordam comigo. Porque já, uma vez, a menina falou assim: “Eu queria cortar, eu queria alisar o cabelo com você, mas eu queria dez horas da noite”. “Não, dez horas da noite não dá. Por que não durante o dia?” “Porque eu tenho vergonha do meu cabelo. Tenho vergonha do meu cabelo”. Ela era branquinha, bonita, dos olhos verdes, o cabelo bem nervoso, bem afro. Afro mesmo, no número um. Bem afro. Eu falei para minha esposa: “Fala para ela que eu faço o cabelo dela às dez horas da noite. Não tem mais ninguém na rua. Não chega ninguém. Mas eu vou cobrar o dobro”. Quando eu falei “o dobro”, essa moça começou a chorar. Veio no outro dia e, quando eu falei que ia cobrar o dobro, começou a chorar. Eu falei: “Por que o seu cabelo... O horário que você quer, não dá”. Ela é complexada. Não quer que ninguém veja alisar o cabelo dela. Depois que alisa, fica bem para ela o cabelo. Por causa da cor dela. Da pele dela, branquinha, os olhos verdes e o cabelo bem crespo. Eu falei para ela: “Você tem que assumir as suas origens. Pergunta à sua mãe”. “Minha mãe nunca falou. Na minha casa não tem”, falou para mim. “Não tem preto”. “Mas tem negro. Você é negra branca. E eu sou negro preto. Olhe para mim”. Ela olhava para mim assim. Eu falei: “Eu sou negro preto, você é negra branca. Você vem de avó.... De longe, mas o cabelo... Pegou no cabelo. Na pele, normal. Mas o cabelo, puxou a bisavó. E sua pele puxou sua mãe, pai. Mas o seu cabelo vem lá de traz”. Aí começou a chorar, chorar, chorar. Eu cobrei o mesmo preço de todo mundo. Com vergonha de mostrar. Quando alisa o cabelo, você passa o produto, ele faz isso para depois esticar. E ali, na hora em que o cabelo fez assim, ela ficava com vergonha. Então não podia ninguém ver.
Por exemplo, o cabelo da minha esposa é crespo, sabia? É crespo o cabelo dela. Eu participei de um lançamento de uma linha de produtos, lá em Campinas. O cara pagou para eu ir lá. Fui lá ver a linha de produtos. Chegamos lá, a dona, o rapaz, ele tem uma distribuidora de produtos. Na época não era da Sanovai, era da Optimum. Ele me falou que queria que eu fosse lá para aconselhar funcionária, porque o produto para hidratar o cabelo, cada tipo de cabelo uma hidratação. Tem um tipo de cabelo que você tem que pôr um “oleozinho”. Sabe qual é? Mesmo óleo de comida, não é? Não pode ser nem óleo de amêndoa, porque óleo de amêndoa - eu fiz um teste - é óleo de amendoim. Fiz um teste uma vez. É o mesmo. Pode ser placenta, vários tipos de óleo, vários nomes. Ela me falou assim... Olhou para o cabelo da minha esposa e falou: “O cabelo dela, da tua esposa, deixa comigo que eu vou fazer. Eu tenho um produto muito bom para hidratar. E eu vou fazer o cabelo da tua esposa”. Eu fiquei quieto. “Você vai ver o produto”. Eu fiquei quieto. Ela pegou e lavou o cabelo da minha esposa, não tinha nem escova. Aí o cabelo da minha esposa enrolou. Ficou igual ao seu. Enrolou. Quando enrolou, ela falou: “Ai, meu Deus do Céu, e agora?” Pegou um funcionário... “Ah, não. Cabelo afro também, não”. Pegou outro: “Também não”. Aí, falou assim para mim: “Oh, “seu” Gê, o senhor não vai levar a mal, dá para o senhor fazer uma escova no cabelo da sua esposa, porque eu lavei o cabelo dela, o cabelo dela ficou crespo, enrolou; “seu” Gê, eu não sei fazer escova”. Eu falei assim para ela: “Não esquenta a cabeça, não. Ela vai embora para São Paulo, nós estamos de carro, ela vai de carro com o cabelo enrolado, deixa ela com o cabelo enrolado. Lá eu faço escova’. Eles queriam que eu fizesse escova no cabelo dela lá para eles pegarem as artimanhas. Falei: “Não. Ela vai embora assim, com o cabelo enrolado”. Porque cabelo enrolado, mesmo feito progressiva, quando lava, ele volta um pouco. A minha esposa não está usando mais, não está fazendo mais progressiva. Quando vai para a praia, ela usa igual ao dela. Aí, quando faz escova bem feita, ele fica liso assim. Mas raiz é... Um cabelo igual ao dele aqui, eu faço uma escova nele, ele fica lisinho. Do jeito que está aí. Eu faço escova no seu cabelo, depois passo chapinha nele, ele fica. Você não acredita. Depois que você lava, ele volta de novo. Volta com mais brilho porque aí a prancha traz a oleosidade do seu cabelo. Porque a melhor oleosidade que tem é a do próprio organismo. Traz da raiz até as pontas. Fica legal. Mas assim está melhor.
