P1 – Boa tarde, Silvia, tudo bem?
R – Oi, boa tarde, tudo bem?
P1 – Então vamos começar a sua entrevista pela informação básica: seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Tá. Meu nome completo é Silvia Helena Perche Bassi. Eu nasci em Araraquara, no interior do estado de São Paulo.
P1 – Certo. Qual o nome dos seus pais, Silvia?
R – A minha mãe é Silvia também, mas é com ‘y’: Sylvia Perche Bassi. Meu pai é Túlio Bruno Bassi.
P1 – Você tem irmãos?
R – Tenho dois irmãos mais novos.
P1 – Qual o nome deles?
R – João Batista Bassi e José Luís Perche Bassi.
P1 – Qual é a ocupação dos seus pais, Silvia?
R – Bom, a minha mãe é professora primária. Ela é aquela famosa ‘normalista’, né, na época que ela, que as mulheres faziam o [ensino] ‘normal’ e depois casavam. Então, minha mãe é professora primária, sempre trabalhou como professora primária. Meu pai é agrônomo.
P1 – Então, voltando lá para a sua infância, para as suas relações iniciais: quais eram os costumes, um dia a dia comum na sua família?
R – Um dia a dia comum? Você diz no… Bom, eu nasci no interior, né? Araraquara é uma cidade que fica a quase trezentos quilômetros, [um] pouquinho mais de trezentos quilômetros de São Paulo. É uma cidade interessante, porque ela está no meio da cultura de cana de açúcar e outras culturas e, ao mesmo tempo, tem um polo universitário super forte: tem a faculdade de Odontologia, tem a Unesp. Então, é uma cidade muito interessante. Eu nasci em Araraquara. Meu pai, na época, trabalhava na Nestlé e minha mãe era professora. Ela ainda tinha se formado, mas não estava exercendo a profissão. Ela tinha 21 anos quando se casou e 22 quando eu nasci. Então, era uma família de classe média tranquila. A gente morava em uma casa em Araraquara. Eu morei em Araraquara e praticamente toda a...
Continuar leituraP1 – Boa tarde, Silvia, tudo bem?
R – Oi, boa tarde, tudo bem?
P1 – Então vamos começar a sua entrevista pela informação básica: seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Tá. Meu nome completo é Silvia Helena Perche Bassi. Eu nasci em Araraquara, no interior do estado de São Paulo.
P1 – Certo. Qual o nome dos seus pais, Silvia?
R – A minha mãe é Silvia também, mas é com ‘y’: Sylvia Perche Bassi. Meu pai é Túlio Bruno Bassi.
P1 – Você tem irmãos?
R – Tenho dois irmãos mais novos.
P1 – Qual o nome deles?
R – João Batista Bassi e José Luís Perche Bassi.
P1 – Qual é a ocupação dos seus pais, Silvia?
R – Bom, a minha mãe é professora primária. Ela é aquela famosa ‘normalista’, né, na época que ela, que as mulheres faziam o [ensino] ‘normal’ e depois casavam. Então, minha mãe é professora primária, sempre trabalhou como professora primária. Meu pai é agrônomo.
P1 – Então, voltando lá para a sua infância, para as suas relações iniciais: quais eram os costumes, um dia a dia comum na sua família?
R – Um dia a dia comum? Você diz no… Bom, eu nasci no interior, né? Araraquara é uma cidade que fica a quase trezentos quilômetros, [um] pouquinho mais de trezentos quilômetros de São Paulo. É uma cidade interessante, porque ela está no meio da cultura de cana de açúcar e outras culturas e, ao mesmo tempo, tem um polo universitário super forte: tem a faculdade de Odontologia, tem a Unesp. Então, é uma cidade muito interessante. Eu nasci em Araraquara. Meu pai, na época, trabalhava na Nestlé e minha mãe era professora. Ela ainda tinha se formado, mas não estava exercendo a profissão. Ela tinha 21 anos quando se casou e 22 quando eu nasci. Então, era uma família de classe média tranquila. A gente morava em uma casa em Araraquara. Eu morei em Araraquara e praticamente toda a minha família é de lá, então os meus avós maternos, os avós paternos, tios, tias. Eu fui a primeira neta, a primeira sobrinha, a primeira ‘tudo’ da família, então era super paparicada, claro, como toda família italiana, né? A minha família tem ascendência italiana, meus avós vieram da Itália, meus avós paternos. Então, o dia a dia típico é o de uma família italiana do interior, em que você anda descalço - é um ambiente mais tranquilo. Eu morei em Araraquara até os 6 anos de idade. Meu pai trabalhava para a Nestlé lá, ele é agrônomo e era responsável por uma força-tarefa que atendia os fazendeiros, para garantir que a qualidade do leite fosse adequada para a produção da Nestlé. A Nestlé comprava os leites e o que ele fazia era educar os pequenos fazendeiros para ter a forragem certa para a vaca, a alimentação certa, o pasto, enfim. Eu sei essas coisas todas porque, depois [que] você cresce com seu pai explicando todas essas coisas pra você, vira meio agrônoma também. (risos) Quando eu tinha… A gente morou lá até eu ter seis anos, aí o meu pai deixou a Nestlé e resolveu... Deixou o posto em Araraquara e a gente foi morar em uma outra cidade, chamada Catanduva (SP), onde aí eu comecei… Eu fiz o primário e o primeiro ano nessa cidade, num colégio de freiras que tinha educação montessoriana, que é uma das coisas que eu me lembro com mais prazer, aí, da escola, mais interessante. E depois começou uma sucessão de mudanças. Então, dos meus seis anos de idade até os meus onze anos, eu morei em sete cidades diferentes. Então, a coisa mais marcante da minha infância é nunca parar em lugar nenhum. Porque meu pai saiu da Nestlé, resolveu empreender com um amigo que era da faculdade que ele tinha feito em Jaboticabal (SP), de Agronomia, e eles resolveram, então, abrir uma loja lá, de produtos agrícolas. E aí foi em Itápolis (SP)... Então, de Catanduva, quando eu tinha sete [anos] e meio, sete, que a gente morou um pouquinho em Catanduva. Aí a gente mudou para Itápolis. E eu saí do colégio de freiras e fui direto para a escola pública. Depois de Itápolis, a parceria com o sócio não deu certo, aí meu pai perdeu o emprego [e] minha mãe resolveu… Teve que voltar, começar a trabalhar como professora. Fez lá o que era a escolha de uma de uma classe, né? E, na época, a professora primária, você pegava - geralmente, quando você