Projeto Santa Cruz Cabrália e Belterra
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista de Maickson dos Santos Serrão
Entrevistado por Gustavo Ribeiro Sanchez
Código: SCCB_HV017
Santarém, 23 de Setembro de 2012
Transcrito por Anna Laura Alves de Carvalho
Revisado por Luana Baldivia Gomes
P/1 – Beleza. Bom, Maickson, então boa tarde. Pra começar vou pedir pra você falar seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R – Boa tarde, eu sou o Maickson dos Santos Serrão, eu sou da Vila de Boim, Rio Tapajós, Santarém, Pará. Nasci no dia 28 de janeiro de 1992.
P/1 – Você sabe a origem do seu nome? Conta um pouco pra gente, como é que surgiu seu nome.
R – A minha mãe, como milhões de pessoas do mundo inteiro são fãs do Michael Jackson, ela gostava muito, era um ídolo dela. Então ela juntou Michael e Jackson e colocou meu nome Maickson em homenagem a ele.
P/1 – Legal.
R – Aí ficou, e ela queria também um nome diferente, ela não queria outros nomes que já tem aqui na região.
P/1 – Você falou um pouco do seu pai, e qual o nome do seu pai e da sua mãe?
R – A minha mãe é Rosicleia dos Santos Serrão, e o meu pai é Pedro Neto; não sei completo porque ele me abandonou quando eu tinha um ano de idade. Eu fui criado pelo meu padrasto.
P/1 – Entendi. E você conheceu seus avós por parte de mãe?
R – Eu conheci apenas minha avó. Quando eu nasci o meu avô já tinha morrido, e conheço apenas minha avó, o nome dela é Soraia dos Santos Serrão.
P/1 – E da sua avó, o que você lembra da infância? Lembra duma comida gostosa que ela fazia, o que você lembra da sua avó?
R – O que eu lembro da minha avó é que ela tem muitos netos e eu sempre... Eu e o meu irmão fomos criados por ela – meu irmão mais velho, que minha mãe deu ele –, e ela sempre gostou muito da gente, sempre tentou trazer algum presente da cidade, quando vinha pra...
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Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista de Maickson dos Santos Serrão
Entrevistado por Gustavo Ribeiro Sanchez
Código: SCCB_HV017
Santarém, 23 de Setembro de 2012
Transcrito por Anna Laura Alves de Carvalho
Revisado por Luana Baldivia Gomes
P/1 – Beleza. Bom, Maickson, então boa tarde. Pra começar vou pedir pra você falar seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R – Boa tarde, eu sou o Maickson dos Santos Serrão, eu sou da Vila de Boim, Rio Tapajós, Santarém, Pará. Nasci no dia 28 de janeiro de 1992.
P/1 – Você sabe a origem do seu nome? Conta um pouco pra gente, como é que surgiu seu nome.
R – A minha mãe, como milhões de pessoas do mundo inteiro são fãs do Michael Jackson, ela gostava muito, era um ídolo dela. Então ela juntou Michael e Jackson e colocou meu nome Maickson em homenagem a ele.
P/1 – Legal.
R – Aí ficou, e ela queria também um nome diferente, ela não queria outros nomes que já tem aqui na região.
P/1 – Você falou um pouco do seu pai, e qual o nome do seu pai e da sua mãe?
R – A minha mãe é Rosicleia dos Santos Serrão, e o meu pai é Pedro Neto; não sei completo porque ele me abandonou quando eu tinha um ano de idade. Eu fui criado pelo meu padrasto.
P/1 – Entendi. E você conheceu seus avós por parte de mãe?
R – Eu conheci apenas minha avó. Quando eu nasci o meu avô já tinha morrido, e conheço apenas minha avó, o nome dela é Soraia dos Santos Serrão.
P/1 – E da sua avó, o que você lembra da infância? Lembra duma comida gostosa que ela fazia, o que você lembra da sua avó?
R – O que eu lembro da minha avó é que ela tem muitos netos e eu sempre... Eu e o meu irmão fomos criados por ela – meu irmão mais velho, que minha mãe deu ele –, e ela sempre gostou muito da gente, sempre tentou trazer algum presente da cidade, quando vinha pra cidade receber o salário dela, voltava pra comunidade e levava alguma lembrança, algum presente. E eu e meu irmão sempre éramos considerados os preferidos dela, os outros netos ela não gostava, só gostava da gente [risos]. Então minha infância nos primeiros anos sempre foi marcada por isso. Ela não era assim tão carinhosa, ela teve uma vida dura, assim, muito difícil, e não era muito carinhosa – daquelas avós de estar beijando, abraçando –, mas ela tinha o carinho da maneira dela.
P/1 – Você falou dos presentes, o que ela dava pra vocês? Ela contava histórias?
R – Sempre, no interior, sempre… A energia, são poucas horas de energia, três horas apenas por noite, e na minha infância quase não tinha energia, então o entretenimento noturno são contos que as pessoas mais velhas narram – contos, mitos, coisas que aconteceram e que são lendas na região. Então minha avó e minha tia sempre contavam, todo o pessoal da família ia pra casa dela e ficávamos horas ouvindo as histórias, e depois quando saíamos ficávamos até um pouco amedrontados. Os presentes que ela levava eram alguns… Alguma roupa, alguma coisa assim, ou algum outro alimento que geralmente não tem lá. Assim, hoje em dia já tem pão, mas antes não tinha, então ela levava um pão, ou alguma comida diferente de lá, alguma coisa do tipo.
P/1 – Você falou agora um pouco dessas histórias, tem alguma que você lembra que te deixou com mais medo e você não esqueceu?
R – Assim, lembro bastante da história do Pataui, que é um ser que dizem que até hoje passa altas horas da noite no interior, o assobio dele é muito forte, que se a pessoa encontrar com ele, ou ver, tem muita dor de cabeça, ele dá porrada na pessoa... Então, assim, eu sei que as pessoas têm muito medo, então evita estar andando uma hora, duas horas da manhã, nesse período em locais que não têm casas, que é um pouco deserto, evitar um pouco dentro da mata nessas horas. Então ela contava muito essas histórias do Pataui, que já tinha batido em algumas pessoas, que tinha mulheres que tinham ficado com dor de cabeça por estarem menstruadas e estarem andando sozinhas à noite. Então essas coisas eu lembro bem.
P/1 – E você falou um pouco da sua mãe e da sua avó, o que elas faziam? O seu padrasto também, né... O que eles faziam, qual era o trabalho deles?
R – A minha avó sempre trabalhou em roça e ela perdeu o marido dela, ficou viúva cedo... Ela trabalhava em roça e posteriormente virou soldada da borracha, porque aqui muitas pessoas da região são soldados da borracha, aí hoje em dia ela não trabalha mais em roça. Recebe dois salários do governo, mas mora com um tio meu, em outra comunidade, não mora onde eu moro. A minha mãe sempre... Ela estudou até a sétima série, não teve muito… Ela foi de brincar pouco, desde cedo teve que trabalhar em casa de família, sempre trabalhou como empregada doméstica, ela saiu pra alguma cidade. As pessoas da cidade vão no interior, iam pelo menos muito mais antes, pegar meninas pra vir trabalhar como empregada doméstica nessas casas, prometem estudo, prometem uma vida melhor, mas querem apenas empregadas domésticas, então desde cedo ela veio pra cidade, mas pra trabalhar como empregada doméstica. E depois ela engravidou do meu irmão aos 16 anos de idade, e com 23 ela me teve, então voltou pro interior. Mora até hoje lá, trabalha também… Trabalhou em roçado, e hoje em dia trabalha com revenda de produtos de cosmético, ela compra cosméticos e vende assim por um número maior pra ela ter um lucro.
P/1 – Entendi.
R – E o meu padrasto montou uma pequena mercearia e sempre gostou de vender, de trabalhar no ramo de venda, e ele vende produtos alimentícios, carne, frango... O que vai da cidade pra lá ele vende, e tem um barzinho, vende bebidas alcoólicas também.
P/1 – Você falou da sua avó, que ela foi soldada da borracha, o que você sabe sobre soldado da borracha, o que ela te contou, como é que era isso?
R – Soldado da borracha foi, há umas décadas atrás... O governo pegou pessoas para trabalhar na borracha, e essas pessoas, quando acabou, trabalharam na borracha durante o ciclo auge aqui na região, e depois que fracassou o governo passou a dar uma assistência a essas pessoas que são chamadas de soldadas da borracha. E, ao contrário de pensionistas que ganham um salário, soldados da borracha que já são poucos – muitos já morreram – ganham dois salários. A minha avó é uma dessas pessoas.
P/1 – E sua avó contou alguma história desse período, ela falava como que era isso de tirar borracha, tem algum relato dela que você lembra?
R – É, foi um período bem vantajoso pra eles, ganhavam um pouco de dinheiro também nessa época e movimentavam mais o lugar, que vinham pessoas de fora, aquele comércio, vinha borracha pra cidade. Era um pouco movimentado, ela contava histórias também de casas que ela tinha com as pessoas, com homens que ela teve nesse período. Foi um período bom, segundo ela, que foi um período diferente dos anteriores que era um pouco pacato, e nesse tempo ficou mais movimentado o lugar.
P/1 – Você já descreveu um pouco a sua avó, falou pra mim que ela era carinhosa do jeito dela. Fala um pouco da sua mãe, como você descreveria sua mãe, Maickson, como que é?