P/2 – “Seu” Gê, eu queria que o senhor falasse o que representa o cabelo, o que o cabelo traz?
R – O cabelo traz as diferenças que você procura e encontra. Por exemplo, o jovem quer uma menina do cabelo mise-en-plis, enroladinho - chama mise-en-plis. Tem! Quer um cabelo bem liso, tem. Quer um cabelo bem crespinho, que é o afro, número um, número dois, tem. Então, o cabelo traz. E outra: o cabelo combina com a estética de cada um de nós. É onde cada um de nós... Aqui dentro, cada um de nós tem um tipo de cabelo e uma beleza. Têm vocês... Eu não sou... Cada um de vocês tem uma beleza diferente, não tem? Junto com o cabelo. O cabelo dele, se puser nele, não fica bem. Nem o dele, nele, não fica. Como você e ela. Então, o cabelo significa para nós dessa forma. Muda. E quando as pessoas gostam daquela pessoa, ele quer no geral. Por exemplo, já pensou seu pai com o meu cabelo? Como é que ficaria? Não ficaria bem, ficaria? (risos). Então o cabelo faz a diferença. E Deus fez as coisas certinhas. Certinhas. E, às vezes, eu falo para os meus netos... A semana que vem vai nascer um neto meu, do meu filho caçula. Eu já falei para ele que, filho, cada um tem o seu gosto, sua preferência, e as misturas hoje em dia ficaram bonitas. Ficou bonito. Eu tenho duas noras bem brancas e o meu filho ficou entre vocês dois. Eu sou mais escuro que os meus filhos porque eles estão misturados. Eu tenho minha nora, que ela é italiana. Meu filho ficou dez anos na Itália e casou lá - trouxe minha nora para cá. Minha nora comentou comigo que, se o avô dela fosse vivo, ela não teria casado com o meu filho. Porque ele não aceitava essas diferenças. Nós, brasileiros, aceitamos. Da minha idade. Como eu falei para você. De 1947 para cá. Aceita. Os mais, não. Os nossos governantes mesmo. Na hora em que a gente tiver mais governo novo, as coisas vão melhorar. Pode até piorar, mas igual não vai ficar. Tem que ______ [1:56:42] a área do poder, para algumas coisas andarem. Porque é bom ter diferenças, é bom mudar um pouco. Eles não querem mudar. Não querem mudar. Se eu fizer uma festa na minha casa, vai igual a vocês que estão aqui, olha que bonito, vocês que estão aqui. Mas se eu for fazer uma festa na minha casa e convidar meus vizinhos, eles vão. Mas eles fazem uma festa na casa deles e não me convidam. Os vizinhos meus, que têm a mesma idade que eu, não convidam. Porque eles têm vergonha dos convidados me verem lá. Porque, antigamente, os escuros... Nós éramos culpados de tudo. Nós éramos pobres, nós roubávamos, nós precisávamos roubar, tudo éramos nós. Hoje, vocês mais novos viram que não é por aí. A desigualdade não tem cor. Eu sou daquele tempo que escondia o bandido claro e mostrava só os... Hoje mudou. Hoje, no meu salão, se não entrar branco, eu