estava começando - aquelas escolas que ficavam no interior, na fazenda, quase. Escola rural, praticamente. Então, ela conseguiu uma cadeira na escola rural. De Itápolis, a gente, então, se mudou, porque meu pai conseguiu emprego num laticínio, em Barretos (SP). E aí a família ficou toda espalhada. Então, a gente se mudou… Minha mãe conseguiu uma cadeira numa escola rural numa cidadezinha, numa vila chamada Santa Izabel, que ficava perto de uma cidade chamada Fernandópolis (SP). Então, a gente se mudou para Fernandópolis. Passava a semana morando na vilazinha, que a vila era assim, literalmente: era um quadrado onde ficava a igreja e o campo de futebol era, [tinha] uma árvore enorme, que eu ficava subindo nela o tempo inteiro. A escola ficava atrás e a única casa mais abastada era a da Dona Lurdes e do ‘Seu’ Chico, que era o fazendeiro lá da região, que dava pensão para todas as professoras da escola. Então, a gente morava na pensão, né, da Dona Lurdes e do ‘Seu’ Chico. Tinha um quarto lá: ficávamos eu, meu irmão que, na época… Meu irmão é três anos mais novo que eu. Então, meu irmão, na época, tinha... Sei lá, eu tinha 9 e ele tinha 6 [anos]. Então, a gente passava a semana nessa vila, em Santa Izabel. Meu pai ia trabalhar em Barretos, depois chegava no sábado, ele aparecia lá na subida da… Eu subia numa goiabeira pra ver meu pai chegar e ficava olhando, pra ver se eu via o fusquinha dele. Aí, quando eu via o ladeirão lá de terra, eu o via chegando e já sabia que ele estava perto de pegar a gente. Ele pegava a gente lá, a gente passava o final de semana em Fernandópolis. Depois, na segunda-feira, voltava para dar aula, para a aula: eu ficava lá com a minha mãe e meu irmão, e ele ia embora para Barretos. De Fernandópolis para… A gente se mudou pra Barretos. Aí a coisa mais ou menos andou, só que aí a minha mãe teve que pegar pra dar aula numa outra cidade, numa vila, também, pequena. E aí, foi de novo: a gente morou numa pensão, onde hospedava várias professoras, enquanto meu pai também trabalhava em Barretos. Até que conseguiu mover todo o mundo para lá. E aí nasceu meu irmão mais novo, que ele é onze anos mais novo que eu. Quando a gente se acomodou de verdade, que foi quando eu tinha onze anos, aí a gente meio que assentou em Barretos. Então, a minha vida foi sempre de mudança. Eu tinha… Se você me perguntar o que eu lembro, né, qual era a rotina, a rotina básica de uma família de classe média e que está sem grana, que o pai [e] a mãe trabalham. Minha mãe… Eu era a filha mais velha, sou a filha mais velha, e eu sempre fui ‘CDF’, né, como diz o meu filho, então (risos) ninguém tinha problema de me pedir para estudar. Eu adorava ler. Comecei a ler com cinco anos. Enchi tanto a paciência da minha mãe numas férias da escola, que ela teve que [me] ensinar, nas férias, a ler. Então, (risos) o que eu fazia era assim: pra mim, se tivesse um livro na frente, estava tudo certo. E eu era muito tranquila com relação a isso. E acabei… Era aquele dia a dia, né? Minha mãe trabalhando bastante, cuidando de três filhos ao mesmo tempo. Quando meu irmão nasceu, que a gente já estava em Barretos, mas minha mãe ainda tinha que ficar na outra cidadezinha, aí minha tia, irmã do meu pai, veio morar com a gente. Então eu praticamente troquei todas as fraldas do meu irmão enquanto ele era bebê, né? Eu brinco com ele que: “Cara, você é mais meu filho do que…”, embora eu tivesse onze anos. Então, era esse o ritmo. Para mim, o grande desafio era me acomodar nessas mudanças, porque você não consegue. Você vai ser sempre o “new kid on the block” (a criança nova da região), você nunca vai conseguir ter muitos amigos, porque chega numa escola, muda de escola, chega numa escola, muda de escola. E a primeira coisa que eu fazia quando eu mudava de cidade, era descobrir onde era a biblioteca. Então, eu tinha uma bicicleta e a primeira coisa que eu fazia era catar a bicicleta e rodar até achar a biblioteca, fazer meu cartão da biblioteca. Aí estava tudo resolvido. Porque eu tirava todos os livros que eu queria e ficava lendo. (risos) E outro dia eu estava contando isso pra minha mãe e [ela] falou assim: “Como assim, biblioteca? Como assim?”. Eu falei: “Mãe, você não estava prestando atenção, porque você simplesmente estava dando aula, né, mas eu me virava”, “Mas eu não sei disso! Ó, meu Deus!”. E aí fica aquela cena, né, do tipo: “O que eu fiz, né? Que educação que eu te dei?”. Falei: “Não, está tudo certo. Eu sobrevivi”. Então, essa é a minha infância. Família super de… Família italiana, daquelas que adoram, né, se juntar. Então, a coisa mais bacana, nessa época, era ir passar as férias na casa da minha avó e do meu avô, em Araraquara, né? Dona Olga e ‘Seu’ Totó. O meu avô tem uma… Os meus avós foram… Como é que eu vou dizer? (choro) Eu fico emocionada, porque eu tenho uma saudade danada deles. Os meus avós, assim… O meu avô veio de uma família de mistura de italiano com alemão, então tem uma (risos) coisa importante, que é assim: uma família europeia valoriza muito a educação, né? Então, uma coisa que eles valorizavam muito pra mim, que era a única neta, a primeira neta e tudo, era ler. Ganhava todos os livros que eu queria, era estimulada a… Ninguém disse pra mim: “Ah, você vai crescer e casar”. Nunca ninguém me disse isso. E meu avô tinha uma grande frustração, porque meu avô era filho de fazendeiro, que perdeu toda a fortuna na crise de 1929, do café. E meu bisavô, de uma hora pra outra, ficou… Perdeu tudo e morreu, né? E meu avô, que estava prestes a fazer faculdade aqui em São Paulo (SP), de Farmácia, teve que largar a faculdade, que era o grande sonho dele, e voltar para casa, porque eles não tinham dinheiro. O meu pai é muito parecido: perdeu o pai dele aos nove anos. Então, o meu avô veio num navio, a minha avó… O meu avô Giuseppe veio num navio e minha avó Rosa veio no outro. E eles se conheceram aqui, numa cidadezinha chamada Quadro (SP), que fica perto de Matão (SP). Então, tem