P - Vou começar a entrevista pedindo ao senhor que diga o seu nome completo, os nomes dos seus pais completos e o lugar em que o senhor nasceu.
R - O meu é Júlio Fombellida Pita. Os meus pais: Vitoriano Fombellida Calçada, Júlia Pita Guarrido, a esposa, Lúcia Dilheta Servo Pita, os filhos Júlio Fombelita Júnior e Alexandre Fombellida Pita.
P - E onde o senhor nasceu?
R - E o senhor lembra de onde vêm esses nomes do Senhor: o Fombellida e o Pita?
R - O Pita é tradicional da Galícia, de La Coruña, lá é uma família tradicional, muito conhecida em La Coruña pela parte logicamente a minha mãe, é uma família tradicional até hoje. Tem até uma senhora que tem o nome de Maria Pita, que faleceu faz muitos anos mas é tradicional em La Coruña.
P - O que quer dizer tradicional?
R - Fez parte de alguma coisa da fundação da cidade.
P - E essa é a família da sua mãe?
R - Isso aí é a família longe. Depois vem a minha mãe, minha avó, por parte da minha mãe, do meu avô, depois logicamente a minha mãe. Pita ainda é tradicional até hoje em La Coruña.
P - Então conta um pouquinho do que o senhor sabe dessa família Pita.
R - Da família Pita eu não conheço muito, porque os meus avós por parte da minha mãe, tinham seis filhos, três homens e três mulheres. E um faleceu na guerra. E aí ficaram esses outros...
P - Na Primeira Guerra?
R - Não, na guerra do Franco, na de 1936. Aconteceu que eu fiquei pouco porque a minha mãe casou com o meu pai e como era uma família muito tradicional, muito rica e como o meu pai era operário, uma pessoa pobre, não aceitaram esse casamento, não concordaram com o casamento, inclusive os meus avós não concordaram, os pais da minha mãe não concordaram com o casamento. O meu pai casou com a minha mãe aí foram morar numa cidadezinha, num bairro mais longe, que onde a minha mãe nasceu numa cidade pequena chamada Santiago, não é Santiago de Compostela, é Santiago. Aí tiveram de ir para lá e o meu pai...
Continuar leituraP - Vou começar a entrevista pedindo ao senhor que diga o seu nome completo, os nomes dos seus pais completos e o lugar em que o senhor nasceu.
R - O meu é Júlio Fombellida Pita. Os meus pais: Vitoriano Fombellida Calçada, Júlia Pita Guarrido, a esposa, Lúcia Dilheta Servo Pita, os filhos Júlio Fombelita Júnior e Alexandre Fombellida Pita.
P - E onde o senhor nasceu?
R - E o senhor lembra de onde vêm esses nomes do Senhor: o Fombellida e o Pita?
R - O Pita é tradicional da Galícia, de La Coruña, lá é uma família tradicional, muito conhecida em La Coruña pela parte logicamente a minha mãe, é uma família tradicional até hoje. Tem até uma senhora que tem o nome de Maria Pita, que faleceu faz muitos anos mas é tradicional em La Coruña.
P - O que quer dizer tradicional?
R - Fez parte de alguma coisa da fundação da cidade.
P - E essa é a família da sua mãe?
R - Isso aí é a família longe. Depois vem a minha mãe, minha avó, por parte da minha mãe, do meu avô, depois logicamente a minha mãe. Pita ainda é tradicional até hoje em La Coruña.
P - Então conta um pouquinho do que o senhor sabe dessa família Pita.
R - Da família Pita eu não conheço muito, porque os meus avós por parte da minha mãe, tinham seis filhos, três homens e três mulheres. E um faleceu na guerra. E aí ficaram esses outros...
P - Na Primeira Guerra?
R - Não, na guerra do Franco, na de 1936. Aconteceu que eu fiquei pouco porque a minha mãe casou com o meu pai e como era uma família muito tradicional, muito rica e como o meu pai era operário, uma pessoa pobre, não aceitaram esse casamento, não concordaram com o casamento, inclusive os meus avós não concordaram, os pais da minha mãe não concordaram com o casamento. O meu pai casou com a minha mãe aí foram morar numa cidadezinha, num bairro mais longe, que onde a minha mãe nasceu numa cidade pequena chamada Santiago, não é Santiago de Compostela, é Santiago. Aí tiveram de ir para lá e o meu pai foi trabalhar numa prefeitura lá, ele era barbeiro. A gente não tinha contato e não queriam contato com a gente.
P – Como sua mãe conheceu o seu pai?
R - Essa história eu não conheço.
P - Eles não contaram?
R - Não contaram, mas eles se gostavam muito e se casaram e não teve conversa. E sendo que os irmãos da minha mãe eram muitos poderosos.
P - E o que fazia o seu avô, o senhor sabe? O pai da sua mãe?
R - O meu avô eu não tenho assim muita notícia, eu sei que morava nesse castelo aí que existe até hoje, que é tombado, tem um tipo de um parque nesse castelo e era um conde que tomava conta desse castelo e não tive assim muito contato. Sei que não me deram nem tempo, chance de eu ter contato quando a minha idade de cinco, seis anos, idade para saber alguma coisa eu não só tinha uma prima, filha da irmã da minha mãe que era que nos ajudávamos um pouco. Porque ela escondida da mãe, atualmente está viva, esta minha tia, que é irmã da minha mãe, Ovita. Trazia mantimentos para nós, porque nós precisávamos, tínhamos necessidade. A gente ia pedir alguma coisa mas nunca chegávamos perto da casa, ficava longe deles. A gente dava um jeito de comunicar a alguém, um empregado, ou um vizinho, para dizer que eu e a minha mãe estávamos lá para pedir alguma coisa. Depois de andar assim mais ou menos cinco horas, a pé, para chegar lá. E chegar lá com fome, com sede, a gente pedia. E muitas vezes a gente voltava sem nada, mas quando a minha prima estava sempre sobrava alguma coisa para nós. Então aquilo que eles davam para gente, um pouco de cada coisa, de farinha, farinha era o alimento principal, não tinha outro alimento assim, não existia, não, existia pão de broa, de milho. Eu quando vim para cá com 15 para 17 anos, 15, 16 anos eu não sabia que era pão de trigo.
P - Mas a família da sua mãe não falou mais com a sua mãe só porque ela casou com o seu pai, que era pobre?
R - Só por causa disso, só por causa disso eles não aceitavam, eles eram muito chiques, muito ricos.
P - E isso era comum, o senhor sabe, na época?
R - Era comum. Isso lá era comum.
P - Por que pobre não falava com rico?
R - Não, porque o que era rico, o pobre não tinha vez em nada, praticamente ainda é assim hoje no mundo todo. O pobre não tinha vez; era pobre, era pobre. Eles não recebiam. Eu não me esqueço que cada cidade tinha um baile e os primos que eu tinha, um primo filho do irmão da minha mãe e o outro primo filho do outro irmão da minha mãe. Eu ia para o baile, se eles tivessem no baile e me vissem eles iam embora. Eles ficavam no lugar que era mais chique e a gente entrava sempre de graça, pedia para um, pedia para outro, não tinha dinheiro para entrar. Então entrava, eles me viam e eles iam embora, eles simplesmente não conversavam comigo.
P - E a sua mãe falava muito da família dela ou não?
R - Ela não falava porque ela tinha, não podia, não tinha força para falar, ia falar o quê? Ela sofria. Viveu muito bem com o meu pai, sempre viveu muito bem, nos demos bem os três.
P - E o senhor é filho único?
R - Sou filho único.
P - Então vamos falar um pouquinho da família do seu pai. O que o senhor se lembra, o senhor conheceu o seu avô e sua avó?
R - A minha avó eu conheci, a Teófila, eu conheci porque ela, como o meu pai foi para a guerra, foi obrigado a ir para a Guerra em 35, não, acho que 36, eu nasci em 36, foi em 36. Eu sei que a minha mãe sempre falava que um dia bateram na porta e falaram: “O senhor tem que servir.” Servir defender o Franco. Tinha que defender o Franco. Aí o meu pai ou morria ou ia. Então eu era pequeno, tinha nascido naquele tempo então ele foi. Como muita gente não queria ir, se recusava. Simplesmente, o que o meu pai dizia, que é verdade, é que eles liquidavam o cara na cama na frente da esposa e não tinha conversa. O meu avô não quis, por parte do meu pai, ele fugiu, porque não tinha idade para servir ao Franco, não era que tinha 18 anos, tinha 20 anos fazia serviço militar, a idade que tivesse tinha que ir. Então o meu pai foi, foi lá perto de Barcelona, acho que Lérida, um negócio assim. Ficou todo esse tempo lá. Agora, o meu avô escondido sempre aparecia, minha mãe que me contava, batia na janela de noite, era bem escuro, não tinha luz elétrica, não existia luz elétrica, a rua era asfaltada. Ele batia na janela e perguntava para minha mãe se eu menino de quatro, cinco meses, estava bem. E ele falava para minha mãe: “Não se preocupe, porque se não for eu, alguém vai estar rodando, tomando conta de vocês.” Esse meu avô que falava isso. Se não fosse ele alguém estaria. Ele era do outro lado, não aceitava a revolução e ele simplesmente fugia. Eu acho que eu vi o meu avô uma vez, não tive chance de conhecer o meu avô, só tinha coisas do meu avô as referências do meu avô porque o meu pai falava e a minha mãe falava.
P - Por que ele fugiu?
R - Durante todo esse tempo ele ficou fugido, ninguém sabia onde ele estava durante a guerra toda, se pegasse matava.
P - Mas ele era de algum movimento?
R - Não, ele era simplesmente contra, como muita gente era na Galícia, na Galícia era muita gente contra. E o galego, não é que eu seja galego, mas o homem tem, como se diz, não é fraco, não é de se levar por qualquer coisa, eles lutavam mesmo, não aceitavam aquilo lá. Então a força do Franco era muito maior, não tinha jeito, então o meu avô fugia, fugia mas sempre aparecia, mas não tinha chance de conhecer porque se ele aparecesse alguém denunciaria ele, ia denunciar e ele morreria. A minha avó, não, a Teófila, ela aparecia sempre.
P - Ela morava aonde? Ela morava perto?
R - Ela morava numa cidade chamada Palencia, era longe mas ela vinha.
P - O seu avô, antes de fugir, era barbeiro também?
R - O meu avô não era barbeiro, o meu avô era, não sei bem no que ele traba hava, ele era um operário, tipo, assim, metalúrgico, mas não era barbeiro. Por parte do meu pai não era, ele sempre era operário de uma firma, mas não tive a chance de conhecer mesmo, de saber. E o meu pai também não falava muito, ele tinha muito orgulho dele, porque o meu pai defendeu o Franco porque foi obrigado, porque não era gosto dele não. A prova é que ele não teve nenhuma regalia depois que ele voltou da guerra. Que regalia o meu pai teve? Não teve uma pensão, não teve nada, inclusive, quando o meu pai faleceu nunca deram nada, nunca deram a mão para ele. Simplesmente foi obrigado a ir para guerra, não foi porque ele quis ir para a guerra.
P - E o seu avô fugiu e a sua avó ficava por lá.
R - A minha avó ficava mas ela sempre dizia que tinha alguém sempre perguntando pelo meu avô, ia lá na casa dela e perguntava aonde ele estava.
P - Mas isso era para entregá-lo à polícia?
R - Para entregar, lógico, isso não tinha nem dúvida. Ele só voltou depois, eu já estava aqui, faz tantos anos, a minha avó faleceu em 4 de dezembro de 74 e o meu pai faleceu em 16 de novembro de 74, e a minha avó faleceu depois do meu pai, primeiro faleceu o meu pai aqui. Agora eu nunca tive realmente chance de, eu sabia pelo meu pai, a minha mãe adorava o meu avô, a minha avó também, tinha muito respeito, o meu avô era, falava muito, meu pai e a minha mãe falavam demais dele, é que eu não lembro porque era muito pequeno, tinha cinco, seis anos, não dava para...
P - Então o senhor nasceu quando começou a guerra?
R - Foi em 36, a guerra terminou em 39.
P - E o senhor lembra de alguma coisa desse período ou não?
R - Eu lembro que a minha mãe, ela me falava sempre os horrores que ela passou, que ela recebeu um aviso para receber a mesada que o meu pai tinha direito a receber porque estava na guerra, todo mês ela tinha. Aí pegava o ônibus que era pertinho da minha casa lá, podia ir pelo mar ou ia pelo ônibus, o mar era cinco minutos para atravessar e pelo ônibus 15 minutos. Então ela contava os horrores que quando ela entrava no ônibus quando o ônibus era parado por policiais que eram nem bem policiais, eram caras com armas mas que defendiam o Franco. Entravam dentro do ônibus e revistavam todo mundo a vantagem que a minha mãe tinha que ela estava com a carteirinha, a segurança da minha mãe estava lá porque ela ia receber o salário do meu pai. Mas dizia que no prazo de 10 minutos, ela contava sempre isso, nunca saía da cabeça dela, que no prazo de 10 minutos de estrada, parava-se 15 a 20 vezes o ônibus, parava-se o ônibus para tirar as pessoas mortas da estrada, carretera como se chama. Então, tinha que parar o ônibus e retirar as pessoas, pessoas que se recusavam a seguir com o Franco. Eles simplesmente liquidavam, ninguém sabia quem matava. A minha mãe contava sempre isso, os horrores, parece que ela sonhava com isso sempre, acho que ela sonhava. E sabia também de vizinhos nossos lá onde eu nasci, eu me lembro até a casa, uma ruazinha do lado direito. Os vizinhos que os caras vinham buscar e que não queriam. E isso continuou, não foi só no início da guerra, continuou eles forçando as pessoas a ir para defender o Franco. Então ela contava de amigas delas, de casais que estavam na cama e o marido dormindo, os filhos dormindo, tudo dormia num lugar pequeno, porque era muita miséria, uma miséria que não tem tamanho, miséria muito grande, muito. Então chegava: “Vai.” “Não vou.” E a mulher chorando e : “Ah, não vai?” Pimba Eles não levavam para matar em outro lugar, matavam na casa deles mesmo, era obrigado. Quer dizer, muita gente não fala essas coisas, eu não vi mas a minha mãe não ia mentir para mim. E o meu pai também não ia mentir.
P – A partir de que idade o senhor começa a se lembrar da sua infância?
R - Eu começo a lembrar quando no máximo 10 anos. Sete, oito anos. Não, porque a gente vivia oprimido.
P - O seu pai voltou em 39?
R - O meu pai acho que voltou em 40. Não, em 39.
P - E o senhor estava quando ele chegou em casa?
R - Não, em casa eu não lembro. Eu só lembro que depois o meu pai logo foi trabalhar, no negócio da prefeitura, num lugar longe, tinha que andar três, quatro horas, tinha que trabalhar em postes para instalação de rede elétrica, que estava começando, mas num lugar muito longe, no meu não tinha. Como ele já era barbeiro, começou a trabalhar num salãozinho que tinha pertinho lá, que era só chique, tinha duas escolas: uma escola para gente rica, de graça, era só rico que entrava, e tinha a escola perto da minha casa que era só para pobre, mas a gente não tinha nem caneta, não tinha nem nada. Foi quando eu comecei a estudar lá, uma professora que era mais analfabeta do que a gente. Isso eu me lembro, tinha cinco, seis anos, numa escolinha perto lá de casa, isso eu lembro. Agora o meu pai começou a trabalhar de barbeiro, e depois que começaram fazer a herança da parte da minha mãe, estava encrencada, não deram a menor bola para a minha mãe e para o meu pai. Aí o que eles fizeram, repartiram, isso é uma coisa que eu não esqueço, lembrei agora nesse instante, dizem que repartiram, fizeram a divisão dos bens que para a minha mãe era um copo cheio de palitinhos. Já ouviu falar disso? Acho que nunca ouviram falar nisso. E os palitinhos pequenos eram as propriedades que iam para a minha mãe e os outros grandes eram para os irmãos, então só pegavam os palitinhos pequenos. Isso a minha mãe sempre falava, era na frente de oficial de justiça, juiz, mas ele estava combinado com os irmãos, então não saía palito grande, só saía palito pequeno. E saíram várias propriedades para a minha mãe. E essas propriedades passaram a ser vendidas, cada vez que a gente não tinha dinheiro para comer, para os próprios irmãos dela, eles mesmos que iam comprando. Teve uma casa que era tão ruim, que deram para a minha mãe, que nem os irmãos dela quiseram, ela teve que vender. E foi com essa casa, com o dinheiro dessa casa que o meu pai comprou a passagem para vir para o Brasil. Porque naquela época só se falava do Brasil e Venezuela.
P - Muito gente vinha para o Brasil?
R - Muita. Em 1950, quando o meu pai veio para cá, muita gente veio para o Rio de Janeiro porque lá só se conhecia o Rio de Janeiro, não conhecia mas nada. Brasil era o Rio de Janeiro.
P - E o pessoal mandava alguma notícia dizendo se aqui era bom?
R - Os que vieram para cá porque a maioria era para o Rio de Janeiro, os vizinhos, essa turma que veio para cá eles falavam que estavam bem, que estavam ganhando dinheiro. A prova é que o meu pai veio para cá, para o Rio de Janeiro, veio para trabalhar num salão na Galeria Alaska, no Rio de Janeiro, e ganhou muito dinheiro cortando cabelo, trabalhando, freguesia boa. Com esse dinheiro que ele ganhou me mandou buscar.
P - O senhor tinha que idade? 13 anos?
R - Não, eu tinha mais, 17 anos.
P - Então até os 17 anos o senhor viveu lá na Galícia?
R - Eu vivi. Passando miséria.
P - E o senhor começou trabalhar com que idade?
R - Com 14 anos de idade.
P - O senhor foi trabalhar aonde?
R - Num salão de barbeiro perto da minha casa e da minha tia, e está num desses papéis aí que eu trabalhava com ele, que está me dando o aval para eu poder sair. Com 14 anos eu já trabalhava, mas não ganhava nada.
P - E o senhor estudava também?
R - Não dava para estudar, eu estudava com uma senhora que morava perto da minha casa, que não tinha diploma mas ensinava tudo, ensinava na casa dela, ela ia ensinando para mim e para outras pessoas também. Não tinha acesso à escola, não era fácil.
P - Não tinha fácil ir para a escola?
R - Era impossível.
P - Por quê?
P - Porque não tinha escola. Tinha só uma escola, que era aquela escola dos bacanas. Não tinha, de jeito nenhum, e para ir na escola precisava ter material, e quem tinha dinheiro para material? Ninguém tinha dinheiro. Essa escola era na cidade de Mera, realmente era pertinho do porto, do lado direito na rua, chegando no porto, e nessa escola só estudava gente quem tinha muito, os filhos, imagine eu, sem roupa ir para a escola, não iam me aceitar na escola.
P - O senhor andava sempre descalço, não tinha sapato?
R - Eu só tinha sapato quando alguém me dava um sapato ou essa minha prima, Ovita, ela conseguia com vários vizinhos lá para me trazer sapatos, mas nunca na minha vida trouxe um sapato sem estar furado embaixo, todos os sapatos que vinham tinham furado embaixo. Mas se em cima estava bom, tudo bem. Tinha aquele sapato, só usava aquele, e para não estragar colocava papelão, no frio é terrível, o frio lá na Galícia é terrível, tem muita neve. Então estragava tudo, então eu andava descalço. Roupa mesmo não existia, não tinha nada, comida não existia.
P - Como é que fazia para comer, então?
R - Comer era ajuda. Antes do meu pai vir o pouquinho que o meu pai ganhava a gente comprava batata, amassava a batata, a gente comprava quatro batatas e comia meia, tinha que deixar meia para o dia seguinte. E a comida realmente era a papa, era tradicional na Galícia.
P - É a batata?
R - Papa de farinha, água, sal e farinha, de milho.
P - E isso comia na hora do almoço?
R - Não tinha hora do almoço, comia quando dava, não tinha hora de almoço e jantar, não existia isso aí. Então comia-se aquilo que os outros davam, na Páscoa tinha uma vizinha minha, amiga da minha mãe, ela me dava um ovo de galinha, era uma festa. Era a realidade, estou falando a verdade, isso eu me lembro bem. Isso eu me lembro porque da fome ninguém esquece.
P - O senhor dormia com fome? O senhor lembra disso?
R - Sempre, era normal.
P - Todo dia?
R - Todo dia. O meu pai às vezes vinha cansado do trabalho, às quatro horas fazia um pouquinho de comida, alguma coisa que conseguia e eu ficava olhando para o prato do meu pai e ele não conseguia comer e me dava metade daquele prato que já era menos da metade. Então ali era todo mundo com fome, era a minha mãe, era o meu pai e era eu. Aquele prato era para três.
P - E a sua mãe trabalhava fora?
R - Não, não tinha serviço.
P - Não tinha trabalho?
R - Não tinha trabalho.
P - E como era a casa de vocês?
R - Não era um sobrado, era uma casinha com telhado, com uma portinha encostada na rua, nós quando entrávamos tinha um quarto, tinha uma cozinha, e tinha mais um quarto. E tinha um quintal que de vez em quando, quando a coisa começou a melhorar, quando o meu pai começou a mandar um pouquinho de dinheiro, quando veio para o Brasil, a gente comprava umas galinhas e criava as galinhas só por causa do ovo, não era por causa da galinha porque ninguém era louco de comer uma galinha. Se comesse aquela galinha se perdia os ovos. Mas a casa era boa e a gente não pagava nada.
P - Não pagava nada?
R - Não pagava aluguel, não pagava nada. Era de uma pessoa que tinha outra casa encostada e cedeu essa pra nós. Uma pessoa que pegado nessa casa tinha um barzinho.
P – Mesmo com o dinheiro que a sua mãe recebeu de herança não deu para melhorar um pouco, parar de passar fome?