fecho. Eu fecho. Porque eu misturei. Por que vai entrar só pretinho? E os meus netos não chegam? Então, da minha idade para cá as coisas melhoraram. E, graças a vocês, vão melhorar mais! Nós, antigamente, a gente quando ia fazer uma reportagem, uma entrevista comigo, eu via os... Como era diferente. Hoje eu tenho clientes lá que são médicos, advogados, várias profissões, eles são legais comigo. Mas os pais... Os pais... Eu, por exemplo, quando vou para Ibiúna, eu paro na beira da estrada. Comer um milho, sei lá, cozido. Eu vejo os da minha idade. Eles são até mais velhos do que eu. Eles são diferentes. Eu fico no meio dos mais novos. Dos mais novos. E eles... Foi o que eu falei para você. Naquele tempo, sabe - desculpe eu falar - mas eles tinham aquele problema. E hoje, graças a vocês, não têm. Quando eu chego num lugar que tem misturado assim, eu fico mais à vontade. Você se sente em casa. Hoje. Mas, antigamente, era diferente. Eu lembro quando o Luizão, da Chic Show, falava: “Gê, hoje nós vamos na 105, hoje nós vamos na gravadora Ariola, hoje nós vamos...”. Sei lá, ia na Toca da Angélica, ia falar com o Marcos Lázaro, ia na Gazeta. A Gazeta é aqui na Avenida Paulista, não tem a Gazeta ali? Uma vez, nós tivemos uma entrevista lá na Gazeta - eu, Tião Carreiro e Pardinho, que eram cantores de música sertaneja - e o Tião Carreiro disse que foi um dia na Galeria e viu aquele movimento das meninas com cabelo black power, aquele negócio todo, e o Tim Maia usava cabelo black power também, arrumaram uma entrevista. Eu fui lá na Gazeta. Menina, eu vi os jornalistas, aqueles que já morreram, bem mais velhos do que eu, era um nojo. Era um nojo. Hoje eu vejo os mais novos, como eles dão atenção. Se vocês aqui fossem daquela época, a posição diferente, o orgulho diferente. Eu falando para você que eu não estudei nada e vocês estão me dando a maior atenção. Naquela época, não davam nem atenção. Porque o estudo dá, mas a personalidade você já nasce. Chama personalidade e consciência. Ele é legal, ele é meu amigo e acabou! Você tem muito? Ajuda um que não tem nada. Chama consciência. E hoje, se não tirar aquela velharada do poder, não vai melhorar o Brasil.
P/2 – “Seu” Gê, a gente está caminhando para o fim, não sei se o Júlio tem alguma pergunta antes?
R – Ele... Eu vou dar o endereço, ele vai até lá no salão.
P/1 – Vou.
P/2 – Isso! Eu tenho mais duas últimas perguntas, “seu” Gê. Como o senhor se sentiu contando essa história para a gente?
R – Eu já tinha até esquecido. Porque eu fico contente quando alguém me chama e dá a maior atenção, como vocês. Para eu estar realmente... Voltar a lembrar o passado. E tem mais coisa mas, no momento, eu esqueci. Por exemplo, uma vez eu fui roubado, dei parte, fiquei preso.
P/1 – Como?