o… Ali, essa região é muito cheia de italianos. Muito cheia de italianos. Os Franzini, os Bassi, aí junta, né, um monte. Então, era uma vila [que se] chamava Quadro, perto da [Barra do] Turvo (SP), que era uma outra (risos) vila. E que, praticamente, era assim, onde baixou a vila inteira dos italianos ali, né? Meu avô veio de uma cidadezinha perto de Roma (Itália), chamada Rocca di Mezzo, que fica na… Tô tentando lembrar aqui o nome, mas é o Áquila. Na região de Áquila. É só lembrar do [filme] “O Feitiço de Áquila”, que você vai lembrar. (risos) Então, é uma cidadezinha chamada Rocca di Mezzo, que hoje é uma estação de esqui, né? Teve aqueles terremotos que aconteceram na Itália, lá, que caiu um monte de coisa lá. Foi naquela região. E minha avó veio da Calábria, lá perto da Sicília. E eles se conheceram aqui e o meu avô tinha um sitiozinho ali em Quadro e meu pai é o mais novo de cinco, ele é o caçula. Ele tinha mais duas irmãs - na verdade, o mais novo de seis - e três irmãos, né? E ele. Então, meu avô morreu quando ele tinha nove anos. Também perderam tudo, perderam o sítio. Tanto do lado da minha mãe, quanto do lado do meu pai, a gente sempre foi, assim, a família italiana sempre cuida muito dos filhos, né? Faz tudo que der. Como toda família, mas italiano é terrível, porque gruda. (risos) E tem aquele carinho todo. Então, as coisas eram muito quentes e muito calorosas, assim. E tanto as coisas pro bem, quanto as brigas. Eram aquelas coisas: quando eu brigava com meu pai, no jantar, sai da frente, né? Mas era sempre muito bom. Então, casa de avó era muito bom, a casa da minha bisavó materna, em Matão, era um lugar absolutamente maravilhoso. Tinha uma cozinha gigante, com aquele cheiro de comida o tempo todo. Você entrava e alguém estava lá amassando o macarrão, fazendo bolo [ou] bolinho. Então, é uma coisa muito ligada a, é muito sensorial. É uma coisa engraçada, isso, essa coisa de você se lembrar de cheiro, de imagens, de coisas ligadas à comida. Eu adoro cozinhar, acho que por causa disso. Por mim, eu tinha uma cozinha igual à da minha bisavó. E a casa era muito legal. Uma coisa que tinha na casa, que eu amava, eram livros. Tinha uma sala que só tinha livros. Coleção de livros e mais livros. E tinha, assim, as seleções do “Reader’s Digest” todinhas, encadernadas, em lombada, com… Lombada de couro, com aquelas filigranas de ouro. E a gente ia pra lá em alguma festa, eu me enfiava lá naquele quarto, na biblioteca, e não saía de lá. Só saía de lá na hora que desse fome - aí alguém ia me chamar, para comer. (risos) Então, é isso. Assim, a minha infância foi muito boa [e] feliz. Apesar dessa mudança toda, eu acho que não tenho muito medo de mudar e gosto de fazer coisas de mudar e de ‘fuçar’, acho que porque eu aprendi a me virar e a gente teve essa mudança toda, na vida inteira. Isso dá uns traumas, não vou dizer que não dá (risos) trauma de infância, vários deles, (risos) mas é isso. Essa é a história. Assim, já contei minha história inteira. Você já sabe minha infância toda.
P1 – Me conta uma coisa: o que você gostava tanto de ler?
R – Nossa, a minha vida é engraçada, eu gostava de ler tudo. De, assim, capa de caixa de embalagem de receita com Leite Ninho, até o almanaque do Biotônico Fontoura: o que caísse na frente. O que caísse na frente, eu lia. E eu tive fases de leitura, que é muito engraçado: eu meço a minha vida pelas leituras. Então, quando a gente morou em Santa Izabel, a biblioteca da escola, eu ‘fuçava’ lá o tempo todo. E lá eu li a obra completa do Monteiro Lobato. Foi quando eu descobri Monteiro Lobato. Então, foi muito bacana. E depois, quando a gente mudou para Morro Agudos (SP), que é essa cidadezinha pequena, perto de Fernandópolis, a biblioteca era outra história. Achei a biblioteca e lá eu descobri Sherlock Holmes. E eu li toda, toda a coleção de Sherlock Holmes. Adoro livro de mistério, faço coleção de livro policial, né? Isso eu amo de paixão. Agatha Christie, todos os clássicos, né, e os não tão clássicos. Eu acabo fazendo coleção de livros. Então tinha, por exemplo, quando a gente morou em Itápolis (SP), que eu conseguia ir pra biblioteca, aí eu comecei a pegar, por incrível que pareça… Aliás, desculpa, Fernandópolis. Em Itápolis, eu era muito pequena. Em Fernandópolis, eu comecei a ler ficção científica. Aí eu achava todos os livros de ficção científica que tinha na biblioteca. Então, foram fases diferentes, de Monteiro Lobato a… Aí, quando a gente se mudou para Barretos, eu era meio… Vamos combinar, vai, eu era “nerd”. Mas muito “nerd”. Daqueles, assim, horríveis. (risos) Tinha alguns amigos, claro, sempre tive amigos, mas eu não era, assim, de fazer festa. Ficava meio desconjuntada. Acho que o fato de você não conseguir ter uma permanência, né, essa impermanência das coisas era bem complicada. Mas aí o meu grande amigo era o ‘Seu’ Alfredo, que era o bibliotecário da escola e eu era a única pessoa da escola, a única, que tinha uma cadeira do lado de lá do balcão. Eu tinha o direito de sentar do lado do ‘Seu’ Alfredo. Então, eu tinha um espaço, podia mexer onde eu quisesse, fazer o que eu quisesse, pegar o livro que eu quisesse, não tinha que dar satisfação pra ninguém. E ficava batendo papo. O ‘Seu’ Alfredo me contava milhões de história, das pescarias. Então, assim, era… Eu saía na hora do recreio, ia pra lá, pra biblioteca, pulava pro lado do balcão e ficava ‘fuçando’. E nessa fase eu comecei a ler Shakespeare. E aí, vai entender! Você tem uma ousadia, né, com onze, doze anos [de] você ler Shakespeare. Eu tenho que ler tudo de novo. Agora, eu não vou lembrar, mas era, então, assim: eu gostava de ler qualquer coisa. Adoro ficção. Agora gosto também, obviamente, de livros de negócios e outras coisas que você vai adquirindo, né? Mas eu acho… Certas leituras acadêmicas eu acho super chatas, mas adoro ficção científica [e] livros policiais. É mais nessa linha. Então, é engraçado, porque assim: era sempre uma fase de cada jeito.