R - Não, porque logo depois nós pegamos uma doença chamada tifo, era uma epidemia de tifo e eu fiquei com tifo. E morria todo mundo de tifo, todo mundo, não tinha médico nem nada. Eu e a minha mãe ficamos com tifo, meu pai não pegou. Meu pai vendeu um terreno, dois terrenos para poder comprar certos remédios que um médico veio lá, tipo de posto de saúde que era longe para burro, veio de cavalo, nunca me esqueço, veio de cavalo, e comprou o remédio em La Coruña e o dinheiro praticamente da venda do terreno foi quase tudo. E um terreno era vendido em moeda de hoje, por mil reais, nem isso, porque ninguém tinha dinheiro, então para quem a gente ia oferecer o terreno? Quem tinha dinheiro? Os irmãos da minha mãe, porque esse terreno era encostado a uma propriedade dos parentes da minha mãe. Aqueles mais ou menos eles já tinham dado porque sabiam que nós íamos entregar para eles, porque não tínhamos condição de vender para outra pessoa. Então o dinheiro realmente ia acabando, a gente vivia exclusivamente do que o meu pai ganhava como barbeiro, não ganhava quase nada, era muito difícil. E como funcionário. Ele ganhava uma porcaria que não dava nem para comer. Luz não tinha porque não existia luz para pagar, não pagava nada. Luz era à vela, vela era a única luz que tinha lá. E era uma cidade até boa, não era uma cidade ruim, a miséria é que era o ponto, a miséria era geral. Só não passava fome quem plantava alguma coisa, que tinha um terreninho.
P - E na casa de vocês não tinha terreno para plantar?
R - Tinha um quintalzinho mas não dava para plantar, a gente pensou nisso também. Um terreno que a gente ganhou, que a gente recebeu eu tentei plantar mesmo moleque, mas era só pedra, cavava um pouquinho e vinha pedra, não tinha jeito de plantar nada. Não tinha nada, nada, não tinha jeito.
P - E a sua mãe ou o seu pai, alguém era religioso na família? Vocês frequentavam igreja, alguma coisa assim?
R - Aí é que está o negócio. A minha mãe, lá naquela época a religião era obrigada, só existia uma religião, que era a católica, tinha uma igreja perto da minha casa, uma igreja até grande, o cemitério era encostado na igreja. E todo domingo, todo mundo tinha que ir na igreja, porque quem não fosse o padre já conhecia todo mundo e ele no sermão falava: “Fulano não veio na missa.” Tinha que ir porque se não fosse o negócio era meio bravo, tinha que ir, quem mandava eram eles. E eu fui convocado num sermão dele para ser sacristão e eu não tive a mínima condição. E eu tive que ir lá e fui sacristão durante dois anos, ajudar a fazer missa, limpar a igreja, arrumar a igreja e fazer tudo. Se tinha um enterro tinha que acompanhar o padre no enterro, tudo eu tinha que fazer sem ganhar nada. Mas eu tinha que fazer tudo. O grande problema meu era ajudar a missa e na hora em que eu tinha que me ajoelhar, de costas para o povo, e o sapato estava furado, e era grave isso aí. É verdade, isso, não é brincadeira, o que eu estou falando é sério.
P - E como o senhor fazia?
R - Eu colocava o papelão pelo lado de dentro e tapeava. Todo mundo sabia que estava furado, mas tudo aquilo era normal. Mas quem frequentava a igreja normalmente eram gente, os que eram obrigados ia, mas muitos não iam, grã-finos iam nas missas, mas quem mandava realmente eram eles.
P - Os irmãos da sua mãe também iam na mesma igreja?
R - Ah, não, de jeito nenhum.
P - Tinha uma igreja só para ricos?
R - Aí a igreja do outro lado, já era um pouquinho mais longe. E tem uma passagem até interessante, teve uma missa que eu me lembro não sei quem é que foi. A minha mãe ficou sabendo eu tinha um tio muito rico, dois muitos ricos, um inclusive, existe hoje um banco na La Coruña, um banco muito importante que se chama Banco Pastor. E esse meu tio era diretor do banco, um dos fundadores do banco.
P - Esse era irmão da sua mãe?
R - Irmão de minha mãe. E tinha outro tio, Pedro, acho que era Pedro, que era chefe do porto, um porto de mar em Sada, num lugar chamado Sada. E ele era reconhecido pela turma do Franco, pela turma que cercava o Franco, então ele era chefe do porto, era onde o Franco todos os anos passava as férias dele. Tinha uma estrada que saía de La Coruña que ia para Santiago e ia para Sada. Sada é a cidade de Franco, passava todas as férias dele, que era em frente a uma cidade chamada Ferrol del Caudilho, aonde o Franco nasceu. O Franco nasceu numa cidade chamada Ferrol, como ele nasceu lá chamavam Ferrol del Caudilho. E hoje não é mais Ferrol del Caudilho, é só Ferrol. Então o meu tio nessa cidade ele era o dono da bola, era o chefe do porto. Então essa missa que teve a minha mãe falou: “Tem uma missa lá, vai lá. E fala com o meu irmão para ver se ele te dá algum dinheiro.” Aí eu cheguei na igreja, a igreja fina, chique, e eu vi toda aquela gente, estava lotada, tinha muita gente para fora e eu não sabia, eu estava escutando de trás das parede porque ninguém poderia me ver. Aí eu vi uma pessoa: “Daria para eu falar com o Sr. Pedro Pita Guarrido? Fala que o sobrinho dele está aqui.” Eu era menino, tinha 10 anos, 12 anos. Aí aquela mesma pessoa que eu falei ele voltou com o dinheiro e me deu.
P - Que família
R - Família distinta, muito fina. Aí voltou e me deu esse dinheiro e falou. E estava o meu tio, a esposa dele e estava o filho dele que era meu primo, que era filho único também. Dos meus tios esse meu tio que era chefe do porto tinha um filho só, o outro que era diretor do banco tinha um filho só também, os dois. O filho do porto era um moço alto, bonito, também ele me recusava, não tinha jeito. E o outro que era filho do banco era muito rico mas ele tinha um problema. Era rico mas tinha um defeito horrível, era quase anão, quando ele me via também fugia porque tinha vergonha, eu não era alto mas ele era muito baixo demais, simplesmente um anãozinho. Era muito rico, tinha muito dinheiro mas o dinheiro não dava para crescer. Ele ficou daquele jeito, tinha um pé grande. Ele uma vez mandou um sapato, nunca me esqueço disso também, ele mandou um sapato pela minha prima, um sapato eu precisava colocar uma bola de futebol dentro para servir para mim de tão grande que era. Era pequeno de pé grande.
P - E a única que ajudava vocês era essa prima?
R - Minha prima Ovita ajudava.
P - E ela ia na sua casa?
R - Ia na minha casa escondida da mãe.
P - Ela era rica também?
R - Era rica, era muito rica mas ela na minha casa, não tinha jeito de ela não ir lá em casa e levar roupa para o meu pai, levar roupa para mim, para minha mãe. Ela levava... É porque era muito longe, não existia carro, ela ia a pé, carregava aquilo, não carregava mais porque não dava. Mas o que ela levava dava para um mês para a gente, daria para dois dias, mas com a miséria que estava a gente fazia render, mas ela ajudava. Sempre ajudou. É a única pessoa realmente que eu tenho lembranças boas é essa minha prima, Ovita, que hoje tem filhos advogados lá em La Coruña, tem um filho que chama Júlio Pita em La Coruña, é advogado. Também não tive contatos com eles também, não conheci.
P - Os filhos dela?
R - Não conheci. Porque ela casou quando eu vim para cá. Eu me lembro até do caso porque ela casou com um primo nosso, primo dela e primo meu. Disse que não podia casar com primo. Olha, cada coisa que eu estou lembrando Disse que não podia casar e casou. E o marido dela também se chamava Júlio Pita também. Olha só E o marido dela chamava Júlio Pita.
P - Por que todo mundo chamava Júlio Pita?
R - Porque Pita era tradicional lá.
P - E o Júlio?
R - Todo mundo era Júlio Pita. A prova é que eu sou Júlio Pita, esse meu primo que casou...
P - Você sabe por que a sua mãe te colocou o nome de Júlio Pita?
R - Não tenho idéia, deve ser por coisa de família, deve ser. Aí ela casou com esse primo e esse meu primo gostava de tocar acordeão, mas não queria nada com o serviço, já estava bem de vida. Olha como é a história, como todo mundo saía da Espanha, ele pegou ou para Venezuela ou para o Brasil. A Venezuela por causa do petróleo, quando começou o petróleo, aquela coisa, todo mundo ganhou muito dinheiro na Venezuela. Ele um dia foi jogar no Jóquei da Venezuela, jogou, jogou bastante, só que ele ganhou uma fortuna, sorte maior que tinha no Jóquei, ele ganhou, naquele mesmo dia foi embora, quando recebeu o dinheiro foi embora para a Espanha. A aventura dele durou um mês, foi para lá rico e aí que ele não trabalhou mesmo.
P - É esse que casou com a sua prima?
R - Com a minha prima Ovita, que também tem um filho que é advogado que também chama Júlio Pita. Esse eu conheci porque era muito farrista, boêmio, eu conhecia ele, eu ouvia falar muito dele. E todo achou que ela não ia casar com ele, o que era muito danado, mas deu certo o casamento. Mas ele montou negócio, os filhos cresceram e estudaram, estão muito bem.
P - E aí o seu pai, em 50...
R - O meu pai aí juntou um dinheiro, juntou um dinheiro não, venderam a casa que ninguém queria, que deu simplesmente para passagem, deixou um pouquinho de dinheiro para a gente e veio para o Rio de Janeiro. Lá no Rio de Janeiro ele se deu muito bem.
P - Ele morou aonde no Rio, o senhor lembra? Ele contou?
R - Não lembro. Ele morava numa pensão, isso eu me lembro bem. Ele morava perto da Galeria Alaska.
P - Ele morava em Copacabana.
R - Muito perto, mas o meu pai adorava o Rio de Janeiro, todo mundo gostava do Rio de Janeiro, todo mundo. Então ele começou a ganhar dinheiro, ganhar dinheiro, começou a mandar todo mês dinheiro para a gente. E acabou a nossa fome. A nossa fome acabou quando o meu pai chegou no Rio de Janeiro. E todo mês ele mandava dinheiro.
P - E aí o que é que mudou na sua casa?
R - Aí a gente tinha tudo. Eu passei a comprar roupa, a comer. A coincidência que o meu pai mandava o dinheiro pelo banco, eu não tenho certeza mas vou me lembrar agora, acho que Banco Financial Novo Mundo, eu acho que existia esse banco, era um banco que podia mandar dinheiro para a Espanha. E mandava dinheiro pelo banco que o meu tio era o diretor.
P - Ah é?
R - O dinheiro ia para lá porque era o único banco realmente forte que podia mandar para lá. Então quando a gente recebia o aviso pelo correio a gente ficava torcendo para ver se o dinheiro estava lá. Eu e a minha mãe, pegávamos o ônibus
P - Por que antes disso só andava a pé?
R - A pé e descalço.
P - Mesmo no frio? Como é que esquentava a casa no frio?
R - No frio, porta fechada, não tinha nada para esquentar.
P - Não tinha lenha?
R - Lenha a gente procurava, a gente saía e procurava lenha, tinha uma lareira. Uma lareira a gente tinha, não existia fogão, e a gente esquentava, mas esquentava por fora, porque por dentro não esquentava, não comia nada. Tinha uma vizinha que muito porque o filho dela, tentaram pegar ele e não conseguiram pegar. E o meu avô, olha só O meu avô deu uma certa proteção, esse vizinho, filho dessa vizinha era do outro partido, republicano, não era republicano, o partido que era contra o Franco.
P - Tinha vários: comunistas, anarquistas.
R - Não era anarquista não. Acho que era comunista. Então, o meu avô ajudou muito esse moço. Então essa senhora do pouco que ela tinha ela ajudava a gente. Principalmente a farinha, a farinha era o grande alimento, pão, broa, ganhava um pedaço de pão de broa e um pedaço de toucinho. Eu não me esqueço uma vez que o meu avô deixou quase um pedaço, um pão redondo, que naquela época só se fazia pão redondo de broa de milho, cortado no meio com presunto, não era presunto, era toucinho. Aquilo foi a maior festa. Aquele pão de broa acho que durou um mês, foi comendo aos pouquinhos para não acabar. Eu, meu pai e a minha mãe. Tinha essa vizinha que o meu avô ajudava o filho dela que por sinal depois mataram o filho dela, pegaram e mataram. Isso eu me lembro bem, estava exilado na França, mas numa saída que ele veio e foi visitar a mãe, ele sem querer na janela ele estava olhando para a rua e alguém o denunciou e a guarda civil foi lá e pegou. E a guarda civil era muito violenta, quem mandava eram os padres e a guarda civil. Guarda civil com aquele negócio reto na frente, aquilo era terrível, não tinham amizade com ninguém, era um quartel grande que existia, pertinho da minha casa, devia ter de 40 a 50 soldados quando não precisaria nenhum. Mas para ver as coisas porque realmente lá tinha muita gente contra na minha cidade, mas muita, quase todos eram contra. Mas numa dessas saídas, é uma coisa que eu não me esqueço nunca, me mãe contava ele estava na janela visitou a mãe. Chegou para visitar a mãe, subiu, e estava lá na janela. Na janela alguém o viu.
P - E por que alguém denunciava? Era comum todo mundo denunciar?
R - Não era comum, a própria polícia exigia que as pessoas denunciassem. Se soubesse de alguma coisa tinha que denunciar, mesmo que fosse contra. Os que estavam contra simplesmente tinham fugido, agora os que estavam lá eram aqueles que ficaram, tinham medo, como eu, o que eu ia fazer? Eu e a minha mãe, o meu pai não teve escolha, ele ficou vivo por causa disso, senão estaria morto. E a maioria, todo mundo, eu acredito que foi assim. Então não tinha escolha.
P - E o seu avô antes de vir para o Brasil ele reapareceu algum momento?
R - Não.
P - Nunca mais?
R - Nunca mais.
P - Mas mataram ele?
R - Não, meu avô morreu de velho mesmo.
P - Mas o que aconteceu com ele?
R - Não tinha notícia, não podia ter notícia.
P - Ele foi embora da Espanha?
R - Ele ficou na divisa da Espanha com a França, eu não me lembro bem o lugar, como todos os espanhóis ficavam. Quando ele tinha uma chance de vir...
P - E ele ficava na parte da França?
R - É. Sei que depois de Franco...
P - Ali naquela região dos Pirineus, na Catalunha?
R - Eu não lembro bem o local.
P - Onde que os espanhóis ficavam?
R - A maior encrenca foi em Barcelona, meu pai ficou em Lérida. Mas o meu avô tem a polícia espanhola fez miséria lá na guerra, uma cidadezinha perto da França mataram meio mundo lá, jogaram bomba, fizeram o diabo. Era lá que o meu avô estava na parte da França. Eu tenho algum documento que deve dizer onde ele estava, mas eu não tive mais contato, não tinha mais condição, ele não podia se comunicar, como ele ia se comunicar? Carta mesmo não chegava. Tudo era censurado, tudo controlado.
P - E a história da bicicleta que você pegou, que você contou há pouco.
R - Quando eu vim para o Brasil. Quando o meu pai veio para o Rio e mandava dinheiro para a gente, era uma beleza, o dinheiro que o meu pai mandava sobrava de um mês para outro, ele mandava todo mês 40 mil, a gente passou a viver, comer, tudo diferente. Olha, eu comprava roupa que parecia um verdadeiro. Quando eu cheguei em Santos mandou jogar roupa fora, está certo que estava velha, mas achou que era, vamos dizer, um palhaço. E a gente começou a viver, não só nós, todo cara que saiu de lá, todas essas famílias começaram a viver bem, que saíram para o Brasil e a Venezuela, para a Argentina, Uruguai também ia muita gente. Quando eu vim, quando recebi a carta de chamada, chamava-se carta de chamada, fiz a papelada e fui me despedir. A minha mãe falou: “Vai lá se despedir das minhas irmãs.” Porque tinha uma irmã que morava num porto perto de La Coruña.
P - Irmã?
R - Irmã da minha mãe. A minha mãe pediu para eu ir me despedir, logicamente para ver se alguém me dava algum para eu vir, alguma coisa. Eu tinha que passar numa e na outra, então eu pedi a bicicleta emprestada do vizinho, que era a única bicicleta que tinha na cidade inteira, mas era velha, velha. Uma bicicleta, espanhol gosta muito de bicicleta, até hoje gosta, naquela época uma bicicleta era milionário que tinha. Então eu pedi essa bicicleta para me despedir contando que eu ia receber algum. Aí eu fui, passei e fui na primeira. Cheguei lá e ninguém me recebeu, fiz de tudo, e era a mais acessível, aí voltei, passei na porta desse que era diretor do banco. A porta era pegado à estrada, uma casa, um palacete, cansei de bater e eles me viram de longe e não me receberam. Aí eu desci, quando eu fui para Santiago, tem outro porto, tem assim uma curva assim e tem uma descida, deviam ter arrumado a carretera, a rua, tinha areia, eu escorreguei e caí. Caí e quebrei toda a bicicleta e rachei essa perna direita, rachei a calça assim, fiz um rasgo assim, a única calça que eu tinha, era única. Apesar de já ter melhorado a nossa vida, a calça boa para viajar, tinha outras calças, mas eu só tinha aquela, era bonita. Aí eu peguei a bicicleta nas costas, saindo sangue, todo manchado, e subi uma subidinha assim nesse castelo. Fui lá nesse castelo, bati na porta, veio o mordomo, a minha tia tinha mordomo, o negócio era desse lema. Abriu aquelas portas de madeira, ele me olhou, perguntou o que eu queria. “Olha, eu sou o sobrinho da Dona Josefa, Josefa Pita, e eu vim falar que eu vim me despedir, que eu vou embora para o Brasil. Fala para ela.” Eu não pedi nada, não tinha condição para pedir, liberdade para isso. Aí ele falou: “Espera que eu vou falar com ela.” Aí ele foi, ele me olhou e viu que eu estava sujo de sangue, com a bicicleta quebrada, e falou para a minha tia, falou porque depois a minha prima Ovita, quando eu vim para o Brasil, ela foi na minha casa pedir desculpa para a minha mãe. Então, quando ele viu aquele sangue, aquela bicicleta quebrada, ele me dispensou. Então eu andei mais ou menos, com aquela bicicleta, com pé machucado, braço machucado, com aquela bicicleta nas costas, quebrada, andei e andei. Quando eu cheguei em casa e a minha mãe me viu daquele jeito quase que ela teve um treco. Faltava dois dias para eu vir embora para o Brasil. E aí que cara que eu ia devolver a bicicleta. Aí fui devolver a bicicleta junto com a minha mãe para um casal que tinha um filho moço que estudava também num colégio, no colégio fino, colégio finíssimo. E aí a minha mãe costurou aquela calça, cerziu tudo muito bonitinho, tal e tal. Um dia depois o meu tio, irmão do meu pai, me pegou e viemos para Vigo, porque eu não embarquei em La Coruña para vir para o Brasil. Naquela época não se embarcava em La Coruña, não tinha embarque em La Coruña para o Brasil. Então andei até Vigo, quatro horas de trem, e ficamos numa pensão, num quarto. Nesse quarto, eu estou lembrando de outra coisa, nesse quarto fiquei eu e o meu tio, irmão do meu pai. Eu era para embarcar no outro dia, mas adiou e embarquei no outro dia, e nós tínhamos um outro parente lá no porto de Vigo também chamado Júlio Pita, olha só, eu estou me lembrando agora. Já era velho. Aí eu fui na casa dele, me receberam muito bem, mas era longe, era um parente longe, me receberam muito bem, comi lá. Mas depois que o meu pai veio a coisa já mudou muito, eu passei a viver, comer.
P - O que é que o senhor passou a comer todo dia na sua casa?
R - Eu comia batata frita, ovo. Carne era impossível, carne eu acho que comi uma vez na vida.
P - Ah é? Por quê? Era muito caro?
R - Não tinha. Não tinha açougue, não tinha carne.
P - Não se comia carne?
R - Que carne? Nem os ricos comiam.
P - O que os ricos comiam?
R - Aos ricos não faltava nada. Ovo e batata era a comida mais chique que existia.
P - E legumes, não tinha? Se comia legume?
R - Legume não se comia. Uma comida que é tradicional que a gente comia, quando tinha muito, era a tortilha, a tortilha é batata com ovo, omelete. Quando tem cebola é gostosa, mas cadê a cebola que não tinha, então ia sem cebola, mas estava muito bom, estava bom demais. Foi quando o meu pai começou a mandar dinheiro que a coisa começou a melhorar. Foi só meu pai vir para cá que a coisa mudou. E ele logo que veio, no primeiro mês, tivemos a comunicação de que ele tinha chegado aqui no Rio e tal. Mas logo ele foi trabalhar nesse salão e esse salão era muito bom, ele contava que era muito chique, que era um povo muito bom, que o Rio de Janeiro era muito bonito. Aí começou a mandar cartões, cartões, a gente nunca tinha imaginado alguma coisa daquela. No segundo mês já começou a mandar dinheiro, e era dinheiro demais. Para nós era muito dinheiro e a coisa começou a ficar tranqüila. E nós, se não éramos ricos, como se diz, freqüentar com pessoas ricas, mas de comida já éramos ricos, já estávamos bem como muita gente não estava. No momento, é aquilo que eu digo, todos aqueles que saíram de lá todos ficaram bem e todos trouxeram as famílias. Meu pai veio primeiro, 53 vim eu, depois veio a minha mãe. Não viemos todos juntos, primeiro veio o pai, depois eu, vim morar com o meu pai numa pensão na Rua da Glória. A Rua da Glória tinha uma praça, tinha Teatro São Paulo, assisti a peça do Oscarito, lá.
P - Quer dizer, você chegou em Santos?
R - Cheguei em Santos e o meu pai estava esperando lá.
P - Mas o seu pai não morava no Rio?
R - Morava, mas no terceiro ano veio para São Paulo.
P - Por quê? O senhor sabe?
R - Um amigo dele que o trouxe para trabalhar no melhor salão de barbeiro que tinha em São Paulo na época, era na Rua Conselheiro Crispiniano, pegado ao Cine Marrocos, chamado Salão Imperial. Era o salão mais chique que tinha em São Paulo. A dona do salão era uma senhora judia que se chamava Dona Norma, e tinha um filho. E o meu pai foi trabalhar lá e o meu pai era considerado o melhor barbeiro que existia no salão. Aí o meu pai já começou ganhar dinheiro e foi me buscar em Santos. Eu estava lá no navio, quando eu saí do navio, aquele navio que não era terceira classe, décima quinta classe, era horrível, mas tinha muita comida, comida tinha bastante no navio, eu não saía do restaurante, só comia. Eu nunca tinha visto carne. Porque mesmo com o dinheiro que o meu pai mandava lá não tinha carne, é verdadeira essa história, tem muita coisa mais, é que a turma hoje não fala porque acha que agora, bem, que aquilo lá já passou. Eu sentava na mesa e via aqueles bifes, eu ficava louco, eu não sabia o que era carne.
