Votorantim Fercal DF
Depoimento de Lilia Maria de Morais Silva
Entrevistada por Marcia Trezza e Andreia Aguiar
Fercal, 10/06/2015
Realização Museu da Pessoa
VOF_HV012_Lilia Maria de Morais Silva
Transcrito por Ana Carolina Ruiz
MW Transcrições
P/1 – Lilia, a gente vai começar a entrevista. Começa falando o seu nome completo.
R – Lilia Maria de Morais Silva.
P/1 – Que data você nasceu, Lilia?
R – Vinte e nove de abril de 1965.
P/1 – Onde?
R – Aqui em Brasília mesmo.
P/1 – No Plano Piloto ou numa das cidades?
R – Eu nasci em casa. Na verdade eu nasci aqui, nessa região aqui da Tocantins, que era dos meus avós. Aí eles foram vendendo, a Votorantin comprou, aí com esse dinheiro meus avós compraram lá, que é Batalha, a fazenda lá onde mora toda a família.
P/1 – Aqui onde hoje é a Votorantin era uma fazenda?
R – Era uma fazenda.
P/1 – E quem morava nessa fazenda?
R – Era minha avó. A família da minha avó.
P/1 – Avó por parte de mãe ou pai?
R – Por parte de mãe.
P/1 – Essa sua família, você chegou a morar nessa fazenda ou só nasceu?
R – Eu me lembro, eu tinha um ano de idade, eu me lembro quando eu morava, né? Eu lembro da casinha.
P/1 – Como era?
R – Era uma casinha de pau. Madeira, né? Aí tinha tipo uma grota, que é bem ali que eu lembro, e do outro lado tinha uma roça de melancia. Eu tinha mais ou menos um ano, quase dois anos e lembro.
P/1 – É mesmo?
R – E da melancia você lembra? Chegou a comer?
R – Eu não lembro o que eu comia.
P/1 – Mas da imagem sim?
R – Da imagem sim.
P/1 – Aproveitando, nessa época assim ou mesmo depois que você mudou, que lembranças você tem da sua mãe?
R – Da minha mãe?
P/1 – Como ela era? O que ela fazia com vocês?
R – Eu lembro dela cuidando da gente só. Porque a minha história era assim, eu lembro dela me pegar no colo, que eu comecei a andar com nove anos de idade. Quando eu morava aqui eu tinha um ano, eu andava, aí eu peguei a poliomielite, fiquei sem andar até os nove anos de idade. Eu me lembro quando eu comecei a andar novamente.
P/1 – E você se lembra da sua mãe antes?
R – Eu me lembro dela me pegando assim no colo, cuidando de mim. Sempre fui uma menina protegida.
P/1 – Como é o nome da sua mãe?
R – É Balbina. Aí tem um apelido de Udi.
P/1 – Ela é viva ainda?
R – É viva, graças a Deus. Agora, meu pai, eu tinha seis anos quando ele faleceu. Foi ela que foi pai e mãe pra gente.
P/1 – Quantos irmãos?
R – Dez.
P/1 – Dez filhos?
R – É. Um faleceu tinha sete dias, que foi de tétano, e a outra morreu com 44 anos.
P/1 – Tétano ele morreu com sete dias?
R – Sete dias.
P/1 – Você lembra por que ele teve tétano?
R – Porque naquela época as pessoas não ligavam de fazer pré-natal, né? Aí a criança nascia, não tinha o cuidado de vacinar, aí com sete o mal, disse que falava mal de sete dias, aí ele morreu com sete dias.
P/1 – Do seu pai, apesar dele ter morrido tão cedo, você lembra, tem lembranças dele?
R – Lembro pouco da fisionomia, mas assim de conversa não me lembro.
P/1 – E o que ele fazia, você sabe?
R – Ele era trabalhador rural.
P/1 – E sua mãe?
R – Também, né? Ela também ajudava e trabalhava na roça.
P/1 – Depois que ele morreu você disse que ela foi mãe e pai.
R – Mãe e pai.
P/1 – Como você se lembra dela assim, ela trabalhava em casa ou fora?
R – Não. Sempre trabalhou na roça e tinha ajuda do meu avô, que ele era assim bem de vida na época. Aí que ajudou também uma parte a criar a gente, né?
P/1 – Ele fazia o quê, seu avô?
R – Meu avô era fazendeiro. Tinha fazenda, tinha vaca, tinha coisa de fazenda. Hoje que não tem mais, mas antigamente tinha. Tinha pomar, tinha tudo que é necessário. Aquele pessoal de antigamente não comprava nada, saía pra cidade pra comprar. A única coisa que eles iam comprar, sal, que me eu lembro que era em Planaltina, que Planaltina era de Goiás, hoje é de DF. A gente tinha a carne, a verdura, tudo. Tudo que a gente comia era colhido ali mesmo da terra.
P/1 – Coisa boa.
R – É. Coisa boa. Tudo natural.
P/1 – Lilia, você disse que comprava só o sal. E roupa, calçado, como era?
R – Que eu me lembro, na época eles só compravam roupa de ano em ano, era no Natal. Aí no final de ano iam na cidade, compravam aqueles tecidos, aí faziam uns quatro, cinco vestidos pra cada um na época. Eles mesmos faziam, pronto, passavam o ano ali sem comprar nada. Ano em ano eles iam à cidade, compravam essas coisas. Aí o sabão eles faziam em casa, é tudo assim. E era um local que não tinha energia, era usado lampião, lamparina na época, vela.
P/1 – A costura era feita...?
R – Na mão. Eu me lembro o vestido feito na mão que minha mãe fazia.
P/1 – E você gostava desses vestidos?
R – Nossa, pra mim eram aqueles melhores do mundo quando chegava o Natal pra ganhar os presentes, os vestidos.
P/1 – Vocês iam junto pra cidade?
R – Não. Eu não lembro que eu ia, sempre ficava.
P/1 – Aí quando chegavam os tecidos, como é que era?
R – Aí cada um queria escolher aquele tecido. Era uma festa.
P/1 – E dava pra escolher ou não?
R – Dava. Quando comprava dava pra todo mundo escolher.
P/1 – Você lembra assim de algum que você nunca mais se esqueceu daquele vestido?
R – Eu lembro. Um vestido branco de bolinha preta “todo rodado”, era como falava. Parecia que ia dançar quadrilha.
P/1 – E por que você gostava mais desse?
R – Eu não sei. Porque eu achava bonito, né? Era um modelinho parece que mais bem feito, aí eu gostava.
P/1 – Tinha fita?
R – Tinha laço.
P/1 – Você usou bastante ele?
R – Usei. Usei bastante.
P/1 – Onde que você usou, você lembra? Assim a primeira vez.
R – A primeira vez foi no Ano Novo. No Ano Novo na casa da minha avó que sempre reunia todo mundo, toda a família fazia aquela festa. Depois que ela faleceu, aí acabou a festa.
P/1 – Nunca mais teve?
R – Não.
P/1 – E era nessa fazenda?
R – É, nessa fazenda.
P/1 – Como era assim o dia a dia? Só sua mãe e vocês irmãos moravam nessa fazenda ou tinha os tios também?
R – Os filhos dos meus avós, que são três só. Hoje em dia todos moram lá. Os netos foram casando e estão construindo lá, então já é vila, tem Batalha II e Batalha I, que era uma fazenda só. Batalha I é da minha mãe e dos filhos que vão construindo. Batalha II é da irmã dela, que os filhos, os netos, agora até o neto da minha avó, os bisnetos, tudo construindo.
P/1 – Virou uma comunidade.
R – É. Comunidade que hoje está crescendo.