P1 – Me conta um pouco, Silvia, sobre essa sua fase que você conseguiu se estabelecer, sua família conseguiu se estabelecer em Barretos. Como foi pra você esse momento que as coisas ficaram um pouco mais estáveis? E aí, como você conseguiu se misturar nesse ambiente, ter realmente uma escola mais fixa? Como isso foi pra você? Como conseguiu lidar com isso?
R – Tá. Então, essa foi a fase bacana, porque a gente se mudou pra lá, eu tinha onze anos, né? Então, eu estava… Fiz o chamado ginásio, né, e fiz o colegial, digamos assim. Na escola, o fato de ter uma coisa mais fixa, de ir ficando, me permitiu ter mais amigos, mas não um exagero. Então, eu tinha lá um grupo de amigas tão “nerds” quanto eu, que a gente passava o tempo inteiro estudando, né, (risos) lendo e conversando. Foi a fase de ter grandes amigos, né, pro resto da vida. Então, como era o Sávio, que era um amigo meu e a gente passava horas no telefone, aquele telefone de discar - meu pai queria me matar -, discutindo Érico Veríssimo. Aí foi uma fase mais interessante, porque a gente começava… Então, era aquela fase de você estar ouvindo Caetano [Veloso], ouvindo tudo que estava acontecendo. Pense que nós estamos falando, aí, de 1971. Entre 1971 para 1972, no meio da Ditadura, no meio de uma crise danada. O Sávio era um ano mais velho que eu, mas a gente ficou super amigo. E a gente passava horas discutindo política, livros, jogando xadrez pelo telefone… É, eu tô falando que era “nerd”. Era mesmo “nerd”, era divertido. Eu tinha (risos) uma bicicleta, que eu usava a bicicleta para ir pela cidade inteira. Então era, de novo: minha mãe trabalhava muito, ela estava dando, dava aula. Eu me virava. Tinha uma empregada que cuidava da casa - naquela época, já dava, porque meu pai já estava com o laticínio, que aí ele mudou pra Barretos [e] acabou ficando sócio de um laticínio. Foi a fase boa. Foi a fase que entrou a grana, né, tudo tranquilo e eles foram viajar pra Europa, naquelas excursões da Abreu Turismo, aquelas coisas todas. Essa foi uma fase mais bacana, em que as relações mudaram, né? Então, o Sávio é, sempre foi, vai ser meu “crush” de adolescência mal resolvido, mas era meu grande amigo. E a gente dividia tudo. Ele tinha um irmão mais velho, que morava aqui em São Paulo e o irmão dele, na época da Ditadura, ia para a rua para protestar e chegou a ser preso. Então, a gente ficava sempre discutindo isso, né? Foi uma época, dos meus onze aos dezessete, porque depois dos dezessete eu saí, né, de Barretos e fui estudar fora, mas dos meus onze aos dezessete, foi uma parte do tempo o Sávio, né, o tempo todo, depois a Bebel - e aí é outra história, que é a minha família adotiva. É a minha grande amiga, que infelizmente morreu no final de 1991, no Ano Novo de 1991 para 1992. A gente tinha a mesma idade e ela era filha de um tenente coronel da Aeronáutica que tinha se recusado a cooperar com o golpe de 1964, então era uma família altamente politizada, mas super tranquila, que ele pegou e foi embora do Brasil, morou um tempo nos Estados Unidos. E eram, assim, cinco filhos, né? Quatro meninas e um carinha, mais a Dona Teresinha e o ‘Seu’ Fernando. E eu fiquei, a gente ficou super amiga, então era, foi uma fase em que, de novo, aí eram aquelas discussões todas de falar de política, de economia, de tudo o que você pode imaginar e, ao mesmo tempo, fazer as festinhas, de ouvir “Dancin’ Days”. - Era a época daquelas novelas, tipo, “Dancin’ Days”. - Eu não lembro de todas as novelas, mas a gente assistia várias. E ir ao cinema, então, aquela coisa de ir ao cinema, assistir filme clássico, filme de arte e abobrinha, tipo, a estreia do “Tubarão”, né, e coisas do gênero. Então, foi uma fase em que eu tinha poucos amigos, né, mas muito queridos [por mim]. Muito próximos. A Bebel é a perda mais forte que eu tenho até hoje, e era uma pessoa fantástica. Uma figura. Então, ela morou em Barretos até… Deixa eu ver: eu saí de Barretos com dezessete [anos]. Eu saí em 1980, né, para fazer cursinho. E ela morou até 1979. Depois, ela… Eu fui… Ela mudou para Campinas (SP), porque ia fazer Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Todo o mundo ia para a faculdade e eu acabei indo para Campinas também, porque queria fazer Engenharia. Acabei [que] (risos) fiz Engenharia, mas mudei pro Jornalismo. Então, foi essa fase. Uma fase de adolescência, assim: eu não era uma adolescente rebelde, mas arrancava todas as etiquetas da roupa. Era aquela adolescente que tinha uma calça “jeans” e uma camiseta branca, né? Eu pintava as minhas próprias roupas, eu não usava roupa de moda. Andava com tênis daquele básico. E meu foco era outro. Lia Mafalda, falava de política. Então, as pessoas, na escola, olhavam pra mim e falavam: “Aquela maluca que discute política o tempo inteiro”. (risos) Então, era mais ou menos isso, né? Engraçado pensar agora. Mas tinha… Estudava pra burro, adorava estudar. E adorava ler, continuava lendo que nem uma louca.
P1 – Tinha alguma matéria que você gostasse mais, nesse período do ensino médio? Que você, realmente… Era aquilo que você se concentrava, ali: “Eu gosto disso”.