R – A minha mãe também, ela herdou isso um pouco disso da minha avó… Ela recebeu pouco carinho durante a vida dela, é um pouco fechada, mas assim, ela ama do jeito dela, não é um pouco de estar abraçada, não é de tá dando beijo, assim, muito sentimental como muitas mães são. O carinho dela é diferente. Ela é um pouco afastada, não é de conversar muito com os filhos, conversa pouco, muitas coisas que, tipo, a mãe deve conversar: sobre sexualidade, sobre puberdade, ela não conversa, ela aprendeu com o mundo e quer também que a gente aprenda com o mundo. Eu aprendi já com outras pessoas, com professores, amigos, mas ela nunca sentou e procurou conversar isso comigo. Ela é bem batalhadora, sempre foi dona de casa, faz as vendas dela, sai pra outras comunidades até, e também trabalha muito em casa, sempre trabalhou e sempre esteve motivando a gente. No início ela não gostava muito que eu estivesse participando de movimentos sociais, estivesse participando de grupo de jovens, houve uma barreira no início porque ela queria que eu estivesse ali ajudando mais em casa, nos trabalhos domésticos, mas eu sempre persisti, ela depois acabou entendendo. Ela também nunca teve preocupação comigo, eu sempre procurei estudar, e também não era de estar ensinando os trabalhos, eu me virava, mesmo porque ela não sabia muito me ensinar. Ela não foi dessas de estar acompanhando nos estudos.
P/1 – E seu padrasto, você tinha uma relação boa com ele?
R – O meu padrasto no início houve uma certa resistência, não era da minha parte com a dele, não era como é hoje, porque hoje em dia eu sou como um filho e ele é como um pai pra mim, respeito muito e ele também me respeita. Mas houve uma resistência, mesmo porque também teve um período que ele traía minha mãe e eu descobri e eu acabava também me metendo, me envolvendo, contava quando eu via alguma coisa pra minha mãe, e ele ficava com raiva, acabou criando em um certo período um tempo de conflito entre nós. Mas com o tempo ele mudou e hoje é outra pessoa, considero um pai ele é muito importante; apesar de tudo, eu com um ano de idade, aceitou ficar com minha mãe, aceitou me criar. Ele poderia também dizer que não me queria, mas ele aceitou, embora a família dele não quisesse que ele ficasse com a minha mãe por ela já ter filho, mas ele persistiu e hoje nos damos super bem.
P/1 – Legal. E dentro da sua família, Maickson, tem algum costume, alguma coisa especial que vocês faziam? Ou pensando agora também a comunidade, tem algum hábito, alguma tradição?
R – Assim, as pessoas da minha comunidade têm muitas superstições, são envolvidas... Têm muitos costumes, hábitos que, tipo assim, se vai... Coisa que pra gente aqui que tem conhecimento, que estuda alguma coisa já se torna um absurdo, mas que eles têm ali como tradição, respeito. E hoje já vem se perdendo. Mas algumas famílias lutam muito contra, pra preservar esses costumes.
P/1 – Tem algum deles que você pode contar, algum que você lembre?
R – Olha, a minha mãe tem um... Quando o sol está se pondo, fica com uma cor meio alaranjada, que aqui na região chamam de amarelão, então tem famílias que não deixam ninguém sair nessa hora, que o sol tá se pondo, pro quintal, e eles colocam uma lamparina acesa no quintal e pra aquela cor do sol se disfarçar mais rapidamente. E não deixam que ninguém saia naquele momento, principalmente crianças. Assim, víamos o pôr do sol, mas era mais escondido… Então, dentro de casa, não podíamos sair na hora que o sol estava se pondo por estar tendo aquela cor que chamam de amarelão e faz mal pra saúde se sair no quintal.
P/1 – Tem mais alguma como essa? Essa é muito boa.
R – É... Tipo, não pode passar embaixo de varal que dá azar, enfim, são várias, tipo a menina tomar banho no rio quando tá menstruada, que o boto vai e engravida, ou ela tem dor de cabeças absurdas, febre, então são esses.
P/1 – Tá certo.
R – Também na época que a menina… Já vi primas minhas, quando no período que elas tiveram a primeira... Iniciaram a puberdade, elas ficam em casa presas por três dias, sem sair de casa, ficam ali tomando um tipo de lavagem, uma água com um produto indígena que eles colocam na água pra tirar todas as impurezas que ela tem no corpo, então ela passa a vomitar muitas vezes devido aquela água que ela toma, só pode comer galinha, coisas da região, não pode comer frango de granja, frango não caipira. Tem todos os costumes e tradições.
P/1 – Você falou dessa coisa do costume indígena, né. A sua comunidade tem alguma origem indígena? Como é que é o começo da Vila de Boim, o que você sabe contar?
R – A Vila de Boim foi criada em 1690, uma vila bem antiga, primeiro era uma aldeia dos tupinambás – então uma aldeia indígena –, e chegaram os portugueses… Chegaram lá e depois passou a ser Missão Santo Inácio de Loyola, e posteriormente Vila de Boim. E Santo Inácio de Loyola é o padroeiro da Vila de Boim hoje, há muito tempo também, foi fundador da Companhia de Jesus dos padres jesuítas e, assim, Boim também já foi bastante desenvolvida, hoje é uma comunidade um pouco menor porque teve uma época que deu uma epidemia muito grande, muitas pessoas foram mortas, e dissipou a comunidade. Hoje é uma vila, comparada às outras é maior da cidade, é um distrito de Santarém, inclusive. Dali já vieram dois bispos ____ Santarém que nasceram lá, Dom Frederico Costa, Dom Gilberto Pastana... Tem várias personalidades nascidas dali, tem vários educadores.
P/1 – E, pensando na sua infância agora um pouco, quais são suas primeiras lembranças da comunidade, o que você lembra, como é que era aquele lugar?
R – Olha… Assim, a comunidade na minha infância são casas, a casa mais próxima que tinha era de uma tia minha, as outras todas mais afastadas... Só tinha uma televisão na comunidade, então todas as noites pra gente assistir novela tinha que jantar cedo e nos mandar pra essa casa, nessa única casa que tinha televisão na comunidade… Então jogava bola também com outros jovens, outras crianças. Assim, então era escola, ir pra escola jogar bola, brincar de bola, de pira na água... Tinha que carregar a água também porque a comunidade que eu morava até hoje não tem água encanada... Vila de Boim só teve onde eu moro a partir de 2003, então assim, muito na nossa infância a gente teve que carregar água na cabeça, em baldes, em latas. Então era muito isso, fazia os trabalhos domésticos, depois podia brincar, tinha que estudar também e a noite assistia novela, tipo às sete e meia, no máximo dez e meia, e depois vinha e dormia, e em alguns dias eram essas contas de histórias que tinham.
P/1 – Entendi. E você falou que vocês brincavam de pira, explica um pouco o que é pira, e conta outras brincadeiras que vocês tinham na infância.
R – Pira é uma brincadeira que você... Alguém fica como o pegador e outros jovens se espalham em algum espaço, então ele tem que pegar a outra pessoa, passar a pira, então ele pega na pessoa ele automaticamente deixa de ser pira, e a outra pessoa que foi pega passa a correr atrás de outras pessoas pra tentar pegar uma. Aí tem vários tipos de pira, pira normal, tem a pira pega que tu passa e aquela pessoa que foi pega já passa a te ajudar a pegar outras pessoas. Também brincava de se esconder, a gente sempre também pulava… Sempre foi criado também na beira do rio, sempre ia brincar tipo no rio, (negara pé?), pular na água de árvores, da árvore pulava pro rio, então sempre foi muito assim, sempre uma infância bem travessa, bem tipo... Que na cidade a criança fica muito presa, nós não, tivemos muita liberdade. Assim, os pais têm aquela confiança porque sabe que a gente vai pro rio, há casos de afogamento, mas é muito raro porque a gente desde criança já tá ali acostumado, já sabe nadar bem.
P/1 – Falando de nadar bem, estar acostumado, como é essa relação com a natureza, desde cedo?
R – Assim, nós que nascemos lá no interior desde cedo já temos uma relação bem familiar, já sabemos pescar, já sabemos buscar nossos alimentos, subir em árvores com facilidade, pegar açaí, nadar com rapidez, assim, enfrentar com a natureza como... Ter uma relação bem amigável, a natureza não é um obstáculo pra gente, é tipo uma parceira, um amigo, a gente encara super bem, subir em árvores... Pra uma criança da cidade, não sabe nadar, não sabe subir numa árvore, não sabe ter a agilidade que nós temos, aquele desenvolvimento motor que a criança do interior tem.
P/1 – Você falou que sua casa só ficava perto da casa da sua tia, como é que era essa sua casa, pra quem nunca viu, se fosse descrever ela pra alguém?
R – Olha, era coberta de palha e também de barro, uma parte de barro e uma parte de madeira. Esse barro tinha uma pequena camada, só pra esconder, de cimento por cima, mas a maioria era barro por fora porque a casa de barro mesmo ela dá muita (caba?), que chamam que é uma coisa que dá uma ferroada na gente que dói bastante, então coloca apenas uma pequena camada de cimento, madeira ou barro, e a palha. Essa era minha casa.
P/1 – Que legal. Você falou do açaí, me conta um pouco sobre como é a alimentação de vocês, como vocês comiam, o que vocês plantavam, como é que era?