P/1 – Tudo ali na mesma...
R – Numa fazenda. Hoje não é considerado como uma fazenda igual antigamente, né? Mas é uma comunidade.
P/1 – Você ouviu alguma vez como é que o seu avô conseguiu essa terra?
R – Eu não sei, acho que do trabalho dele mesmo. O pessoal trabalhava bastante na roça, vendia. Eu só sei que eu lembro que ele tinha bastante gado, porco, galinha. Tinha todo tipo de fruta.
P/1 – Porque a Tocantins comprou a primeira fazenda.
R – Só que era da minha avó. A do meu avô eu não sei se eles juntaram dinheiro os dois e compraram lá.
P/1 – Entendi.
R – Mas o que eu lembro é isso.
PAUSA
P/1 – Lilia, e esse nome Batalha, você sabe por quê?
R – Eu não sei. Só sei que a fazenda chamava Brocotó. Quando meu avô faleceu, teve que fazer uma partilha de bens, aí parcelou, ficou Batalha. Não sei qual o motivo. Mas hoje os documentos, que eu acho que é a única terra que tem que paga impostos, são as nossas, Distrito Federal. No documento é Fazenda Brocotó. Aí tem as partilhas de bens, Batalha.
P/1 – Você alguma vez ouviu alguma história que falava desse nome?
R – Não. Eu não sei.
P/1 – Lilia, nós estamos falando sempre dessa fazenda que é quando você se lembra de tudo isso, que comprava o tecido, né? E nessa fazenda moravam os irmãos da sua mãe. Você tinha primos já nessa época que conviviam lá?
R – Eles foram crescendo junto com a gente. Eles foram nascendo junto, sempre junto. Os três filhos moravam juntos. Da minha avó, porque meu avô teve outra filha com outra mulher, mas ela não ficava junto com a gente, ficava em outra fazenda com o marido e tal.
P/1 – Eu perguntei antes, mas acabou a gente não falando mais, como era o seu dia nessa fazenda quando você era criança?
R – Era só brincar, porque não tinha televisão, não tinha energia. Então a gente levantava de manhã... O meu sonho era ir pro colégio, mas eu não tinha condições de ir. Quando eu entrei num colégio eu já sabia ler porque a minha irmã mais velha ficava me ensinando. Ela sabe de onde eu andava a pé da escola, sempre foi aquela escola, até onde eu moro.
P/1 – Quanto tempo levava?
R – No início eu não dava conta de ir. Os meus irmãos mais velhos que me levavam. Depois eu fui conseguindo andar, aí ia embora.
P/1 – Quanto tempo levava o seu irmão pra chegar lá?
R – Umas duas horas. São dois quilômetros.
P/1 – Andando?
R – Andando. Dois quilômetros e é serra, né?
P/1 – Morro?
R – Morro.
P/1 – E pra voltar, você voltava com eles também?
R – Ia e voltava.
P/2 – E como eles te levavam? Carrinho? No colo? Nas costas?
R – Nas costas.
P/1 – E você estudou todo esse... Que idade você entrou?
R – Nove anos.
P/1 – Ah, você entrou com nove?
R – Nove.
P/1 – Então logo aí você começou a andar?
R – É. Logo.
P/1 – Mas era uma distância grande.
R – Grande.
P/1 – Como foi? Você lembra como foi o momento que você parou de andar?
R – Não. Eu não me lembro.
P/1 – Você era muito pequena.
R – Minha mãe disse que eu fui banhar no rio, tava com febre, aí quando eu saí de dentro da água estava com febre, mas foi a doença pólio, não foi por causa do banho.
P/1 – É que você já estava com febre...
R – Devido já estar com o vírus da doença.
P/1 – E ela conta alguma coisa dessa situação? Só isso?
R – Ela não conta. Hoje quando eu estudei e sei como é transmitida eu falei por que, como eu peguei, né? Porque era sempre longe de pessoas, não sei se ela me levou em algum local e tinha alguém com o vírus. Aí eu pergunto a ela, ela não lembra também o que aconteceu no momento.
P/1 – Porque ninguém na família mais, só você.
R – Não. Só eu.
P/1 – E como foi a sua infância, você disse...
PAUSA
P/1 – Você disse que o seu dia era mais pra brincar, você ou seus irmãos trabalhavam com seus pais na lida da fazenda?
R – Os meus irmãos mais... As minhas irmãs, que eram mulheres, os homens eram mais novos do que eu, elas trabalhavam na roça. Até hoje eu tenho duas irmãs que ainda trabalham na roça.
P/1 – E os irmãos também, os meninos?
R – Não. Os meninos, não. Porque sempre os mais novos seguiram pra outro caminho.
P/1 – Lilia, como você não andava até nove anos, você brincava, como eram as brincadeiras?
R – Brincadeira sempre com boneca que gostava muito. Era cortar tecido, fazer roupinha de boneca. Era essa a brincadeira.
P/1 – E seus irmãos com você? Tinha alguma brincadeira especial que você lembra?
R – Não. Eu sempre gostei de brincar com uma prima minha que é quase da minha idade, com ela. Até hoje a gente é mais ligada assim a brincadeira, e os outros irmãos a gente quase não brincava da minha brincadeira.
P/1 – Que era de boneca?
R – É. Que eu ficava mais parada, né? Eles gostavam de correr.
P/1 – E era fazer roupinha pra boneca?
R – Pra boneca. Gostava de boneca.
P/1 – Vocês faziam boneca de pano também?
R – Eu tinha boneca de pano, tinha boneca de plástico.
P/1 – Tinha alguma especial?
R – Tinha. Eu tinha sempre de pano, de tecido. Aí eu ganhei uma de plástico, ela tinha um cabelinho loiro, muito bonita. Eu a guardei tempo depois.
P/1 – E o dia que você ganhou essa boneca, como foi?
R – Oxe, fiquei feliz.
P/1 – Quem que te deu?
R – Foi a mulher do meu tio. Hoje ela é separada dele.
P/2 – A Batalha fica em qual comunidade da Fercal, Lilia?
R – Córrego do Ouro.
P/1 – E esse nome, Córrego do Ouro?
R – Córrego do Ouro... Pela história que eu vejo, era um local de garimpo, onde o pessoal garimpava, aí ficou o nome de Córrego do Ouro. Inclusive a fazenda da minha avó é a nascente do Córrego do Ouro. Do Córrego do Ouro, né? O córrego mesmo de água. Então por isso, eu não sei por que lá Batalha não chama Córrego do Ouro, porque lá é a nascente dele. Mas aí tem a nascente, aí vai descendo pra comunidade Córrego do Ouro.
P/1 – Alguém lá da sua família achou alguma coisa nesse córrego?
R – Tiveram uns garimpeiros, tem mais ou menos 20 anos que eles foram garimpar, minha avó ainda era viva, eles garimparam a noite toda. No outro dia não amanheceram, deixaram tudo. Todo mundo suspeita que eles acharam algum ouro e não voltaram. Não sabe se morreram. Até hoje não voltaram.
P/1 – Isso dentro da fazenda?
R – Na fazenda da minha avó.
P/1 – Eles foram trabalhar pra sua avó...
R – Não. Eles pediram autorização pra minha avó pra garimpar, aí se achassem algum ouro eles iam dividir. Minha avó era assim simples, deixou. Aí eles fizeram isso, deixaram só o local lá onde eles estavam cavando e sumiram.
P/1 – Nunca mais soube?
R – Não.
P/1 – E acharam ouro ali mais pra fora da fazenda? Você tem histórias assim?
R – Não. Que eu lembre, não.
P/1 – Você nunca ouviu assim que alguém achou?