P - Foi uma das primeiras vezes que o senhor comeu carne?
R - Eu comi uma vez só na Espanha.
P - Uma vez só na Espanha?
R - Uma vez só, porque teve um fazendeiro que casou uma filha e matou um boi, e desse boi sobrou um pedacinho para mim, mas muito pequeno. E eu dei para a minha mãe. Não sei como é que foi a história, que a minha mãe estava passando perto e alguém falou: “Vai, leva um pedaço de carne lá para o seu filho.” Enfim, me deram um pedaço de carne, e foi a única vez que eu comi carne na Espanha. Nunca comi carne. Isso não é mole. P - E doce, o senhor comia coisa doce lá na Espanha?
R - Só se fosse fruta doce.
P - O senhor lembra quando foi a primeira vez que o senhor comeu alguma coisa doce?
R - Só fruta.
P - Nunca comeu? E no navio comeu?
R - No navio eu comi tudo que eu nunca tinha visto, agora, lá, não.
P - Não tinha açúcar, não tinha café?
R - O açúcar não era açúcar, era de... como é que chamava, beterraba, mas tem outro nome que eu não consigo me lembrar. Açúcar era muito impossível, banana era impossível, era a coisa mais chique que tinha, era cara, era muito cara. Quando a gente ia receber o dinheiro da minha mãe, meu pai que mandava, então a gente comia uma banana, só faltava comer a casca, raspava a casca de dentro e deixava a casca fininha para comer aquilo. Banana era um artigo de luxo.
P - E peixe?
R - Peixe comia, se pescava, meu tio pescava, o irmão do meu pai gostava de pescar. Então quando ia pescar ficava dias pescando e quando pescava um peixe ele dava um para a gente, o irmão do meu pai que também é barbeiro e está vivo até hoje, se chama Pedro, Pedro Fombelita Calçada, mora lá na cidade de Mera.
P - Da sua família o único que saiu foi o seu pai?
R - Acho que um primo meu, irmão desse meu tio, parece que ele saiu, parece que foi para a França trabalhar, não tenho certeza porque também eram pobres. Mas já por parte da esposa do meu tio tinha ficado uma casa muito grande, um terreno muito grande, então eles plantavam tudo, e eles viviam daquilo. Batata, muita árvore de fruta, muito figo. Plantava muito batata e toda casa lá que podia plantar batata tinha o telhado acima disso, era tudo madeira, então as pessoas guardavam as batatas lá em cima tudo separadinho para elas não apodrecer e não estragar, então iam pegando. Quem tinha chance de ter um porquinho, matava o porco e salgava o porco, naquele negócio de carvalho, matava o porco e salgava. Mas isso era gente que estava muito bem de vida, não era qualquer um não. Matava e toda hora pegava um pedacinho daquilo e fazia um caldo, um putchero. Mas isso é gente muito rica. A história é que quando eu cheguei aqui o meu pai estava me esperando em Santos e eu quando cheguei no navio eu vi meu pai, aí meu pai pegou toda a roupa que eu tinha, tinha uma gravata tão feia, meu Deus do Céu Eu trouxe uma gravata de lá, eu ganhei logicamente, aquela gravata só faltava pisar em cima dela de tão comprida. Eu achava que era bonita a gravata comprida, eu era muito caipira demais, aí ele me levou numa lojinha de roupa lá e mandou eu tirar toda a roupa “Tira tudo fora.” Eu saí com toda a roupa, saí de lá, aí me levou num restaurante para comer. E falou para mim o que eu queria comer. Eu já tinha comido no navio, mas mesmo comendo esses 12 dias no navio, que eu fiquei 12 dias no navio, a travessia durou 12 dias, saiu domingo, Ilhas Canárias, e das Ilhas Canárias para Santos. Mas parou no Rio de Janeiro. Aí eu falei: “Pai. Eu comi bastante bife. Mas eu quero um prato de batata frita.” Aí trouxe um prato de batatas fritas, batatas fritas com bife. Ah Aquilo foi uma festa, uma festa. Quando vim eu parecia um palito, eu pesava acho que 35 quilos, já era moço, magrinho, magrinho, magrinho de fome. E todo mundo passava fome, não era só eu, todo mundo. Aí logicamente, depois eu vim morar na Rua da Glória, morava numa pensão, tinha esse teatro em frente que era muito bonito.
P - E aí você chegou aqui e começou a fazer o quê?
R - Eu cheguei aqui, aí eu vi um anúncio no jornal, eu queria trabalhar, mas o meu pai não queria me deixar trabalhar.
P - O que ele queria que o senhor fizesse?
R - Ele me mandava todo dia ir no cinema. Eu ia num cinema na Praça da Sé que era pertinho da minha casa.
P - O senhor foi morar ali na Ladeira da Rua da Glória.
R - Na Rua da Glória perto da Rua São Paulo. Dali na Praça da Sé era um pulinho. Então tinham dois cinemas na Praça da Sé, como é que chamavam? Eram dois cinemas bem vagabundos, tinha do lado direito da Catedral. Eu ia lá assistir aqueles filmes. “Assiste bastante que você vai aprender a falar logo o português.”
P - E que filme que passava lá?
R - Muito bang-bang, era só bang-bang.
P - Mas em português?
R - Era, como se diz, legendado. Então aquilo me fez aprender logo o português porque o galego e o português não é muito diferente. Então eu aprendi logo. Eu fiquei um mês sem trabalhar, aí eu falei para ele que eu precisava trabalhar. Aí um dia peguei um anúncio e tinha um português, nós morávamos sete num quarto, na pensão, aquele tipo de pensão muito boa que tinha antigamente, a gente dormia de porta aberta. Tinha o café da manhã, o almoço, a janta. E o que o meu pai ganhava dava para pagar a minha pensão, a pensão dele e mandar dinheiro para a minha mãe e sobrava dinheiro. Aí um dia eu vi um anúncio do salão de barbeiro, aí eu pedi pro português: “Abel, eu precisava ir nesse lugar.” “Julinho, eu te levo lá.” Tinha bonde, nós pegamos o bonde, e eu cheguei lá, chegamos aqui na Avenida São João, 1973, número do salão, número do prédio onde estava o salão, 1973. Eu fui lá e tinha o dono do salão, aí eu falei para ele que eu precisava trabalhar, que eu vim da Espanha, aí ele olhou com uma cara para mim, o salão era muito bom, tinha movimento, era perto da Casa do Estudante, quase em frente à Casa do Estudante. Aí ele me aceitou mas me colocou na última cadeira. Eu só trabalhava quando os outros estavam ocupados, mas o cara entrava, olhava para a minha cara, “Esse moleque não vai cortar o meu cabelo, fazer a minha barba.” Aí eu comecei, aí pegava um aqui, tudo que não prestava vinha para a minha cadeira, tudo, os barbeiros: “Pode sentar, você é baixinho, esse menino é bom.” Aí eu pegava e fazia a barba do cara, a gente ganhava 50%, fazia a barba do cara, um sacrifício, aquela navalha espanhola que eu trouxe da Espanha, filarmônica, dava um trabalhão para lavar aquilo lá. Mas eu era, modéstia à parte, eu era bom.
P - Mas quem é que ensinou o senhor a trabalhar?
R - Eu aprendi lá na Espanha.
P - Lá na Espanha?
R - Com o meu tio, tem um papel aí que com 14 anos eu já trabalhava com ele, mas de graça.
P - Então o senhor já tinha uns três, quatro anos...
R - Tinha. Mas para cá era muito chique, São João, São João era um negócio muito sério naquela época.
P - Quem andava na São João naquela época?
R - Só tinha gente boa, tinha industriais, São João era muito chique, que nem hoje é a Paulista era a São João em 53. E tinha Casa do Estudante, só por ter a Casa do Estudante era muito importante, apesar deles fazerem muita bagunça, mas era um lugar muito bom. E os fregueses iam no salão cortar cabelo e fazer a barba, que era freqüentado por grandes industriais, artistas, depois começou a Rádio Nacional, que era mais para baixo, na Rua das Palmeiras, em frente à Clipper, que era a Clipper e a Organização Vítor Costa. Então aquilo começou a crescer, o salão, o movimento de barba. Aí o dono do salão me deu para outro, me deu para uma mulher. Olha, essa história é interessante. Me deu para uma mulher que era amigada de um grego, aí o grego, eu era mocinho e naquele tempo era boa pinta. E a dona do salão era bonitona e o grego era um caco velho, era amigado com ela, então ele ficou com ciúme de mim, ele me mandou embora do salão quando estava tudo bem. Aí eu fui procurar um salão na Rua Barão de Piracicaba, estou me lembrando agora. Nem imaginava que eu ia me lembrar disso Na Rua Barão de Piracicaba. Aí a mulher se desmanchou do grego e me mandou buscar e eu voltei.
P - Mas aí o senhor teve caso com a mulher?
R - Não, não tive nada. Ele é que estava com ciúmes, eu não tinha nem coragem, era um caipirão, não tinha coragem.
P - E nessa época o senhor tinha namorada, como o senhor fazia para se divertir?
R - Não, o meu negócio era trabalhar, não era divertir.
P - O senhor queria trabalhar?
R - É. Aí é que tem a história, eu trabalhava, trabalhava, aí foi quando eu conheci a minha esposa, o irmão dela morava junto comigo na mesma pensão, eles moravam no interior. Um dia veio a irmã, a mãe visitar o irmão, e eu estava sentado na praça. Aí elas passaram, ela me olhou, eu olhei e achei bacana. Aí comecei a namorar, eu casei com 23 anos.
P - E antes o senhor nunca tinha namorado?
R - Não tinha namorado nenhuma moça aqui, a primeira namorada foi a minha mulher. Aí passei, a mulher do grego me mandou buscar.
P - Aí o senhor voltou para o salão desse senhora.
R - Mas aí a coisa já começou, os barbeiros que trabalhavam lá eles eram muito folgados, o salão abria às 8 e meia.
P - Eles eram brasileiros?
R - Todos brasileiros, mas eram folgadões, se contentavam com aquele dinheiro, eu queria crescer. Bom, aí a mulher me deu uma chance. De repente a mulher vendeu o salão para um velho chamado Nicola Tintini, que tem um filho hoje, grande, que é meu freguês, que é pintor, Ítalo Tintini, pintor famoso aí. E o italiano era terrível para trabalhar, era que nem eu hoje era ele naquele tempo. Um dia não sei o que aconteceu, eu vim a pé da Rua da Glória até a São João. Eu não sei naquele dia o que aconteceu que eu perdi a hora e vim a pé. A porta do salão aberta, enfiei a cabeça e lá estava o Nicola cortando, eram seis horas da manhã. Aí eu entrei: “Nicola, você chega cedo?” “Eu chego cedo.” Eu era moleque ainda. “Eu posso chegar cedo?” “Pode.” Aí eu comecei a chegar junto com ele, na esquina da Nothman com a São João tinha um ponto de táxi e todo mundo motorista de táxi naquela época fazia barba no barbeiro, todo mundo fazia barba no barbeiro. Eu comecei a fazer barba daqueles, sete, oito por dia. Quando os meus colegas chegavam eu já tinha feito a féria do dia, eles não conseguiam me alcançar mais. O que aconteceu? Um ano de casa eu passei a fazer mais féria do que eles. Eles não conseguiam, eu era mais rápido, era mais perfeito, não é que eu estou me gabando, mas era, eles eram relaxados. Eles iam para casa, naquela época tudo quanto é cliente sentava na cadeira e eles queriam faturar no cliente a quina petróleo Sandal, quina Pinaud, Miss France, só, brilhantina. Então eles ganhavam 50% daquilo lá.
P - Do quê? Fala os nomes de novo para mim.
P - Você não pegou mas eu sei.
R - O freguês sentava e cortava o cabelo, depois que cortava o cabelo o barbeiro perguntava: “O senhor não quer uma quina? Uma quina Pinaud, uma Sanacaspa” “Isso aí é bom?” “É bom mesmo.”
P - Mas era para passar no cabelo?
R - No cabelo. Aí ele passava, o que acontece, uma aplicação de Sanacaspa custava tanto quanto o cabelo, então ele faturava 50% nos dois, se a Sanacaspa era 20 e o cabelo era 20, faturava 40 nos dois. Então eles só faziam essa malandragem. Então, era brilhantina Coty, Miss France, Miss France tinha muito, quina Pinaud.
P - Miss France era o quê?
R - Miss France era uma loção, tem até hoje o sabonete Miss France. Era para passar no cabelo. Então passava aquilo lá e o cara faturava. Só que isso tudo uma hora perturba, e eu fazendo as minhas barbinhas, pegando aqueles que ninguém queria pegar. Chegava um aqui, se três fregueses esperando para fazer barba ruim, o barbeiro estava com um cabelo terminando, só para não pegar aquele, demorava naquele só para eu pegar aquela porcaria lá, só que aquela porcaria deixou de ser porcaria. Foi aonde eu conheci o (Jocey?) Leão, que era bailarino, que morava encostado, e o Denner Plamplona, que morava encostado, passaram a ser meus fregueses, o costureiro Denner.
P - Ele morava ali?
R - Ele morava um pouquinho para baixo da São João, na São João, só que um pouquinho para baixo. O (Jocey?) Leão morava quase encostado ao salão, ele era bailarino. Então a coisa foi assim, crescendo, crescendo, e o meu patrão ficou doente, pegou uma doença grave e foi para a casa. Ele era casado e tinha quatro filhos, um desses era o Ítalo, mas ele se amigou com outra senhora e teve duas outras mocinhas com outra senhora. Que eu sou, inclusive, padrinho de uma delas, de batizado. Então ele ficou doente, então quem passou a tomar conta do salão fui eu. Eu, um menino com quase 20 anos, passei a tomar conta, eu que tomava conta de todos aqueles bandidos lá porque eles só faziam sacanagem, não podia deixar eles um minutos, nada, eles queriam tapear o cliente de qualquer jeito. O meu negócio não é tapear, o meu negócio era que o freguês saísse contente. Eu estava, como se diz, plantando, eles não, eles estavam jogando fora. Porque o cara passa um dia um perfume, passa outro dia, eu estou gastando mais de perfume, naquele tempo dinheiro não sobrava também, estava bem. Aí a coisa deles ficou ruim, um foi para um outro, outro foi para o outro. Tem umas histórias. Aí eu tive um monte de clientes e tal. Aí um dia um cliente amigo meu, que é meu cliente até hoje. Um húngaro, chamam-se André Beckes, que servia comigo, tinha uma firma de ferro no Brás, eu não me lembro a rua agora. Ele falou para mim: “Bom, Julinho, você larga disso, só você que trabalha nesse salão. Procura um salão de barbeiro aí que eu compro para você.” Eu não acreditei. Aí eu vim nessa rua, Barão de Tatuí, pegado à farmácia, no 119 tinha um salão de barbeiro, um velhinho que está nessa compra aí, deve ter sido em 63 mais ou menos.
P - Dez anos depois que o senhor tinha chegado.
R - Eu casei em 60. Mas eu fiz uma freguesia enorme, essa turma toda da Globo eram meus clientes.
P - Já nesse salão?
R - Nesse salão, Jô Soares, Chico Anísio, eles viam a São Paulo e iam no meu salão, Walter D’Ávila, Galeano Neto, que eu acho que foi o primeiro locutor que transmitiu a Copa do Mundo em 38, na Itália, eu não me lembro, eu estou falando mas eu não me lembro. Aí eu fiz uma freguesia enorme. Aí eu procurei o salão. Mas antes disso tem muita história aí, quando eu procurei um salão e achei um salão, procurei o homem e o homem falou: “Eu vendo.” Falei com o André: “Pode comprar.” Aí eu comprei. E aí o que eu fiz, tirei o meu pai desse emprego da cidade, e trouxe três barbeiros, manicure e engraxate do outro salão. Nesse salão aí, o meu patrão Nicola, eu peguei um engraxate na rua, é uma história interessante. Eu peguei esse engraxate na rua, na Praça Marechal, sem pai e sem mãe, menino de rua. E tinha um defeito muito grande na perna, ele mancava muito, chama-se Benedito. E levei para o salão, ele engraxava sapato, não sabia mais nada. O velho ficou seis meses doente, o meu patrão Nicola, nessa doença quando ele voltou e viu o moleque lá: “Esse moleque eu não quero.” E mandou embora. Eu fiquei tão chateado, tão chateado porque eu estava encaminhando. Aí o velho ficou doente, graças a Deus que ele ficou doente porque eu peguei o moleque de novo e o moleque foi. E quando eu vim para cá eu trouxe o moleque, a manicure e dois barbeiros. Não é que eu trouxe, eles quiseram vir comigo, vieram trabalhar. E esse André Beckes me ajudou, quando foi na quinta prestação, eu não sei se é 35 mil pesetas, está aí marcado, tem até as promissórias de quando eu comprei isso. Ele virou: “Júlio, não precisa pagar mais nada. O salão é teu.” Aí eu trouxe o meu pai da cidade porque a Dona Norma tinha morrido e foi trabalhar em outro salão e trouxe o meu pai para trabalhar comigo. E o meu pai trabalhava comigo.
P - E a sua mãe já tinha vindo? Já estava aí?
R - Minha mãe já estava aqui. A gente morava... Eu já tinha casado em 60, aluguei um apartamento na Rua da Glória, 388.
P - E o seu pai continuava morando...
R - Morava comigo, morava o meu pai e a minha mãe. Eu, a minha mulher, meu pai e a minha mãe. Depois eu comprei... Aí pediram o apartamento, o cara pediu o apartamento e a minha mãe sofria, coitada, isso e aquilo. Aí fomos morar na Rua da Glória, eu entreguei o apartamento e fomos morar no 46 da Rua da Glória, depois na Rua São Paulo. Aí depois a minha mãe queria ter um apartamentinho. Um dia eu comprei um apartamento para o meu pai e para a minha mãe, pequeno. Também tem história longa, eu comprei porque me ajudaram para comprar. Um cliente que me ajudou. Aí um dia meu pai e a minha mãe estavam em casa e eu falei: “Dona Júlia, a senhora vai mudar de casa.” “Outra vez.” Minha mãe, coitadinha, tudo nela era muito certo, muito certinha, qualquer coisa ficava nervosa, passou tanto na vida, coitada Atingia tudo. Aí um dia eu peguei comprei uma geladeira, uma cama e uma mesa e um fogão. E coloquei no apartamento e aí trouxe os dois: meu pai e minha mãe. Eu tinha um carro, um fusquinha, fusquinha também dado por esse meu amigo que comprou o salão, André Beckes só me ajudou na vida, fez tudo. Aí eu cheguei e falei: “Dona Júlia, Sr. Vítor, esse apartamento é para vocês morar.” “Mas depois o homem vai pedir.” “O homem não vai pedir nada. Esse apartamento é meu. Vai morar até morrer.“ Sabe a alegria dos meus pais foi assim, o meu pai trabalhava comigo, então ele vinha a pé aqui na São João, 1879, o número do prédio, eu trabalhava antes no 1973. Ele vinha a pé, não tinha horário, trabalhava a hora que queria, passaram a viver a maior felicidade do mundo. Meu pai saía era seis e meia do salão, tudo o que ele ganhava era dele, registrado, bonitinho, tudo direitinho. À noite chegava em casa, tomava sopinha dele, meu pai não bebia nem fumava, que nem eu, nunca bebi e nunca fumei. Então eu pegava meu pai e a minha mãe e todo noite ia dar volta na Praça Marechal, eu encontrava com eles, viviam na maior felicidade. E muipo tempo para frente eu comprei uma televisão para eles, aí foi mais alegria. Isso tudo logicamente foi com a ajuda de freguês, todos os fregueses me ajudaram. Até a minha mãe, pouco antes da minha mãe falecer, cinco anos depois, minha mãe foi morar comigo, hoje nesse apartamento mora um filho meu. Aqui na Barão de Tatuí eu também tenho muitas lembranças boas, de clientes, eu sempre tive uma clientela que me ajudou barbaridade, que até hoje me ajuda. Aí passei a conhecer muita gente, muita gente importante já lá no Lage eu conheci muita gente importante e boa também. Teve outras coisas que eu conheci, muita gente ruim, muita gente ruim eu conheci.
P - Quem foi o pior cliente que o senhor já teve?
R - Como pessoa ou como cliente?
P - Como pessoa.
R - Tive tantos. Não é clientes pessoas contra mim mas pessoas que faziam aquilo que eu não gostava. Eu tive um cliente, era meu cliente mas eu fiquei sabendo de uma coisa que eu não gostei.
P - O que ele fez?
R - Uma vez um cliente chegou no salão e me disse assim. O cliente entrou e saiu, por sinal essas duas pessoas estão mortas, já morreram. Ele entrou e saiu, passou-se um tempo ele voltou e ele me perguntou: “Esse desgraçado é seu freguês?” Eu falei: “É meu freguês faz tempo.” Aí ele me contou que ele esteve preso, esse meu cliente e que esse cliente que estava na minha cadeira o tinha maltratado e muito.
P - Ele era um torturador?
R - Devia ser porque o meu freguês foi preso em 64, chamava-se Rio Branco Paranhos, que era uma das pessoas que eu mais me admirei na minha vida. Fora outros, porque não tinha, se ele defendia certas coisas, eu não entendo nada de política, não sou político, não tive partido nenhum. Mas eu nunca vi ele fazer alguma coisa que fosse errada, que fosse uma coisa que machucasse alguém. Ele defendia uma coisa que ele gostava, não era um cara ruim, era um cara bom, só ajudava os outros. Eu sou testemunha porque eu ia no escritório dele fazer a barba dele todo dia cinco e meia da manhã.
P - O senhor ia lá todo dia, ele era seu cliente mas ele não ia ao salão, o senhor ia lá?
R - Ia no salão só uma vez por semana, só domingo de manhã, cortava o cabelo, era careca, mas cortava o cabelo, inclusive o Almir trabalhava com ele, Almir Pazzianoto. Eu ia lá e ele já estava trabalhando, e fazia uma fila de gente só para pedir dinheiro para ele, gente que precisava, que estava desempregada. Aí o cara falava: “Dr. Rio Branco, me empresta 50.” Aí ele dava 20. “Leva só 20.” Eu perguntava: “Dr. Rio Branco, por que o senhor só dá 20?” “Porque eu estou perdendo só 20, Júlio. Se eu der 50 eu perco 50, amanhã ele pode vir buscar mais 20.” Era a coisa certa. Então esse sujeito me deixou chateado porque o Rio Branco ele me falou que maltratou muito ele e não havia direito dele fazer isso com o Dr. Rio Branco. Porque era um homem íntegro, sério, e eu não aceitava aquilo de jeito nenhum. E a partir daquele instante que eu fiquei sabendo disso eu falei na cara dele: “Rubens,” chamava-se Rubens Bierrenbach, “Rubens, por que você fez isso?” Ele era estúpido.