R – A plantação lá nas comunidades é muita mandioca, produtos... A mandioca é o principal produto, e da mandioca era feita a farinha, feito beiju, é feito a tapioca, a farinha ingerido junto com a alimentação, com arroz, com feijão... É feito também o arroz, o feijão... Planta banana, o açaí já é da própria região, já nasce mesmo, fica mais adentro da mata, mas ele é pego também, tem muito caju, muita fruta... Peixe faz parte do cardápio, assim, geralmente é peixe de segunda a sexta, às vezes uma carne só no sábado ou no domingo, ou tipo carne e frango só, hoje em dia a gente já ingere normalmente, mas na minha infância peixe… Frango e carne só era em aniversário, em ocasiões mais especiais, como a gente dizia, tipo, chegava em casa e via um frango ali assado, alguma coisa, já sabia que ou era aniversário do irmão ou era alguma coisa que tava comemorando, porque normalmente era um peixe normal, não se comia aquilo.
P/1 – Entendi. E aí, me conta um pouco como é que funcionava. Cada um plantava suas coisas, a comunidade planta junto, como é que é essa lógica?
R – Então, cada um planta o seu, mas na hora da colheita ou na hora do plantio tem gente que convida outras pessoas, tipo, eu vou e convido meu vizinho pra trabalhar ali na minha roça e depois quando o vizinho for fazer a dele, me convida pra ir na dele também ajudar, entendeu? Aí a pessoa, o proprietário só tem a obrigação de dar o almoço pra aquele amigo que foi ali ajudá-lo, até pra cobrir a casa de palha, eu vou cobrir minha casa e convido uns amigos, a minha obrigação é só dar um almoço pra eles, quando eles forem cobrir a deles, vão me convidar e a obrigação deles também será de só me dar um almoço.
P/1 – Entendi.
R – Funciona muito assim. Uma pessoa ajudando a outra.
P/1 - Me conta uma coisa, você falou da pesca né, da importância do peixe. Você se lembra da primeira vez que foi pescar? Quando começou?
R – Pescava pouco, né, porque nossa avó ajudava, querendo ou não ajudava, mas eu fui pescar mais, assim, eu ia mais com meu padrasto; ia eu, ele e minha mãe. Eu ia só pra acompanhar, e depois pesquei com um amigo, mas pescava no rio mesmo que é bem, 50 metros já tava no rio da minha casa, e era o peixe tradicional, chaperema, carataí, que tem um período que eles estão bastante, aí pega com minhoca, escava a terra, tira minhoca e vai buscá-las, pescá-las.
P/1 - E saindo das coisas que você falou, essa coisa da televisão, como é que era, juntava todo mundo da comunidade e via televisão na casa dessa pessoa, como é que essa pessoa tinha televisão?
R – Essa pessoa... A pessoa da comunidade é uma pessoa que tem mais renda que outras, têm mais recursos financeiros, ela tem uma televisão e ela já prevendo isso, tipo, as pessoas no interior se preocupam muito com o que os outros vão falar, que elas são ruins, então elas se preocupam em ser muito hospitaleiras para não passarem aquela impressão de ser uma pessoa ruim, egoísta. Então a casa deles já era grande, tipo um salão com vários bancos compridos, e ligava a televisão e as pessoas vinham ali tipo num salão comunitário, só que era particular, né, e as pessoas assistiam a televisão ali, naquele ambiente. Até hoje ainda funciona assim, muitas pessoas ainda não tem a televisão em casa, e vão pra casa de outras assistir. Só que hoje já, na minha casa já tem, por exemplo. Mas por muito tempo ainda assistia na casa de outras pessoas.
P/1 – E era meio de festa, todo mundo ficava comentando a novela.
R – Comentando a novela, o jogo, às vezes fazia coleta pra comprar combustível que às vezes nem sempre há de o dono arcar com o combustível, tipo... Geralmente a energia vai de 19h30 até 22h30, ou até 22h, então tem o filme das 23h, tem que fazer tipo uma celta, faz uma vaquinha com o pessoal pra ligar o motor pra assistir aquele filme.
P/1 – Dessa coisa da dificuldade, que que era assim mais difícil nessa infância, você falou dessa coisa da energia elétrica, o saneamento, que outra coisa você lembra?
R – Acho que a maior dificuldade que a gente tinha era na questão da água, de não ter água em casa, água encanada, meio que o sistema de abastecimento de água, ter que buscar água no rio ou então no posto, ou o poço quebrava e tinha que beber água de igarapé. Então tinha que… Assim, na casa de doentes, diarreia era mais comum na minha infância, era muito normal ter diarreia devido à água, à poluição da água, e então a dificuldade maior era essa. A energia sempre foi uma dificuldade, mas a energia comparada à água tem uma importância um pouco menor. Sem a energia dá pra sobreviver legal, não com o conforto que você merece, mas dá, e a água não, é essencial para a vida das pessoas.
P/1 – E a comunicação, como era a comunicação nessa época?
R – A comunicação era de muita carta; mandava cartas pelos barcos, os barcos fazem... Viajam três dias pra lá, vão na sexta – saem sexta-feira à noite, chegam no sábado de manhã. Saem sexta-feira sete horas, vão na terça-feira e chegam na quarta e eles vêm de lá na quarta e no domingo. Então só esses dias que tinha que mandar carta, mandar algum bilhete, mandar pela pessoa do barco pra ele entregar, e telefone veio chegar em Boim na parte da década de 2000, no início da década de 2000. Então as pessoas tinham um telefone apenas, e a pessoa ia pra lá, pagava e ligava e, assim, era numa sala, e como tinha outras pessoas esperando, ficavam ouvindo a conversa também, tinha que falar o mais rápido possível e falar coisas não tão confidenciais. E hoje já tem telefones fixos, já tem telefone público – que não prestam, infelizmente –, e celular já pega lá em alguns pontos, mas tem que estar buscando sinal, é a maior luta pra estar pegando sinal. A comunicação antes era bem, bem ruim mesmo.
P/1 – Você se lembra de escrever alguma carta, ter que mandar carta?
R – Sim, tipo, eu não, mas a minha mãe... Assim, as pessoas nem buscavam se comunicar com outras porque era muito difícil pra ficar mandando carta também, então muitas vezes só sabiam das coisas através do rádio e da televisão quando iam assistir na casa dessas pessoas. E hoje tá mais fácil já, mas antes era mesmo difícil.
P/1 – Legal. A gente vai pra um outro bloco agora, que é a coisa da educação. Você falou que ia pra escola, me conta como é que era a escola nessa época.
R – Eu estudava numa escola de primeira a terceira série, estudava na comunidade que eu morava antes, que chama Ubatuba, e funciona de primeira a quarta nessa comunidade, então em multissérie, até hoje ainda funciona em multissérie, o professor fica com quatro turmas trabalhando ao mesmo tempo. Ou então trabalha com primeira e segunda de manhã e terceira e quarta a tarde; então trabalhavam sempre dois professores, uma com a primeira e segunda, outra com terceiro e quarto. Mas quando uma faltava precisava ir à cidade, juntava ali no ambiente. Então era sempre bem difícil mesmo a educação, a pessoa tinha que ter vontade, mas muitas pessoas não têm às vezes, assim, só por causa da merenda, tinha que ter merenda, alegria porque às vezes não tem uma alimentação em casa. Pelo menos vai lá à escola e sabe que tá garantida, evitava faltar ao máximo pra ter ali aquela merenda, era um alimento ou almoço pra algumas crianças e sempre foi assim. Aí depois eu fui pra Vila de Boim; lá a educação já sempre foi um pouco – como era uma comunidade (pola?), já foi um pouco melhor, é um professor pra cada turma na primeira a quarta série, e tem de quinta a oitava, que não tinha na comunidade que eu morava, então logo eu ia a pé também... Eu logo na quinta série tinha que ir a pé, aí estudava à tarde, tinha que sair um pouco mais cedo de casa, ou então pegar carona com alguém que tivesse bicicleta pra ir pra escola, então era (bem?) mesmo.
P/1 – Você falou de ir a pé ou pegar carona de bicicleta. Bicicleta era um transporte recorrente?
R – Bicicleta é hoje em dia… Na minha época quem tinha bicicleta em casa era gente que tinha uma renda maior, então ter uma bicicleta em casa era como ter uma televisão, era bem difícil. E hoje em dia não, como já tem vários projetos do Governo Federal, que já foi pra lá, então a bicicleta muita gente tem, então outra forma também da pessoa ter bicicleta era fazer um filho, a mãe fazia filho e com dinheiro do salário maternidade comprava uma ou duas bicicletas pra família. Conheço até um senhor da minha comunidade, ele fez 12 filhos e de 12 filhos ele recebeu salário maternidade, ele comprou uma bicicleta, então cada filho tem uma bicicleta.
P/1 – Entendi. E voltando ainda pra coisa da escola, tem alguma lembrança marcante de escola desses primeiros anos? Primeiro ao quarto, quinto ao oitavo…
R – É, teve uma briga e na terceira série um menino jogou… Um primo meu teve uma briga, ele jogou uma pedra que era pra acertar num outro menino e acabou acertando em mim, então na terceira série eu fiquei com a cabeça quebrada, ele levou muita surra do pai dele, eu fiquei alguns dias sem ir na aula com a cabeça toda enfaixada, foi um episódio bem marcante na minha vida. E também na terceira série pra ir pra quarta série, a minha mãe brigou com a professora, com a minha professora, então ela me tirou da escola que ficava na comunidade, me transferiu pra outra que ficava em Boim, então morava numa comunidade e desde a quarta série eu tive que me habituar com novos amigos e também tinha que enfrentar, geralmente pegar carona com alguém pra ir pra Boim, meus amigos continuaram na mesma escola e eu tive que sair pelo fato de minha mãe ter brigado com a professora.