R – Não. Que ninguém também interessa de procurar, né? Pensam que acabou. Às vezes tem até uma pedra grande lá. E ninguém...
P/1 – Lilia, e como você começou a andar depois? Você falou que com nove anos...
R – Tinha nove anos, aí fui pro colégio, estudei até a quarta série lá. Depois fui pra Sobradinho fazer a quinta, o ensino fundamental. Quando eu estava fazendo magistério, aí eu casei. Tive que voltar, parei meus estudos. Aí voltei pra comunidade. Eu tive meus filhos, durante esse tempo eu passei a trabalhar com a comunidade. Eu fui 16 anos líder comunitária da comunidade, mas até hoje eu sou uma líder nata, eu não deixo de estar reivindicando coisa pra minha comunidade, né? A comunidade do Córrego do Ouro é a pioneira em poço artesiano, que na época eu que fui, corri atrás pra reivindicar água potável pra gente e foi colocado lá. Não sei se Tereza lembra, mas foi. E a energia também, passou Boa Vista, a rede, né? Foi a primeira comunidade a ser colocada energia, foi Córrego do Ouro.
P/1 – Que colocaram energia foi lá?
R – Foi. Aí a rede passou por cima de todo mundo. Todo mundo começou a brigar: “Por que Boa Vista não tem energia? Por que Catingueiro não tem?”. Até que todo mundo conseguiu.
P/1 – Passou por cima deles pra chegar na sua comunidade?
R – Água e energia.
P/2 – Lilia, você disse que foi fazer o magistério... Só voltando um pouquinho, lá em Sobradinho, você lembra quantos anos você tinha?
R – Eu tinha 17 anos.
P/2 – Você disse que logo você casou.
R – Aí eu casei com 18.
P/2 – E voltou, né?
R – É. Parei, dei um tempo. Aí eu vi: “Não, tenho que voltar a estudar”. E comecei. Terminei o ensino médio, vinha à noite fazer o ensino médio em Sobradinho. O ônibus chegava lá uma hora da manhã, mas eu terminei. Fiquei trabalhando na comunidade um tempo, depois trabalhei na LBA, na antiga LBA, depois eu fui agente comunitária. Estudei mais, fiz um curso de auxiliar de enfermagem, fiz o concurso, passei em terceiro lugar da Zerbini, aí fiquei trabalhando. Depois fiz a secretaria, passei. Hoje eu sou auxiliar de enfermagem.
P/1 – Parabéns. Antes disso, você falou... Porque como provavelmente foi uma experiência marcante, como que você voltou a andar? Ou melhor, começou aos nove anos, que você falou. Como que você conseguiu isso?
R – Eu me lembro que foi... Eu não fiz fisioterapia nem nada. Foi o meu esforço. Por exemplo, eu tentava levantar em alguma coisa e levantava. Lá na casa da minha mãe tem uma mesa até hoje, aí eu levantava na perna dela. Quando eu botava a mão lá eu estava em pé. Aí foi firmando, né? Foi a minha vontade que fez andar.
P/1 – Foi indo, foi indo...
R – Foi. Aí foi só melhorando com o tempo. Era pra eu não andar, era pra eu ser... Mas com meu esforço e Deus, a minha vontade...
P/2 – Qual foi a sensação da sua mãe quando te viu andando assim?
R – Eu não me lembro.
P/2 – Não?
R – Não. Aí depois eu andei até demais, que eu já andei nessas comunidades todas. Hoje eu estou mais velha, não consigo mais, é mais de carro. Quando a gente começa a andar de carro, aí fica sedentária.
P/1 – O pessoal comenta sobre isso agora?
R – Comenta. Ela até era presidente, a Hilda, eu não me lembro e ela fala que eles vieram do Rio Grande do Norte, e eu casei com um que veio do Rio Grande do Norte. Aí ela disse que quando a gente chegou aqui no Córrego do Ouro, minha mãe falava: “Tem uma mulher que mora ali em cima que tem uma menina que não anda”. Eu não lembro disso. Aí eles iam buscar leite. Ela fala até hoje. Ela se lembra da minha história.
P/2 – Da menina que não andava.
P/1 – E depois acho que ela pensava assim: “Acho que não é verdade, porque eu nunca vi alguém que... A Lilia anda muito”.
R – Não, mas quando eles foram pra lá, eles eram pequenos também, aí eles cresceram juntamente comigo. Eu comecei a ir pra escola, aí eu fui crescendo junto, todo mundo conhecendo todo mundo.
P/1 – E como você conheceu o seu marido?
R – Eu tinha uns 15 anos.
P/1 – E como foi esse namoro? A primeira vez assim que você encontrou.
R – Na verdade eu não queria. Ele queria, eu não queria. Falei: “Ah, não. Não vou namorar esse nordestino feio, não”. Aí foi, de repente parece que a língua paga. Aí aceitei o namoro.
P/1 – Mas como é que ele te convenceu? Conta mais detalhes.
R – Muitas tentativas, mandando cartinha, recado. Eu estudava em Sobradinho, quando chegava... Eu só ia de final de semana, aí fazia festinha pra me convidar pra ir. Foi assim.
P/1 – Ele é vizinho?
R – Ele morava no Córrego do Ouro mesmo, na comunidade lá, e eu morava na Batalha.
P/1 – E como é que ele te viu, te conheceu?
R – Porque a gente estudava junto, né? Eles chegaram criança também lá e fomos crescendo juntos.
P/1 – Aí ele te convenceu, né?
R – Ele me convenceu, ficamos namorando um tempo, uns quatro anos. Depois casamos, eu tive o meu filho mais velho, fiquei nove anos pra ter mais duas, aí tive mais duas filhas. Eu já sou avó, tenho dois netinhos.
P/1 – Olha só.
R – É uma casada e tem a caçula que tem 18 anos.
P/1 – Como chamam os netos?
R – Isabelle e Tales.
P/1 – Que idade eles têm, seus netos?
R – Isabelle, sete e Tales, um ano.
P/1 – São filhos da sua filha, de uma delas?
R – Do meu filho mais velho. Está com 30 anos o meu filho.
P/1 – E eles chamam como, seus filhos? Qual o nome dos seus filhos?
R – Bruno, Samara e Vanessa.
P/1 – E você falou que quis terminar o estudo, e foi lá pra Sobradinho pra terminar. Você disse que chegava aqui a uma da manhã?
R – Uma hora da manhã.
P/1 – Isso todas as noites?
R – Todas as noites. Estava conversando com ela que hoje você não tem aquela segurança mais. Eu chegava uma hora da manhã, às vezes meu marido ia me encontrar, às vezes não. E eu ia sozinha no escuro, não tinha energia, são dois quilômetros e ela sabe, muito difícil chegar, ia sozinha. Hoje eu não vou. Hoje é perigoso, hoje eu não vou.
P/1 – Você não tinha medo?
R – Não tinha medo.
P/1 – Nunca aconteceu nada nessa ida e vinda?
R – Não. Graças a Deus, não.
P/1 – Nunca você viu alguma coisa assim que é: “Ai que medo”?
R – Não. Nem bicho, que era todo mundo conhecido. Não tinha medo, não.
P/1 – E trabalho? Você trabalhou durante esse período todo?
R – Eu trabalhei na LBA, né?
P/1 – Mas era um trabalho voluntário?
R – Não. Era contrato.
P/1 – Ah, tá.
R – Depois a LBA faliu, aí eu passei um tempo sem trabalhar e trabalhava só de voluntária na comunidade como presidente da associação, reivindicando as coisas, melhorias. Hoje nós já temos energia, água potável, falta o asfalto, muita gente.