R – Tá. Então, tinha, é engraçado, eu amo Ciências Exatas. Eu adoro Ciências Exatas. Se você me perguntar, assim… Português, óbvio, por razões óbvias, adorava escrever, gostava de escrever. Eu gostava de Matemática, odiava Física até um pedaço, depois deu certo, consegui me acostumar. Mas eu gosto dessa coisa de você ter que resolver um problema, né? Então, esse desafio de você olhar o postular do problema e tentar descobrir, usar fórmulas, usar o raciocínio. Então, eu sempre gostei disso. Gostava de Matemática. Acho que não tinha nada que eu não gostasse muito. Não gostava dessas coisas, tipo, [aula de] Religião, essas aulas estranhas que você era obrigado a assistir. Eu sou da época que todo dia tinha que hastear a bandeira e cantar o Hino Nacional na escola, lembre-se disso. Lembre que eu sou de uma fase em que o Brasil vivia na Ditadura, né, então fui pra rua, na época da Unicamp, protestei Diretas Já, usei a estrelinha do PT. (risos) Enfim, todas as coisas que você pode imaginar. (risos) É uma fase… Eu me considero… Eu considero que essa minha geração, que tem gente que fala que é “late boomers” (geração final dos “baby boomers”, com pessoas que nasceram entre 1956 e 1964), né, tem gente que fala que é “geração X”, eu tô no meio do caminho entre uma e outra. Acho que talvez seja a geração mais interessante, né, porque a gente conseguiu ver um pouco de tudo. Mas eu adorava praticamente todas as matérias. Eu gostava muito de Química e esse foi um dos motivos que me fez escolher Engenharia dos Alimentos, quando… Adorava, tinha uma professora de Química, do laboratório, que era fantástica. Na escola… Naquela época, a escola pública era uma coisa muito fantástica. Era o ensino mais elevado que você podia conceder para um filho seu. Era ao contrário: a escola privada era chamada “pagou, passou”. Era aquela que os filhos dos fazendeiros iam, porque não queriam estudar: o pai pagava lá, passava e tudo bem. Agora, a gente vê um sucateamento, aí, do ensino público, mas eram, então, professores ótimos. Professores maravilhosos. Acho que não tinha nada que eu não gostasse muito, não. Estudos Sociais, mais ou menos, porque a matéria era aquela coisa pré-formatada da… Dos livros que vinham lá da Ditadura, então não tinha a menor graça. Você ficava brigando com o professor o tempo inteiro. Eu desencanava, né? Mas acho que [a minha preferência de matérias] é uma mistura de Exatas com Humanas, com certeza.
P1 – E como foi essa sua mudança pra Campinas, Silvia?
R – (risos) Essa mudança pra Campinas foi legal. Foi assim: eu resolvi que ia fazer Engenharia de Alimentos. E a história da Engenharia de Alimentos é engraçada porque, assim, enquanto eu estava em Barretos, nesse período todo, um dos investimentos mais legais que meus pais fizeram foi me colocar no inglês, eu poder estudar línguas. Fiz todo o curso inteiro, do primeiro ao último grau da escola de inglês e, naquela época, acho que eu tinha uns dezesseis, eu conheci um cara que estava fazendo um estágio… Barretos tem um frigorífico, que é o Frigorífico Anglo. Então, eu conheci um cara, fiquei amiga de um cara que era do sul e que estava fazendo aula de inglês comigo, no curso avançado, e a gente ficava conversando. Acho que ele tinha, sei lá, devia ter uns seis anos [a] mais que eu, talvez um pouco mais até. Ficamos super amigos. E ele fazia Engenharia de Alimentos, no sul. Eu adorei, porque ele me contou o que era. Fiquei pensando: “Pô, vou fazer Engenharia de Alimentos. Vou, depois que me formar, mudar pra Paraíba [e] montar uma indústria para ajudar os pescadores lá na beira, na indústria pesqueira. Vou conseguir fazer acontecer, mudar a vida dos pescadores!”. Então, estava tudo ‘acertadinho’. Engenharia de Alimentos tem uma mistura de Química com outras matérias que eu gostava. Então, a decisão de ir pra Campinas tinha um pouco a ver com isso, porque na Unicamp tem Engenharia de Alimentos, então era super natural que eu fosse para lá, né? Tinha [também] a Bebel e a família toda, tinha até um respaldo legal. Então eu resolvi ir pra Campinas. Eu fiz, terminei o colegial, fiz o vestibular, fiz a Fuvest na cara e na coragem, lendo as apostilas de vestibular da Abril, lá, que saiu uma coleção. Eu ficava lendo (risos) e estudando sozinha em casa, mas não deu pra passar, claro. Passei na primeira fase, mas nem pensar, né? Não consegui passar na segunda, porque não… Por mais que você, que o ensino público fosse bom, não tinha essa força toda que você teria se tivesse um cursinho mais forte e tal. Aí, então, a decisão foi: “Tá bom, então você vai pra Campinas, né, muda pra Campinas”. Meu pai: “Faz o cursinho lá, fica um ano fazendo cursinho, presta o vestibular, entra na Unicamp e está tudo certo”. Eu nunca coloquei, assim, essa ideia de: “Vou para uma faculdade paga”, porque eu sabia que não ia ter grana para pagar. Então, para mim, era sempre assim: “Tem que entrar lá e acabou”. Não tinha essa alternativa, né? Então, eu fui pra Barretos… Fui pra Campinas em 1980, meu pai acabou comprando um apartamento lá perto, na frente da escola de cadetes, era um lugar legal. (risos) E aí eu ia… Fiz o cursinho durante o ano inteiro de 1980 e entrei. Tô fazendo a conta certa? Agora tô aqui pensando se era 1979 ou 1980, mas, enfim, sou da turma de 1980. Não, está certo! É isso mesmo. É isso aí. Eu fiz o cursinho em 1980 e em 1981 entrei na Unicamp, no final do ano entrei na Unicamp, passei em Engenharia de Alimentos. A família toda ficou super feliz, achou o máximo e a Bebel entrou em Filosofia... Entrou em Ciências Sociais. E aí, o que aconteceu? Você imagina. Eu vivia lendo, vivia discutindo política. Eu passava a maior parte do meu tempo no estudo de Filosofia e Ciências Humanas e menos tempo lá no Centro Básico, assistindo, né, as aulas de Engenharia. E aí, um grande… Lembro que foi o Leithold, que é um livro de cálculo, né? O Cálculo I me matou, quando descobri que tudo aquilo que eu achava, aquela coisa romântica de: “Vai cuidar dos pescadores lá na Paraíba, vai fazer tudo”, que tinha que ser engenheira primeiro e ser engenheira significa você fazer uma coisa muito chata. Então, aí, naquela época, eu descobri que não gostava tanto de Matemática assim. Leithold me derrubou. Aí eu olhei e falei: “Bom, o que eu quero ser, né? Eu gosto de contar história, adoro contar história pras pessoas”. Eu fazia fotografia na época, queria fazer fotojornalismo. Eu era da turma que fotografava dentro