P - Ele era o quê? Militar?
R - Ele era major da Aeronáutica.
P - Aí o senhor perguntou para ele e o que ele respondeu?
R - Ele simplesmente falou para mim: “Olha, esses detalhes não estão no serviço de cabelo. Não toca nisso aí.” Mas eu passei a ter um ódio por aquele homem tão grande.
P - Mas o senhor parou de servir ele?
R - Não, ele continuou se servindo, mas logo ele morreu.
P - Você atendeu o Rio Branco Paranhos depois que ele saiu da cadeia?
R - Quando ele veio da cadeia um dia, nunca esqueço, a senhora dele trouxe ele da cadeia. E eu sempre perguntava pelo filho, pela filha, porque tem uma filha, a Vânia, que ela é Ministra do Tribunal do Trabalho aqui em São Paulo. E tem um filho médico que teve ontem aqui, Sérgio Paranhos. Eu tive muita amizade, eu frequentava a casa deles, eu gostava muito do Rio Branco porque ele ajudava todo mundo, ele não admitia que um operário fosse mandado embora. Uma vez o empregado do bar foi mandado assim a tapas por um português aí, e eu falei: “Dr., esse cara não pode mandar assim” “Manda falar comigo.” O português entrou pelo cano, deu uma nota para o empregado. E tinha que dar. Ele era um defensor das pessoas boas, era não era pilantra. Era bravo, muito bravo. Aí um dia: “Como está seu pai?” “Julinho, não deu para ver.” Sabe como é, o filho médico é aquela história. Um dia aparece no salão com a sua senhora, que está viva até hoje, está esclerosada, aparece no salão aqui e apareceu ela segurando ele, era um homem forte. Aí eu perguntei para ele: “Dr., o senhor apanhou?” Ele não me respondeu. Apesar da amizade que a gente tinha, é muito difícil chegar nele, muito difícil. Mas nós éramos muito amigos, ele gostava de mim e eu gostava dele, ele era sincero comigo e eu com ele. Mas ele, nada. Mas nem precisava falar, do jeito que ele chegou não tinha o que falar, que ele não tinha apanhado. Ele num ano voltou totalmente diferente, porque se eu fico preso durante um ano se ninguém mexer comigo não vai acontecer nada, vou ficar mais velho um ano só mas o negócio dele deve ter sido muito feio. Aí ele começou a ficar doente, começou a dar problema na cabeça, aí ficou internado aqui, mal de Parkinson. Eu sei que ele só viveu no hospital, morreu faz muitos anos atrás já. Eu acredito que essa morte dele, ele era muito forte, uma pessoa que se alimentava muito bem, comia muito bem, tomava o seu vinho, era um cara que sabia viver, ganhava muito dinheiro, mas não esnobava por ganhar aquele dinheiro, sempre teve a família bem, tinha o seu carrinho e tal, mas não mostrava. Esse é um dos caras que estão gravados na minha cabeça e não sai mais.
P - O Agenor Parente, você conhece?
R - Conheço. Esse eu conheço.
P - Que herdou o escritório dele.
R - Que é sócio dele e tinha, o Almir não era sócio, o Almir era office-boy quando eu ia lá, o Almir Pazzianoto. Porque o Rio Branco Paranhos era advogado do Sindicato dos Metalúrgicos. Ele foi eleito deputado, muito votado. Mas como falavam dele mesmo, ele era uma pessoa tão séria, ele não era... e defendia aquilo que ele achava que era certo, e eu que não entendia nada de política achava que ele estava certo. Eu achava, que eu não entendia. Eu tinha todas as partes, tinha mais as partes do contra, dos que a favor da ditadura dos que dos outros, os outros sumiram. O próprio Walter Avancini, era uma pessoa que ele defendia, ele era contra a ditadura e ele falava no salão, discutia com as pessoas, não tinha medo não, o Walter enfrentava. Teve um sujeito Antônio Rubens Moreno, que eram amigos dele, inclusive, o Rubens Moreno, que morreu faz pouco tempo jogava baralho junto com o Paulo de Grammont, falecido em desastre de automóvel em novembro de 1998, esse da Globo, que está velhinho, tem o nome dele aí, o senhor Abreu Noronha, Abreu não sei o quê Noronha. Jogavam juntos, se tornaram amigos, mas na parte política não, porque o Moreno defendia muito, ele achava que estava certo, aquela coisa e tal. O Avancini era contra, o Avancini era, olha, uma pessoa daquela mesma. É outro cara que eu admiro muito, porque, eu via, era tipo o Rio Branco Paranhos, amigo dele.
P - E o Geraldo Vandré você chegou a conhecer?
R - Geraldo Vandré foi meu freguês muitos anos.
P - Ele morava na esquina?
R - Ele morava no prédio que eu tinha o salão, eu me lembro até quando foi preso.
P - O senhor lembra?
R - Lembro. Lembro porque ele descia, ele morava no último andar do prédio.
P - Isso era aqui na Barão de Tatuí?
R - Barão de Tatuí esquina com Alameda Barros.
P - Aqui pertinho então.
R - Aqui encostado. Ele morava aí e tinha um trio chamado Trio Irakitan, que o acompanhava, e esse trio não saía do salão, estava sempre no salão. E o Geraldo Vandré toda hora cortava cabelo, era uma pessoa muito inteligente, muito séria, dizem que ele agora está meio matusquela, mas não era matusquela não. Não tinha nada de matusquela, era um cara muito sério, falava pouco, muito pouco, escutava mais do que falava, mas aquilo que falava era certo, ele não falava besteira, esse foi meu freguês muito tempo, o Geraldo Vandré.
P - Jorge Amado também era.
R - Ele vinha aí, vinha alguém no prédio do Geraldo Vandré que ele visitava, ou era amigo ou era parente. Então nem sabia que era Jorge Amado. Um dia um freguês me falou que era Jorge Amado. Então ele seguiu muitas vezes comigo, cortava o cabelo e aparava o bigode, várias vezes, não foi uma vez não, muitas vezes.
P - O seu salão vivia cheio?
R - Sempre cheio.
P - E o pessoal se conhecia, o pessoal ia lá para bater papo? Como era?
R - Até hoje batem papo, tem muita gente que vem no sábado aqui conversar, tem muita gente, se conhecem, outro dia encontraram-se aqui dois advogados, Eduardo Sabóia, e Moura: “Você lembra que eu quase que te bati?” “Bateu?” “Quando você tinha 17 anos e você 17 anos e estudávamos no mesmo colégio e nós marcamos uma briga para o dia seguinte e depois não brigamos.” Os caras têm 53 anos e se encontraram aqui. Então tem muita gente que até hoje vem aqui e se encontra, naquele tempo era muito mais.
P - Quantas vezes por semana, por mês uma pessoa dessas ia no seu salão?
R - Normalmente uma vez por semana, principalmente de sábado, para cortar cabelo, porque era normal a pessoa cortar cabelo todo sábado.
P - Todo sábado?
R - Todo sábado.
P - E a barba?
R - A barba era todo dia.
P - Mas o pessoal ia todo dia?
R - Todo dia ia fazer a barba porque a barba naquela época tinha um problema, naquela época não existia gilete boa que nem tem hoje, então o sujeito fazia com uma gilete ele precisava de 20 giletes, se ele tivesse uma barba dura não conseguia tirar a barba, tinha que ir no barbeiro. Só quero barbeiro tinha aquelas navalhonas que também machucavam, a gente tinha uma pedra que amolava e tinha um couro. Eu era um artista em barba, em bigode era um artista, hoje eu sou uma porcaria em barba.
P - Por quê?
R - Porque ninguém mais faz barba em barbeiro.
P - E quando o pessoal parou de fazer a barba?
R - Quando apareceu giletes novas, aparelhos de barba bons começou. No início aparelho de barba era ruim porque machucava, irritava a sua pele. Mas quando começaram a aparecer aparelhos bons, barbeiro nunca mais fez barba, os caras pararam de fazer barba porque não iam gastar 10 reais numa barba se ele comprou um aparelho por 1 real e faz 10 barbas, e faz melhor do que o barbeiro.
P - Custa 10 reais. Na época custaria algo parecido com 10 reais?
R - É parecido, a barba era cara.
P - Era cara? Mas como uma pessoa ia todo dia gastar 10 reais para fazer a barba?
R - Podia porque naquela época a situação não era ruim, não existia desemprego, a turma tinha dinheiro ao ponto do cara sentar na cadeira e passar uma loção no cabelo e gastar mais do que custa um cabelo. Hoje o sujeito ao invés de cortar toda semana, corta o cabelo dele a cada dois meses, um ou outro que corta. Naquele tempo o dinheiro corria, existia dinheiro.
P - O Mauro Guimarães corta.
R - Até hoje. Cortou hoje, domingo já está aqui de novo, corta toda semana, tem muito freguês que ainda corta. E não tem mais nada para cortar, mas corta. E o Mauro toda vida foi assim. Então hoje o aparelho gilete que nem a barba dele é uma barba ruim, dura, pele fina e barba ruim, se ele pegar uma navalha está perdido. Ele pega um Prestobarba aí, que é um dos mais simples, se ele pegar aquele Sensor, ele vai fazer uma barba para cima, vai fazer com a navalha para cima, você não consegue, arranca toda a pele da pessoa. Então hoje que ninguém, eu não uso navalha nem para passar no pescoço. Então eu tenho um aparelho que eu coloco uma gilete dentro, cada cliente eu coloco uma gilete, eu não coloco uma gilete para dois clientes, eu não faço isso desde que aparelho de barba foi feito com gilete, eu quebro uma gilete e de uma gilete faço dois, coloco no aparelho e cada cliente eu faço com um. Antigamente não tinha AIDS, não tinha essas coisas, então não tinha problema. Hoje ninguém faz barba em barbeiro, eu faço uma barba só aparada, aquelas barbas de cavanhaque, só aparar porque o sujeito não sabe fazer.
P - E o senhor hoje faz alguma barba?
R - Impossível.
P - Nunca faz barba?
R - Meses e meses, só se o sujeito foi trabalhar e não deu tempo de fazer a barba e se a barba foi ruim, sabe o que eu faço? A senhora não acredita, tem um aparelho ali, eu falo: “Vai comprar um aparelho de barbear na farmácia e faz a barba aí.” Tem muita gente que eu faço assim. “Você faz melhor a barba.” “Faça a barba lá, você não vai gastar 10 reais, não vai gastar nada, e vai fazer a barba bem feito.”
P - Como que era a história dos estudantes que você não cobrava, Michel Temer e outros?
R - Os estudantes era o seguinte, a Casa dos Estudantes, eu conheci muitos. O Michel Temer era o último, tem o Fued, o Fued casou com a filha do Ataliba Nogueira. Que Ataliba Nogueira era meu cliente, eu fiz a barba e o cabelo até morrer. Professor Ataliba Nogueira do Largo São Francisco. Então era Fued, Elias, Adib e Michel Temer, os quatro irmãos. O Fued, o Elias e o Adib acho que se formaram em 58, e o Elias veio para São Paulo, eles são de Tietê, de uma cidade do interior de São Paulo.
P - Eles são árabes?
R - São árabes. E naquele tempo tinha um cliente meu que por coincidência chama-se Jorge Adib, ele faz parte da Globo. E tem o Neder Adib, que era diretor comercial da Globo, diretor da Rádio Capital. Então eu os conheci, e o Michel veio para São Paulo e não podia ficar na Casa dos Estudantes, dormir lá, porque a Casa dos Estudantes era para quem era do interior, entrava na faculdade e morava de graça na Casa dos Estudantes, mas ele não podia. Mas o diretor da Casa, um senhor chamado Márcio Prudente Cruz, delegado de polícia que agora está aposentado, deixou o Michel entrar escondido lá, e ficar morando com os três.
P - Ficou morando?
R - Ficou morando. Só que eles se formaram e não podiam ficar na casa, tiveram que ir embora. Mas antes disso o Adib e o Elias, o Fued não. O Adib e o Elias, como muitos outros, o Ênio Pese, esse Ênio Pese, que é jornalista de televisão, esse era o mais danado que me fazia fiado, o mais duro. Então ele ficava lá em cima, eles faziam muita bagunça lá em cima na Casa dos Estudantes. Eles andavam nus lá em cima, eles jogavam água nas pessoas que passavam. Eles eram terríveis Uma vez tinha um cara da padaria que se chamava Varanda e não deu um barril de chope para eles no dia 11 de agosto, então eles foram lá pegaram o triciclo dele e jogaram na rua. Isso é coisa velha mas é verdade. Aí eles ficavam lá, quando o meu patrão Nicola saía para almoçar descia um para cortar cabelo, cortava cabelo porque sabia que era de graça. Cortava o cabelo dali a pouco descia outro. Mas a gente trabalhava com ficha, cada cabelo era uma ficha. Aí o que eu tinha que fazer, eu cortava dois, três por dia, desses estudantes todos, de graça, não era fiado, era de graça.
P - Por que o senhor fazia isso?
R - Porque os meus amigos não tinham dinheiro, coitados Eram duros. Eu não estavam fazendo aquilo, eles gostavam de cortar o cabelo comigo, o que eu podia fazer? Mas eu tinha que varrer todo aquele cabelo, pegar num saco, não tinha saco plástico, tinha saco de supermercado, de papel. Aí eu colocava todo o cabelo dentro, varria direitinho, para o velho quando chegar não ver nenhum cabelo, porque a gente estava roubando ele para ver se alguém que cortava o cabelo deixava uma ficha. Enchei o cabelo dentro lá e dava para o engraxate: “Benedito, leva longe, mas bem longe.” E um cabelo que não espalha e ele levava longe. Esse era o caso da turma da Casa dos Estudantes. Conheci Almino Affonso, não foi meu freguês. Esse Almino Affonso ia visitar muito lá a turma dos estudantes, era amigo do Múcio, da turma dele, que afinal que era grande orador, ele era muito engraçado, ele falava muito bem. Tem um caso que eu nunca esqueço da vida dele, um dia ele estava falando, tem um bar na esquina e ele começou a falar e se entusiasmou e o caras pegaram e colocaram ele em cima da mesa. Aí ele começou a discursar, mas falava bonito, falava bem. Era muito inteligente, para mim pelo menos, era muito inteligente. Então nessa Casa de Estudantes fora o Michel, o Ênio Pese, tinha muitos mais.
P - E a maioria dos estudantes estudava era direito?
R - Só direito. Casa dos Estudantes era só direito.
P - E ainda existe esta Casa dos Estudantes.
R - Existe até hoje, está lá no mesmo lugar.
P - Mas fica algum estudante lá?
R - Está cheio de cima a baixo, fica porque é gente que vem do interior.
P - O pessoal de televisão começou a vir em que época?
R - Olha, televisão, aí que está o negócio... O Jô Soares eu conheci... toda essa turma começou realmente na Organização Vítor Costa.
P - Organização Vítor Costa?
R - Era o canal 5.
P - Não era a Globo?
R - Não, Organização Vítor Costa.
P - Que ano foi isso?
R - Deve ser 55, 54, deve ter sido nesse tempo. Foi aí que eu conheci, porque os artistas, todas as pessoas da televisão, porque era tudo ao vivo, o Walter Avancini, que é meu freguês há 42 anos, ele já fazia teleteatro, tinha os Três Leões, tinha uma firma Três Leões que patrocinava. Eu trabalhei numa peça com o Avancini, eu.
P - Conta para a gente?
R - Eu trabalhei com o Avancini numa peça que ele fez que era um terrorista, um criminoso e eu trabalhei com ele, raspei o cabelo dele que ele ficou careca na peça.
P - O senhor fazia papel de barbeiro?
R - Não fiz papel de barbeiro, me chamaram como se fosse um carcereiro e raspei a cabeça com uma máquina que eu tenho até hoje, uma hoster americana que tem 45 anos comigo, e raspei o cabelo dele aí, nessa peça. E daí comecei a conhecer artistas e todos os maiores artistas, todos eram do Rio de Janeiro. Toda parte de artista, de futebol, São Paulo não tinha praticamente nada como Galeano Neto, mas teve muitos, Epaminondas. Epaminondas parece que são baianos ou pernambucanos. Eles ficavam no Rio, vieram para ser diretor comercial de São Paulo. Me parece que o Vítor Costa é carioca e o Vítor também, o filho Vitinho, eu acho que é, tenho quase certeza. Ai como eu comecei a cortar o cabelo do Vítor pai, toda a clientela...
P - Veio por ele.
R - Uma parte veio por ele e outra parte pelo Walter Forster. Walter Forster era meu freguês também, muito amigo, Walter Forster.
P - E ele trabalhava na organização?
R - Era o maior galã, o primeiro beijo da televisão brasileira foi dele, Walter Forster, que é de Campinas. Então ele me apresentava um, Araquém Saldanha, Walter D’Ávila, o cara mais gozado que eu já vi na televisão, a cadeira de barbeiro naquela época...
P - Mas eles moravam no Rio?
R - No Rio de Janeiro.
P - O senhor tinha uma cadeira de barbeiro, como era?
R - Existia na televisão, na rádio “Cadeira de Barbeiro”, quem escrevia isso era Aluísio Silva Araújo, era um grande...
P - Humorista?
R - Não, ele escrevia.
P - Roteirista.
R - Então ensaiava na Cadeira, vinha o Guimarães, o Walter Forster e o Walter D’Ávila. Ensaiava eu cortando a barba e eles ensaiando, e o engraxate imitava e fazia, depois aquilo, eles ensaiavam na minha cadeira, tudo certinho, bonitinho. E foi assim que eu conheci Walter Dávila, que vinha, o Chacrinha, o Jô Soares muito pouco tempo. Outro dia eu encontrei o Jô Soares e ele nem me conheceu, no elevador, também tem tantos anos, como é que ia lembrar. O Chico Anísio era magrinho, magrinho, Moacyr Franco, quando ele começou com “Me dá um dinheiro aí”, só que não tinha dinheiro nem para fazer a barba e o cabelo, ficou devendo e também nem pagou. Não tinha.
P - E o Germano Matias, como é a história?
R - Germano Matias até hoje é meu cliente. Germano Matias naquela época era um sucesso fabuloso, era cliente, mas tudo que ganhava ele gastava, tudo. E quando ele chegava no salão era uma farra, todo mundo obrigava ele a cantar, ele era bom. Semana passada ele cantou aqui, coitado Hoje ele está numa situação muito delicada, inclusive a semana passada... faz mais ou menos umas três semanas atrás ficou me devendo cabelo, mas se ele tiver dinheiro ele me paga, se não tiver também me fala. Ele veio outro dia aí, salão cheio de gente, na hora de ir embora, mas ele veio preparado, me deu o cheque, colocou o cheque aqui e foi embora e eu continuei trabalhando, depois fui pegar o cheque para colocar no banco, no cheque estava escrito: “Julinho, você vai me desculpar mas eu estou duro, não tenho dinheiro. Guarda esse cheque que eu estou te devendo 22 reais, quando eu tiver dinheiro eu te pago.” E o cheque ficou muito tempo comigo e muito freguês tirou xerox do cheque, tirei xerox do cheque. Aí foi até engraçado. A semana passada ele teve aqui e pela minha cara você está vendo. Ele cortou o cabelo e ele está numa situação delicada, falou: “Olha, o próximo cabelo eu estou achando que eu não vou poder pagar também, pelo que eu estou vendo, esse aqui fica fiado, mas eu acho que o próximo também fica fiado.”
P - Julinho, você me falou às vezes que cliente teus aqui que você gosta muito. Você tem uma escala aí...
R - Que eu gosto?
P - De pessoas que você gostaram e que não foram mencionadas.
R - Que eu gosto muito, esse André Becks, que me ajudou. Tem um senhor que chama Isaac Chitinaiquen, que já faleceu. Esse Dr. Isaac era um advogado que eu gostava muito dele. Tem muitos que eu gosto, mas ele é um que eu gosto, gostava muito. E ele era advogado, era professor de direito internacional e ele era casado com uma filha do Tabacow, o dono da Tabacow. Era muito amigo meu, amizade de muitos anos, era amigo de todo mundo, não tinha quem não gostasse no salão, era amigo de todo mundo, simples, inteligente, bondoso e ele ficou doente, ele teve um problema, teve um derrame, ficou doente, muito ruim, muito ruim, e não falava, depois ele foi melhorando e um dia ele virou para mim, é uma coisa que eu nunca comentei, falou: “Julinho, eu fui em tudo quanto era dentista e querem me arrancar os dentes.” Ele tinha ficado com a boca torta. Eu falei: “Isaac, vai num cliente meu, o Dr. José Vicente, quem sabe ele dá um jeito.” E ele foi lá no dentista conseguiu arrumar sem arrancar os dentes. E ele foi melhorando, o derrame dele de tão ruim que eu achava que não ia ficar bom, por sinal o primo dele era diretor do Einstein e mandaram um enfermeiro. Então começou a melhorar, melhorar, melhorar, mas eu servindo na casa dele na Rua Bauru, que a senhora dele mora até hoje na Rua Bauru, Dona Míriam. Aí um dia, depois que melhorou, eu sempre cortando o cabelo dele, e ele sempre queria pagar e eu falava: “Dr. Isaac, quando o senhor ficar bom o senhor me paga no salão.” “Mas você está marcando?” “Está tudo marcadinho no salão.” Imagina se eu marquei, nunca marquei nada. Aí um dia eu estou aqui e ele me aparece com o enfermeiro, puxando a perna e tal e ele me disse: “Julinho, é o primeiro dia que eu saio de casa, a Míriam não queria me deixar sair.” “Mas aonde você vai?” “Vou no Julinho.” Aí ele veio aqui cortou o cabelo aqui, quis pagar tudo que devia, eu falei que um filho dele, Cássio, tinha pago tudo: “Mas o Cássio não me falou nada.” “Mas ele não ia falar para o senhor.” Aí começou a melhorar, melhorar e começou a ficar bom, e vinha de carro, ultimamente vinha de carro. Aí quando o Papa esteve a primeira vez no Brasil ele foi receber o Papa representando a Federação Israelita, eu acho que a Federação Israelita, ele era presidente da Federação Israelita. Aí ele veio aqui, veio com o Papa, a comitiva do Papa deu esse quadro para ele. Ele não foi em casa, ele passou aqui e falou: “Julinho, isso aqui é um presente para você.” Ele me deu isso aí. Ele trouxe e falou com outras palavras, era muito fino, muito inteligente. E aí depois ele começou a ficar doente, a ficar ruim, muitos problemas de família, muito nervoso, ele não podia passar nervoso. E aí eu tinha um sofá grande, aí ele vinha fazer a barba todo dia. Ele sabia que eu não fazia: “Julinho, eu não sei o que eu tenho de fazer a barba contigo, você me arranha todo o rosto, mas eu quero vir aqui.” E ele vinha e eu fazia a barba dele e aí ele deitava no sofá. Eu falava: “Dr. Isaac, o senhor está abusando, não deve trabalhar tanto.” Ele ia para a Tabacow todo dia. “O senhor não precisa disso, por que é que o senhor faz isso?” Não deu outra, ele foi embora. Esse realmente... Aí eu fui no velório dele, inclusive conheci esse rabino aí, o Sobel, conheci ele lá, um minuto só, falei com ele. Fiz questão, os familiares ficaram, ele tem um filho chamado Cássio, tem uma filha e uma neta. A filha faleceu agora faz pouco tempo, ainda moça, com 39 anos. Aí depois eu não tive mais contato, a Míriam, a senhora dele que vai no dentista, naquele mesmo dentista e de vez em quando me manda um abraço. E eu gostava muito dele, aos domingos quando ele saía da casa, antes de ter o derrame, ele vinha e fazia a barba, antes disso, e falou: “Julinho, vem comigo agora no bar que eu vou tomar uma caipirinha, você pede uma caipirinha e pede para caprichar.” Ai ele sentava, o Dr. Isaac sentava no bar e para ele todo mundo era igual, tinha frescura não, muito inteligente, esteve representando o Brasil na ONU, um homem inteligentíssimo. Aí ele sentava no canto e ele falava: “Eu quero uma caipirinha mas manda tirar a casca do limão, tira a casca, espreme bem, e coloca pouco açúcar e pinga, não quero vodka, não quero nada.” E ele tomava aquilo com um gosto. Aí ele saía. Ele ficava nervoso porque queria que eu almoçasse com ele e eu nunca fui almoçar com ele. Nunca na vida.