P/1 – Entendi, foi da quarta pra quinta que você teve que mudar de comunidade, ou não?
R – Não, eu já tava na sétima série quando eu mudei, fui morar em Boim definitivamente.
P/1 – Então vamos falar dessa mudança: o que aconteceu que fez você mudar de comunidade, como é essa história?
R – No réveillon de 2004, na passagem de 2004 pra 2005, eu tava dormindo na casa da minha avó e minha mãe com meu padrasto foram pra uma festa que tem no réveillon que estava acontecendo, uma festa um pouco afastada de casa. E no decorrer dessa festa eles foram avisados que nossa casa havia sido incendiada, então eles foram pra lá e quando chegaram lá não deu pra salvar nada. Enfim, no ano novo, no dia um de janeiro, ali estávamos sem nada, tudo tinha virado cinza, documentos, roupas, tudo, os utensílios domésticos, tudo havia sido queimado. Então eu soube a notícia pela minha mãe quando ela chegou à casa da minha avó, contou pra mim, mas eu pensei que só tinha queimado a cobertura; no outro dia cheguei lá não tinha mesmo nada. Tava tudo às cinzas. E a casa pegou fogo mais rápido porque é de palha e o fogo pega muito rápido na palha, mais do que se fosse de telha. Talvez tivesse dado pra salvar alguma coisa, porque quando uma pessoa que passou na frente da casa tentou fazer alguma coisa, não tinha mais jeito, e até hoje a gente não sabe quem tacou fogo na casa. A suspeita da minha mãe é que tenha sido um rapaz que gostava da amante do meu padrasto, porque nessa época ele já tinha uma amante também, e ele não buscou – acho que pelo fato de descobrir alguns podres –, não procurou a fundo o que tinha acontecido, ficou por isso mesmo. Assim, até hoje meu irmão não tem registro, eu consegui registro porque tive que tirar carteira de identidade, tive que tirar vários documentos necessários e corri atrás, mas meu irmão ele tá hoje com 15 anos e ainda não tem o registro de nascimento original, porque pegou fogo o registro dele original.
P/1 – Entendi. Me conta uma coisa, você falou que no dia seguinte foi lá ver realmente. Como é que foi chegar e ver a casa, do que é que você lembra disso?
R – Assim, ano novo todo mundo espera renovação, que tudo dê certo, faz planos, e chegar dia primeiro e ali estar a casa, não ter mais o seu cantinho, o seu ambiente ali... Foi bem triste mesmo, eu cheguei ali e ainda chorei bastante, eu tinha alguns livros que foram queimados. Eu sempre gostei de livro, então guardava ali com tanto cuidado, não tinha mais nada, minhas coisas, minhas roupas... Aí tive que usar roupa dos outros, no outro dia recebi algumas roupas usadas de alguns amigos, alguns parentes meus. Não é a mesma coisa que usar suas roupas, então foi uma coisa bem triste mesmo.
P/1 – Você falou um pouco dessa coisa das roupas e dos livros, conta um pouco das coisas dos livros, como é que começa essa paixão por ler, dentro dessa realidade você falou que era tão difícil, sem incentivo, como é que começou a ter essa paixão por livro?
R – Uma professora minha, comadre da minha mãe, era de uma família com classe média da época, tinha mais condições, e ela me deu alguns livros e a partir dali me ensinou a ter o gosto pelos livros. Aí às vezes outras crianças estavam brincando de outras coisas e eu tava lendo um livro, e também pegava alguns da escola.
P/1 – Você lembra quais foram os livros que pegaram fogo?
R – Eu lembro um que eu gostava muito mesmo, era o Fantasma da Meia Noite, O Fantasma da Meia Noite, eu esqueço o nome agora do autor, mas foi um livro que até hoje é pra eu comprar, que eu li, é um livro muito bom e é um dos melhores livros que ela me deu de presente e foi perdido, acabado.
P/1 – E aí você tá na sua juventude e tem que mudar de comunidade, como é que foi essa mudança?
R – Radicalmente, sendo novo, vida nova, tive que começar do zero, meus pais... Nós ganhamos uma casa lá em Boim – onde a gente mora atualmente –, tava ali tudo no mato, a casa não estava em perfeitas condições, tivemos que ajeitar a casa, viver com novos vizinhos, uma nova realidade, e as pessoas também nos olhavam com aquele olhar de pena, não é também uma situação agradável com as pessoas com aquele olhar de… Nos tratavam como coitados pela nossa situação, então não foi super legal. Mas assim, como eu era novo e como eu tinha vindo de uma situação difícil, eles procuraram se chegar comigo, fui fazendo novos amigos, fui recebendo um conforto também, foi uma…
P/1 – Pra quem não tem ideia, quanto que é essa mudança assim, você foi pra muito longe de onde estava antes?
R – Não, não fui pra muito longe, mas assim eu não conhecia ninguém, não vivia com – eram diferentes, amigos diferentes, tinha outras brincadeiras, era uma nova realidade, tinha muito mais gente que onde eu morava antes, que eram pessoas que já tinham uma afinidade maior, então foi bem difícil mesmo, mas com o tempo me acostumei.
P/1 – Então conta agora, assim, com o tempo, depois que você chega e tem as primeiras dificuldades, como é que é?
R – Durante uns oito meses eu ficava sempre em casa, não saía, não brincava, também aí eu tive mais afinidade também com os livros, porque nesse tempo ficava muito em casa, muito trancado. Depois de uns oito meses é que fui fazer amigos mesmo, sair, jogar bola, tomar banho de rio, e aí que fui me soltando mais. Depois ajudei a formar o grupo de jovens, um rapaz me convidou pra fazer o Vice dele, aí que eu comecei a entrar no grupo de jovens e mesmo assim não era também tão criança, já tava um pouco maduro, não foi tão forte assim como foi com o meu irmão que tava menor.
P/1 – Mas como é que começa o grupo dos jovens, de onde surge isso?
R – O projeto Saúde e Alegria tava bem em alta nas comunidades – pra cá, por exemplo, a gente ouvia falar de grupos que haviam sido criados, que tinham ido pra comunidade através da conquista daquele grupo, do desempenho daquele grupo, e nós, vendo isso e vendo que nossa comunidade estava perdendo, não tinha nenhum grupo, nenhum projeto da Saúde e Alegria, o projeto Saúde e Alegria não atuava nas comunidades, resolvemos: “Bora formar um grupo de jovens’, e assim fomos convidando, movimentando, e eu e um colega éramos tipo líderes, ele como Presidente e eu como Vice. E eu não estava sempre na frente, mas dava uma ideia pra ele puxar, dava uma sugestão, tipo como um mentor, e como também naquela época que tinha o rei, mas tinha algumas pessoas que o aconselhavam, me sentia como se fosse isso: ele era o líder, eu dava uma sugestão, dava uma ideia, e ele gostava de mim por isso, não tinha a coragem que ele tinha de estar ali na frente, mas eu tinha/dava ideia pra ele lidar com o grupo. E a gente formou um grupo, uma base bem legal, tinham jovens bem líderes, bem protagonistas.
P/1 – Como é que é esse começo, o que vocês fazem?
R – A gente primeiro tem que formar uma coordenação e pegar jovens, formar um grupo de jovens, pegar todos os jovens ali, reunir e falar da importância de se ter um grupo de jovens, de buscar coisas pra comunidade, porque o projeto Saúde e Alegria só tava trabalhando na época com os jovens, então o foco deles eram jovens e comunicação com juventude, e essa comunicação se dava através de jornais, rádios e depois telecentro. Então formar um grupo de jovens pra ter primeiro passo, era formar esse grupo de jovens, mostrar pra comunidade que esse grupo existia. A comunidade passar a ver que os jovens estavam unidos, depois entrar em contato (com?) e mostrar que um grupo de jovens estava formado e eles podiam chegar lá que eles teriam uma referência entre os jovens, e depois formar nesse grupo de jovens – jovens que tivessem mais habilidade em comunicação pra formar um jornal escrito da comunidade contando, escrevendo ali mensalmente o que acontecia mandando pro projeto. O projeto, vendo que os jovens estão produzindo, o segundo passo era dar uma rádio comunitária, eles davam todos os equipamentos, caixa de som, mesa de áudio, essas coisas todas de uma rádio, rádio poste, coloca alto-falantes o mais alto possível na comunidade, aí é falado e toda comunidade ouve, ou quem não ouve, mas o vizinho ouve e espalha pra outro. Então hoje ainda funciona rádio integração, vai ligar a rádio, dar um aviso, “Chegou a prefeita do município”, “Vai ter reunião em 10 minutos no barracão comunitário”, fala ali, todo mundo ouve, e dentro de 10 minutos estão lá as pessoas, entendeu? Então é bem comunicativo mesmo, não dá pra estar ligando o celular pra mandar vir, torpedo ou estar ligando, então liga a rádio todo mundo espalha ali pra comunidade.
P/1 – Entendi.