da Unicamp. Tinha bandos de pessoas, grupos que se juntavam. E aí resolvi que eu ia largar a Unicamp, prestar vestibular de novo e entrar na USP (Universidade de São Paulo). Ia fazer ECA (Escola de Comunicação e Artes da USP). Então, a ida pra Campinas foi isso. Foi por causa, obviamente, da faculdade de Engenharia de Alimentos, [que] acabou sendo também porque tinha lá a turma toda, dos Whitaker. E depois, São Paulo, obviamente, foi o caminho, né? Foi uma briga terrível em casa quando eu falei: “Vou largar Engenharia [e] fazer Jornalismo”. (risos) Não é uma coisa que se conta numa família de italianos, assim, aquela coisa toda. Foi um trauma, uma briga terrível com meu pai, porque eu viajava, passava alguns finais de semana, ficava um mês e pouquinho em Campinas, depois ia de ônibus, né, pra Barretos, pra visitar minha família. Passava o final de semana e voltava. E minha mãe falava assim: “Por que você escolhe falar essas coisas no meio do jantar?”, “Porque não tem outro horário! O que eu vou fazer?” E era uma briga terrível. Meu pai falou: “Eu não vou pagar outro apartamento! Não vou ‘não sei o quê’”. Eu falei: “Está tudo certo, não tem problema nenhum. Eu vou começar a trabalhar. Continuo morando em Campinas e vou de ônibus todo dia pra São Paulo, fazer faculdade e pronto. Você não precisa… A única coisa que você deixa lá é o apartamento”. E fiz isso. (risos) Durante quatro anos, eu fui e voltei todo dia de Campinas para São Paulo e vice-versa, para poder fazer ECA e, ao mesmo tempo, trabalhar de tarde. Enfim, foi uma coisa maluca. Acabei… Aí eu não cancelei completamente a minha faculdade na Unicamp, eu mudei de Engenharia de Alimentos para Química. Não durou três meses, porque foi um inferno na Terra conseguir coordenar todas as coisas. Aí larguei de vez. Em vez de trancar, simplesmente abri mão da minha vaga, né? Não fazia o menor sentido ficar segurando uma vaga. E aquele ano que eu resolvi fazer de novo o vestibular, foi um ano em que eu peguei todas as apostilas do Anglo de novo e ‘rala’. E fiz, passei, não precisei fazer outro cursinho, [porque] estava com tudo na cabeça, super fresco. Quando eu falo assim, meu filho fala: “Você é muito esnobe. Você fica falando… É muito CDF”. E não é? Eu gostava, o que vou fazer? É aquela coisa: quando você precisa fazer, acha um jeito. Diz uma amiga minha, a Regina, da época: “É a questão do propósito”, né? Se você bota o propósito na frente, geralmente as coisas acontecem. Então, foi isso. Aí, de Campinas foi isso. Eu continuei morando em Campinas e eu ia, vinha pra São Paulo todo dia, eu e o Rogério. Rogério era um amigo da gente, amigo meu, da Bebel, das meninas, que fazia Arquitetura aqui em São Paulo. Então, a gente pegava o mesmo Cristália e ia todo dia de manhã, às cinco horas da manhã. Acordava às cinco [e] cinco e meia, eu estava lá na rodoviária, pegando meu talãozinho de passe de estudante, entrando no ônibus. Aí dormia, descia na ponte da Casa Verde, andava - subia a ponte - uma quadra ali e pegava o Casa Verde USP que, às vezes, várias vezes, eu vinha pendurada, né, pra fora do ônibus. Outro dia eu estava contando isso para uma amiga e ela: “Imagina, você, pendurada no ônibus?”. Eu falei: “Cara, pendurei muito no ônibus”. Não tem muita saída, você faz o… Era divertido, na época. E fiz isso. Então, foi essa aventura aí. Continuei morando em Campinas, voltava pra Campinas de tarde e ia pra balada à noite, ia pro cinema, ia beber no City Bar, ia encher a cara. Depois voltava, acordava no dia seguinte quase morrendo, mas ia, né? Então, foi essa a história.
P1 – Me conta um pouco sobre essa sua experiência na ECA, fazendo Jornalismo. O que achou? Você chegou lá e pensou: “Isso realmente é o que eu quero fazer”? Teve dificuldade pra se adaptar? Como foi esse período da faculdade?
R – Não, foi bom. Foi divertido. Assim, a minha turma da ECA, a gente tinha um professor, o Coelho, que falava que essa era a melhor turma que ele já tinha visto nos últimos ‘X’ anos. A minha turma da ECA era uma turma que tinha o Marcelo Rubens Paiva. (risos). É, conheço o Marcelo desde aquela época. Depois a gente foi se encontrar de novo agora, recentemente. Então, você tinha, assim, o William Bonner é da minha turma. O Marcelo Rubens Paiva. Quem mais? O Marcelo Duarte, do “O Guia dos Curiosos”. Tem, assim, a Eliana Sanches, que foi diretora das revistas “Claudia” na Abril, todas as revistas de mulheres da “Claudia”. O Alfredo Ogawa, que foi diretor de redação da “Placar”. Então, assim, era uma turma muito genial. O Thales Guaracy, que já escreveu sei lá quantos livros. O Thales é um fofo. Então, a gente tinha uma turma muito legal. Eram pessoas divertidas. A ECA era uma delícia, né, a USP era uma delícia. Pra mim, acho que a experiência da USP foi… A única coisa que eu me arrependo é que essa minha ideia de ficar indo e voltando, né, [que] eu ficava dividida entre dois mundos. Então, eu não curti a minha turma da ECA, as festas, as baladas, as maluquices que você faz, né, quando você está na universidade, tanto quanto eu poderia, porque via as pessoas durante o dia, saía de lá e ia pegar o ônibus para voltar para Campinas. Então, eu perdia muito. Chegou no… Mas era assim: Jornalismo era o que eu queria, aí eu continuava meio que focada em fazer Fotojornalismo, depois comecei a pensar o que fazer e comecei a achar que eu podia escrever, né? Mas não tinha, assim, um plano. Nunca desenhei um plano assim: “Vou ganhar um Pulitzer, vou fazer ‘não sei o quê’”. Não, era vontade de trabalhar e escrever. Então, as referências eram muito essas. Mas foi um período maravilhoso. Tinha... Quando chegou no último ano, em que as coisas começaram a ficar mais complicadas, porque tem que fazer estágio. Você está começando a procurar emprego, tem que saber o que fazer. Então eu mais dormia em São Paulo, aí eu dormia na casa de ‘N’ pessoas, né? Em república de alguma amiga, ou na casa de alguém, na casa do Sávio que, na época, morava aqui. Então, dormi várias vezes na casa dele, em São Paulo, que ele estava morando aqui, ou na casa da família da Silvia Maiolino ou na casa da Regina Giannetti. Então, eram as pessoas com quem eu dividia. E aí foi ficando mais intenso e a gente foi começando a procurar emprego, mas era isso. Eu não tinha dúvida que era Jornalismo, só não sabia que ia ser de tecnologia, né? Acabou sendo outro acaso, aí, na minha vida.
P1 – E qual foi a sua primeira experiência profissional?