P - Por quê?
R - Porque eu achava que não dava muito certo. Não combinava comigo porque eu achava que eu não conseguia enfrentar uma mesa daquela, a senhora, com o filho, com a filha, com a neta. A filha deu muito problema para ele e tal. Mas não tinha condição. Essa era uma das pessoas. André, esse. Outra pessoa que eu gosto muito é o Vítor dono do laboratório Aché, que eu estava falando conheço de muitos anos.
P - Vítor? Não é Dalmilro o nome dele?
R - É sobrenome dele.
P - Vítor é Dalmiro.
R - Não, Vítor é o sócio dele, o gordão lá. Vítor é o grandão, bem comprido, inclusive montou uma casa para deficientes visuais.
P - Lara Mara.
R - Ele que é o dono, o Vítor, ele que montou. Ele comprou aquele quarteirão todinho.
P - Nós fizemos um baile lá.
R - Não diga O Vítor, lá, a senhora dele é muito minha amiga, tem um filho chamado Jonas, tem outra filha moça, tem uma outra filha, tem duas filhas e um menino, o Jonas. Mas o Vítor é meu freguês de quando era propagandista de remédio, ele morava numa pensão na Praça Marechal. Ele saía com uma pasta, vendendo remedinho. Esse é uma das pessoas que eu tenho muito amizade, reconheço muito.
P - Julinho, você me falou uma época que teve uma mulher que estava presa. Como é que essa história?
R - Teve uma vez que eu fui cortar o cabelo de um delegado no DOPS, era ali perto da Estação da Luz e eu cheguei lá para cortar o cabelo do delegado, quem que era? Acho que era o Paulo Pestana, eu não tenho ideia, não estou me lembrando bem. Eu sei que eu estava cortando o cabelo do delegado e veio uma senhora presa, uma moça presa, estava presa lá. E ela me viu e praticamente não quis mexer comigo, mas eu fui falar com ela. Como é que ela se chamava? Eu vou me lembrar. Isso faz tempo. Vou tentar me lembrar, puxa vida Não vou me lembrar. Eu sei que eu estava cortando o cabelo dele e ela veio na mesa e ele gritou e ela estava algemada. Será que era o Paulo Pestana ou o Tito Manheta? Era um deles. Isso faz muito tempo Aí eu peguei e falei para ele assim, depois que ela saiu, eu falei: “Mas Dr. por que isso?” “Mas você conhece ela?” “Não conheço.” Porque eu sempre tive muita segurança até com autoridade, eles gostavam do meu serviço e nunca deixavam de pagar e o meu negócio era ganhar de dinheiro. Logicamente se era um bandido ia ficar ruim eu poderia ir num lugar cortar o cortar o cabelo que ficava ruim para mim. Mas o que eles podiam fazer para mim? Não podiam fazer nada. Eu cortava o cabelo e eles me pagavam. Apesar de eu não gostar muito, não gostar muito, sinceramente não gostava muito, é que eles me mandavam me buscar e naquele tempo autoridade era autoridade, se eu não fosse era um problema para se arrumar. Aí eu falei: “Mas doutor, isso aí.” Puxa Mas eu tenho na ponta da língua essa mulher, eu vou me lembrar. Era loira, de olhos azuis, e ela era israelita, era judia. Ruth, eu lembrei, Ruth. “Não, que não sei o quê, ela fez isso, fez aquilo.” “Mas ela não fez nada.” “Mas se ela está com o cara, essa cara aí é um pilantra, não sei o quê.” “E daí? Ele pode ser e ela não ser.” Eu não conhecia o cara. Vocês acreditam que ele soltou a mulher? Eu terminei de cortar o cabelo dele, era o Paulo Pestana, era ele mesmo, não era o Tito Manheta não, era o Paulo Pestana. E aí eu de tanto falar com ele, ele falou: “Ela vai, mas ele fica.” E ela durante muito tempo, a Ruth, agora não tenho visto mais, mas ela está viva ainda. Então eu consegui enchendo a paciência dele, porque eu achava que aquilo realmente era uma coisa que realmente muito boa. Sinceramente dessa turma eu prefiro não me meter muito, não falar muito porque realmente eu não gostava. Aí eu consegui com ele e ele falou: “Só por você” “Ah, Dr. Paulo, eu não corto mais o seu cabelo.” “Te mando buscar você tem que vir na marra.” “Não venho.” E ele falou muitas vezes isso para mim, me jogou na cara muitas vezes. E realmente ela não tinha nada.
P - Mas nem todos os policiais eram ruins. O Elpídio Reale.
R - Ah, o Doutor Wilson Reali, e o Elpídio Reali pai do Reali Júnior, que foi meu freguês aqui. Realinho Júnior era meu cliente antes de ir para a França e quando veio aqui, faz 15 dias, esteve no salão. Ele não deixa de cortar o cabelo comigo. Eu cortava o cabelo do pai dele. Inclusive eu lhe fiz uma surpresa, eu consegui uma fotografia de 1950, quando o pai dele era secretário de segurança, um freguês me trouxe citando essa possibilidade. O Realinho veio cortar o cabelo e eu mostrei: “Aqui um presente para você.” Ele chorou, quase caiu da cadeira.1950 o pai, o Dr. Elpídio Reali, aquele não existia, era uma moça como delegado. O Wilson Reali, irmão dele, então nem se fala.
P - O Elpídio Reale freqüentou o salão até uma idade avançada.
R - Dr. Elpídio foi até quase à morte, ele morreu com quase 90 anos. Morreu faz dois anos.
P - Vinha de carro?
R - Vinha de carro e encostava o carro aí. Inclusive ele tem uma irmã que mora na esquina com a Alameda Barros em cima do Futurama, que era casada com juiz, Dr. Rui Fragoso, hoje tem um sobrinho, filho da irmã do Dr. Elpídio, é um grande jurista aí, Rui Reale Fragoso, moço ainda. Mas o Dr. Elpídio encostava o carro aqui, conversava com todo mundo, tinha uma cabeça, ultimamente ele não estava escutando muito bem mas ninguém dizia que ele tinha quase 90 anos. Um ano antes dele morrer mais ou menos o Realinho levou o pai na França e a mãe. Levou em cada lugar, lindo e tal, quando chegou me contou: “Meu filho me levou em cada lugar que você nem imagina.” Normadie, onde o Realinho tem a chácara. Era uma pessoa que olhava para ele, cabeça, mas também tem uma coisa, era uma pessoa que também não admitia a ditadura. Isso ele falava muito. Ele metia o pau naquilo lá, não de jeito nenhum, não aceitava.
P - E esse homem que trabalha com o Fernando Henrique, quem é essa pessoa? Da polícia militar?
R - Esse é o Coronel Ditúlio, é muito bom, Coronel Ditúlio, é coronel aposentado, uma pessoa ótima também, muito bom. Ele fez a segurança do Fernando Henrique da parte da Presidência da República, Marco Aurélio Ditúlio. Muito boa gente, esse eu tenho a certeza não é homem de não fazer coisa errada. Tem outro também que era colega de turma do Fernando Henrique, é Otaviano de Fiore, esse é meu freguês. Parece que é Secretário Geral do Ministério da Cultura, atualmente. Chama-se Otaviano, era da Editora Abril, até hoje ele vem aqui.
P - Jornalista o senhor tem um monte, além do Mauro Guimarães que o senhor já citou.
R - Walter Fontoura. Walter Fontoura eu servi muito tempo.
P - Reali Júnior, já citado.
R - O Walter Fontoura quando veio para São Paulo, ele veio para o Globo, era do Jornal do Brasil, parece que tem uma rádio lá numa cidade bonita lá do Rio de Janeiro perto do Rio de Janeiro. Como é que chama?
P - Teresópolis.
R - Teresópolis. Gostei muito do Sr. Walter como pessoa, servi ele muito tempo em casa, muito tempo. Deixei de servir porque para mim era impossível servir, porque eu ia na casa dele, ele sempre muito ocupado. Conheci a senhora dele, conheci as duas filhas, uma filha inclusive namorava o filho do Mauro Guimarães, perdeu o menino num desastre, filho de 16 anos, 17 anos. Também uma pessoa muito boa. Uma pessoa que também foi meu freguês foi Procópio Ferreira, muito tempo. Era uma boa conversa, era gozado também. Era difícil fazer a barba dele porque ele tinha um problema nas aqui costas então a cabeça dele não ia para esse negócio aqui, então ele tinha que fazer a barba sem deitar a cabeça. Era uma dificuldade Nossa Senhora Esse foi meu freguês também. Tem mais. Jornalista tem um atual aí, o James Cristaldo, que vem aqui cortar cabelo, tive muito freguês jornalista. Que por sinal é uma turminha que eu sempre gostei muito porque eu sempre conversava, eles nunca foram de.. conversavam muito. Aqui jornalista teve muito, o Ênio Pese também era conversador, mas já não tinha uma segurança assim... ele modificava muito as ideias dele. Ele mudava muito, os outros não. O Mauro é meu cliente, Mauro inclusive é compadre do Reali Júnior, fez até uma festa sábado retrasado para o Reali. Mais de 30 trinta jornalistas na casa dele. Esse foi um desses. Deixa eu ver quem mais. Teve mais.
P - O Mauro foi diretor do Jornal do Brasil em São Paulo.
R - É.
P - O Mauro Guimarães.
R - Foi diretor da Organização Vítor Costa, acho que ganhou eu acho que foi sete ou oito Roquete Pinto, esse que esteve hoje aqui, Mauro Guimarães. Fernando Viera de Mello naquela época, Ney Gonçalves Dias também é meu freguês. Este também é meu freguês.
P - E todos esses fregueses começaram a serem seus fregueses por quê?
R - Um mandando o outro.
P - Foi assim que fez?
R - “Vai lá no Julinho. Vai lá.” O Mazzaropi, Araken Saldanha que trabalha em todos os filmes até hoje, é meu freguês, todos os filmes deles... Tem gente que vê ele aqui: “Oi, eu vi você num filme.” Porque a Cultura passa todo domingo um filme do Mazzaropi. “Eu vi você no cinema.” Porque ele pintou o cabelo e está quase igual. Danado, acho que está com 80 anos e parece que está com 60. Então o Mazzaropi pouco tempo, ele morava perto da São João, ele era muito gozado, a turma pedia para ele imitar como ele andava, imitar como ele andava nos filmes e ele imitava no salão. O próprio Galeano Neto também era muito... O Silveira Sampaio, o produtor dele chamava-se Aldo Viana, que me parece, me disseram mas eu não tenho certeza que é o pai do Galvão Bueno, mas não tenho certeza, me contaram isso, mas eu não tenho certeza.
P - Esta história toda de fazer entrevista nasceu por causa da ida de um jornalista a La Coruña, não foi?
R - É.
P - Quem era esse jornalista?
R - Foi o jornalista Luiz Roberto, da Globo, ele é repórter esportivo, locutor esportivo, ele mais os jornalistas, ele mais o Osmar Garrafa, que é meu freguês aqui até hoje. Então foram se hospedar lá num hotel, chegaram no hotel e eu falei: “Eu tenho muito parente lá na La Coruña. Cheio de parente lá, Pita.” Eles deram risada. “Esse cara não conhece nada.” Aí eles se hospedaram no hotel, quando chegou lá o hotel era “Maria Pita”. Então eles trouxeram um monte de bloquinho, envelope, falaram com parente que eu tenho lá, parente que se lembrou de mim, uma prima minha. Ele não acreditava, quatro estrelas, é onde fica o hospedado o Djalminha, o Mauro Silva, estão nesse hotel em La Coruña. Isso foi agora.
P - E você voltou à Espanha, não foi?
R - Não voltei.
P - Nunca voltou?
R - Nunca voltei.
P - Nunca mais te deu vontade de ir?
R - Agora, ficou muito marcado, muito machucado, eu não sei...
P - A sua lembrança é uma lembrança...
R - Tenho, acho que eu sei se eu for naquele lugar tudo não adianta agora estar tudo bonito tudo isso, aquilo. Agora eu não sei se toda aquela beleza agora, se todas aquelas pessoas que estavam numa situação difícil estão bem.
P - E a colônia espanhola você nunca frequentou?
R - Nunca frequentei. Nunca frequentei, não sei, não é que tenho nada, eu me naturalizei, sou naturalizado brasileiro nesses, 65 anos, tem até o certificado ali da naturalização. Eu não tinha lembrança boa, quem passa o que a gente passou, agora eu ia lá esnobar? Eu não tenho para esnobar.
P - E você teve clientes espanhóis nesses anos todos?
R - Cliente espanhóis muito poucos, descendentes de espanhóis muito, ainda tenho. Eu tenho também, como de diz, eu vou lembrar o que a gente passou eu poderia ir até na Espanha se o lugar não fosse a minha terra. Porque só me lembrar as coisas que_a minha mãe me falava, meu pai me falava, porque a gente era uma família muito unida, eu sempre gostei muitos dos meus pais, eu_sem_re respeitei muito meus pais, fiz tudo, eu quando o meu pai faleceu de câncer, o meu pai morava com a minha mãe aqui. Então a minha mãe continuou morando sozinha. E a minha mãe um dia, eu cheguei lá, coitada, achei ela jogada no chão: “O que é que foi, D. Júlia?” “Eu quebrei a perna.” Eu chamei um médico e tal e levamos a minha mãe para a Santa Casa. Como eu conheço tanto médico atenderam a minha mãe e operaram a minha mãe. Depois disso outra vez foi fazer uma besteira e quebrou do outro lado, vai para a Santa Casa sempre me atenderam bem, mesmo tendo conhecidos mas sempre me atenderam bem, eu sempre tive sorte no hospital e com médico. Aí ela veio para a casa o médico disse que ela não ia andar, o médico lá, e o outro freguês meu disse: “Júlio, ela vai andar, vai demorar seis meses mas vai andar. Mas ela estava com diabete.” Eu ia almoçar todo dia lá ela fazia comida para mim e para ela, sentava na mesa, meus filhos, ela ia para casa cedo meus filhos adoravam ela. E um dia eu chego lá, ela estava com a porta aberta e eu vi ela passando a mão sobre o fogão. “D. Júlia?” “Eu estou com um mal.” E começou a chorar: “Eu não estou enxergando quase”. “Eu acendo o fogão.” E aquilo me machucou: “Pode sentar.” Sentei, esquentei a sopa, dei comida para ela, aí eu peguei e liguei para a minha casa, falei para a minha mulher: “Prepara lá aquele quartinho que tem lá vazio porque esta noite a minha mãe vai embora para casa.” Eu tinha um carro, tinha um Passat 77, peguei a minha mãe e levei para a minha casa. Ela teve o quartinho e ela morou cinco anos comigo. Ela morreu no dia 24 de dezembro, fez agora dia 24 dois anos, de 95. Levei para a minha casa então a minha mãe viveu cinco anos maravilhosos. Minha mãe nunca mais na vida ficou doente, a diabete dela de 200 e 300 ficou em 70. Nem remédio ela tomava, nunca mais teve nada. Enxergava pouquinho, mas aquele pouquinho era suficiente, no quarto que tinha, tinha um banheiro perto, você sabe como que é, pessoa de idade quer ter o banheiro perto, então ela tinha tudo. A minha mulher ia dar comida direitinho, o que ela gostava, toda hora, então ela viveu cinco anos maravilhosos. Quando foi no dia 24 de Natal, levantei de manhã para vir trabalhar, eu sempre trabalho, no dia de Natal eu trabalho. E ela falou: “Filho, eu não estou bem.” “O que foi Dona Júlia?” “Eu caí.” Pena, “Aconteceu alguma coisa?” “Não.” Estava doendo muito o estômago. “Você quer ir no médico?” Quando ela falou: “Quero ir no médico.” Aí trouxemos no médico, chegamos lá, peguei já um médico aqui na Santa Casa, vim aqui avisar os fregueses que não ia trabalhar e voltei lá. O médico já me disse, meu filho, levaram para a mesa de operação. “Por quê?” “Levaram porque estourou uma úlcera.” A minha mãe durou cinco dias. Então isso tudo, meu pai também ficou internado muito tempo com câncer. E isso tudo me deixou muito, porque a gente vivia muito bem, eu brincava muito com ela, toda hora, vai no quarto, o meu filho mais velho ela adorava, os dois, mas o mais velho puxou mais o meu jeito, ela agarrava ele, ficava todo dia agarrando o neto, meu filho é grandão, quase dois metros de altura. Eles brincavam muito com ela, meu filho menor chamava ela de madonna porque ela tinha o cabelo muito branquinho. Brincavam demais com ela, se eles não brincassem achava que estava alguma coisa errada. Então realmente eu tive muito com os meus pais, eu fui muito ligado como sou na minha família. Não é que eu quero dar um puritano mas realmente eu sou, eu gosto muito da minha casa. Eu já sou casado faz 37 anos.
P - Você não vem mais de carro para cá?
R - Eu fiz o seguinte: eu tinha um carro e me enchia muito andar de carro, peguei e vendi o carro. Aí um dia um senhor aqui tinha um fusca aqui que diziam que era lindo de morrer: “A minha senhora não pode guiar mais.” Então, eu peguei e comprei esse fusca. O Fusca 80 com 1200 quilômetros, guardei nessa garagem dessa casa, ele ficou dois anos e meio sem eu usar, não usei. O carro fica aí, o engraxate ia lá ligar toda hora. Aí um dia eu cismei: “Vou vender isso aí.” Eu venho de ônibus, eu adoro, pego o meu ônibus as seis e 15 da manhã, venho sentado, tenho reclamação de ônibus que é uma coisa lógica, eu não entendi porque até hoje ônibus tem um degrau tão alto. Qualquer pessoa que vai entrar no ônibus vai ver isso, moço, velho isso é impossível.
P - Você não sabe até hoje?
R - Não sei.
P - Porque ele é montado em cima de um chassi de um caminhão, é por isso. O chassi não é de ônibus.
R - Mas está errado.
P - Está errado há 30 anos.
R - Porque eu estou vendo gente caindo, eu estou cansado de empurrar gente de idade para cima, daqui a pouco alguém vai ter que me empurrar também, já está difícil para mim. Então eu pego o ônibus de manhã, venho sentado porque não tem ninguém.
P - Atualmente o senhor mora aonde?
R - Eu moro na Brigadeiro Luís Antônio, Bela Vista, pego o ônibus na porta que me deixa aqui na Angélica, Vila Buarque.
P - O Júlio conhece toda a redondeza aqui sabe tudo o que tem aqui em volta. O apartamento que tem o Sílvio Santos em cima da Igreja Universal.
R - Tudo que se possa imaginar. Eu conheço tudo.
P - O Luciano Calegari.
R - O Luciano, o Régis Cardoso, o Luciano é meu amigão, é um homem de trabalho, sabe? Um homem muito esforçado.
P - E o Dênis Carvalho e o Antônio Ramos também.
R - O Tony Ramos e o Dênis Carvalho eu vou contar uma história que eles podem ter esquecido mas se contar na minha eles não se esquecerem. Eu tenho um cliente que também tem 40 anos de cliente, que se chama Henrique Martins. Esse Henrique Martins, ele era ator, ele fez “Direito de Nascer”, “Sheik de Agadir,” ele é meu amigão, só esse não envelhece, não entendo, está sempre a mesma coisa. É diretor de novela da SBT agora, mora aqui na Alameda Barros. Ele cortava cabelo comigo. E o Tony Ramos e Dênis Carvalho faziam dublagem, eles começaram com dublagem, ele, o Araken. Eles freqüentavam o salão, eles e o Henrique. E um dia o Dênis falou: “Fala com ele que nós queremos ser artistas, fala com o homem e tal. O homem é fogo e tal.” Um dia eu falei pro Henrique: “Pô, Henrique, dá uma mão para eles poderem começar.” Bom, ele deu uma mão, a primeira peça deles aqui, é quase certeza que a primeira coisa que fizeram, fizeram uma peça chamada “Os rapazes da banda,” é antigo isso aí. Então aí que eles começaram. E o Dênis, virou amigão mais do que o Tony.
P - E o (Caselé?)