R – E depois a gente conseguiu crescer ainda mais, o projeto viu nosso trabalho, viu nossas iniciativas, e a gente conseguiu Telecentro, que é considerado o sonho de todas comunidades: ter ali um espaço com computadores, um espaço com energia solar e os jovens que cuidam daquele ambiente, os jovens que ensinam outras pessoas, eles recebem a capacitação depois viram agentes multiplicadores voluntários mesmo e, assim, ter internet é o marco da comunidade. Então muitas comunidades sonham em ter esse telecentro, e Boim favoreceu muito por ser uma comunidade histórica, uma comunidade grande, um polo e também pelos jovens, pelo fortalecimento do grupo de jovens que muitas comunidades, que são grandes, dariam tudo pra ter o projeto, mas não têm um grupo de jovens forte. No caso nós lá não, temos um grupo de jovens forte e já veio um norte-americano, passou três meses lá fazendo peças teatrais com os jovens, então assim, vários projetos já vieram pra lá através da juventude.
P/1 – E em que isso muda na sua vida mais no começo? Porque você, como conselheiro, quais são suas atividades, onde vocês passeiam, o que vocês fazem, como isso muda a vida do Maickson?
R – É assim, sempre eu gostei desse meio político que eu costumo falar, de estar ouvindo em reuniões. Inclusive, uma vez tinha uma reunião lá e eram todos adultos e foi feito uma pergunta e eu acabei respondendo, né, e o líder da reunião falou várias coisas, me chamou de…
P/1 – Você lembra da pergunta?
R – Era uma pergunta bíblica, qual era o primeiro e o último livro da Bíblia, aí eu como sempre gostava de estar ali no meio, respondi, e ele disse que não tinha feito a pergunta pra mim, que não era nem pra eu estar ali. Mas não me desmotivou, eu sempre gostei de estar ali, minha mãe não ia na reunião, me mandava no lugar dela, sempre fui de estar ali nesse meio. Reunião de escola, sempre estava por ali ouvindo, sondando o que estava acontecendo, chegava alguém eu ia lá perguntar o que tinha feito, fazer uma entrevista com a pessoa, sempre fui muito curioso e, assim, a batalha na frente do grupo de jovens me ajudou a ter um desempenho melhor, me expressar melhor, a ter menos nervosismo, menos vergonha... Sempre fui sem vergonha de estar ali na frente, sempre fui uma liderança juvenil mesmo, a usar o protagonismo juvenil, que a gente costuma falar, sempre estar ali na frente, sempre ser um líder, referência em outros jovens. Na minha turma também da escola eu sempre estava ali reivindicando, fazia parte do conselho escolar... As pessoas sempre gostaram de mim por esse envolvimento, esse trabalho que eu tinha de não ter vergonha, de querer estar na frente das coisas, e me ajudou muito a crescer como pessoa, eu aprendi muito. Tive meus tropeços, errei bastante, isso me ajudou. Na questão do jornal, eu sempre motivei outros jovens a estar no jornal, muitas vezes outro jovem não queria fazer, mas eu estava ali, sempre fui de escrever, e acredito que meu trabalho no jornal de estar escrevendo texto me ajudou a ter um ótimo desempenho em redações do vestibular que eu passei. Eu passei em duas faculdades públicas, que pra pessoas da minha comunidade é bem difícil, é quase considerado impossível um jovem vir de lá e passar em duas faculdades públicas, concorrer com jovem da cidade que estudaram em melhores colégios, colégios até particulares, então vim de lá e passa na Federal e Estadual, e também passei no Prouni [Programa Universidade para Todos] e no Enem [Exame Nacional de Ensino Médio]… Eu tirei, na redação do primeiro ENEM, que eu fiz que vale 1000 pontos, eu tirei 975 na redação, então isso me ajudou muito, o trabalho que fiz no jornal, aí eu também escrevo pro blog. Então tudo isso me ajudou bastante.
P/1 – Você me conta de várias etapas das coisas, que chegou o Telecentro, mas eu queria que você me contasse a história dessas coisas, alguma história que você lembra do jornal, alguma história em relação ao Telecentro, como é que foi isso na comunidade, o que que você lembra, mais do que o fato delas terem acontecido, como é que foi?
R – O jornal já era... Quando entrei, um grupo anterior ao nosso já tinha sido feito, só que nunca mais havia acontecido, nunca mais havia feito, então a gente catou esse jornal ali e, assim, algumas vezes eu escrevia, algum... Alguma matéria, algum texto, colocava no nome de outra pessoa pra não dizer que só eu tinha feito aquilo, então algumas vezes eu fazia assim. Então eu dei crédito pra outras pessoas, às vezes era um grupo, e quando esse grupo não dava de reunir ou as pessoas estavam envolvidas em outras coisas ou não queriam saber do jornal, pra não colocar como o jornal só sendo meu, pra não chegar no projeto e aparecer só meu nome ali, então pedia pra outras pessoas colocar o nome deles e fazia por eles. Então eu sempre fui assim, tipo, vi também como sempre carregando um pouco os outros, o grupo também pra esse grupo não cair. Eu sempre procurei incentivar, e o Telecentro também era um sonho até meu, assim, pessoal, eu queria que na minha comunidade tivesse internet, eu queria ter a oportunidade de… Eu ouvia a história de tipo de (SOACA?) que foi a comunidade precursora do projeto Saúde e Alegria, tinha internet, eu ouvia a história deles, ouvia na televisão falar da internet, daquele mundo fantástico que a internet é. Então era um sonho mais meu de que de outros jovens, ele não viam tanto isso como um sonho deles, eles não ligavam tanto pra isso, então desde cedo quando entrei pro projeto eu já sonhava em receber um Telecentro pra Boim, então os passos que a gente tem que seguir pra conseguir o Telecentro começa no jornal, depois vai pra rádio e depois pro Telecentro, mas como o grupo tem que estar sempre em atividade, tem que passar pro projeto Saúde e Alegria que a gente tá comprometido realmente. Então o jornal, pra que não parecesse que tinha acabado, que os outros jovens não queriam, eu fazia isso e sempre tinham uma visão de que o jornal tava, todo mundo estava participando, aí conseguimos a rádio, e na rádio era a mesma coisa, quando a gente ia pra lá eu sempre estava pressionando outros jovens pra... Eu queria ter o Telecentro, então eu sempre “Bora mostrar, bora fazer pelo menos naquele dia que eles iam estar ali, pelo menos atuem se vocês não querem”, mas assim, até que eu consegui, mas o senhor era mais meu do que todos os outros, eu queria Telecentro, queria internet. E depois que chegou Telecentro na minha vida, assim, eu sempre estive ali na frente, sempre passava mais horas que os outros, no trabalho voluntário eu estava de manhã e à tarde, quando não tinha aula, na semana sempre foi minha casa o Telecentro, sempre tratei muito bem, hoje em dia também assim eu vou, assim lá em Boim ainda sou bem ativo no Telecentro, sempre procurei estar à frente. Foi mais um sonho meu que de outros jovens.
P/1 – E da onde nasce isso, Maickson, da internet, você falou de ver na televisão, por quê, se você nunca tinha visto, nunca tinha usado, da onde que era a internet, como é que começa?
R – Eu sempre, assim... Professores, pessoas que iam pra lá, que saíram de Boim e foram pra outras capitais comentavam e eu sempre tive curiosidade.
P/1 – O que você imaginava quando tinha curiosidade?
R – Eu queria ver, eu sabia que não era algo que pegava, mas eu queria estar ali na minha frente, eu queria ter e-mail, saber como é que era o e-mail que eu ouvia falar, que eu não sabia, queria saber o que era um site, então eu tinha muita curiosidade porque pra nós... Dá tudo pra... Dá tudo pra tu saber pela internet, era o que chegava, tu pode fazer tudo que quiser, pode falar com todo mundo, assim acabou criando na minha cabeça algo de “Eu quero isso pra mim, então eu quero falar com todo mundo, quero que eles me vejam, saibam que existo, quero falar com parentes meus que eu nunca tinha visto, quero ver, assistir televisão ali, quero ver notícias dos artistas”, essas coisas. Então eu tinha muito esse sonho, acabei criando, assim... A internet como sonho da minha vida, sonho de consumo, então batalhei muito, estive à frente do grupo de frente pra isso, pra conseguir que fosse internet lá pra minha comunidade.
P/1 – Legal. E aí um pouco dessa coisa de falar com o mundo, no final das contas, tua ação no grupo dos jovens te levou pra outros lugares, primeira vez que você viu a cidade, pra Santarém, que que te chamou a atenção, como é que é?
R – Pra gente lá do... É muito, assim, considerado cara a passagem, então pra gente vir na cidade, a gente vinha ou só quando tava doente ou só quando algo muito importante mesmo, casos de doença ou então quando ganhava de alguém a passagem, mas era muito raro, então, só nasci em Santarém, eu nasci aqui, mas fui embora pra lá, então fazia 11 anos que não vinha à cidade quando eu vim a primeira vez, assim, fazia 11 anos sem vir à cidade, com 11 anos de idade eu vim e, tipo, era doido pra vim por ser novo demais, falava pra minha mãe que queria vim e tal, saber como é que era. Só conheci pela tv e de outras pessoas falarem, mas nunca tinha vindo. E vim pra cá e depois desse com 11 anos que eu vim, só passei dois dias e só voltei quando o projeto Saúde a Alegria promoveu um encontro que ia ter, acabou com o encontro que eles fazem de jovens foi que eu vim pra cidade, já também fazia seis anos que não vinha.
