Fiz faculdade de psicologia e escola de teatro. Viajei como educadora popular por dezenas de cantos do meu Brasil. Conheci corpos oprimidos pela seca, pelo sol, pelo coronelismo, por patrões e patroas. Dancei com esses e outros corpos, entregue na imensidão das manifestações populares e nos ritmos das cinco regiões do país. Viivi diversas personagens nos espaços cênicos da arte. Me transformei no encontro com Paulo Freire e Augusto Boal, concluindo um mestrado. No entanto, foi aos 40 anos, por meio da maternidade que me reinventei.
Dora nasceu em maio de 2014, o mês cantado por Torquato e Milton - com 36 semanas. Foi um tsunami conseguir completar esse tempo depois de perder Caetano com 21 semanas de gestação em 2008, num parto normal - sozinha - no corredor de uma maternidade particular de São Paulo, quando chamei uma médica e avisei que tinha parido. A doutora levantou o lençol, tirou uma tesoura do bolso de seu avental branco, cortou o nosso cordão umbilical, guardou seu instrumento no mesmo lugar que havia tirado e voltou a me cobrir, mantendo o bebê no meio de minhas pernas. Partiu.
Passado cinco anos deste encontro paradoxal entre a vida e a morte eu tive que correr para o PS novamente, desta vez com Dora na barriga. Fiz uma cerclagem de urgência com 17 semanas de gestação e fiquei seis meses de repouso absoluto, sem poder ir nem mesmo até a cozinha, reconhecer meus armários e objetos, ou abrir a porta do meu guarda-roupa que ficava no andar de cima da casa onde vivia. Algumas vezes chorei e rezei para todos os santos e orixás quando precisava usar a força para fazer coco e tinha medo que a pequena nascesse. Mas não, a bolsa estourou no amanhecer de uma quinta-feira-poesia, quase véspera da Copa do Mundo do fatídico 7X1 que o Brasil tomou da Alemanha. Pensando bem, essa chegada prematura foi consequência das diversas conversas que tive com a minha filha na barriga, onde, ao mesmo tempo em que queria que ela ficasse quietinha lá...
Continuar leitura
Fiz faculdade de psicologia e escola de teatro. Viajei como educadora popular por dezenas de cantos do meu Brasil. Conheci corpos oprimidos pela seca, pelo sol, pelo coronelismo, por patrões e patroas. Dancei com esses e outros corpos, entregue na imensidão das manifestações populares e nos ritmos das cinco regiões do país. Viivi diversas personagens nos espaços cênicos da arte. Me transformei no encontro com Paulo Freire e Augusto Boal, concluindo um mestrado. No entanto, foi aos 40 anos, por meio da maternidade que me reinventei.
Dora nasceu em maio de 2014, o mês cantado por Torquato e Milton - com 36 semanas. Foi um tsunami conseguir completar esse tempo depois de perder Caetano com 21 semanas de gestação em 2008, num parto normal - sozinha - no corredor de uma maternidade particular de São Paulo, quando chamei uma médica e avisei que tinha parido. A doutora levantou o lençol, tirou uma tesoura do bolso de seu avental branco, cortou o nosso cordão umbilical, guardou seu instrumento no mesmo lugar que havia tirado e voltou a me cobrir, mantendo o bebê no meio de minhas pernas. Partiu.
Passado cinco anos deste encontro paradoxal entre a vida e a morte eu tive que correr para o PS novamente, desta vez com Dora na barriga. Fiz uma cerclagem de urgência com 17 semanas de gestação e fiquei seis meses de repouso absoluto, sem poder ir nem mesmo até a cozinha, reconhecer meus armários e objetos, ou abrir a porta do meu guarda-roupa que ficava no andar de cima da casa onde vivia. Algumas vezes chorei e rezei para todos os santos e orixás quando precisava usar a força para fazer coco e tinha medo que a pequena nascesse. Mas não, a bolsa estourou no amanhecer de uma quinta-feira-poesia, quase véspera da Copa do Mundo do fatídico 7X1 que o Brasil tomou da Alemanha. Pensando bem, essa chegada prematura foi consequência das diversas conversas que tive com a minha filha na barriga, onde, ao mesmo tempo em que queria que ela ficasse quietinha lá dentro, crescendo para chegar no tempo certo, soprava no ouvido dela para estourar a bolsa antes que o bando de médicos marcassem uma cesárea eletiva e arrancassem ela à força da minha barriga. Isso tudo porque ela foi fruto da geração do empoderamento feminino, do parto humanizado e de inúmeras bandeiras que eu me identificava, mas devido aos limites de minha gestação não me era permitido. Restando (mais) choro.
Completar 36 semanas com o diagnóstico de Incompetência Ístmo-cervical (IIC) - sim, um problema anatômico classificado como incompetência! - seria motivo para soltar rojões e gritar mil vezes “ufa” se a minha menina não tivesse nascido com uma cardiopatia, aliás, com três: CIV, CIA e PCA.
Até ela chegar aos 27 meses eu aprendi tudo sobre o funcionamento desse músculo localizado no lado esquerdo do peito e senti todos os medos do mundo a cada resultado de exame e a cada consulta com os cardiologistas que cruzaram nosso caminho. Dora era magrinha, podia ter trilhões de infecções porque o pulmão era úmido, podia ter a boca roxa, podia não crescer, podia não andar, podia ter que operar, podia cansar, podia muitas coisas ruins que nunca aconteceram, mas sempre me acompanharam como sombras cinzentas que geravam muita adrenalina, atrapalhavam a produção do meu leite e causavam pânico no meu corpo, que já tinha as dores físicas... As fortíssimas dores nas minhas costas por ter vivido o sedentarismo forçado por tanto tempo.
E assim, passado \"cem anos\", no dia 18 de agosto de 2015, depois de todas as tentativas do meu mundo, sem restar outra opção ela foi para a cirurgia. Coração parado. Sangue com circulação extracorpórea e todos os aparatos ininteligíveis para um coração de mãe amedrontado (e de pai, e de vó, e de tias, tios...)
Dora se curou. Desde que balbuciou suas primeiras palavrinhas tinha duas perguntas que a gente adorava repetir inúmeras vezes, só pra escutá-la responder: “Como faz o coração da Dodó?”, e ela: “Bu bu bu bu”, e “O quê que a Dora é?”, e a resposta: “fofa e forte”. Dora é meu amor❤️!
Recolher