R – Em 1974 eu fui roubado, dei parte, me prenderam. O cara chegou e falou assim para mim: “Você é o Silvinho, cabeleireiro?” Falei: “Não. Eu sou o Gê Black Power”. “Ah, você tem um salão na Galeria?” Falei: “Não, vários! São pequenos, mas vários”. O cara sentiu que eu estava esnobando. “É? Ah, você é o Silvinho? Você é o Jassa?” “Não. Conheço o Jassa. Meu amigo”. “Você conhece o Jassa?” “Conheço”. O cara chegou, o escrivão, falou assim: “Doutor, está falando muito, doutor. Que ele é o cara, aqueles salões na Galeria são dele, não tem cara de dono não”. O delegado falou: “Falou demais? Põe ele no corredor!” Fiquei detido. Eu fui lá só para dizer que havia sido roubado. Abriram o arquivo, pegaram dinheiro, a Galeria ficava aberta. Na época, as portas eram de vidro, o cara pegou, abriu a porta de vidro, subiu, pegou, abriu o arquivo e pegou meia cartela de convites, meia cartela de convites que tinham sobrado, convites de sexta para sábado. Pegou meia cartela e pegou uma grana. Não pegou todo o dinheiro. Pegou só um X e foi embora. Então eu deduzi que era gente que trabalhava comigo e que tinha a chave. Fez uma cópia da chave. Que era para eles darem uma prensa no funcionário. Darem uma prensa até saber quem havia feito aquilo. Era gente lá de dentro. O delegado e o escrivão não gostaram do que eu falei, mandaram me prender. Cheguei dez horas da manhã, até às sete da noite. Delegado só me soltou quando ele mudou de plantão. Ia sair de um lugar para outro, ele me soltou. Eu saí de lá, fui falar com um advogado meu. Ele já abriu um processo contra a polícia, a equipe em geral. Para eles não irem para a rua me deram um carro, um Corcel II. Na época, 1974, era carro zero. Me deram para eu dividir com o meu advogado, 30% para o advogado. E eu falei: “Eu não quero esse carro. Vende!” O advogado vendeu e tirou a parte dele. Daí para cá... Esqueci de novo.
P/2 – Do que eu perguntei? Eu tinha perguntado como o senhor tinha se sentido, contando a sua história hoje. E o senhor falou que tinha esquecido de muita coisa.
R – Muita coisa. Se eu te contar, um dia é pouco. E quando vocês hoje me deram essa maior atenção, vocês não sabem como é gratificante para mim. E qualquer coisa que você precisar, tem mais, liga para lá. Você mora onde?
P/1 – Ipiranga.
R – Ipiranga? Perto do Museu. Eu pensei que era Museu Ipiranga. Mas qualquer coisa, você vai até lá. Não é problema de dinheiro. Você tem dinheiro para ir na Galeria cortar com o Primo, com o Duza, com os Manos, eu sei que você tem. Mas você vai lá cortar com o pai de todos. E ela, quando for lá, fala para o Primo que...
P/2 – “Seu” Gê, eu tenho mais uma pergunta. Prometo que é só mais uma e a gente já libera o senhor. Eu queria saber: quais são seus sonhos hoje?
R – Os meus sonhos, hoje? Meu sonho é que meus filhos não sejam cabeleireiros como eu. Eu quero que eles tenham outra atividade. Porque hoje eu vejo minha atividade, a profissão de cabeleireiro está muito assim... Como fala? Está defasada. Defasou muito. O cabeleireiro, na época, trabalhava muito para ganhar pouco. Hoje eles querem trabalhar pouco para ganhar muito. Então, já avisei que não. A minha filha, por exemplo, está agendada para um curso com a cabeleireira porque ela, com o marido, eles têm uma escola de cabeleireiro. E o marido dela é meu cliente. E a minha filha tem um curso para fazer, de sobrancelha definitiva - que ela faz com hena, tem uma rapidez incrível - e ela ia começar o curso hoje. Só que ela foi para o Paraná, ainda não veio. Então, eu quero que a minha filha seja diferente. Quero outro tipo de atividade, menos cabeleireiro. Que estão pensando muito alto, e não é assim. Na minha profissão tem que trabalhar muito para ganhar razoável. Eu consegui ganhar até bem porque eu tinha uma equipe grande na época. Tinha mesmo! Eu tinha uma equipe. Até parecia preconceito ter um monte de funcionário de cabelo black. Mas para quebrar esse preconceito eu pus branco de cabelo black. Tem lá no meu livro, o cara é branco, branquinho, bonito e usava black. Hoje está velho, careca. Mas ele, na época, era fogo. E eu pus para quebrar um pouco. Parece que era um preconceito. Mas era uma moda. Hoje, por exemplo, tem um corte periférico que está usando muito. O corte mil, já viu?
P/1 – Como é esse daí?