P/1 – Mas me conta primeiro dessa quando você tava com 11 anos, como é que foi esses dois dias?
R – Assim, foi bem chegar, tipo, num outro mundo, barulho, carro... Tipo, lá a gente não vê carro. As pessoas, tipo, lá a gente fala com todo mundo, aqui chegando num passa, não fala com as pessoas e assim, foi muito lojas, tv, brinquedo, ver um outro mundo, realmente. Coisas que, se chegasse no novo mundo, chegasse em Marte, o Peter Pan que conta aquelas histórias, tudo isso.
P/1 – E você falou que depois volta com o Saúde e Alegria, me explica um pouco como é que vai se criando essa relação com o Saúde e Alegria?
R – A Saúde e Alegria, na visita que ele fazia lá pra minha comunidade, via assim que eu sempre estava ali, sempre era um jovem presente, uma liderança, sempre tava lá perguntando, né... Tava sempre no lado deles e tal, precisava de alguma coisa, ia atrás, sempre estava chamando alguém, sempre estava motivando outros jovens, sempre estava à frente dos outros jovens, dando empurrãozinho... A forma como eu falava, porque sempre ele chegou a comunidade que apresenta, então eu apresentava eles, eu escrevi os textos pro jornal, na rádio, eles viram que realmente eu tava valorizando o trabalho deles, então eles sabiam que poderiam investir em mim porque eu tava rendendo resultados, era isso que eles esperavam, que os jovens realmente usassem aqueles meios que eles colocavam lá pra ter um desenvolvimento. Pra não ser aquele jovem tímido que não sabe falar publicamente, que tem vergonha, então eu sempre fui de estar na frente, falando, porque... É o que se espera do jovem do interior, como a gente tá mais afastado, tá mais à margem da sociedade, digamos assim, que ele seja mais parado, mais na dele, que ele tenha esse conhecimento das coisas de lá, mas que tenha vergonha de falar com as pessoas de fora e tenha aquela... E isso não fazia parte de mim, tava ali e eles resolveram me convidar a participar desses encontros e viram que eu era um jovem que tava merecendo ter um trabalho mais forte deles.
[Troca de fita]
P/1 – Então você falou que veio pra (Teacabloca?), né, como é que foi fazer essa vinda, depois de seis anos, agora você já tem 17, já é um rapaz feito, como é que é vir agora pra Santarém dessa vez?
R – Assim, tava mais acostumado, já tinha internet lá. Estava mais familiarizado, o impacto não foi tão forte, eu sabia mais como lidar com a situação. Fiquei um pouco tímido, sim, mas não como foi da primeira vez, que já tava mais difícil da primeira vez, na segunda vez não foi tanto.
P/1 – Que que era esse encontro pelo o qual você veio, o que é que era?
R – O T acabou com o encontro que o Saúde a Alegria faz anualmente, algumas vezes faz duas vezes por ano, que eles pegam jovens, que eles prezam liderança das comunidades, de lideranças, projetos que eles têm, telecentro, jornal, rádio, e traz pra cidade, alguma outra comunidade, pra discutir, ver o que deu certo, o que deu errado, fazer um planejamento pra um novo ano, mostrar a história de sucesso. Então sou como uma referência, minha historia pra outros jovens é contada pra estimular outros jovens, pra mostrar de onde vim, o processo que passei, tô sempre falando nos encontros, me considero como um fruto do trabalho deles, da atuação deles na minha comunidade. Então eles mostram isso, o que é que eu vim a ter, a crescer como projeto. Me viam como exemplo pra outros jovens. Por exemplo.
P/1 – Eu vou aproveitar a sua questão que a gente falou sobre o encontro Saúde e Alegria, então. Pra você qual é que foi a importância desse encontro? Chegar o Saúde e Alegria, estabelecer essa parceria.
R – O Saúde e Alegria é considerado um pai, um professor na minha vida, ele me ensinou muitas coisas, hoje sou o que sou graças ao trabalho deles na minha comunidade. Eles levaram o projeto de comunicação, levaram o sistema pra comunidade, eles têm trabalho também voltado a saúde como (bacabare?), que hoje não é mais deles, mas por muito tempo foi coordenado por eles. Então eles melhoram muito a saúde de vida, eles têm feito muito por nós, pensam no trabalho, é uma ONG [Organização Não-Governamental] que age com responsabilidade, respeito, ética, quer mesmo o progresso das comunidades, esse progresso de forma ordenada, que não agrida o meio ambiente, e que a gente possa valorizar nossa cultura, que a gente possa ter uma qualidade de vida sem mexer como meio ambiente, sem afetar o meio ambiente, sem mudar nosso costumes, nosso hábitos. Então eles sempre trabalharam em parceria, viram o que era nossa cidade, o que a gente queria, então foi muito importante assim a atuação deles, muito importante mesmo.
P/1 – O que esses projetos trouxeram de mudança pra comunidade? Agora que você tava caracterizando mais.
R – Olha, eles mudaram muito a qualidade de vida das comunidades. A gente não tinha água tratada, água encanada, né, uma água de qualidade, a gente passou a ter. A gente passou a ter filtro nas nossas casas, que muitas casas não usavam o filtro nessas residências, pedras sanitárias, porque muitas casa inclusive a minha não têm banheiro como a minha, com vaso tradicional, descarga que é feito ali o buraco e as pessoas fazem suas necessidades ali. Então eles levaram pedras sanitárias, que é um projeto que eles têm, eles deram por muito tempo cloro – hoje a rede municipal é que da –, mas por muito tempo eles que deram o cloro pra colocar nas águas, e também levaram esse projeto de comunicação, levaram internet, que é muito importante. Eles não levaram a internet pra todas as comunidades até hoje, mas levaram pra aquelas polo, considerada polo, que as pessoas próximas vão e usam ali, então lá em Boim, acaba a internet lá acaba ajudando outras comunidades que também estão perto, então melhorou 100%.
P/1 – Então, a gente falou um pouco do Telecentro, eu queria que você me contasse um pouco como é que foi o começo do trabalho, como as pessoas receberam, como é você ajudou as pessoas com informação... Como é que era?
R – O telecentro foi, assim, ele começou... Ele é um espaço, é um prédio bem antigo, construído pelos padres franciscanos na década de 1950, e tava caindo, desmoronando, se deteriorando. Então o projeto Saúde e Alegria viu ali, e junto com a comunidade e em parceria pra restaurá-lo. É um prédio bonito, até porque era um ambulatório na época dos padres franciscanos, e é um prédio bonito, mas foi um trabalho bem árduo pra restauração. Eles entraram com os materiais, com recursos financeiros, e a gente entrou com trabalho. A gente, mesmo jovem, teve que carregar muita madeira da mata, tipo no ombro ou uma carroça, foi bem trabalhoso, carregar areia, as coisas, então foi bem difícil, esse primeiro passo. Depois a gente recebeu a capacitação, tinha que ter jovens ali com espírito voluntário, com espírito de aprender e passar pra outras pessoas, então a gente aprendeu e ficou, tipo, sempre que os jovens terminam o ensino médio eles vão embora pra cidade, eles sempre aprendem e capacitam outros jovens pra ficar sempre dando continuidade no trabalho ensinando. Muita gente teve dificuldade, mas hoje muita gente tem conta nas redes sociais, sabe como navegar, sabe como pesquisar. Você vê muito pra escola também, ainda funciona, são jovens ainda que estão ali na frente. É um espaço frequentado, é um dos espaços mais frequentados da comunidade, e a importância dele é muito grande, as pessoas valorizam bastante.
P/1 – Você falou uma coisa agora de os jovens terminarem o ensino médio e irem embora. Como é esse fenômeno?
R – É, acaba com esse êxido dos jovens porque eles terminam o ensino médio, alguns ficam por lá, mas outros têm a perspectiva de nem continuar tanto os estudos, de conseguir um trabalho pra ter sua renda, ter seu dinheiro, porque ele não tem conseguir emprego. Ou ele vai pra roça, aí muitos não querem porque a vida da roça é uma vida sofrida. Então muitos vêm pra cidade ou mesmo pra Manaus, porque ali tem, é o sonho de consumo também de muitos jovens ir pra Manaus. Pensam em ir ali pra Manaus porque lá tem distrito industrial, porque acha que ali vai ter emprego garantido. Então tem muita essa ilusão também de ir pra Manaus, é sonho de muitos jovens da comunidade, terminar e ir pra Manaus, até porque muitos já tem irmão, algum parente lá e fica nisso.
P/1 – Mas deixa eu te perguntar, você participou das oficinas de trabalho com celular?