R - O (Caselé?) começou a melhorar na vida de dinheiro mas também vivia quase sem dinheiro, também não tinha cabelo, tinha cavanhaque ele vinha sem dinheiro, vai fazer fiado, o meu negócio era fazer fiado. Então esse Denner foi meu freguês muito tempo, esse costureiro. O Denner era muito esquisito, esse era muito esquisito mesmo. O Jocey Leão não. O Jocey Leão, uma vez tinha um freguês enchendo a paciência dele na São João, brincando, chamando ele de bicha, ele pegou o cara, jogou ele para cima e bateu a cabeça no teto, machucou a cabeça do cara porque ele ficou com uma raiva. Ele jogou para cima. Quem mais eu posso me lembrar agora?
P - Você disse também que as pessoas deixavam o carro com a chave no contato.
R - Na São João, tinha um deputado na época se chamava Murilo Souza Reis, não sei se está vivo, se está morto, meu cliente, ele deixava o carro importado na porta, todo mundo, a chave ficava no contato, na Avenida São João. Ninguém tirava a chave não, conversível, carro conversível com chave no contato, ninguém tirava, ninguém roubava.
P - E quando o pessoal vinha cortar cabelo andava de chapéu também? O chapéu já não andava mais.
R - Chapéu não andava muito, que eu me lembro pouco freguês, tinha alguns mas muito poucos. Cautídio Sampaio também foi meu freguês quando foi deputado. Esse também eu devo. Esse uma vez estava no salão, essa é uma história que eu também não esqueço. Eu estava lá no salão cortando o cabelo dele, e Amaury Kruel que foi meu freguês, era comandante do 2º Exército, depois veio o Sizeno Sarmento, foi antes ou depois.
P - Depois.
R - O Amaury Kruel porque eu cortava o cabelo da turma do Adhemar de Barros e eu ia cortar cabelo lá na Rua São Luís, e tinha a Dona Ana.
P - Dr. Rui?
R - Dr. Rui.
P - Dona Ana Capriglione, que era a amante do Adhemar de Barros, cujo apelido era Dr. Rui.
R - Eu ia lá no apartamento, foi lá que eu conheci Amaury Kruel. E o Cautídio era deputado e secretário de segurança.
P - Ele era coronel da PM?
R - É. Então o Cantídio, uma vez estávamos conversando e tinha o jornalista Correia Neves, que hoje é jornalista em Franca, é dono do jornal “Comércio de Franca”, é meu freguês até hoje, vem de Franca para cortar o cabelo aqui. Parece brincadeira, ele vai para Ribeirão, pega um avião em Ribeirão e vem cortar o cabelo aqui. Parece brincadeira mas é sério. Então eu estava conversando com ele lá: “Pô, Correia, estão construindo um prédio lá pegado ao seu apartamento e tal, gostaria de comprar um apartamento.” O Cantídio Sampaio falou: “Pode comprar. A entrada eu dou e as primeiras 20 prestações.” E eu comprei esse apartamento que a minha mãe morava, ele que me deu.
P - E olha que o Cantídio Sampaio era, esse era da ditadura mesmo.
R - Da ditadura, ele é terrível, foi secretário da segurança. Ele falou: “Pode comprar.” Mas o meu salão era lugar de político, só tinha político, aí eu tive que ir para a rua, eles ficavam cortando cabelo e depois ficava conversando, batendo papo. Eu ia embora e largava. Lá tinha cinco barbeiros, manicure, engraxate, o salão era muito grande, tinha muito cliente.
P - E briga, teve briga de cliente dentro do salão?
R - Briga teve uma vez. Teve uma vez uma briga, não, teve duas, teve uma vez uma briga muito chata, eu só lembro o nome de uma pessoa, do primeiro, do segundo eu não estou lembrando. Eu sei que entrou uma pessoa e falou para ele assim, se encontraram, eram formados na mesma Casa dos Estudantes, e o que estava cortando o cabelo era fiscal do trabalho e o que chegou que eu não consigo me lembrar direito mas vou lembrar direitinho também o nome, acho que está até vivo ainda. Aí brincou, o que chegou chamava-se Azamir Borges Teixeira, que estava na cadeira, advogado e fiscal do trabalho. Ele virou-se assim: “Ó, ladrão, como que vai?” Aí o cara virou-se assim: “Eu posso ser ladrão mas não chifrudo.” Aí deu uma briga e tal: “Você é um ladrão, está roubando, está ficando rico, é fiscal do trabalho.” Aí ele virou e disse: “Tem uma coisa eu estou com a tua mulher lá na cama em Ubatuba na cama e estou falando com você, eu acho que é melhor ser ladrão do que chifrudo.” Aí deu um pau, Vixe Maria Que briga A tapa, foi uma briga feia. Mas teve mais, teve mais uma, eu quero me lembrar, teve uma violenta lá. Teve um caso interessante. Um dia, eu estava cortando o cabelo num sábado do Rio Branco Paranhos, porque o Rio Branco Paranhos não tinha cabelo, quase nenhum. Aí entrou um sujeito lá grandão, vinha sempre com o motorista, encostava o carro na porta e fazia a barba com o barbeiro da primeira cadeira, o Pedro, que era um artista para fazer barba. Fazia barba até com navalha cega. E o cara encostava lá, como é que chama, o cara era representante das indústrias, era um cara famoso. E o Rio Branco estava cortando o cabelo assim, aí o velho sentou e estava fazendo a barba, ele não podia deitar muito a cadeira porque tinha falta de ar, enfisema, e o barbeiro fazia quase a barba dele em pé. Aí o Rio Branco quando foi tirar os óculos porque estava lendo os jornais e viu o cara, para quê? O Rio Branco levantou com o pano e tudo e foi lá xingar o homem: “Seu pilantra, ladrão, você roubou os funcionários.” Tinha qualquer coisa de Varig. Ele defendeu e ganhou a causa dos funcionários da Varig, era muita coisa no Supremo. E o cara sonegou os negócios do cara e não pagou. Mas chamou o diabo daquele homem, o Rio Branco era um tampinha desse tamanho e o homem era um monstro. E foi duro para não deixar o falta de ar lá não bater no baixinho, e o barbeiro que era muito forte conseguiu livrar. Essa também foi uma briga muito feia. E o Rio Branco: “Eu não venho mais nesse salão, esse canalha, cafajeste.” E o Rio Branco era uma pessoa muito séria, por isso é que eu digo. Uma outra pessoa que eu também devo muito, se der tempo, é um médico que operou também, eu tenho muitos médicos aqui. Eu tenho o Ivan Ferrareto, que é meu freguês, um grande ortopedista, é um dos melhores, dizem que é um dos melhores. E eu fiz ontem sete anos eu tive um problema, um mês eu comecei a emagrecer e perdi 36 quilos num mês. Aí médico daqui e manda fazer exame e tal. Aí veio um médico freguês meu aqui e falou: “Eu vou te levar para o hospital, vou te operar, vamos abrir dentro para ver o que é que tem, deve ter alguma coisa.” Enquanto isso um freguês meu veio fazer a unha e não me achou, um médico, Eduardo Costa Lima, chefe da anestesia das Clínicas. Aí a manicure falou: “Olha, o Julinho vai ser operado amanhã.” Aí ele pegou e ligou para a minha casa: “Você não ver ser operado nada, você vai vir aqui nas Clínicas.” E me levaram para as Clínicas, meu filho me levou. E um médico chamado José Lorezan me examinou e tal. Eu estava com um tumor no intestino e ele me operou com 36 quilos, me atendeu, me operou, fez tudo, operou até minha mulher, a minha cunhada. E eu devo a vida a esse cara porque realmente o outro médico não ia me salvar. Eu tenho certeza Do jeito que eu estava: com anemia profunda, me tiraram 40 centímetros do meu intestino, com 36 quilos, saí do hospital com 32. Esse homem realmente, devo a vida também. O Sodré também foi meu freguês, o Abreu Sodré, aqui, faz pouco tempo. Deixei de servi-lo porque eu não quis mais servi-lo na casa dele. Eu cortava do Ditúlio, o coronel que trouxe, o Ditúlio era secretário dele no governo Sarney o Sodré era ministro do exterior e o Ditúlio era o secretário dele. Aí o Ditúlio me levou para cortar o cabelo dele e eu cortei o cabelo dele muito tempo, mas eu perdia muito tempo com ele para cortar cabelo na casa dele, acho que na Rua Equador. Aí um dia eu falei com ele quando saí do hospital, aí ele veio aqui umas duas vezes mas viu que vinha tanta gente e ele desistiu. Mas também não conversava muito porque não era de conversa. Ele sentava mas não falava, dificilmente, não abria uma palavra. Mas o quê? Só eu que falo.
P - Hoje em dia como é...
R - Só eu que falei, se eu não falei besteira.
P - Conta para mim um pouco o seu dia-a-dia, como é?
R - Bom, o meu dia-a-dia, eu adoro esta profissão, eu gosto, gosto mais daqui do que da minha casa. Para mim isso aqui é a minha casa, eu gosto, apesar de gostar da minha casa mas eu, quando tenho que ir embora para a minha casa é ruim, não vejo a hora de vir para cá. Porque eu me sinto bem, eu tenho uma freguesia muito boa, muito amiga.
P - Quantas pessoas hoje em dia o senhor atende por dia mais ou menos?
R - Olha eu atendo muitas pessoas. Fora as que eu atendo, vem até aqui que eu atendo menos de 20 não vem. Tem muita gente que vem bater papo, vem fazer a unha, vem engraxar. Então de vez em quando vem aqui.
P - Então o senhor vem aqui 6 e 15 da manhã?
R - Chego 6 e 15 da manhã, sempre tem alguma coisinha para fazer. E hoje o papo é mais difícil do que antigamente, porque hoje a situação está muito difícil. Porque faz pouco tempo, de três anos atrás, a turma conversava de política, de futebol, de mulher. Hoje só fala problema econômico, não se fala outra coisa: não estou vendendo, não estou pagando, estou endividado. Então realmente a conversa mudou muito.
P - Você falou até de cliente que deixou de pagar. Você falou outro dia de um sujeito que você nem podia imaginar que pediu para você esticar um cheque.
R - Tem vários que eu nunca na vida ia imaginar. Tem clientes aqui que eu nem imaginava que a pessoa, tem um dentista aí que eu nunca ia imaginar, esse não me deu cheque: “Julinho, eu não posso te dar cheque porque não tenho cheque.” Dentista, eu tenho muitos comerciantes, muitos industriais que fecharam. Teve um caso de um cliente aqui esses dias chegou todo feliz porque o filho dele, era o baile da formatura, filho dele médico em Sorocaba, ele falou: “Julinho, me dá uma aparadinha no cabelo para a formatura do Rodrigo, depois eu venho co__a`_” Aí ele pegou deu uma arrumadinha e voltou para cortar. E falei: “E aí como é que foi a festa?” “Foi bem, mas agora eu estou com um problema, Julinho.” “Qual o problema?” “O problema é que o Rodrigo tem que prestar concurso para fazer residência, só que a faculdade não me libera o diploma porque eu estou devendo 15 mil na faculdade.” 15 mil na faculdade de medicina Então hoje eu só escuto isso, fregueses que eu nunca imaginei na vida que ficasse devendo ficam me devendo. Eu tenho muito freguês rico que ficou pobre, muitos, não é um só não, são muitos. Só deve, não paga. Tem cara que fala assim: “Júlio, eu não vou te pagar porque eu não tenho dinheiro.” É o que eu digo, antigamente a conversa era maravilhosa.
P - E hoje é isso?
R - A senhora está vendo, tem um futebol hoje, tem a decisão do Palmeiras com o Vasco? Ninguém falou de futebol ontem, cheio de palmeirense aqui mas ninguém falou do futebol. O sujeito não está com a cabeça no futebol, ele está com a cabeça cheio de dívidas, cheio de problemas. Então não fala em futebol. Política? Ninguém está falando do Fulano, do Beltrano, ninguém fala mais nada. Falava de futebol antigamente, falava desse, falava daquele, aquele é pilantra. Agora não fala mais nada, só se fala que a situação está ruim, que não vende, é isso. Não tem um. Eu não consigo sentar um na cadeira... o único que eu consegui é um que está na revista Veja que estão dizendo que é o homem de 30 milhões de dólares, está na revista Exame de hoje. Ele esteve hoje aqui cortando o cabelo. Mas está todo mundo devendo, só tem um?
P - Ele devia dar um pedaço desses milhões para ao resto.
R - Mas se eu tinha 35% da minha clientela era de gente de classe média alta para cima e tínhamos uns 2 ou 3 que... Agora não, agora eu tenho 90% de classe baixa, endividada, 5% mais ou menos e 5% rica. Hoje o rico não é nem quem tem imóvel, eu vejo aqui. Então tem uma experiência, eu tenho 10 imóveis, os 10 estão vazios, só que tem o IPTU para pagar, aonde o cara vai buscar dinheiro para pagar? Não vai.
P - Tem IPTU e tem condomínio.
R - Tem condomínio. Hoje o papo do salão... Eu adoro aqui porque eu me divirto, escuto um monte de abobrinha, ontem, antigamente a turma falava muito de mulher, sabe como é, só barbeiros. Agora ninguém fala mais em mulher, que mulher Fala nada.
P - Mas também os caras já passaram da idade.
R - Mas tem gente moça. Mas eram os velhos que falavam antigamente, eram eles que contavam abobrinha.
P - Agora vamos falar um pouco assim...
R - Será que eu saí bem?
P - Eu queria falar agora pro futuro. O que você deseja para o seu futuro.
R - Olha, para o meu futuro... eu já sou aposentado faz tempo, recebo pouco mas sou aposentado. Agora para o futuro meu eu queria que um dos meus filhos seguisse a minha profissão.
P - Mas eles tem interesse?
R - Não tem. O menor eu estou insistindo o máximo porque eu tenho uma fortuna, na minha mão eu tenho a minha freguesia. É uma coisa que não existe, apesar de tudo não existe. Eu queria que um filho meu fosse barbeiro, eu estou insistindo e estou quase convencendo o menor. O maior não porque o maior é muito elétrico, não quer parar, gosta de... o outro não, o outro é mais ajeitado. Eu estou tentando, ele sempre achou que essa profissão não é uma profissão boa. Antigamente essa profissão era muito mal vista, muito, barbeiro: “Ih, barbeiro é pilantra.” Só se falava nisso. O meu futuro é isso, eu continuar trabalhando pelo menos até os 85 anos que eu quero, que eu adoro a minha profissão, gosto demais, faço o serviço com gosto. Eu gosto, pegar uma tesoura. Eu estava no hospital operado e vi um barbeiro cortando o cabelo dos pacientes e eu quase fiquei louco. “Você está matando o cabelo dele, não pode” Aí o barbeiro falou para mim assim: “Ele está doente mesmo” “E daí que ele está doente, vai ficar com o cabelo mal cortado?” Então eu gosto do serviço bem feito, não vou falar mal da profissão dos outros mas vejo uma coisa errada eu já reparo. E eu estou cansado de ver.
P - E o senhor corta cabelo aonde?
R - Eu mesmo que corto, sou eu mesmo que corto. Eu corto e aqui de trás não dá então eu peço a manicure para dar uma tesourada aqui. No resto eu mesmo que faço. Quem cortava o meu cabelo era o meu pai e cortava muito bem
P - E você não tem auxiliares há quantos anos?
R - Auxiliares, não tenho há muito anos. Quer ver uma coisa, 10 anos. Eu não sou a favor dessas frescuras, desses cortes aí. Eu sou a favor do cara pegar um pente, uma tesoura e cortar o cabelo. E isso que o cara faça direitinho, não vem com maquinário, não vem com história, a tesoura e o pente. Faz na minha frente para ver como ele faz. Entende? Se eu vou colocar um oficial desses onde é que eu vou achar? Não tem.
P - Acabou?
R - É o tipo de jeito, você vai no salão e não tem oficial, não existe. Hoje, no seu caso, dá uma olhadinha na pessoa com o cabelo cortado, uma coisa que só barbeiro antigo e bom que sabe disso. Se você vir uma pessoa com o cabelo cortado atrás e for quadrado e tiver uma risca, esse não é barbeiro. Isso aqui é para dar uma disfarçada, acompanhar o corte do cabelo, então pega um risca e tal. Por que ele não faz o resto? Porque ele não sabe fazer, não sabe. Realmente não tem profissional, que eu acredito que em outras profissões tenha, mas barbeiro não tem. Eu realmente quando eu pego um cabelo eu adoro. Eu gosto quando vem um cabelo mal cortado, quando vem assim todo esculhambado. Eu digo: “Aqui a pessoa vai notar a diferença.” E corto rápido, você vê o meu cabelo é 10 minutinhos, é rapidinho, não tem história. Mas é muito difícil, não tem. Pode colocar o anúncio aí que não vai vir ninguém, não vem ninguém.
Fim da Fita 1 Início da Fita 2
P - Agora, vamos falar um pouco dos instrumentos que o senhor usava quando começou a trabalhar em barbearia. Quais eram?
R - Bom os instrumentos, quando eu comecei foi lá na Espanha. Eu comecei lá com 14 anos, eu trabalhava lá com o meu tio, meu tio tinha um salão e o meu pai era empregado em outro salão. Eu trabalhava com o meu tio de graça porque eu ficava aprendendo. Eu ficava com a vela, segurando, só de longe e olhando como ele cortava cabelo para eu aprender. Depois foi me dando um freguês ou outro e eu fui aprendendo.
P - O aprendizado era só de olhar?
R - Era só olhar. E depois quando melhorava um pouquinho pegava o pente e a tesoura e eu tinha pouco pelo na perna. Então tinha que ter muito pelo na perna para passar o pente em cima porque a tesoura não podia passar fora do pente. E eu aprendi nos meus pelos da perna, eu tinha poucos porque era moleque. Então era assim que se aprendia. Se passasse a tesoura na frente do pente já fazia falha ou atrás. Então o duro era manter a tesoura em cima. Então, esse meu tio ensinava e eu ia indo aqui e no freguês. Aí foi indo tudo bem. Quando eu já estava quase bom meu pai veio para o Brasil e na casa onde a gente tinha a casa eu peguei uma cadeira normal dessas e com um pedaço de tábua eu fiz um... Tem uma cadeira normal eu peguei uma tábua e fiz uma cabeceira, fiz umas prateleiras de madeira pregada na parede porque a minha mão, mexer com madeira eu sempre mexi bem, negócio de fazer coisas, artesanato era comigo. Aí aqueles clientes que serviam comigo no meu tio passaram a servir comigo, muito baratinho. Vamos dizer, se o cabelo pagava 10 eu cobrava 1 mas aquele 1 para mim já me fez a prática. Aí comecei, eu fui indo, fui indo, cheguei a quase fazer uma freguesia já antes de vir para o Brasil. Aí eu vim para o Brasil. O corte de cabelo na época tanto na Espanha como aqui, o difícil era fazer o cabelo do jeito que eu fazia, e a barba. Ninguém gostava de fazer a barba, porque a barba sempre foi... barbeiro nunca ninguém gostou de fazer a barba, nenhum barbeiro. Barba é a pior coisa do mundo. Então eu comecei a fazer a barba mas eu era bom. Não só era bom como eu tinha muita vontade de ganhar dinheiro, para quem não teve nada e viu aquilo tudo aquilo era um negócio muito sério. Dinheiro no bolso, mas que dinheiro? Então eu me aperfeiçoava, vim para cá começava a cortar cabelo. Aí cortava direitinho, caprichava, o freguês falava do jeito eu fazia, não oferecia perfume, só se o freguês pedisse aí eu usasse. A outra coisa ruim que teve foi o meu patrão, esse italiano. O italiano foi muito ruim, ele era muito egoísta, muito avarento, ele era... como se diz? Ele era um homem, como se diz, como que chama? Fascista. Olha o que eu me lembrei agora Ele era fascista e tinha ódio de comunista. Tinha o manganelo, que chamava, olha, Mauro, o que eu estou lembrando, que tinha uma caixa registradora que tinha um pau que parecia um pau de macarrão mas era comprido desse tamanho. E era fininho na ponta e quando algum freguês queria fazer besteira ele pegava aquele pau e falava assim: “Isso aqui eu bati em muito comunista na Itália.” Verdade. Era o manganelo. Vê se essa palavra não existe, ele chamava de manganelo aqui lá, só pode ser. Então ele era muito ruim, o empregado não podia pegar uma revista, cada cadeira tinha um banquinho assim. O barbeiro tinha que ficar sentado no banquinho, quando o freguês chegava se levantava, o freguês sentava onde ele queria, não podia chamar o freguês nem nada, então sentava. Uma dificuldade. O empregado não podia pegar uma revista para ler, o jornal para ler, de jeito nenhum Eu quantas vezes eu estava com a minha marmita que eu trazia da pensão, no bar da esquina esquentando a marmita e comendo, eu na metade da marmita ele vinha me buscar porque tinha um freguês me esperando. Era realmente um terror trabalhar com aquele homem.
P - E você trabalhou quantos anos com ele?
R - Trabalhei quase 10 anos com ele. Foi um verdadeiro terror, até hoje clientes meus que servem aqui que eram daquele tempo eles falam mal daquele homem. E ele dependia de mim, por isso que eu digo que o dia que eu falei que ia sair de lá que o André me comprou um salão ele me ofereceu a sociedade no salão. Eu falei: “Eu não quero.” Fui embora. Ele era ruim. Quando ele mandou o engraxate embora, coitado Esse engraxate que trabalha comigo que eu dei a mão duas vezes, ele veio trabalhar comigo de engraxate, esqueci disso, aí. Esse é muito importante. Aí ele veio trabalhar comigo, tinha muito defeito na perna, mas era um menino muito bonito. Todo mundo gostava dele. Aí o dono do Colégio Piratininga era meu cliente. E eu falei: “Lula, por favor, não dá para deixar o Benedito estudar lá de graça?” “Não tem problema, manda ele matricular lá.” Então estudou lá, ele fez até o ginásio lá, no Colégio Piratininga de graça, estudou e tal. E um dia ele virou para mim: “Júlio, daria para você me ensinar a cortar cabelo?” Eu ensinei ele a cortar cabelo. Ele conheceu uma moça, casou com essa moça e foi morar ali na Vila Brasilândia. Montou um salãozinho com aquela cadeira na casa dele e ali ele se virava. Um dia um freguês chamado, não vou me lembrar agora desse freguês, mas está vivo os dois irmãos. Era um freguês que construía os prédios do Pão de Açúcar, um engenheiro. Engraxava os sapatos dele, ele falou: “Júlio, eu vou levar o Benedito embora daqui.” E levou o Benedito para trabalhar na Baleia da Avenida Água Branca, um supermercado chamado Baleia. Levou, chegou a ser gerente de supermercado, nunca mais eu o vi, gerente. Com carro, chegou a me visitar de carro, chorava quando entrava na porta, um menino de rua. E esse homem, se ele não tivesse ficado doente, esse meu patrão, esse moço nunca seria nada, ele voltaria para a rua e seria um mendigo e seria um ladrão ou qualquer coisa. Então, realmente esse patrão meu não foi bom para mim nem para ninguém nem para os funcionários porque o funcionário não podia conversar com outro. Era aquele sistema. Ele estava achando que estava lá na Itália, eu não quero dizer mal de italiano, mas era fascista. Ele era terrível Só falava no Mussolini, não sabia falar em outra coisa. Então aquele eu tenho lembranças muito ruins. Olha, falei de quem eu não gostava eu devia ter falado desse porque esse aí é o pior de todos. Era um terror trabalhar com ele. Não podia conversar com o freguês. A gente colocava o algodão que nem hoje no freguês para não entrar cabelo a gente coloca um pedaço de algodão. Se colocasse um pouquinho a mais, meu Deus do Céu Ele mostrava: “Olha o algodão que você colocou. Não é para colocar tanto.” Ia molhar o algodão com álcool para passar o freguês ele achava ruim. Só que ele achava ruim de um jeito terrível.