P/1 – Seu trabalho antes de trabalhar como agente de saúde, seu trabalho como contratada foi na LBA?
R – Foi na LBA.
P/1 – Teve algum outro trabalho, Lilia?
R – Não.
P/1 – O que era esse trabalho na LBA?
R – Esse trabalho era como se fosse um agente comunitário, né? A gente ia na comunidade, fazia cadastro, visitava aquelas famílias necessitadas. A gente fazia entrega de enxovais, sopa, fazia curso na comunidade. Tenho até umas fotos aqui do curso na época no Ribeirão. Aí a gente atendia, eu não trabalhava só no Córrego do Ouro, era da... hoje é Vila do Bode, que hoje é daquela área até o Córrego do Ouro. Era a minha área de atendimento.
P/1 – E vocês faziam visitas?
R – Visitas. Aí a gente chegava numa família, aquela família mais necessitada, estava precisando de alguma coisa, aí a gente pedia lá na LBA as coisas, levava pra ela. Era assim.
P/1 – Na LBA é Legião...?
R – Legião Brasileira de Assistência. Lembro ainda.
P/1 – Quanto tempo você ficou lá?
R – Acho que eu fiquei uns dois anos, não me lembro mais, mas foi isso.
P/1 – E esse trabalho que você tem na comunidade até hoje, como é que ele começou?
R – Olha, começou a gente reunindo na época. Começou justamente com Tereza e Anemaura. Anemaura hoje é falecida, né? Foram as duas que chegaram na comunidade, elas sempre gostavam de mexer com comunidade, aí eu entrei. Entrei nas aulas delas.
P/1 – O que fez com que você começasse? O que elas fizeram ou disseram?
R – Não, eu achei que, não sei, achei que eu deveria fazer alguma coisa pra minha comunidade. Já que eu morava lá e tinha aquelas dificuldades todas, então falei assim: “Eu vou enfrentar. Vou também entrar no meio, correr atrás, ir atrás dos políticos, das autoridades pra trazer melhoria pra comunidade.
P/1 – Elas convenceram ou você já fazia esse trabalho?
R – Não. Foram elas. Começou por elas.
P/1 – E pra você fazer o trabalho na comunidade, como é que começou? Assim, como é que foram as primeiras ações, você lembra?
R – Eu lembro. Sempre reunia, às vezes elas iam fazer reuniões lá e convidavam, aí às vezes eu convidava as pessoas e aí mesmo fazia as reuniões. A gente foi criando a associação. Surgiu uma associação, uma só, o presidente era o Gilberto na época. Aí eu fui a secretária da associação.
P/1 – Que reunia as associações dos bairros?
R – Todos. Depois foi desmembrando, cada comunidade criou a sua. Córrego do Ouro criou a sua, Catingueiro, essas outras comunidades aí.
P/1 – Você era o quê mesmo da comunidade geral? Secretária?
R – Secretária.
P/1 – E como foi que você conseguiu? Porque é um cargo importante, né? É uma função importante.
R – Eu era sempre participante com a comunidade, aí me escolheram.
P/1 – Você disse que muitas coisas vocês conseguiram por meio dos movimentos que vocês fizeram. Como era a participação dos outros moradores essa época?
R – Da comunidade? Quando eu era presidente eles participavam beleza. Eu os convidava pra irem, toda a última sexta-feira do mês tinha reunião e estava todo mundo lá bonitinho. Aí eu sempre trabalhei voluntária, nunca peguei assim dinheiro de associação pra sair, nada. Aí nessa reunião... Eles confiavam em mim, eu falava: “Fui em tal lugar e a gente tem que fazer isso, a gente tem que correr atrás, nós temos que nos unir”. E todos concordavam. Hoje em dia não conseguimos reunir as pessoas como era antes.
P/1 – Por quê? Você tem alguma ideia por que isso não se consegue mais?
R – Não sei. As pessoas vão desacreditando nas pessoas. “Não está fazendo nada, pra que eu vou lá?”
P/1 – Você acha o quê?
R – Eu acho assim, quando a gente está à frente de uma comunidade, você vai porque você quer e você vai sabendo que tem que fazer aquilo por querer, por você que está morando lá e pra todos, por todos. Então você tem que prestar conta, assim: “Olha, eu fui em tal lugar, aí aconteceu isso”. Mas as pessoas de hoje não fazem isso. Você não sabe se o presidente da associação está fazendo, porque não faz uma reunião, não presta conta com a comunidade o que ela está fazendo, aí as pessoas vão desinteressando.
P/2 – Lilia, você disse que ia pra escola, mas como que era a escola, o local?
R – Quando eu comecei a estudar, a escola já era de alvenaria, tudo bonitinho. Mas quando minhas irmãs começaram a estudar... Tinha até hoje o meu pai, seu Almerindo, que hoje está morando na Boa Vista, eles construíram uma escola de madeira e barro. Quem começou a dar aula, era uma filha do seu Antônio Preto, que acho que não tinha nem a quarta série. Com isso, com esse movimento, ia uma professora, dormia, ficava lá meses. Inclusive teve uma que casou com o marido dela de lá da fazenda, porque ficava lá, não tinha como ir embora.
P/1 – Primeiro foi alguém que foi lá...
R – Foi. Iniciou.
P/1 – Depois vinha uma que era...
R – É. Depois veio a professora. Aí foi melhorando a situação lá na comunidade, aí não tinha estrada de carro, construiu a estrada de carro, construiu a escola.
P/2 – Você lembra o ano, quando foi? A idade que você tinha quando aconteceu isso, essa construção...
R – Eu tinha mais ou menos uns quatro anos, por aí, quatro, cinco. Eu lembro da escola, mas não cheguei assim... Por foto, né? Tem foto dela, até na administração de Sobradinho tem uma foto da escola do Córrego do Ouro antigamente.
P/2 – E você lembra o nome da sua professora?
R – A primeira minha professora foi a Elisa.
P/1 – O que você lembra dela?
R – E Célia, dona Célia, essa que casou com o filho do seu Henrique, o boiadeiro, Daniel.
P/1 – Mas a primeira você disse que chamava...
R – Elisa.
P/1 – Elisa. Do que você se lembra dela? Como ela era? De jeito.
R – De jeito? Uma pessoa carinhosa. Dava carinho pra todos os alunos, prestava atenção. Eu sempre fui aluna de destaque, não é porque estou me gabando, não, mas sempre fui a primeirinha da turma.
P/1 – Você gostava da escola.
R – Gostava. Eu me lembro como hoje, ela deu a aula e falou assim, era uma prova: “Todo mundo vai colocar...”, até hoje não esqueço, “Coloca o símbolo do conjunto vazio”. Só eu acertei. Só eu acertei. Nossa, mas eu ficava toda cheia, né?
P/1 – E você parou de estudar assim nesse período, não? Foi até...
R – Não. Fui até o ensino médio.
P/1 – Só parou depois que casou e depois voltou de novo.
R – Depois voltei de novo. E até hoje o meu sonho era fazer uma faculdade, mas o dinheiro não tinha. Então até hoje eu nunca... Odeio ficar parada. Eu quero sair do Catingueiro porque lá é um isolamento. O chefe não traz informações pra gente e eu não gosto disso, eu gosto de sempre estar atualizada. Então por isso que eu sempre pego um livro, leio, sempre atualizando, né?
P/1 – O Catingueiro é onde você trabalha?
R – É um posto de saúde.
P/1 – É muito distante do seu local de moradia?
R – Trinta e dois quilômetros.
P/1 – Você continua na comunidade Batalha?
R – Continuei na Batalha.
P/1 – Trinta e dois quilômetros? E aí você vai como?