R – Participei de oficinas com celular. Acho que todas as comunidades que tem o trabalho no Projeto Saúde e Alegria receberam celular, um smartphone que tem uma ótima qualidade de vídeo, de câmera também, de foto, até mesmo pra facilitar a comunicação, pra chamar uma ambulância, alguma coisa pra ligar pra alguém, pra ter um contato com o Projeto Saúde e Alegria. E Boim ganhou dois celulares; agora ganhou mais um, então três celulares, e a gente recebeu capacitação de como usar celulares pra fazer vídeo, fazer a edição... A gente tem só um computador pra fazer apenas edição, tem um computador que a gente usa pra outras coisas, mas tem um exclusivo pra edição de vídeo, então a gente já fez alguns vídeos sobre alcoolismo, principalmente. Então é bem legal, a participação dos jovens é bem intensa. Os pais já sabem o trabalho do Projeto Saúde e Alegria, eles estimulam seus filhos a participarem, vai ter um encontro do Projeto Saúde e Alegria, as pessoas já estão ali preparadas, elas veem também que o Projeto Saúde e Alegria melhorou a comunidade. Tem ainda muitas coisas que elas querem que sejam melhoradas, então quando vai alguém do Projeto Saúde a Alegria é tratado muito bem na comunidade, é bem valorizado, assim, a gente liga, ou eles ligam dizendo que vai pra lá, toda a comunidade se mobiliza, deixa de fazer o que tá fazendo pra ir ouvi-los, pra saber o que eles querem, o que eles têm em mente, qual, assim... As expectativas são grandes em relação ao projeto, eles são valorizados pelo trabalho que eles têm.
P/1 – E nesse projeto que vocês trabalham como celular, vocês falaram que produziram um vídeo sobre o alcoolismo, como são esses vídeos, qual o objetivo desses vídeos?
R – Esses vídeos são curtos, de às vezes menos de dez minutos, que assim mostra que é possível usar o celular como uma ferramenta aliada à comunidade, não só pra falar, pra ouvir música como muita gente usa, mas também pra mostrar o nosso jeito, nossa cultura, nossos costumes, pra estar valorizando também, resgatando isso, tipo uma senhora que sabe muita coisa, sabe muitas histórias, a gente usa o celular pra entrevistar e guardar essa entrevista ali no computador, que posteriormente ela vai estar morrendo e levando consigo esse conhecimento. Igual ao trabalho do Museu da Pessoa, que tá preservando, resgatando esse trabalho, então esse é o papo do Projeto Alegria e Saúde em relação às comunidades com celulares, pra mostrar pros jovens que os celulares podem ser usados dessa forma, pra estar produzindo vídeo sobre campanhas educativas como o alcoolismo, que os jovens mesmo como nós fomos os protagonistas, fomos os autores, que fizemos a edição, que mostramos ali pra comunidade. O vídeo é um gole de consciência, o vídeo é bem legal. Assim, mesmo estar mostrando... Foi feito também sobre a dengue, pra estar esclarecendo, dando uma… Mostrando uma nova realidade.
P/1 – Você falou que esses vídeos são vinculados, onde a gente encontra esses vídeos, onde eles são divulgados?
R – A gente tem conta no Youtube do Saúde a Alegria, e também o Projeto leva esses vídeos pra outras comunidades, ele pega o vídeo de Boim, mostra em outra comunidade pra incentivar que, se Boim tá produzindo, eles também podem produzir. Então a questão de divulgação fica da nossa parte ali na comunidade, mostra na comunidade, mas o Projeto mostra em outros lugares, leva pra outros lugares, coloca também na internet.
P/1 – Vocês usam também a Tv Mocoronga lá, o site canal do Youtube, né?
R – Sim, no Youtube tem e tá lá o vídeo o que acontece, do que são feitos; alguns são ajudados, editados com a ajuda do rapaz do Projeto, outros são só pelos próprios jovens. Aí nesse sábado agora o Juarez, com conhecimento que ele tem, já tava dando aula pra outra comunidade, de vídeo e áudio que ele trabalha mais com isso, eu já gosto mais de blog, blog é o que mais me atrai; eu já dei várias oficinas em outras comunidades também de blog, assim já fui pra Maripá, pra outros lugares da oficina de blog também.
P/1 – Você falou aqui do Juarez que também é um outro jovem da comunidade Vila Boim, né, conta um pouco sobre o que o Juarez foi fazer agora. Dá essa informação pra gente ter um outro exemplo de caso de jovem.
R – O Juarez é bem curioso também, é duma turma lá de Boim, ele trabalha já há quatro anos como monitor voluntário, já aprendeu muito e sempre tá ali fuçando no Google, buscando ferramentas, arquivos, assim, coisas que venham trazer conhecimento pra ele. E ele, assim, já também o objetivo do Projeto é ensinar pra gente e esse conhecimento que a gente multiplique, que a gente passe pra outra pessoa. Assim como eu dei oficina de blog, o Juarez da oficina de áudio e de vídeo pra outros jovens, e isso também acaba ganhando destaque, a gente passa a ganhar destaque dentro do Projeto.
P/1 – E deixa eu te perguntar uma coisa, com tudo isso, que mudanças que você ainda gostaria de ver na comunidade, que ainda precisa acontecer na comunidade?
R – É, uma mudança fundamental que as pessoas buscam muito na minha comunidade é energia, que é uma comunidade histórica, bem antiga que tem bastante família, mas que não tem energia. Tem apenas três horas por dia, muito pouco, e enquanto que vocês em São Paulo, por exemplo, há um apagão de um minuto [risos] que seja aí já tão morrendo por causa daquele um minuto sem energia enquanto que a gente passa 23 horas... Não, 20 horas sem energia, 21 horas sem energia por dia, né. Então eu queria que melhorasse na minha comunidade a questão da energia. Outra parte também é a telefonia, que pegasse telefonia móvel como já tem pra cá, que pega telefonia móvel, lá a gente não tem ainda essa oportunidade. Pega apenas em frente à igreja, mas é muito ruim, o sinal foge muito, é muito difícil de conseguir, às vezes tem que tentar bastante. Essa parte da telefonia móvel, da energia, e também tem a questão do potencial turístico muito grande, mas o município não investe, o Governo do Estado, que tem a secretaria tudo, eles não investem ali, tem festas da região, festas folclóricas, tem as próprias praias de belezas naturais, que tem muito potencial a ser trabalhado, que poderia estar usando esses jovens que saem de lá pra trabalhar com isso, ganhar com o que tem a oferecer, que a comunidade tem a oferecer de belezas naturais pra estar ali trabalhando com ecoturismo, essas coisas.
P/1 – Entendi. E, Maickson, eu vou te perguntar agora de outras coisas, vou voltar pra sua vida pessoal, aí depois do Saúde e Alegria. Você acabou aí tocando o mundo de alguma forma, conhecendo outros lugares. Gostaria que você me contasse que outras experiências que você teve de sair daqui.
R – Olha, aos 17 anos de idade é a primeira viagem que eu fiz de avião e a primeira saída que eu fiz foi ainda pra fora do Brasil, 17 anos e eu nunca tinha viajado de avião. Eu tinha viajado de barco e de carro pouquíssimas vezes, então aos 17 anos sozinho ter que ir de Santarém, escala em Manaus, Manaus – São Paulo, São Paulo – Amsterdã... Um inglês pouquíssimo, pouquíssimo do inglês, assim quase fui mandado de volta de São Paulo porque tinha um erro na documentação, só não fui mandado porque era feriado... Então foi uma situação bem difícil, não conhecer nada, chegar no aeroporto, aquele barulho, aquele tudo, chegar em Guarulhos, que é um caos, então, assim, foi bem impactante mesmo pra mim, uma experiência incrível. Ao chegar em Amsterdã também eu fui barrado lá e tive que ligar e foi aquele alvoroço, mas consegui chegar, foi um…
P/1 – Qual foi o propósito dessa viagem, como é que começou isso, como você foi parar em Amsterdã?
R – Eu fui... O Projeto Saúde e Alegria recebeu apoio de uma ONG lá da Holanda que queria mostrar o trabalho, a atuação um pouco dela aqui na região, então eles se inscreveram num programa de TV, troca de adolescente, e um jovem holandês veio passar uma semana na minha casa e eu passei uma semana na casa dele, e foi esse primeiro passo, chegar lá 17 anos sem conhecer nada, andar de avião... É andei 18h ao todo, só de São Paulo pra lá foi 12 horas, então foi bem difícil mesmo não falar quase inglês, o idioma deles é bem diferente do nosso, muito diferente inclusive, mas sobrevivi. E também o Projeto Saúde e Alegria também me indicou, eram muitos jovens concorrendo, mas eu acabei ganhando a vaga pelo meu trabalho, por ter esse jeito de falar, por esse movimento, por esse espírito de liderança que eu tenho, isso acabou como um ponto ao meu favor em relação aos outros jovens que estavam inscritos.
P/1 – E aí, como é que foi essa semana em Amsterdã?
R – Eu vi... Explorei muitas coisas que eu nunca tinha conhecido, nunca tinha ido ao parque de diversões e fui lá, nunca tinha ido num parque aquático e fui, e um novo trânsito, eu tive que andar de bicicleta. Fui no trabalho do menino, que ele trabalhava numa... Que fazia doces, num restaurante... Então, assim, uma família, a mãe era brasileira e falava português, ela mora lá fazem 17 anos, mas outros amigos dele não falavam, então tinha uma intérprete andando comigo direto, e filmando tudo, tudo, eu nunca tinha ficado em frente a uma câmera... E ficar quase 24 horas por dia, um reality show mesmo. Foi bem difícil, mas deu pra segurar.
P/1 – Você tem alguma lembrança boa, algo que te marcou... Alguma coisa que te chamou a atenção?
R – Assim, o carinho com que eles me trataram, como ela era brasileira conhecia vários brasileiros que tinham ido pra lá, no último dia eles fizeram uma festa surpresa na casa dela, convidaram todos os brasileiros que ela conhecia, e os holandeses também, e eles foram pra lá e foi feito uma feijoada, colocado samba, então foi uma festinha brasileira lá em Amsterdã, foi bem legal, bem divertido mesmo.