R – Então, a minha primeira experiência profissional foi fazer… (risos) Tinha uma… Eu preciso, vou ter que me lembrar. Eu tenho guardado aqui, nas minhas… Vocês me pediram pra fazer, separar as coisinhas lá, eu tenho as coleções, as coisas aqui. Naquela época, tinha uma loja grande de CDs e aparelhos de som… Você tem que pensar o seguinte: a gente está falando aí de 1984 pra 1985. 1984. Então, não existia… Pensa que não tinha tecnologia ainda. Estava começando a ser lançado. Não tinha nada disso. E aí tinha uma loja grande aqui em São Paulo chamada Audio Laser, acho que era a Audio Laser, que era do Tony, um cara que importava coisas de Miami, aqueles aparelhos super legais, de disco de vinil e tal, aquela coisa toda. E ele queria um jornalzinho pros clientes, que falasse sobre tecnologia, sobre música, cinema, arte, ‘não sei quê’. E a Regina conseguiu. Falou: “Ó, consegui esse negócio. Topa fazer comigo?”. E eu falei: “Topo, vamos embora, né?”. Eu tinha que trabalhar, trabalhei em escola de inglês, secretaria de escola de inglês, fiz um monte de coisa, nesse período aí, de Campinas para São Paulo. E aí a gente fez. Então, a primeira experiência foi fazer esse “Audio News”, que era o jornal. E a gente escrevia toda semana. Era um ‘tabloidinho’. Mas era divertido, a gente entrevistava umas pessoas legais, fazia umas críticas de cinema, de filmes e era bacana. Essa foi minha primeira experiência. A primeira experiência mesmo, de jornalismo, foi aí que alguém me avisou que tinha - aí estava acabando a história do jornalzinho e a gente ficou meio chateada - uma empresa chamada IDG. Na verdade, [se] chamava Data News, na época, Computerworld do Brasil, que tinha… Estava procurando estagiário. E aí eu falei: “Bom, vou lá ver o que é isso, né?”. E aí foi quando eu fui para fazer a entrevista, a minha chefe que, na época, era a Iara Menu, que infelizmente morreu de câncer no seio, muito… Um pouquinho de anos depois que ela me contratou. Ela sentou comigo, aí eu descobri que a empresa, a IDG, a Computerworld era um dos maiores grupos do mundo que escrevia sobre tecnologia. Tinha uma publicação chamada “Data News”, [que] estava no Brasil desde 1976. Aí a Iara olhou para mim e falou: “O que você conhece sobre computador? Você sabe o que é um RS-232?” (risos) E aí eu falei: “Eu não faço a menor ideia do que é um RS-232”. E ela falou: “Tá bom, então (risos) você vai aprender tudo, porque sua missão aqui é me ajudar a fazer um negócio chamado ‘Guia do Comprador de Micro’”. Se eu tentar explicar pra você o que é isso, era assim: os primeiros computadores nascendo, as primeiras placas, as primeiras CPUs. As CPUs tinham menos memórias que… Ai, eu não sei. Se tiver um acendedor… Menos memória que uma geladeira, que uma TV conectada, hoje. E aí eu tinha que fazer o seguinte... Estava nascendo uma indústria no Brasil, né, isso que é um ponto importante. A gente estava no meio da reserva de mercado, o Brasil tinha decidido fazer a reserva de mercado pra proteger uma indústria, teoricamente, nascente de tecnologia e aí começaram a aparecer as empresas de tecnologia locais, né? Então, você fala de Scopus [Tecnologia], estamos falando… Você tinha empresas de "mainframe''. Era uma outra, não existia o PC. O PC estava começando a aparecer. Tinha sido lançado lá o IBM PC, né, tinha um negócio chamado MS-DOS, de uma empresa chamada Microsoft, que alguém achava que ia dar alguma coisa na vida. Tinha a IBM, que era a “Big Blue”, né, empresa enorme. Tinha a Burroughs [Corporation]. Tinha uns nomes que vocês não vão lembrar, só quem vai me ouvir agora, ter referência, [é] quem tem a mesma fase que eu tive. Então, o que aconteceu? Tinha uma indústria nascente que fabricava desde placas, né, de circuito impresso, até os processadores. RS-232 é uma interface, tá, que você põe e você conecta a placa, né? (risos) E aí, o que eu tinha que fazer? Tinha que, praticamente, fazer um guia telefônico, né? Um guia de compradores. Então, eu identifiquei todas as empresas do mercado, ligava pra todas elas, descobria o que tinha, né, o que elas fabricavam, entrevistava o cara da tecnologia, fazia uma ficha corrida, explicava o que a empresa tinha, punha lá todos os nomes, endereço, tal e compilava. Isso virou uma publicação e eu, por causa disso, né, sempre quis saber o porquê de todas as coisas, [então] eu aprendi de cabo a rabo o que era um computador. Aprendi tudo de tecnologia. Se você me pedisse pra consertar um computador na época, eu consertava pra você. Se eu tivesse que configurar no braço… Sou da época que computador você abre, levanta a tampinha, tira a plaquinha, põe outra plaquinha, põe plaquinha de vídeo, troca o vídeo e liga o som. Então, foi isso. Eu adorei a… Me dei super bem, né? Me matei pra fazer esse negócio. A Iara, então, achou que valia super a pena me oferecer um emprego. Então, de estagiária, fui contratada. Aí fui contratada pra trabalhar numa publicação chamada “Micromundo”, que era uma das publicações da IDG, da Computerworld. Na verdade, depois mudou de nome. Foi IDG [antes], era “IDG Computerworld do Brasil”. E tem coisas super curiosas. O cara que criou, que abriu a IDG - a IDG era uma subsidiária da empresa americana - que propôs pro Patrick McGovern, que era o dono da IDG Global, fundador da IDG global, pra abrir uma IDG aqui… A IDG, no Brasil, foi a quinta subsidiária global da IDG no mundo - é o Eric Hippeau. Assim, quem é o Eric Hippeau? Foi o cara que, um bom tempo depois, foi o CEO (diretor executivo) do Huffington Post, que é hoje um dos VCs mais conhecidos da cena de empreendedorismo e investimento em “startups” de Nova York, né? Então, o Eric foi meu chefe. (risos) É muito divertido falar, quando eu falo pras pessoas: “Mas eu conheci o Eric Hippeau, ele foi meu chefe”. Então, ele é americano, era “hippie”. Eles mudaram dos Estados Unidos pra cá numa época que estavam fugindo da Guerra do Vietnã, né, de ter que servir na Guerra do Vietnã. Ele mudou pra cá, morava no Rio e ligou pro Pat McGovern num dia lá qualquer de dezembro, antes do Ano Novo, e falou: “Olha, a gente criou um negócio aqui chamado ‘Data News’ - eles criaram um jornalzinho sobre tecnologia chamado ‘Data News’, que era um tablóide -, mas a gente acha que você podia trazer a IDG pra cá”. Aí o Pat… (risos) Era uma figura, o cara mais engraçado que você possa conhecer. É um empreendedor maravilhoso. Cara fantástico! Ele perguntou pro Eric, falou assim: “Quanto tá aí? Qual a temperatura aí?”