R – Eu vinha de ônibus, hoje eu venho de carro.
P/1 – E o transporte, como é pra fazer esse trajeto todo hoje, Lilia?
R – O meu transporte?
P/1 – Não. O da cidade.
R – Tem um ônibus. Antigamente não tinha, hoje tem um ônibus que faz a linha três vezes ao dia, aí os alunos hoje têm ônibus escolar também, que traz os alunos para estudarem na Fercal. Aí busca e traz.
P/1 – Você disse que não gosta de ficar parada, você fez um curso de auxiliar de enfermagem. Fala desse curso pra gente, como foi.
R – Quando eu fiz?
P/1 – Quando e como foi, como que era esse curso? Por que você foi fazer?
R – Na época eu era agente comunitária de saúde. Aí o governo entrou e demitiu a gente, eu falei assim: “Eu não vou trabalhar como agente mais, vou trabalhar como auxiliar de enfermagem”. Aí no próximo governo eu não trabalhei, eu fui estudar. Tinha um projeto que os funcionários que tinham alguma coisa na área da saúde, poderiam se inscrever pra fazer um curso de graça. Eu me inscrevi, só que eu era agente, eu não conhecia nada da saúde, mas aí quando eu olhei lá, o meu nome estava, falei: “Vou fazer”. Era lá na L2 e eu ia todo final de semana, né? Aí eu ia todo final de semana, era: “Ah, você não vai dar conta.” Eu falei: “Dou”. Fiz o curso todo, um ano e seis meses fiz o curso.
P/1 – E você acha que valeu a pena?
R – Valeu a pena que eu terminei o curso em um ano e seis meses. Passaram uns três meses eu fiz o concurso da Zerbini e passei, já comecei a trabalhar. Fiquei trabalhando, depois eu fui da secretaria, hoje eu sou funcionária estatal.
P/1 – Você falou que fez um concurso na Zerbini?
R – Zerbini.
P/1 – Pra trabalhar como agente de saúde?
R – Não. Como auxiliar de enfermagem.
P/1 – Entendi. Você agora pode trabalhar de auxiliar?
R – Já trabalho de auxiliar de enfermagem.
P/1 – Lá no posto como auxiliar?
R – No posto de saúde.
P/1 – E quais são as atividades suas lá no posto? O dia a dia.
R – Lá, às vezes as pessoas chegam, eu faço curativo, faço vacina, injeção, peso, faço a triagem do paciente. A gente faz visita.
P/2 – E como são feitas essas visitas? Vocês iam como pra essa visita? Quando você era agente, vocês faziam visita...
R – A gente tinha que fazer pelo menos, em cada família, uma visita por mês. Pra cada família.
P/1 – Todas. Você tinha que atender todas?
R – Todas. O trabalho do agente é a visita domiciliar. Nessa visita você vai olhar cartão de vacina, ver se a família está precisando de alguma coisa, olhar o ambiente, se é de risco, se tem algum... Na época não tinha Dengue, nessa época era Hantavirose, eram essas coisas, né?
P/2 – Você ia a pé, como é que era?
R – Ia a pé. Fazia as visitas a pé.
P/1 – E era uma extensão grande?
R – Grande. Era Ribeirão, Córrego do Ouro e eu ia de boa.
P/1 – O dia todo era andar?
R – Todos os dias.
P/1 – O dia todo?
R – O dia todo. Eu programava assim, fazia a minha visita de manhã e à tarde ficava no posto de saúde, que lá tem um postinho.
P/2 – Nessas visitas que você fazia geralmente era fazenda, porteira fechada. Nas porteiras fechadas que tinham cachorro, que tinham boi bravo, como é que você fazia? Como é que você fazia pra ter acesso a essas unidades?
R – A gente ficava lá no caminho gritando: “Ei, tem alguém aí?”. Até alguém ver a gente e encontrar. Mas sempre fui bem recebida nas comunidades.
P/1 – E alguma vez passou algum apuro?
R – Deixa eu ver... Já, com cachorro mesmo.
P/1 – Mas nada grave?
R – Nada grave assim de...
P/2 – Você ia sozinha?
R – Não. Lá eram duas agentes comunitárias, uma do Ribeirão e uma do Córrego do Ouro. Aí a gente combinou, falou assim: “Quando for o dia do Córrego do Ouro eu vou junto, quando for Ribeirão eu vou junto”. Aí quando era no Ribeirão eu ia junto, quando era no Córrego do Ouro ela ia junto.
P/1 – Por que vocês resolveram assim?
R – Porque era distante, né? Fazenda uma longe da outra e pra uma pessoa ir sozinha era perigoso. Então duas pessoas era bem mais fácil.
P/1 – E deu certo.
R – Deu certo.
P/1 – Lilia, assim, esse trabalho, como que você vê o trabalho do agente de saúde, o que você já tem passado com esse trabalho? Como é essa experiência de ir na casa das pessoas?
R – É uma experiência assim que você acaba conhecendo todo mundo, né? Hoje eu conheço acho que 90% das pessoas por causa disso, de visitar, conhecer a família. É muito bom esse trabalho.
P/1 – Você já era liderança comunitária antes, né?
R – Já. Era.
P/1 – O fato de você ser liderança teve alguma influência nesse seu trabalho?
R – De agente, teve. Eu acho que teve.
P/1 – Por quê?
R – Porque na época era escolhido, né? O agente comunitário tinha que ser líder.
P/1 – Ah, é?
R – Hoje não. Mas o agente tinha que ser líder comunitário.
P/1 – Quanto tempo faz que você é líder? É agente?
R – Eu não sou agente mais, sou auxiliar de enfermagem. Eu fui...
P/1 – Até quando?
R – Tem uns 15 anos que eu fui.
P/1 – Eu achei que você trabalhasse como agente sendo auxiliar, entendeu?
R – Não. Eu sou auxiliar de enfermagem.
P/2 – Nessas visitas que você fez já teve casos de você chegar, a pessoa não ter nenhum problema de saúde, mas necessitar apenas da sua atenção, e você ver que aquilo ali é um problema mais sério ou tão sério como se fosse um problema de saúde?
R – Várias vezes. Várias famílias às vezes ficavam ali isoladas e quando a gente chegava parecia que estava chegando um deus. Até hoje. Foi tão engraçado, eu cheguei no Catingueiro um dia desses, aí uma senhora falou assim: “Lilia, eu tenho um presente que nós brincamos de amigo oculto até hoje”, que eu não me lembrava disso. Entendeu? Então a gente chegava na casa delas, aí eles faziam de tudo pra agradar você. Hoje eu não sei se os agentes veem dessa forma, mas quando eu trabalhei era assim.
P/1 – Você disse que às vezes eles estavam isolados. Fala um pouco disso.
R – Não tinha, por exemplo, alguém pra conversar, aí você chegava e começava a conversar com eles. Às vezes era até solidão, né? Aquelas pessoas que estavam nessa situação, a gente ia mais. Eu combinava com a minha colega: “Vamos na casa de Fulano. Vamos de novo na casa de Fulano”. Não ia fazer nada, só pra fazer companhia e conversar um pouco com elas.
P/1 – Geralmente tinha uma faixa de idade que a pessoa estava sozinha?
R – Geralmente eram uns viúvos, ficava sozinha viúva. E também tinha casado, porque não sei, parece que, por exemplo, a mulher... O marido saía pra trabalhar, levantava de manhã, tinha que ir trabalhar, chegava de noite. Então ela se sentia sozinha.
P/2 – Lilia, você falou da sua juventude, que conheceu seu marido, mas como que era diversão? Vocês rapazes e moças nesse lugar? Já tinha energia quando vocês saíam? Como que eram as festas?