P/1 – O que é que muda pra você voltando em visão de mundo, o que muda em voltar pra comunidade, você passa a dar mais valor a alguma coisa, alguma coisa muda, como que é isso?
R – Dar mais valor às pessoas, ao povo. Lá eles são bem fechados mesmo pra você falar com uma pessoa, até pra você chegar é mais difícil. Aqui o povo da nossa região não, é fácil fazer amizade, até muitas vezes são enganados por isso, porque eles são tão espontâneos, hospitaleiros. Chega uma pessoa de fora e é bem recebido, bem tratado... Às vezes a pessoa dá o melhor quarto que tem na sua casa pro que vem de fora pra que ela se sinta em casa, se sinta bem acolhida, então dar valor a essas coisas. A questão da natureza, a gente tem... Se sente mais livre, na cidade é tudo mais preso, o silêncio... Dar valor a essas coisas que a gente considera tão da nossa realidade, as praias, que tem lugar que não tem praia, dar valor a essas coisas que a gente tem aqui em abundância, rio, tem a piscina assim na sua casa, mas a gente tem o rio ali a nossa disposição... Dar valor a essas coisas.
P/1 – E aí depois veio uma nova fase da sua vida que você já falou lá atrás, foi essa coisa do vestibular, né, de passar na universidade, como é que foi essa opção, como é que você, jovem, na zona rural, (acabou?)?
R – Assim, eu não... Eu sempre... Eu quero construir como uma liderança, não quero ser mais um ou que vai estudar até o ensino médio e vai ficar por ali, vai pra roça ou então ser mandado pelos outros, não tem independência. Eu quero sempre buscar a independência, e a melhor forma de conseguir independência é através dos estudos... Então a minha mãe também não estudou e eu vejo sempre ali que eu não queria aquela vida que ela teve, ser empregada doméstica, não ter um estudo, então eu sempre busquei outros caminhos. Meus irmãos não gostam de estudar, mas eu sempre busquei estudar e queria fazer uma faculdade, quero uma pós também, quero continuar estudando, quero aprender, porque o saber está sempre se renovando e a gente nunca sabe... É, a gente não sabe nada, e a gente tá sempre aprendendo novas coisas, então eu queria estudar e busquei, me inscrevi, saí lá do ensino médio, do ensino modular, que é feito por módulos, professores vão daqui da cidade e o que era pra dar em um ano lá eles dão aquela disciplina em um mês, um mês e meio. E esse ensino é muito ruim lá, nem dão suficiente, dão um conteúdo menor, e como não tem o conforto, porque não tem como aqui, eles acabam não ficando aqui, e, como alguns alunos não querem nada, acabam não cobrando, então acaba sendo bem ruim o ensino médio. Até a oitava série é bom, mas o ensino médio é bem precário. Mas eu sempre busquei estar estudando em casa, lendo algum livro, buscando alguma coisa, a internet também que tinha ajudava a ficar buscando, pesquisando, e eu fiz, entrei, não fiz cursinho como muita gente faz, não tenho dinheiro pra fazer e estudei em casa, e consegui uma vaga na Federal, na Estadual. Acabei optando pela Estadual que estava direto no curso, a Federal não entra direto no curso, tem que estudar um período pra depois fazer uma nova prova pra entrar, e tô lá, tô estudando, já aprendi muita coisa... Na escola também sou uma referência nesse ponto, a minha história é usada também pra que outros jovens prossigam nos estudos; na minha turma eram 52 alunos e apenas eu estou fazendo faculdade hoje, os outros pararam no ensino médio e outros estão trabalhando e não estão estudando. Dos 52 só eu estou estudando.
P/1 – E lá na universidade, como é que é?
R – Eles no início tiveram preconceito por eu ser do interior, mas acabaram... Tiveram que me aceitar, eu tô ali na mesma situação que eles, a gente enfrentou o mesmo processo, somos iguais, e hoje me dia eu conquistei meu espaço lá, eles me respeitam pelo o que sou, a minha história e de onde eu vim, tenho orgulho de dizer que sou lá do sítio... A maioria lá são branquinhos e tal, e eu sou negro, não tenho medo nenhum e tô lá, tô na mesma situação que eles, estudo e fiz amigos sim, mas se não tivesse feito amigos continuaria do mesmo jeito porque não tô ali pra fazer amizade, tô ali pra conhecimento. E tô tranquilo, tô estudando, tô super bem.
P/1 – Então pra terminar, deixa eu te perguntar, se pudesse mudar alguma coisa na sua vida, você mudaria alguma coisa hoje?
R – Se eu mudaria alguma coisa na vida? Assim, tenho... Mudar, mudar acredito que não, que eu me vejo como uma pessoa não correta, não certinha, mas eu me vejo como uma pessoa que tem um foco. Eu tenho foco em estudar, que é conhecer, fazer novas amizades, ter novos conhecimentos, estar buscando algo pela minha comunidade... Penso muito que quero contribuir de alguma forma lá no meu lugar. Tipo entrar no Projeto Saúde e Alegria, eu acho o trabalho deles super importante, o trabalho que eles têm eu me vejo um dia estando ali trabalhando, não assim como eu tô, mas trabalhando e chegar lá... Assim, é algo que eu sonho um dia, ter um trabalho que tá à frente de outros jovens, e eu acho que não tenho muito o que mudar na minha vida, tenho apenas que continuar respeitando minhas origens, valorizando da onde eu vim, reconhecendo da onde eu vim, reconhecendo todo o processo que eu tive, estar pensando muito antes de agir, e é isso.
P/1 – Seu sonho você já falou, agora seu sonho hoje é realmente entrar no Saúde e Alegria como um profissional, né?
R – É, e trabalhar pra ajudar o desenvolvimento das comunidades, eu acho... Eu sempre valorizei muito o trabalho deles, eles são como profissionais, uma referência pra mim, o trabalho deles. Tipo, eu me vejo lá um dia no trabalho que eles têm ali, indo lá pra minha comunidade contando pros jovens a minha história, toda história assim, como tem algum tipo Fabio Pena que veio lá de uma comunidade ribeirinho do (Carareacado?), uma comunidade do rio Amazonas, que hoje é um dos coordenadores do projeto em que ele conta a história dentro do processo que ele passou, e eu me vejo também um dia dando continuidade. Ou no projeto ou também trabalhando num qualquer outro órgão, mas que não trabalha mais de relação com o público, não me vejo trancado num escritório ali, nas coisas burocráticas; eu me vejo mais ali à frente das pessoas, saindo, conhecendo uma nova realidade, novos sonhos, novas expectativas, essas coisas. Me vejo assim, num trabalho assim, por isso até optei pela licenciatura, porque na licenciatura eu vou lidar com alunos com realidades diferentes, com histórias diferentes, todo aluno é diferente um do outro e vão ter um dia que vão estar de um jeito, outro de outro. E eu acho que por isso eu acabei optando por... Eu queria de início fazer Direito, mas acabei optando por licenciatura pra trabalhar com seres humanos diretamente.
P/1 – E pra terminar, Maickson, como é que foi pra você contar sua história, como foi passar ela, recontar um pouco?
R – Assim, é bem difícil mesmo, fiquei bem nervoso, acho que porque até conversando, se não tivesse a câmera aqui eu estaria conversando normalmente, mas a partir do momento que a gente vê uma câmera na sua frente, fica ”Será que vou me sair bem, será que eu não vou, como vai ser, o que vão achar disso?”. Então a gente já fica assim, se perguntando como vai ser e acaba criando um medo, uma barreira, mas deu pra controlar... Falei acho que muitas coisas, falei algumas coisas aí bem importantes, acho que foi bem legal mesmo; de início fiquei nervoso, mas acabei me soltando.
P/1 – Uma coisa que eu não perguntei, tem algo que você se esqueceu de falar disso?
R – Acho que... Um sonho também que... Assim, eu sempre fui frustrado pelo fato de o meu pai ter me abandonado, né, aos 11 anos de idade ele me ligou num dia após meu aniversário, e depois desse dia ele passou alguns dias religando pra mim e depois sumiu de novo. Aí ano passado ele voltou a ligar de novo, e eu sempre... Ele criando falsas esperanças, prometendo coisas, prometendo reparar o erro que ele teve, mas eu nunca fui de criar raiva e eu queria pelo menos vê-lo, pelo menos uma foto, eu nunca vi nem foto dele... A minha mãe, quando ele a largou, queimou todas as fotos, rasgou, queimou, eu nunca vi ele, nem foto e a promessa que ele me fez é que no Natal desse ano ele vai vir pra Manaus e eu daqui pra lá, e nós vamos nos encontrar pra eu conhecê-lo, mas eu nunca vi... É um sonho que tenho, pelo menos, de ver ele antes de ele morrer e eu morrer; pelo menos conhecê-lo, mas não sei se isso será possível, mas eu imagino como é porque já me contaram como ele é, dizem que sou a cara dele, aí eu fico imaginando uma pessoa mais velha com a minha cara [risos]... Mas eu não tenho raiva nenhuma, pelo menos ele me fez, né, pelo menos isso.
P/1 – Tá certo, eu te agradeço Maickson.
R – Tá bom.
P/1 – Obrigado.
R – Eu que agradeço.
-- FIM DA ENTREVISTA --
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