P - Ele gritava?
R - Gritava. Só tem uma passagem muito boa. Que tinha um ator, chamava-se Daniel Guimarães e Walter Forster. E os dois eram muito amigos, e o. Daniel dava uma de louco e ele só aparava o bigode com o Nicola, e cortava cabelo comigo. Ele gritava quando via a Rua das Palmeiras e entrava na São João, ele gritava “Nicola,” aí o Walter Forster virou-se para ele e falou: “Nicola, não mexe com o Daniel que já ele teve internado três vezes, ele é louco.” Então o Daniel Guimarães tinha um olho para lá e um olho para frente então ele ficava fazendo o bigode e ficava olhando para o Nicola. O Nicola tremia, tremia de medo porque o Walter Forster havia falado que ele era louco. E ele ainda pauro que pegava o manganelo, porque ele achava que ele era, ele acreditou que o cara era louco. Então esse homem foi muito ruim para mim. Tinha uma freguesia boa, os motoristas de praça da esquina eram uma beleza de pessoas, muito bacanas, nossa, como era
P - Como era o cabelo que se cortava? Mudou o tipo do cabelo?
R - Naquela época, era o tal...
P - Príncipe Danilo.
R - Também. Tinha o La Garcez, Príncipe Danilo, que era comprido, juntava um com o outro, uma coisa horrível.
P - Como era? Explica para a gente.
R - Era o... tinha o nome, tinha o Garcez, que era espetadinho, que hoje usa, passa máquina quatro, naquele tempo era com a tesoura. Que máquina Você cortava um cabelo que acabava de cortar o cabelo você tinha que ir no médico ortopedista.
P - Era uma tesoura grande?
R - Não, era uma maquininha.
P - Como era? Descreve para mim.
R - Era uma maquininha, dois ganchos aqui soltos e aqui dois pentes. Eu vou demonstrar, tem uma maquininha aqui, eu vou te mostrar essa maquininha aqui. Essa máquina aí dá para demonstrar. Aquela maquininha naquele tempo tinha um bracinho e um bracinho, e tinha isto. Está vendo isto aqui? Isso aqui são dois pentes, então daqui saía um braço para cá e outro cá. Então você tinha que apertar para isso aqui mexer. Então você apertava, aquilo enguiçava e espichava o cabelo da pessoa, era terrível aquilo lá Quando você acabava de cortar o cabelo você não agüentava mais de dor na mão, era terrível
P - E esse corte...
R - Cortava americano, americano e meio americano. Príncipe Danilo.
P - Que era como?
R - Americano à máquina era até aqui, meio americano era até o meio. Cortava à máquina até aqui e depois com a tesoura você disfarçava. Esse era o meio americano. O americano era até aqui, aí você disfarçava, era muito difícil aquele cabelo. Eu também era um artista nisso. Até hoje a turma não sabe fazer.
P - E aqui em cima ficava espetado?
R - Aí ficava espetadinho, tipo à La Garcez, que falavam, aquele que foi governador de São Paulo, que ele usava cabelo assim, desse jeito. Então esse era o tipo. Naquele época também tinha sabe o quê? Mania de pintar bigode. Isso era terrível, pintar bigode Então, o cara deixava aquele bigode fininho, tipo palito, tipo Godofrinho, lembra daquele bigode Godofrinho? Fininho. Então aparava assim, ficava um palito, bigode palito.
P - Bigode palito que chamava?
R - É. Bigode palito. Então, tinha uma tinta, dois tubinhos, era... teria que me lembrar do nome da tinta, número um e número dois. Então, precisava molhar um palito com algodão, passar o número um e depois passar o número dois. Mas aqueles caras não sabiam fazer nada, aí eu fazia. Porque se passasse aquele palito fora do bigode fazia uma mancha que não saía mais.
P/3 - Não saía?
R - Não saía. Queimava que não saia, podia esfregar com o que quisesse. Então, cada briga que tinha, o Nicola pintava: “Oh, Nicola, você me estragou o bigode.“ Eu tinha mão firme, o que eu fazia? Eu nunca tinha feito isso na Espanha mas aprendi logo. Eu pegava o palito sem o algodão, então não tinha jeito de manchar. Então eu molhava, depois com o palito sem o algodão ia molhando e passando. Faziam filas para pintar bigode. Era a coisa mais fácil...
P - Pintar de que cor?
R - Preta, só tinha preto. Bigodex, me lembrei. (risos)
P - Água Velva você ainda tem?
R - Isso aí é Água Velva antigamente era outro tipo de água, agora uma Água Velva fajuta demais, naquele tempo tinha Água Velva boa, senão passar água e Água Velva. E tinha uma outra coisa que se fazia muito, passar aquele barro, limpeza de pele, o tal de barro de Araxá. E toda gente tinha uma estufa enorme com toalhas, embarrufava a cara com barro e o cara achava que ficava bom, não ficava nada, tudo mentira, conversa. Embarrufava aquilo tudo e depois toalha molhada em cima e a gente tirava tudo aquilo. Mas dava uma mão de obra, Meu Deus do Céu Toalha quente antes da Água Velva era normal.
P - Isso ainda tem no Rio. No Centro do Rio ainda tem uma estufa que você senta lá, barbeiro português.
P - Você põe uma toalha quente para...
R - Tem uma estufa, cheia de água, fica quente com toalhas lá dentro. Você pega uma toalha quente, você aperta bem e coloca no rosto do freguês, deixa assim uns cinco minutos e o freguês fica lá. Aí você tira a toalha quente com água quente e faz uma espuma e faz a barba, a barba fica molinha, molinha, que é uma beleza. Isso eu fazia muito, barro eu fazia muito.
P - Barro?
R - Barro de Araxá. Dizem que fazia limpeza de pele, que tirava, mas não fazia coisa nenhuma, nada.
P - E vinha muito aqui, o sujeito que ia ter uma aventura amorosa, vinha aqui antes.
R - Ah, vinha. O caras: “Oh, Julinho, tal, capricha aí, me lava a cabeça. “ Negócio de mulher eles vinham, salão de barbeiro todo mundo contava as aventuras: “Eu já saí com a fulana e tal. Eu estou com problema.”
P - E já chegou um falando que saiu com a mulher do outro alguma vez?
R - Ah, várias vezes, isso é várias vezes, está acontecendo hoje ainda, isso que é grave.
P - E eles contam?
R - Contam. “Fulano tem vindo aí.” “Vem.” “É um pepino, mora em frente, a mulher encheu a paciência. “ Isso é direto até hoje, antigamente eram mais mas hoje ainda tem, se dem e muito. Antigamente não. “Capricha, faz um penteado.” Aquela brilhantina era terrível
P - Como que era a brilhantina?
R - Era uma massa, Coty, Coty era mais cheirosa.
P - Sempre um creme.
R - O Creme eu tenho até hoje.
P - Tinha Gumex.
R - Gumex.
P - Gumex usou-se muito.
R - Ainda tem.
P - Gumex fica duro o cabelo.
R - É tipo gel agora. Tinha uma coisa que saía muito que se chama Sanecaspa.
P - Esse eu não peguei.
P - O que era isso?
R - Era um líquido que você passava na cabeça do freguês, o cara tinha caspa, então era uma tapeação. Fazia uma espuma Depois de cortar cabelo, fazia uma espuma, uma espuma que não acabava mais, queimava pra burro, aí o cara achava que a caspa saía. Aí no outro dia aparecia de novo: “Não saiu a caspa.” E ia tapeando e a caspa não saía nunca, é tudo conversa, tudo mentira, tudo papo furado. Agora tinha Sanecaspa e a brilhantina se usava muito. O cara: “Capricha aí que eu vou encontrar com uma menina.” E aí lavava o cabelo dele, lavava-se muito cabelo, eu não gosto de lavar cabelo, a pessoa lava o cabelo em casa, não é verdade, é besteira. Aí eu lavava o cabelo e já ia preparado para sair. Então isso aí é uma das coisas que até hoje apesar da crise econômica tem gente que ainda está, passou muito.
P - E a Boca, você assistiu o surgimento da Boca ali na Amaral Gurgel? Essa coisa toda. Você tinha notícia disso? São João tinha prostituição, essas coisas?
R - São João agora que está banguçada, mas São João era muito bom.
P - Agora já tem uns aninhos.
R - Uns aninhos, faz uns 10 já. Isso aí antigamente era uma beleza, em frente ao salão tinha um , o salão meu, em frente do salão, era famoso, alguns fregueses iam lá, telefonavam do salão, do meu salão. Que eu vou lembrar o número do telefone do meu salão, vocês não vão acreditar mas eu vou lembrar, 52-0103.
P - Eles telefonavam do salão para marcar hora?
R - Para marcar com a menina, tinha menina de 14, 15 anos, isso era normal.
P - Como é que chamava?
R - Rendez-vous. Isso já tinha naquela época também. E do salão a turma jogava muito em cavalo também, tinha muita gente viciada em cavalo. Tinha uma prateleira assim que tinha um radinho, os caras escutavam a corrida de cavalo. Quantas vezes quebraram aquela prateleira. Perdia o jogo e pimba Dava cada soco naquilo lá. A minha freguesia, como eu digo, a freguesia daquela época era freguesia do Rio, porque São Paulo não tinha nada daquilo.
P - Freguesia do Rio?
R - Muito carioca no salão.
P - Por quê?
R - Muito jornalista, muito artista, tudo vinha do Rio.
P - E o que é que eles vinham fazer aqui?
R - Trabalhar na Organização Vítor Costa, na Rádio Nacional era tudo Rio. Este Galeano Neto era uma pessoa muito conhecida, eu conheci o filho. O filho cortou cabelo comigo muito tempo.
P - Esse Rangel Pestana que a gente vê...
R - Dr. Rangel, ele é advogado nas Folha, resolveu trabalhar depois que o Vítor Costa, morreu a mulher do Vítor Costa já era amigada com um tal de Dr. Jorge. Morava com o Dr. Jorge. O Dr. Jorge era padrasto do Vítor Costa Filho, que era meu freguês também, que caiu quase todo o cabelo numa hepatite que ele pegou, pegou uma hepatite o cabelo foi tudo para o beleléu, tudo num mês. E o Dr. Jorge era o padrasto dele que assumiu a Organização Vítor Costa. Tinha o tal Dario e tinha depois o Dr. Rangel Pestana. Alto, magro, muito fino, de pouca conversa, foi meu freguês muitos anos. Ele era das Folhas, eu acho que está vivo até hoje.
P - O Adhemar de Barros, você chegou a cortar o cabelo dele?
R - Adhemar de Barros, eu corto o cabelo dos netos dele. Do Adhemar de Barros eu cortei uma vez, não, duas.
P - Lá na casa da Dona Ana.
R - Na casa da Dona Ana. Era lá que eu ia. Cortava o cabelo do Adelábio Sette de Azevedo. Isso tem até uma passagem bonita, um dia o Adelábio cortou cabelo comigo, era o chefe da Casa Civil, todo sem dente, cínico, cabelo feio, parecia um mendigo. Aí o Correa Neves trouxe para eu cortar cabelo, deixei o cabelo lindo. Aí no Palácio o Adhemar perguntou: “Quem foi que cortou o seu cabelo?” “Foi um barbeiro.” “Eu quero conhecer esse barbeiro.” Aí eu fui lá e cortei o cabelo dele. Ele pintava o cabelo muito de preto, demais, muito de preto. Aí eu cortei e tal, mas ali tinha muito problema. Aí passei a cortar o cabelo dos netos dele, os netos são meus fregueses hoje.
P - Mas os netos, filhos de quem?
R - Os netos do Adhemar de Barros, os filhos da filha do Adhemar de Barros, as duas filhas.
P - Com o Saad?
R - O filho do João Saad, o Ricardo Saad é meu cliente até hoje.
P - Que é o pessoal dono da TV Bandeirantes.
R - É o filho do João, Dr. João, o Ricardo Saad, que é uma pessoa maravilhosa, simples e maravilhosa. Uma vez uma pessoa foi mandada embora aqui da Globo, da Globo já, Antônio Celso, ele tem um programa até nos Estados Unidos, um programa de rádio, é um cara famoso, Antônio Celso. Brigou com a Globo e foi mandado embora, um dia eu estava cortando o cabelo dele e o Ricardo: “Arruma um emprego pra ele.” E arrumou, está até hoje na Bandeirantes. O Ricardo é uma pessoa simples, vem aqui de bermuda, é simples. Agora, os netos do Adhemar, os filhos de Manuel Figueiredo de Ferraz, os três são meus clientes aqui, o Figueiredo Ferraz é casado com a filha do Adhemar de Barros. Manuel Figueiredo Ferraz, a mulher dele é filha do Adhemar de Barros velho, que eu servi muito tempo, servi muito o neto também que não se dava com a família.
P - Você já falou aí de dois governadores, o Adhemar e o Sodré. Pegou mais algum?
R - O Adhemar e o Sodré, tenho mais um.
P - Laudo Natel chegou a passar?
R - Não. Tem mais um.
P - Paulo Egydio?
R - Não.
P - Franco Montoro?
R - Não. Só pessoalmente. O Marin também não. Tem uma pessoa também que... Renato Azeredo, conheci Tancredo Neves.
P - O pai do governador de Minas (Eduardo Azeredo, 1995-99).
R - Esse Renato Azeredo, eu fui cortar o cabelo do Renato Azeredo, amigo do pai do Ricardo Azeredo, do PT. Um dia ele me falou: “Tem um amigo meu no Hospital das Clínicas, no Incor, daria para você cortar o cabelo?” Eu fui cortar o cabelo dele, cheguei lá e o Renato Azeredo, que era chefe da Casa Civil do Tancredo Neves lá em Minas. Durante um tempão eu cortei o cabelo e fiz a barba dele porque estava doente lá no Incor. Eu dia eu estou lá e chegou o Tancredo Neves e o Franco Montoro, o Franco Montoro era o governador e o Tancredo Neves governador. Aí eu estava cortando o cabelo no último andar do Incor, aí eu parei, aí o Tancredo Neves disse: “Pode continuar cortando.” E eu continuei a cortar o cabelo com o Tancredo Neves e com o Montoro junto. E depois ele faleceu, faleceu de câncer, pai desse menino que é o governador de Minas, que também conheci esse lá. Conheci também e tive mais por isso. Lá eu tive mais freguês. Agora para cá, vida de cliente, essas coisas de história de salão sempre foi muito interessante porque aqui se fala de tudo, falava-se de tudo, agora se fala muito pouco.
P - Por que hoje em dia o pessoal não fala mais?
R - Agora esse negócio de mulher hoje é muito pouco.
P - E por que as mulheres estão mandando os homens embora? Que história é essa?
R - A maioria dos fregueses que eu tenho vem aqui: “Olha, eu separei da minha mulher.” “Mas por que, ela mandou embora” “Porque ela me mandou embora.” Eu não estou vendo nenhum que mandou a mulher embora, só os que a mulher mandou os caras embora.
P - E eles entendem por que a mulher mandou embora?
R - Normalmente é por causa financeira.
P - Como?
R - Financeiro o seguinte, o sujeito dava tudo, a mulher, muita mordomia, sabe? Coisas que não precisava dar e deu demais, teve um cliente aqui que deu tanto para a mulher que qualquer pessoa, a própria manicure falava: “Esse está fazendo besteira, está jogando dinheiro fora, vai acabar o dinheiro.” Então o que é que aconteceu? Começou a cortar as coisas dos filhos e o cara começou a ficar chato, muito chato, se tornou chato aqui dentro do salão como a maioria desses caras que a mulher manda embora não dá para agüentar Os caras estão muito chatos demais. Porque ficaram com manias, só falam mal de tudo quanto é mulher, só falam mal disso e daquilo, não tem nada a ver o caso dele com o resto. Então, eu que não sou nenhum bobo, eu estou escutando, eu não sou psicólogo mas daqui a pouco eu vou trabalhar num asilo, não é possível Eu tenho esse amigo meu que tinha motorista ele, tinha motorista a mulher, cada filho lá, tem representação, cada filho tinha um celular, um dia ele falou para mim que a conta do celular do filho é R$ 2.600,00 reais. Está louco E o que aconteceu, foi rapidinho, rapidinho. Um dia ele ficou doente, com depressão isso e aquilo. Um amigo dele que é muito amigo meu falou: “O Célio não está com depressão, esse homem está mal. Está duro, a mulher mandou embora, a mulher arrumou emprego em outro lugar e está se virando com os filhos.” O cara passou a ser um chato, aquele cara que era muito bom aqui dentro do salão passou a ser um chato, um chato que acha ruim de tudo, mal educado, ele e quase todos aqui, são poucos não, tem muitos que estão nessa situação e tem outros que já estão no mesmo caminho.
P/3 - As pessoas pedem conselho, ou você dá conselhos para os clientes?
R - Pedem muito conselho, toda hora pedem uma coisa, parece que eu sou médico: “O que você acha, Julinho?” Aí sempre quando começa a brigar com a mulher e com os filhos eu sempre procuro achar: “Olha, você está ficando muito xarope, não pode chegar em casa e ficar perturbando.” Eu fico falando. A maioria das pessoas escuta, agora tem uma coisa que não tem solução, que é a falta de dinheiro, isso não tem jeito, isso eu não posso resolver, mas que pedem não tenha dúvida. Agora, tem uma coisa que antigamente tinha, os homens hoje estão mais cuidadosos, tem um ou outro que está saindo com não sei quem mas antigamente era demais, agora a coisa...
P - Antigamente, todos os homens...
R - Todo mundo tinha amante.
P - Todo mundo?
R - Todo mundo, não digo todo mundo mas uma parte grande.
P - Mas como era a vida com a amante, tinha a mulher...
R - Fazia tudo bem, passeava para cá e para lá, dava toda a mordomia e tudo mundo achava que não adianta dar mordomia para a mulher, não é bem assim, mas o cara fazia questão de falar.
P - Que tinha amante?
R - Ele achava que aquilo dava uma força, um machismo.
P - E ele contava para todo mundo?
R - Ah, todo mundo sabia. Em barbeiro não tinha segredo. Só que hoje isso não tem mais.
P - E quando as mulheres descobriam, tinha caso?
R - Tinha caso. Teve um que foi para a rua na hora, mas normalmente a mulher não fazia nem muita questão de descobrir, ela tinha aquelas coisas, dinheiro, isso e aquilo. Pelo que eu via, eu conheci muitas esposas de freguês, aqui vinha muito freguês com a esposa, com a noiva, filha. Mas mudou muito, mudou demais.
P - O que é que mudou?
R - Mudou, não tem tanto aventureiro, não sei se é a parte financeira, o normal de todo mundo é sempre ter um apartamento, um apê, como eles falavam, isso era a norma. Cada história
P - E as amantes, o senhor. chegou a conhecer as amantes?
R - Algumas.
P - Elas eram mais bonitas que as mulheres?
R - Sempre mais bonitas. Sempre, muito mais bonitas (risos).
P - Mais novas?
R - Mais novas, mais bonitas, mas ficava caro, a gente percebia que ficava caro.
P - Por quê? Porque ficava caro?
R - “Eu dei um carro para fulana.”
P - Carro?
R - Casa e carro era normal. Eu tenho um caso de um que tinha duas ou três mas numa delas ele se apegou muito, aquela lá, e ele me contava tudo, ele contava inclusive as besteiras que ele fazia. Eu achava aquilo genial, uma palhaçada mas tudo bem, o freguês tem sempre razão. Ele deu uma casa para ela, mas aconteceu um negócio, deu carro zero. Mas ela tinha um vizinho que era um policial e ela falava para ele que era parente, primo dela e não era parente e aí aconteceu o seguinte: ele pegou ela no Guarujá. Ele disse que ia para Orlando e não foi, ela foi para o Guarujá, ele seguiu ela e ele pegou ela com o cara no Guarujá, num motel. Aí me contando tudo isso, nem precisava nem contar que depois eu fiquei sabendo da história. Mas o rolo foi tão grande que aí deu um rebuliço danado e aí ele parou de sustentar a mulher. E como é que fica? Ela ficou brava porque não pode largar assim, se não der dinheiro não tem jeito, então não sai mas com ela mas continua dando dinheiro. Aí ela sabia da família, sabia de tudo.
P - O que ela fez?
R - Ligou para o filho dele e contou o caso. Marcou um encontro com o filho. E aí quando o filho viu o tamanho do rombo aí ele falou para a mãe, está acontecendo isso e aquilo. Mas não se separaram, deu confusão mas estão juntos até hoje. Mas ficou indo em médico e pá, pá, faz uns três anos que estava no caminho, mas já está começando a sair do caminho. Mas é muito raros esses casos, hoje a turma não tem dinheiro para sustentar uma amante, simplesmente. Então o papo furado é que agora que Café Photo, Maceió.
P - Falam isso e contam?
R - Eles falam, homem fala mesmo, mas diminui 90% por cento, eu via casais que nunca via juntos, marido e mulher, hoje eu estou cansado de ver eles juntos. Mudou. Passou a viver mais com a mulher dele. Muitos vão viajar, não sei para onde, viajavam sozinhos, não viajavam com a mulher nunca, agora não. Tem.
P - Quem está casado é porque está a fim de estar casado?
R - Não.
P - Quem sobrou casado ficou mais...
R - Como assim quem sobrou?
P - Quem permaneceu casado é porque tinha uma ligação maior e tal, dava pra tocar.