R – Não tinha energia. Eram de lampião as festas, era escuro, mas tinha festa. Todo final de semana numa casa tinha uma festa, em outra casa tinha uma festa e a gente ia. O som era aquela radiola que colocava o disco. Hoje eu falo pras minhas filhas, elas falam: “Não acredito. Vocês dançavam no escuro?”. Eu falo: “Uai, era”. E era boa a festa, né?
P/1 – E como é que a radiola rodava?
R – À pilha.
P/2 – Quando você começou a namorar seu marido, que hoje é seu marido, vocês cresceram juntos na mesma comunidade ou foi assim, pá, amor à primeira vista já depois de adultos?
R – Não. A gente cresceu junto. Ele veio do Rio Grande do Norte, acho que tinha seis anos. Aí ficou morando no Córrego do Ouro. Aí a gente estudou na mesma escola, eu saí pra estudar em Sobradinho e ele sempre ficou na comunidade. A gente se conhecia desde pequeno.
P/1 – Então, agora você está trabalhando como auxiliar de enfermagem nesse posto e qual assim tem sido a principal atividade sua? Como é que é esse trabalho?
R – Eu chego no posto de saúde sete horas. Aí eu faço acolhimento das pessoas, faço triagem, às vezes chega alguém pra fazer curativo, pra retirada de pontos. Tem a vacina também das crianças e de adulto. Esse é o meu trabalho no dia a dia.
P/1 – Sim. Você tinha dito que fazia tudo isso, mas o que você observa no posto, como que é esse movimento lá? Em tudo isso que você faz.
R – O movimento da população?
P/1 – É. O que você vê lá? Como que é a sua relação com essas pessoas?
R – Eu com o público, ótima. Tenho certeza. Acho que não tem quem reclame. Chega lá, às vezes a gente pode até estar passando dificuldade, alguma coisa, mas eu chego no meu trabalho com a cara de sempre, tratando as pessoas educada, nunca maltratei nenhum paciente. Sempre trato com carinho, pode ser pobre ou rico, pra mim é uma coisa só.
P/2 – Você como líder participou de algum movimento, de alguma viagem? Participou de algo assim que te ensinou e te fortaleceu como liderança?
R – Viagem assim pra fora não, porque eu não quis, que tive oportunidade. Na época a federação convidou, tudo, mas eu não quis viajar.
P/1 – Por que você não quis?
R – Não sei. Não quis.
P/1 – Não quis. Tá. Mas ela estava perguntando o que trouxe...
P/2 – E essa experiência de liderança?
R – Eu acho que já vem, é nato. Até lá na minha família: “Onde nós vamos fazer o almoço de Natal?” Aí tem que me comunicar primeiro, eu falo: “Ai, vocês é que sabem”. “Não, é na sua casa?”, “Então vai ser na minha casa”. Sempre é na casa da minha mãe, ou na minha, ou na dela. Aí reúne todo mundo, aí faz a festa de final de ano, Natal.
P/2 – Lilia, fala um pouco das atividades culturais lá da tua comunidade.
R – A Batalha é uma comunidade cultural já, né? É catira, é novena, é folia. É o ano todo assim trabalhando. Setembro tem folia, uns finais de semana junta o pessoal pra dançar catira. Quando não é catira é roda de viola. Em janeiro tem a novena, que a gente fala Novena São Sebastião. Nove dias cada um da família faz a sua novena, quando chega dia 20 de janeiro é a festa final, que é no dia 20 de janeiro.
P/1 – E a catira sempre teve ou vocês reorganizaram?
R – Olha, a catira estava morrendo, né? Alguns sabiam, outros não. Falou assim: “Não vamos deixar morrer, não”.
P/1 – Quem?
R – A gente. Nós da família lá. Aí começamos. Os meninos ensinaram as meninas, eu criei um grupo de catira feminino e elas eram boas pra dançar. Depois eu não sei o que deu, desmoronou, olho gordo. Aí elas casaram também, mas elas dançam ainda. Quando é na folia, elas dançam catira.
P/2 – Essas meninas eram quantas meninas na época, Lilia?
R – Eram 26.
P/2 – Mas ainda tem muitas lá na comunidade delas?
R – Tem. Todas estão lá. Todas dançam também quando é na folia, elas dançam.
P/2 – Se for pra dançar, elas dançam?
R – Dançam.
P/1 – A catira é uma parte da Folia de Reis? De Reis não, desculpa, do Divino.
R – Tem a Folia do Divino que não dança forró, aí dança catira.
P/1 – Então as meninas que dançam catira, a catira quando você organiza faz parte da folia?
R – Faz parte da folia.
P/1 – E você lembra alguma música pra cantar pra gente?
R – Ah, eu lembro, mas não sei cantar.
P/1 – Nem um pedacinho?
R – Não sei.
P/1 – E dançar a catira, você sabe?
R – Não. Só incentivo o povo.
P/2 – Esses membros que casaram, as moças que casaram, elas têm algum impedimento dos maridos quando têm que fazer alguma representação de catira, eles autorizam ou liberam assim sem precisar?
R – Não. Eles liberam. Vai da vontade delas, se elas quiserem ir, elas vão.
P/1 – E eles participam também, os esposos?
R – Alguns participam, outros não sabem nem o que é catira.
P/1 – Mas não tem uma pressão de algum deles assim?
R – Não. Elas são liberais.
P/1 – E você estava falando das festas, você participa organizando todas elas ou mais a catira?
R – Não. As festas geralmente junta todo mundo pra organizar. A folia junta todo mundo pra ajudar, as novenas. A novena é um... Minha mãe está com 75 anos mas tem que fazer a novena. Ela fica lá, mas ela não faz nada, só organiza, tem que fazer o que ela quer, mas tem que fazer. Cinco dias fazendo biscoito, tem que matar porco, sabe? E é tudo pra dar no dia, entendeu? No dia elas dão o café da manhã, dão o almoço e dão o lanche das três horas. Aí tem a missa, tem a reza, né? Aquela tradição. Tem um terço e uns cantos lá.
P/2 – Além de tudo isso, vocês sorteiam alguma coisa, leiloam?
R – Tem leilão. Aí as pessoas vão... Por exemplo, um dá uma galinha pro leilão. Um dá, faz um artesanato, doa pro leilão, é assim. Um dá um litro de vinho, outro dá uma garrafa de pinga. É assim.
P/1 – E os jovens nessas festas?
TROCA DE CARTÃO
P/1 – Como é que os jovens têm participado dessas festas todas que você falou?
R – Eles participam 100%. Eles gostam, as crianças, os jovens. Quando dá época de folia, você vê todo mundo a caráter, é bota, calça e chapéu. É mulher, é homem, é criança, é tudo.
P/1 – Da comunidade, né? E quem é de fora?
R – Da comunidade e das comunidades vizinhas também.
P/1 – Eles se vestem a caráter?
R – A caráter.
P/1 – Eu vi que tem uma Folia do Divino, é a mesma toda a região da Fercal?
R – Tem várias. A Fercal sempre tem uma única que é do Divino de setembro. Aí tem Planaltina, tem Brasilândia. É o ano todo tendo folia e os jovens gostam muito dessas folias. Reúne mais de três mil pessoas.
P/1 – Aqui em Fercal?
R – Aqui em Fercal. Lá na minha mãe são três mil cavaleiros.
P/1 – Mas é a mesma que... Quando você fala na sua mãe, é a mesma que as pessoas falam de Fercal?
R – É. Mas ela geralmente gira pra área rural, né? Aí tem uma também do padre que é mês de outubro, que ela sai de lá da área rural e entrega por aqui, Fercal. Ou Sobradinho II ou aqui Fercal.