R – O corte mil? É um topete, penteia com o pente aberto para ficar sinal e depois vão dois sprays - um preto e um branco. Você já viu? Então... Fala que é corte periférico. A periferia usa. Muitos falam que é corte de favela. Hoje tem muitos usando aquele corte. Eu acho que os melhores tempos... Eu tive os melhores tempos. Hoje eu quero que os meus netos tenham estudo, tenham alguma profissão diferenciada da minha. Porque eu estou vendo que, se eu fosse começar hoje, eu não ia conseguir o que eu já consegui até hoje. Eu tenho cliente... Às vezes, eu fico nervoso. Ele cortava cabelo comigo. Hoje ele está com uma forte deficiência capilar, ele não é mais cliente meu, mas ele leva neto. Ele levou um neto, leva uma neta. Esse tipo de cabelo assim que vocês usam, você usa o seu já um corte clássico, curtinho. Mas aqueles cabelos daquele tamanho, para você desfiá-lo, quebrar a ponta, depois lavar, ainda secar um pouco para ele subir um pouco - porque esses cabelos são bonitos armados - ondulado ele... Não é fácil! Vêm as meninas da Vai-Vai, Camisa Verde, Rosas de Ouro. Vêm sem avisar e chegam, eu fico doido. Aí, eu falo... Eu tenho um aluno - está vendo?, eu tenho dois alunos ainda que são indicados para fazer curso comigo - eu falo: “Corta com o fulano ali”. “Não quero”. Difícil! Então, eu acho que está difícil. Antigamente era diferente. “Corta com fulano porque comigo não vai dar. Tem um monte para fazer comigo”. A pessoa cortava com os outros. Hoje você vê... Tem o Primo, tem o Duza, um pertinho do outro, não tem? Tem a Paula. Vocês conhecem a Paula? Paula trabalha com o Primo. Uma branca, fortinha. Então você não viu. Trabalha com o Primo. Naquele tempo, eu falava, eles iam lá e faziam. Então, a minha féria era lá em cima. A féria subia. Hoje não. A féria só sobem se eu estiver. Se eu não estiver... Por exemplo, eu tenho a menina que tem uma lojinha de roupa também. Tem uma loja de roupa dentro do salão. Só que eu arrendei o box. Outra moça. Ela fica boba. “Mas como você trabalha!” Eu vejo tanta gente reclamando. Os cabelereiros: “Está ruim. Está ruim”. “Como você trabalha!” Eu falo: “São as diferenças que fazem a diferença”. Vem cliente de todo lado. Vem de Guarulhos, Zona Leste, vem de Santo Amaro, vem de... Vem de tantos lugares, eu fico bobo. O pai traz. “Eu estou aposentado, vim trazer minha filha, minha nora, minha neta”. E o jovem hoje está sentido o problema do desemprego, não está? No meu tempo, um cabelo igual ao dele, ele ia toda semana tirar as pontinhas. Hoje fica difícil. As coisas muito caras. Tudo redondinho ali. Toda semana tinha que... Parecia um... Hoje mudou! Ele vem com essa diferença de usar enrolado, porque engana um pouco. Engana. Mas você vai tirar uma foto, do jeito que você está aí, você sabe que o seu cabelo sai... Sai com cãibra. Sabe o que é cãibra? Ele sabe. Sabe? Cãibra, o cara está torto, não é? Pode ir perguntando mais.
P/2 – É isso! Eu queria agradecer ao senhor. Muito obrigada por ter contado a sua história hoje aqui para a gente. Foi, com certeza, muito bom ouvir. Muito obrigada, “seu” Gê.
R – Depois você vê as fotos.
P/2 – Vamos lá agora para ver.
R – Se quiser tirar do livro. Porque é uma verdade nacional.
P/2 – Sim.
R – E eu fico contente e muito grato de você estar fazendo esta entrevista. Vocês, jovens, sempre sorrindo, é sinal de que vocês estão bem. Porque tem jovem lá fora, não dá nem risada. Fiquei muito contente.
P/2 – Obrigada, Gê!
R – E a minha esposa deve estar lá preocupada.
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