R - Tem casos de brigas e tal. Eu não conheço, conheço fregueses que dizem: “Eu estou saindo com a fulana.” Mas a mulher é mais difícil trair o homem do que o homem trair a mulher, pelo que eu conheço aqui até hoje, muito difícil.
P - Mas os fregueses aqui não contam história deles com mulheres alheias?
R - Ah, contam.
P - Então é pau a pau.
R - Que eu conheça. Eu conheço a parte de cá, só conheço um caso de um cara que me disse: “Eu estou saindo com a fulana.”
P - Só um caso.
R - Dele, esse caso eu conheço, tem outros casos que falam que estão saindo com a fulana mas eu não conheço a outra fulana dele, nesse caso eu conheço. E eu estou achando inclusive que nesse caso ele não é, não gosto muito dele, agora o marido da outra ele merece isso aí. Eu acho que ele merece, eu conheço então acho que ele merece.
P - E passa de pai para filho?
R - Freguês? Até neto. Eu tenho mais muitos.
P - Quer dizer, que a sua freguesia não está envelhecendo, ela está com uma faixa etária.
R - Não. O filho do Ricardo Saad, o último filho tem dois anos e dois meses.
P - E ele vem cortar cabelo aqui?
R - Veio a segunda vez com um ano e dois meses e ficou quietinho. Tem o Dagoberto Petrini, que faleceu agora, eu cortava o cabelo dele quando ele casou, depois passei a cortar o cabelo do filho e tem um neto médico que é meu freguês. O neto do primeiro, que é o grande pediatra Antônio Sérgio Petrini, é meu freguês. Então, eu espero cortar o cabelo do bisneto, tem freguês antigo mas tem freguês que vem vindo e tem muitos.
P - Me diz uma coisa, essa área aqui, que foi uma área chique, vem se degradando com o tempo. A parte de cima não, Higienópolis, está rica, mas a parte de baixo...
R - Uma porcaria, aqui está muito ruim e tinha gente boa, como o Paulo Machado de Carvalho, que morava aqui.
P - Quando começou a piorar?
R - Olha, quando eu vim para cá em 63 essa rua não passava ninguém, era uma maravilha, ninguém, ninguém, era uma beleza, aqui era praticamente Higienópolis, em 63. A Rua das Palmeiras era uma maravilha, coisa de louco que era a Rua das Palmeiras. Aí começou já com Metrô, aquelas confusões todas.
P - Minhocão foi antes.
R - Foi antes.
P - Em 65.
R - Minhocão também mudou tudo por lá. Agora aqui a Alameda Barros era uma maravilha. Inclusive aquele prédio que estão construindo lá em baixo, começando a descer a Alameda Barros antes da Martin Francisco, estão começando a construir um prédio lá, ali era a casa do Paulo Machado de Carvalho. Ele morava lá. O Sodré morou em frente. O Sodré nasceu em frente ao número 50. O Paulo Machado, naquele terreno enorme era a casa. Ele todo dia, eu me lembro, de 63 para frente, todo dia de manhã ele dava a volta no quarteirão, o Paulo Machado de Carvalho a pé, todo mundo conversava com ele, no tempo da Copa.
P - Paulo Machado foi o cara que organizou a primeira vitória do Brasil na Copa do Mundo.
R - Era o dono da Record.
P - A Copa do Mundo de 58 foi ele que segurou a onda e montou a comissão técnica.
R - Aqui uma beleza. E tem outra passagem interessante dessa minha freguesia, eu tinha um cliente que eu tratava de Alonso e ele trabalhava com charutos, tinha uma perua Suerdick, ele vendia, ele era representante e vendia. Ele tinha um filho que era deficiente e ajudava ele, ele não era muito certo e ajudava ele, ele é de Santos. Um dia ele me trouxe o irmão dele para cortar cabelo comigo, essa história é muito interessante, trouxe o irmão dele para cortar cabelo. Quando ele chegou e olhei: “Não é possível?” Chamava-se Luís Alonso Lula, nunca ouviu falou?
P - O técnico do Santos?
R - O técnico do Pelé. Era irmão desse freguês, aí trouxe para cortar cabelo, gordo que só ele, trouxe para cortar cabelo comigo e tal. Aí o que acontece? Quando ele se hospedava no Lord Hotel, aqui na Rua das Palmeiras, ele vinha no salão e vinha o time inteiro do Santos e ficava na porta, inclusive o Pelé. Não cortavam o cabelo comigo, só o Luís Alonso. Cortei uma vez o tal de Pagão, esse cortou comigo, era magrinho, baixinho. E o Luís vinha sempre cortar cabelo comigo e vinha aquela turma. Então quando vinha aí aqueles jogadores do Santos, vinha a pé, era uma confusão, você nem imagina, dia de domingo, hospedavam-se no Lord, existe até hoje o Lord. Aí o Lula começou a ter problema de rins e foi para o Hospital das Clínicas e foi operado num transplante de rins e faleceu. Esse também foi um que eu me lembrei agora nessa passagem. Esse pedaço que você está falando é um pedaço muito bom. Não tinha bagunça.
P - Agora tem muita.
R - Mas ainda tem uma coisa, ainda está bom, você vê quanto tempo eu estou aqui nesse pedaço são 32 anos só aqui nesse pedacinho. Eu nunca vi um assalto nesta rua, neste pedaço, na Alameda Barros já teve.
P - Mas para perto do Metrô tem isso.
R - Mas aqui ainda está bom. Pode perguntar.
P - Você andava de noite sozinho, tranqüilo?
R - Sossegado. Não tinha problema nenhum, nunca fui roubado, nunca fui assaltado na vida. Eu ia no futebol, assistir jogo de futebol e não tinha esse negócio de torcida, tudo era misturado, não tinha briga, não tinha nada, eu andava a pé a noite inteira, Rua Direita, por qualquer lugar, não tinha problema.
P/3 - E como que era a Praça da Sé nos anos 50?
R - Praça da Sé era uma coisa linda, todo mundo queria conhecer a Praça da Sé, tinha o prédio Mendes Caldeira na esquina, foi derrubado depois para a construção do Metrô, aquele prédio tinha, embaixo uma casa de tecidos L. Monteiro, era famosa. O prazer era a gente sair e andar na Rua Direita e Praça da Sé, era o passeio, Aclimação, Aclimação era uma beleza, Ipiranga, o museu do Ipiranga, nossa Aquilo era uma maravilha, só lá, eram bacanas esses lugares. E a cidade andava, o Largo São Paulo, onde eu morava numa pensão, a pensão era uma maravilha, a prova disso é que a gente dormia com a porta aberta, sete num quarto. E o que a gente ganhava dava para pagar a pensão e sobrava dinheiro que não acabava mais. Tinha só dois banheiros, isso que era difícil, era uma fila, aquela fila terrível. Mas era um largo maravilhoso, não tinha bagunça, era um teatro antigo, o Teatro São Paulo, e quem se apresentava muito lá era o...
P - Procópio?
R - Não, o Oscarito.
P - E a colônia japonesa já estava na Liberdade?
R - Já estava tomando conta, só dava japonês, mas dava muito japonês. Agora, lá era uma coisa que eu não falei que eu preciso falar, era uma... eles eram muito fechados, não conversavam muito mas era um bairro maravilhoso, não tinha assalto, depois ficou uma porcaria, depois o lugar que mais assalto dava era a Liberdade, depois que tiraram o Teatro São Paulo, que tinha um murinho, foi onde que eu conheci a minha mulher. Eu estava sentado lá, aquele era um murinho que dava para a Rua da Glória, era pegado ao Diário Oficial, que era pegado à pensão que eu morava. Aquilo era uma beleza, Praça João Mendes, aquilo era uma maravilha Praça Clóvis. Praça Clóvis eu ia todo dia porque eu fazia a barba do velho Rio Branco, então era obrigado a ir lá. Subia, atravessava a João Mendes, que era o prédio lá da esquina. Andar de ônibus, eu pegava ônibus para conhecer tudo isso, lugar longe, era totalmente diferente do que é hoje, é certo que era menos gente. Agora é uma coisa que eu gostaria de falar que nessa minha freguesia toda aqui que eu estava falando um manda o outro, um manda o outro. Mas eu sempre tive, a minha freguesia sempre foi na base de 80 a 85% de israelitas, isso até hoje. Então realmente eu devo muito, um mandou o outro, o outro tem um amigo meu que é meu freguês 44 anos chama-se Isaac (Kochester?), é meu amigo de idade, inclusive teve aqui ontem também. Ele foi que me arrumou principalmente até hoje ele manda: “Vem aqui porque o Isaac mandou.” Então essa minha freguesia veio toda pela colônia israelense, uma colônia maravilhosa para mim, nunca tive um problema, só tive alegria, isso é uma coisa que eu faço questão de falar porque até hoje eu tenho alegria, nunca veio pedir fiado para mim, mas nunca. Não quero falar mal dos outros, mas eles sempre foram muito bons para mim, sempre me ajudaram. Qualquer coisa eles me davam, o cara fabricava camisa, ele vinha com 10 camisas, essa que eu estou um que me trouxe faz uns dois meses, seis de uma vez, ele trouxe. Ele sabe que hoje eu não posso comprar, antigamente eu não podia, hoje eu não posso. Então, eu faço questão de lembrar assim, é uma freguesia maravilhosa
P/3 - Júlio, eu queria saber uma coisa, você fala desse corte a domicílio.
R - Fiz muito.
P/3 - Como que era isso? Como que era o preço? Como era o equipamento?
R - Fez uma pergunta interessante. Eu trabalhava muito a domicílio, mas muito. Então o seguinte. Até tem uma história muito pesada. O freguês me pedia para cortar o cabelo em casa porque não queria ir no salão então eu ia, eu podia ir porque eu tinha quatro barbeiros, naquele tempo, eu podia ir, e eu ia. Só que o cara pagava o dobro do que pagava o serviço. Eu gostava de ir lá, cortava o cabelo. Normalmente eu ia antes do horário de serviço porque tinha barbeiro, e depois que fiquei eu só, ou eu ia antes do serviço ou depois do serviço. Fiz muito cabelo a domicílio e muito em hospital, trabalhei muito em hospital, muito. Hospital de clientes que ia ser operado, de amigos que tinham amigos hospitalizados e não tinha barbeiro para ir, cansei de fazer isso e faço até hoje. Cheguei a fazer barba de defunto também, cheguei, muito. Nesse meu período de 57 a 60 eu fiz muito.
P/3 - Como que era?
R - Era o seguinte: a pessoa naquele época morria em casa, então era pai de freguês, filho de freguês, qualquer parente, então tinha que fazer a barba. Então me chamavam e eu ia fazer a barba, era comum eu fazer a barba de pessoa falecida porque me chamavam.
P/3 - E como que era a sensação?
R - Isso não era, de israelita nunca me chamaram, a outra parte que me chamavam. De israelita tem um caso interessante, quando morre algum parente eu já sei, mora algum parente, então o filho, ou não sei quem, depois fica 30 dias fica com a barba comprida e vem aqui, não precisa nem falar, eu corto, nem é ele que paga, é outro que paga, tem coisas diferentes. Agora o cara me chamava e eu ia lá. Eu não me esqueço o caso na Rio Branco, lugar famoso na Avenida Rio Branco, o sujeito era freguês meu e eu sempre cortava o cabelo do pai dele em casa, estava doente. Aí eu cheguei lá o pai estava doente eu fazia o cabelo e a barba e um dia eu cheguei lá e veio me buscar para cortar o cabelo do pai e a barba. Cheguei lá estava cheio de gente, eu pensei, o que conversam, ele disse: “Júlio, eu não quis falar nada mas meu pai faleceu, se eu te falasse você não ia fazer a barba dele.” “Mas por quê? Vamos falar.” Aí eu fui lá, mas o velhinho estava tão encolhido que ele ficou com as mãos assim e não dava para fazer a barba porque eu puxava para frente e ele vinha.
P - Já estava com rigidez.
R - Aí eu falei para ele, você tem que ajudar aqui porque se tivesse máquina como tem hoje, usava máquina elétrica, mas naquele tempo não tinha, era navalha e a navalha não entrava no meio do queixo daquele homem. E ele esticando os braços, foi uma dificuldade Eu sei que a cabeça do homem bateu umas 20 vezes na minha cabeça, o defunto, nunca esqueço porque toda vez que puxava, pimba É um negócio chato, mas aconteceu comigo também, eu fazia muito isso também.
P - E você quando ia cortar o cabelo do sujeito na casa do sujeito, como que era o problema de cair o cabelo. Onde que era?
R - Sempre no banheiro. Ou colocava jornal ou deixava no piso mesmo e depois eu varria, que até hoje eu faço. Isso eu faço até hoje. Agora, no hospital é muito difícil cortar cabelo porque a pessoa está na cama e é muito difícil, e fazer barba, porque a pessoa não pode se mexer, mas eu faço isso. Inclusive, faz pouco tempo o Dr. Ferraz, ortopedista, quebrou um braço e eu fui fazer a barba dele no Samaritano, ele me chamou para ir lá fazer a barba dele, faz pouco tempo agora e não estava fácil. Eu cortava muito cabelo em casa, era comum, era normal o cara ter um barbeiro dentro de casa. Como antigamente, quando eu estava na São João, que tinha uma gavetinha que os caras tinham as ferramentas só para eles, o cara tinha o pincel, tinha a navalha, tinha o penteador, tinha o pente. Como se fosse cofre, cada um tinha a sua, nesse tempo lá.
P - Porque não tinha essas estufas.
R - Tinha estufa só para colocar toalha e a turma brigava. Uma coisa que eu sempre reparei em salão de barbeiro é por jornal, meu patrão comprava um jornal só e era uma briga por conta daquele jornal, porque tinha só um, parecia que todo mundo queria comer o jornal Ficava esperando o cara ler, ele comprava O Cruzeiro, a revista O Cruzeiro e o Diário da Noite.
P - E agora você compra?
R - Agora compro o Jornal da Tarde, Diário Popular e compro a Folha para a minha casa. Deixo a Folha todo dia em casa, trago o Diário Popular para cá e compro o Jornal da Tarde.
P - Playboy?
R - Playboy, revista Caras, de vez em quando Veja, quando tem alguma reportagem de interesse, comprei essa Exame porque é interessante. E quando o freguês pede uma revista diferente eu compro também. Mas compro os jornais, é sagrado.
P - As pessoas ficam esperando aqui muito tempo?
R - Ficam, mas todo mundo fica lendo.
P - Todo mundo se conhece?
R - Ah, a pessoa que não se conhece no primeiro dia passa a se conhecer, porque eu faço questão de apresentar, esse aqui é o fulano, fulano. Tem pessoas que não gostam muito, ficam na dele. Não dá para apresentar ninguém, não gosta de conversa, então eu já conheço, não precisa ninguém me ensinar, para escutar abobrinha. Tem que ver, às vezes tem freguês que fala uma coisa que eu não estou vendo mas numa conversa que não está combinando com as outras pessoas que estão sentadas. Aí eu entro no meio para mudar a conversa e consigo mudar para outro não ficar machucado. Acontece muito isso aí.
P - Isso aqui é um centro de convivência.
R - Aqui tem tudo, tem médicos, tem juiz, tem promotor, tem engenheiros, jornalistas, artistas, tem tudo, e quando se encontram aqui é tudo igual. Tem um juiz famoso, ele vem aqui, eu já mudo a conversa, ele tem que ficar igual a nós, conversar com todo mundo, conto piada para sair daquilo. Tem um outro cliente que eu não falei, que o Plínio Barbosa Martins. Ele tinha um sobrinho que era meu freguês, morava na esquina, era freguês do meu pai, depois passou a ser meu freguês. Aí esse Dr. Plínio teve um enfarte, ele é formado pela PUC aqui em São Paulo, advogado, teve um enfarte, trouxeram do Mato Grosso para cá e operaram do coração. Aí o sobrinho perguntou se eu não queria cortar o cabelo dele. Aí eu fui cortar o cabelo dele e se tornou meu cliente toda vez que vinha em São Paulo, porque a mãe morava aqui, ele foi prefeito de Campo Grande e deputado federal. Hoje, tem um governador, tem um irmão que chama-se Wilson Barbosa Martins, que é governador do Mato Grosso do Sul, que também aconteceu a mesma coisa. Teve um problema, operou do coração e eu fui cortar o cabelo dele. Agora o Dr. Wilson eu não tenho contato, tenho contato o Dr. Plínio, muito, conheci a filha dele, que é uma jornalista do Rio, Ruth Barbosa Martins, era do Globo, jornal O Globo, uma loira. Aí ele vem e corta cabelo comigo. Ele foi prefeito de Campo Grande. Esse também quando vem a São Paulo ainda vem aqui, são muito bacanas, muito. Lá em Mato Grosso a política é muito quente, é adversário de um outro lá também, ele me contava sempre isso. Também uma pessoa muito interessante. O que mais?
P/3 - Eu queria saber o seguinte: já aconteceu alguma história aqui no Natal, de estar trabalhando no Natal, alguma história no Natal?
R - Sobre o Natal, engraçado a minha freguesia não é muito ligado em festa de Natal, por incrível que pareça, parece brincadeira. Mas aqui eu trabalho todo dia 24, se no dia 25 alguém me telefonar para vir cortar cabelo eu venho cortar cabelo. Mas Natal assim não é uma festa tão grande assim. É uma festa grande mas não para os meus fregueses, é mais os filhos dos fregueses do que os meus fregueses. A maioria dos fregueses dizem: “Pô, não gosto de Natal, que saco Passa logo esse negócio aí, enche o saco.” Eles falam, a maioria, 90%.
P/3-Mas fora assim do trabalho, houve algum Natal que te marcou?
R - Bom, quando o meu pai e a minha mãe estavam vivos, os dois. Eu passo o Natal na casa de um cunhado meu, toda vida foi, irmão da minha mulher. Então sempre se reunia a família toda e o meu cunhado se veste de Papai Noel, e distribui presente para a família inteira, tem uma casa muito grande lá no Aeroporto. Eu participo para acompanhar a família, mas não é que eu goste. Sinceramente não gosto. Eu acho que para mim Natal é festa de criança, não é festa de adulto, porque para beber o cara bebe em qualquer lugar, não precisa ser no Natal, esse é o meu pensamento. Não vejo a festa de Natal na minha opinião. Tem gente que gosta muito. Meus fregueses não gostam muito. Eu passo sempre lá, são maravilhosos, mas a turma enche a cara, eu não bebo, fica todo mundo bêbado, até os meus filhos ficam também, entende? Então não me atrai, no Natal sempre acontece alguma coisa, sempre tem alguma encrenca, alguma batida de carro, sempre tem alguma coisa. E para mim piorou porque a minha mãe morreu no Natal, no dia 24. Então agora que eu não ligo mesmo, agora acabou mesmo, pra mim a perda da minha mãe, 50% da minha vida. Eu sentia bem com a minha mãe, me sentia bem com o meu pai, como eu me sinto bem com os meus filhos, a minha mulher. Meu filho telefonou agora, está preocupado, eu não tenho nada para dar para eles, dei educação, e dei, como se diz, um caminho bom para eles. Mas em casa não tem coisa ruim para aprender não, não tem. E também não admito que eles façam coisa ruim, se eu souber é fogo na roupa. Eles até hoje me respeitam, trato com educação, não bato, acho que a violência traz violência, não para nada, não gosto de ver ninguém apanhando, não sei, não gosto. Agora, a família para mim é muito importante. Eu vivo bem, vivo muito bem. As pessoas dizem que eu vivo muito bem porque vivo mais no serviço do que em casa. Eu fico mais aqui do que lá, mas aqui eu me dou muito bem, eu adoro. Tem fregueses que ficam: “Júlio.” Ontem teve um freguês, um médico que me encheu tanto dizendo que isso aqui está feio. Eu sei que está feio, está horrível, e daí, mas eu gosto assim, se mudar vai ficar ruim, os fregueses vão estranhar, eles vêem aqui para conversar, um conversa com o outro: “Faz tempo que não te vi. E o fulano quando vem?” “Vem amanhã.” “Então amanhã eu estou aí.” Só para conversar. Você acha que o Mauro, o Mauro é uma pessoa que gosta de conversar, gosta. Eu tive caso de compadre do Mauro que morava em Minas, amigo, que ligava para o Mauro e o Mauro falava que não estava, e ele vinha aqui para o salão e falava: “Julinho, liga para o Mauro e fala que você quer falar com ele.” Aí eu ligava: “Oi, tudo bem? Tem uma pessoa que quer conversar com você aqui.” E colocava o outro na linha. A mim ele atendia, o compadre ele não atendia. Que também ele é difícil, não é de muita conversa, só se for com os amigos dele, porque aqui ele não conversa com ninguém. Mas é gostoso.
P - O James Rúbio também.
R - Ah, o James Rúbio.
P - Diretor de televisão.
R - Direto de jornalismo da Record. Esse também é um cara legal. Ney Gonçalves Dias que eu já falei também. O James é uma pessoa muito bacana, muito séria, séria mesmo, não é de prejudicar os colegas, se ele puder ele ajuda. Não fala mal de nenhum colega, nunca. Ele é batalhador, tem até um filho que é presidente da Credicard, trabalhou com o João Dória Júnior, o filho. Mas é uma pessoa muito séria, muito bacana. Mas tem mais, tem algum que está faltando aí.
P/3 - E para a gente finalizar eu gostaria de perguntar o que você achou de hoje sentar aqui e contar a história da sua vida.
R - Eu achei uma maravilha, uma beleza, porque eu falei a verdade e nunca na vida eu ia falar isso para ninguém, como que eu ia conseguir falar isso tudo. É uma oportunidade, tem tanta coisa e eu me sinto realizado, pessoas que eu conheci, que eu nunca tremi perto dessas pessoas, porque em cara que treme, eu nunca tremi. Então eu fiquei muito contente, até minha família está contente, meus filhos e a minha mulher que estão sabendo que eu falei. Eu achei, isso aqui para mim é a única coisa realmente que eu queria na vida. Porque realmente é isso, eu não sou de fazer isso ou aquilo, mas foi importante falar desses fregueses, dos que estão vivos mas dos que morreram também, porque foram meus fregueses e amigos. Então eu fiquei muito contente, adorei essa idéia, fiquei contente mesmo. Devido a seu Mauro e a você.
P - Muito obrigado por essas horas preciosas que a gente ouviu aqui.
R - Se eu falei bobagem, mas é verdade, eu não falei nenhuma mentira. Pode ter certeza que isso aqui é verdade.
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