P/1 – Aí já é outro grupo?
R – É outra folia. Chama “Folia do Padre”, que foi o padre que pediu a folia e ficou “Folia do Padre”. Essa é do mês de outubro.
P/1 – E essa de três mil pessoas, três mil cavaleiros, é folia...? Como que chama assim? Essa é Folia do Padre...
R – Todas são Folia do Divino.
P/1 – Do Divino mesmo, né? E você sabe quem começou a puxar essa folia?
R – Sei. A folia tinha sido extinta. Aí a Mércia, essa que deu... O sobrinho dela, que era amigo do meu irmão, falou: “Gente, não vamos deixar a folia acabar, não. Vamos fazer a folia”. Aí, lá na Batalha, que é onde minha mãe mora, tem uma capela. Aí, os dois sentados lá em casa, falaram assim: "Vamos fazer uma folia?”. “Vamos”. Aí fizeram a folia, juntaram mais ou menos 50 pessoas, só foi aumentando. Aumentando, aumentando e hoje...
P/1 – Como é que eles começaram, você se lembra disso? De detalhes.
R – Dos dois conversando. Eles dançavam.
P/1 – Vão fazer a folia... E depois como que foi?
R – Aí minha mãe prometeu: “Se vocês fizerem, eu dou um pouso”, que falava assim. Aí na época ela arrumava. Até hoje, se falar assim, “é folia”, ela banca sozinha, entendeu? Aí ela começou, outras pessoas já falaram: “Não, eu quero na minha casa”. Foram passando pra um, pra outro, aí foi aumentando.
P/1 – E passa por aqui, por exemplo?
R – Passa. Da Fercal pra lá eles vêm, giram, voltam.
P/1 – Mas aí seu irmão, qual foi o próximo passo dele pra conseguir organizar tudo?
R – Tem um que canta o canturi, aí tem que correr atrás, aí eles foram, eles conheciam, né? Os que comandam a folia. Porque tem as pessoas que comandam. Eles foram atrás, aí até hoje a folia.
P/1 – Marcaram o período.
R – Marcaram o período. Eram dois dias, começava num canto, chegava no outro, agora são três, quatro dias girando.
P/1 – E essas pessoas que eles chamaram, eram aqui de Fercal?
R – Era mais próximo lá, mas participaram outras pessoas de fora. Hoje vem gente de Brasilândia, Brasilinha, tudo pra participar da folia.
P/2 – Essa folia que você fala é aquela de Planaltina, a Folia do Divino?
R – Essa é outra lá.
P/2 – Outra lá, né? Mas é a mesma...
R – É o mesmo jeito, mas tem uma lá de Planaltina.
P/1 – São outras pessoas?
R – São outras pessoas, mas as pessoas daqui vão participar lá também.
P/1 – Os que puxam são outros, mas as pessoas acabam participando sempre nas várias.
R – São outros.
P/2 – Então não foi em Planaltina que o seu irmão foi buscar apoio pra voltar pra cá?
R – Não. Eles iam na folia. Aí quando: “Ah, tem uma folia em Brasilândia”. Eles iam participar lá, aqui não tinha folia, aí eles criaram essa folia. A promessa desse menino era de ou a folia sair da capela ou chegar, tinha que chegar. Hoje já mudaram o roteiro um pouco, tem ano que não passa, mas a promessa dele é assim. E ele era um PM, ele foi morto em Planaltina trabalhando, um bandido atirou na cabeça dele, ele morreu. Aí ficou o irmão dele comandando. Até hoje falar “é folia”, eles estão lá ajudando, entendeu?
P/1 – Sempre é promessa, né?
R – Sempre é promessa. Aí um fala: “Vou tirar folia o ano que vem”. Agora é tanta gente que, sabe, já está programando pra 2020, pra cada um na casa de uma pessoa, faz a promessa.
P/1 – Aquele que quer tirar a folia porque fez promessa, vai sair da casa dele ou chegar na casa dele?
R – Ou chegar, ou pousar a folia.
P/1 – E quem oferece pra chegar ou pra sair, ele é que organiza tudo, a comida...
R – É. Quem pede tem que ter essa responsabilidade, mas acabam outras pessoas ajudando. Muitas pessoas ajudam, um leva arroz, outro: “Eu vou dar um boi”. Outro dá um boi, outro dá galinha e acaba ajudando. Mas quem pedir tem que se responsabilizar, se não ganhar, ele tem que fazer.
PAUSA
P/1 – Então, a gente estava aqui dizendo, Lilia, antes da pausa, que você liderou vários movimentos. Qual era o desafio? Como que você se sentia tentando conseguir as coisas?
R – Eu gostava. Até hoje eu gosto. “Vamos fazer qualquer coisa”, aí eu: “Vamos”. Eu sou mestra pra: “Então vamos fazer isso, fazer aquilo”. Aí nós criamos a Associação Catira do Batalha. Eu sou diretora de designer com as meninas. Aí as meninas dispersaram, agora são os meninos. Hoje o presidente é meu irmão, o Edson, que organiza as catiras, essas coisas.
P/1 – Mas catira eu entendi que era só de menina.
R – Não. É de criança, de homem. A catira não acabou, acabou o grupo de meninas, mas a catira, não.
P/1 – E você, quando você fez, além do movimento da catira, da participação... Quando você conquistou a energia, conquistou a água...
R – Antes de eu trabalhar na LBA, eu comandei uma creche também no centro comunitário. Eu saía louca caçando, corria atrás de um, corria atrás de outro, eu sempre ganhava. Aí ia mantendo aquela creche lá. As famílias gostavam, que levavam as crianças de manhã, quando iam pegar estavam banhadinhas, já jantadas, tinha tempo delas trabalharem. Pelo menos lá na roça trabalhavam: “Hoje deu tempo de eu plantar isso. Hoje deu tempo de eu cuidar da minha horta”. E deixavam os meninos lá.
P/1 – Você que teve a ideia dessa creche?
R – O projeto era da LBA, mas eu comandava na época. Por exemplo, as outras creches que tinha, não corriam atrás de benefício, ficavam visando só o benefício da LBA, não conseguiam nada. Às vezes não tinha coisa pras crianças comerem e lá, não. Lá eu chamava as mães, falava assim: “Nós estamos aqui voluntários, então se vocês quiserem que as crianças fiquem aqui, vocês vão ter que ajudar”. Elas levavam sabonete, sabão, a verdura, fruta, comida não faltava. Levavam da própria comunidade, levavam pra creche, às vezes levavam leite. Elas queriam que os filhos ficassem ali pra dar tempo delas cuidarem da casa, fazerem alguma coisa.
P/1 – E o dia que chegou a energia na comunidade, você se lembra desse momento?
R – No dia a dia mesmo não. Mas eu lembro que a dona Weslian Roriz, tenho até a foto com ela, foi de avião. Chegou lá de helicóptero, todo mundo... Pousou lá no campo de futebol, Tereza sabe que tem ela lá na foto. Eu lembro dessa... Aí foi inaugurar a água e energia.
P/2 – Depois que você saiu da associação, a gente sabe que você lutou bastante, você teve muito apoio da comunidade. Quais as outras conquistas que vieram ou parou, estacionou?
R – Acho que está na mesma. Está acabando. O centro comunitário está fechado, as máquinas que tinha estão em cima uma da outra lá. Está acabando. Não tem mais grupo de pessoas trabalhando.
P/1 – Tinha lá?
R – Tinha.
P/1 – As máquinas de costura?
R – Tinha grupo de costura.
P/1 – Vou te perguntar uma coisa, não sei se você pode me responder. Enquanto você sendo da comunidade, não tem como cobrar alguma ação de quem está dirigindo a associação?
R – A gente cobra, mas é o que eu falo, não tem assim a oportunidade. Às vezes, a pessoa: “Eu sou presidente da associação”... Tá, mas não reúne a população pra conversar. Às vezes está precisando de uma ajuda da própria comunidade. Eu trabalhava, eu não fazia sozinha, a comunidade era junto, eu não tinha condições. “Eu vou fazer isso”. Não. “Nós vamos fazer”. Eu sempre falava assim: “Nós vamos fazer. Nós conseguimos”. Não falava “eu consegui”. Não. “Nós. Nós conseguimos”.
P/1 – E o nós... eles iam mesmo?
R – Iam. Toda última sexta-feira eles estavam lá. Aí fala: “Ah, porque tem que fazer um chamariz”. Eu não sei. Tereza está aqui de prova que eu nunca fiz uma coisa e saí pedindo. Eu pedia a eles, entendeu? Eu falei: “Nós vamos fazer uma reunião, você traz um prato de bolo, você isso, você aquilo”. Todo mundo chegava lá com seu pratinho.
P/1 – Não é ter o bolo pra chamar as pessoas, né?
R – Não.
P/1 – Como chamariz, é isso que você está dizendo?
R – É. Por exemplo, ela fala: “Eu tenho que fazer isso pra chamar a população”. Não é. Você tem que fazer com que eles também te ajudem, porque não adianta, né? Se eu ficar em frente à comunidade, eu sozinha fazer pra comunidade... Não. Eles têm que fazer a parte deles. Eu sempre colocava isso em reunião: “Vocês têm que fazer sua parte pra gente conseguir isso”. Mutirão. É imensa a área, mas a água foi feita em mutirão comunitário. E a comida? As próprias pessoas que faziam comida, eu falava: “Gente, eu vou precisar de cinco mulheres pra fazer comida aqui pro pessoal que vai trabalhar. Não vai cavar o buraco, mas vai fazer a comida”. “E quem não puder vir?”. “Então doa as coisas”. Aí um dava uma galinha, um dava um arroz, um dava o feijão. Ia todo mundo pro centro comunitário fazer a comida pra quem estava trabalhando. E funcionou porque todo mundo ficou com água.
P/1 – Fizeram a parte de cavar pra por os canos?
R – Não foi a Caesb, foi a comunidade.
P/2 – Você acha que a comunidade sente saudade desse convívio?
R – Eles sentem: “Por que você não fica?”. Falei: “Não”. Por quê? Eu explico pra eles, não porque eu não quero ajudar vocês ou a mim mesma. Porque eu tenho meu trabalho e meu trabalho depende da minha pessoa física ali. Como que eu vou numa reunião e tenho um curativo lá no posto pra eu fazer? Não tem como, né? Quando eu era agente comunitária dava pra eu conciliar alguma coisa. Eu não vou na casa dessa pessoa, mas vou na reunião e amanhã eu vou lá. Entendeu? Eu não posso pegar uma responsabilidade, porque eu não vou dar conta, não vou conseguir fazer o que eu quero fazer pra eles. Então eu optei por meu trabalho.
P/1 – E você acha que hoje na comunidade, onde você mora, ainda há necessidade de mobilização das pessoas pra conseguir mais benefícios?
R – Tem muita... A associação não existe mais, está parada. Dizem que estão fazendo outro estatuto, mas a gente não vê nada assim de movimento. Eu falei pra Hilda: “Ou ruim ou não, eu acho que você tem que ficar”. Aí ela: “Mas não vou ficar mais”.
P/1 – Pra quem você falou?
R – À nossa presidente. “Porque eu não aguento, o povo fala demais”. Porque ninguém quer assumir a responsabilidade e as pessoas são assim, quando elas veem uma pessoa ali elas pensam: “É muito fácil. Eu quero entrar”. Quando elas vão, entram ali, elas veem que é dificuldade, aí começam. Aí não dão conta de nada. Eu sempre falo isso quando eu estou numa reunião, falo; “Gente, vocês têm que saber, presidente de associação, líder comunitário não é fácil, não. Vocês têm que assumir a responsabilidade de estar em frente a uma comunidade pra procurar fazer um trabalho voluntário. Você não entra com o objetivo de ganhar alguma coisa, você vai ter que entrar pra trabalhar pra outras pessoas”.
P/1 – Mas hoje você... Não sei se você consegue observar isso, a associação está mais enfraquecida porque a população acha que não precisa mais se organizar, já está tudo resolvido... Ou precisa sim, ainda tem muita coisa a se fazer, mas não tem organização?
R – Falta organização.
P/1 – O que ainda tem a acontecer na comunidade, poderia ter mais conquistas? O que seria?
R – Falta muita coisa. Melhorar escola, ensino médio que não tem, só tem até a quarta série. Estrada, asfalto. Falta muito, muito, muito.
P/2 – Lilia, voltando assim um pouco a sua infância, você disse que teve pólio, né? Você ficou com algumas sequelas da pólio?
R – Fiquei.
P/2 – Ficou, né? E como foi essa superação? Porque imagino que não tenha sido fácil ter ficado até os nove anos sem estudar e depois ir pra cidade. Fala um pouco pra nós como que foi...
R – Hoje eu me superei, né? Mas assim, quando eu entrei no colégio, teve uma mulher... Eu não guardo mágoa, mas sempre tem a discriminação, né? Quando eu estava na fila ela me beliscava. E era só eu, não eram outras pessoas, não, só eu. Mas eu sempre fui meio calada. Eu afastava, ficava no meu canto, mas até hoje eu não consigo encarar.
P/2 – Por que ela te beliscava?
R – Eu não sei, acho que era discriminação.
P/1 – Era criança?
R – Não. Era maior que eu, eu era menor que ela.
P/2 – Era na escola isso?
R – Na escola. Ela não gostava de mim. Então eu me sentia assim rejeitada, né? Eu, criança ainda, uns dez, 11 anos, falei assim: “Eu tenho que gostar de mim. Eu tenho que me aceitar desse jeito”. Hoje, eu pra mim, que eu não tenho nada, entendeu? Resolvo minhas coisas com segurança, com tudo. Superei tudo.
P/1 – Muito bom. Então, a gente já está terminando. Você quer falar, contar alguma coisa que a gente não perguntou, mas que você quer deixar registrado aqui na sua história? Algum acontecimento? Alguma situação?
R – Um acontecimento é o meu crescimento. Eu acho assim, quando às vezes eu estava em casa desempregada, eu falava: “Meu Deus, eu tenho que conseguir as coisas. Eu vou estudar, eu tenho que arranjar um trabalho”. Porque é tudo mais difícil, meu marido sempre trabalhou lá na roça, né? Aí a dificuldade vinha. Eu tinha um filho só, aí vieram mais duas, mas ele sempre me ajudou, ele sempre cuidou das minhas filhas, do meu filho, ele cuida igual uma mãe. Eu saía pra estudar, aí eu, na minha evolução... Minha casa era chão batido, terra, de adobe. Hoje eu consegui ter uma casa, consegui comprar um carro. Eu comprei um Corsa que não era automático, eu tirei minha carteira, aí não era automático, eu falei assim: “Deus, eu tenho que...”. Esse ano de 2015 eu comprei o meu carro. Então é minha vitória. Eu falei assim: “Eu não tenho nada que pedir a Deus. Eu só tenho que agradecer”.
P/1 – Muito obrigada. Parabéns.
R – Obrigada.
FINAL DA ENTREVISTA
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