. Pô, você imagina: Rio de Janeiro (RJ), véspera de Ano Novo? Estava uns quarenta graus na sombra, ‘verãozão’. Imagina que a IDG [que] é de Boston (EUA). Pensa Boston, dezembro, um metro e meio de neve caindo, um frio do caramba. O Eric falou: “Tá uns quarenta graus aqui”. E ele falou: “Tá bom, então vou passar o Ano Novo aí”. E ele veio (risos) pro Brasil - essa história é verdadeira - se encontrou com o Eric, foi pro Rio de Janeiro - aproveitou o sol - [e] eles começaram a fazer os planos, literalmente, em guardanapo de qualquer boteco, né, do Leblon, da praia de Ipanema, sei lá onde eles se juntaram, mas enfim. Anotaram, fizeram um plano. Na noite do Ano Novo eles foram pra praia, pegaram um barquinho, puseram o papelzinho num barquinho para Iemanjá e ficou assim: “Se Iemanjá levar, abre a subsidiária (risos) aqui no Brasil. Se Iemanjá devolver, não tem subsidiária”. (risos) E Iemanjá levou, né? (risos) Então, em 1976 - (risos) sério, por incrível que pareça, essa história é verdadeira – a IDG, então, foi criada. A “IDG Computerworld do Brasil Serviço de Publicações Limitada” foi criada aqui no Rio de Janeiro, foi a quinta subsidiária e o Pat falava disso toda vez que eu ia pros Estados Unidos, pra reunião. Aí ele falava disso o tempo inteiro. Mas é isso, então esse foi… Talvez, assim, o “Audio News” foi uma coisa mais de estágio, mas o meu primeiro emprego mesmo foi nesse começo aí da IDG, que eu comecei a pegar gosto pela coisa. Eu adoro tecnologia, né? Adoro. Adoro mexer com ‘coisa’, adoro quebra-cabeça, adoro tudo. Tinha… Jogava videogame que nem uma louca. Na época, meu irmão tinha um Atari e eu roubava o Atari dele. Quando mudei pra Campinas, levei o Atari dele comigo. Então, eu era louca por tudo isso. E aí me apaixonei e nunca mais saí de tecnologia. Foi mais ou menos por aí.
P1 – Bom, então, Silvia, retomando nossa entrevista: você estava falando sobre essa sua passagem de estagiária, né, pra funcionária.
R – Isso.
P1 – Vamos continuar, então, com essa história.
R – Então, vamos lá. Bom, a Iara me contratou e eu fui trabalhar no “Micromundo”, que era um jornal que tinha sido criado. Porque a IDG tinha um jornal mais forte, era o antigo “Data News”, que depois virou o “Computerworld”, e aí o presidente da empresa, que na época era o Ney Kruel, resolveu criar uma publicação de tecnologia voltada para micro e pequenas empresas, então criou o tal do “Micromundo”. E eu fui trabalhar. Foi uma época divertida, porque a gente era considerado os “rebeldes” dentro do espaço, porque as pessoas da Computerworld, de certa forma, concordavam com a reserva de mercado e eu achava aquilo tudo um absurdo. Eu achava que não tinha o menor cabimento. A gente não estava tendo acesso à tecnologia, então era considerada assim, a ‘força rebelde’, aquelas: “Lá vem aquela menina nova de tecnologia, falar mal da reserva de mercado!”. Então, tinha umas brigas, assim, com as pessoas mais seniores, os jornalistas mais seniores da época. E foi uma época de aprender pra burro, né? Então, aquela fase foi interessante, porque foi a fase em que o computador pessoal apareceu. O PC foi lançado em 1982, mas ele só começou a circular mesmo a partir de 1984, 1985 e, no Brasil, o PC nasceu, vamos pensar aí, em 1986. É, no final de 1986 começaram as primeiras máquinas. E, por causa da reserva de mercado, o que acontecia? As empresas locais praticamente faziam engenharia reversa e lançavam o PC, né, chancelado, pela secretaria, pelo MCT, Ministério da Ciência e Tecnologia. Então, eram cópias, né? Nasceram cópias do PC no mundo inteiro. Só que aí teve, assim, essa fase foi uma fase interessante: de conflitos políticos. Foi uma fase em que teve muito conflito da indústria, então os Estados Unidos ameaçaram cancelar o Brasil, por conta da reserva de mercado; a Microsoft queria processar a Scopus por causa do Cisne, que era uma cópia do MS-DOS. Uma empresa brasileira resolveu fazer uma cópia do Macintosh, aquele quadradinho, não sei se vocês vão lembrar, que parece um tijolinho, né, que tinha uma telinha pequenininha. Eles resolveram, fizeram uma engenharia reversa e lançaram um “Mac brasileiro”. E aí a Apple caiu matando. Matando, literalmente. Então, foi uma época em que teve muita discussão. Era uma época em que você escrevia sobre tecnologia e que tinha muita discussão política, né: “Abre a reserva de mercado, não abre a reserva de mercado”, que só abriu mesmo, lá na frente, com o Collor, quando teve aquela mudança toda de “abre tudo, acaba com a reserva” e aí você começou a ter a possibilidade de importar computadores. Uma indústria toda começou a nascer a reboque disso, né? E a indústria local, algumas coisas foram super importantes, né, naquela época. Então, a gente é forte como a gente é hoje em tecnologia bancária por exemplo, assim como a gente é super forte em ter urna eletrônica, né, que tem gente que acha que não deve ter, (risos) mas enfim, não é, não é não… Vamos combinar que eu sei bem porquê que essa urna não… Basta dizer que essa urna não está conectada, portanto ela não pode ser ‘hackeada’, né? Você tem que pensar isso. Ela é um… Como que é? Computador de bordo, digamos assim. Mas essas coisas em que a gente foi muito pioneiro nasceram, obviamente, de um esforço de um grupo de empreendedores locais, né, que tinha, estava fazendo isso. Mas o meu problema com a tecnologia, naquele começo, é que eu sempre achava que a tecnologia só ia prestar para alguma coisa quando ela chegasse na mão do usuário. Porque pensa que, naquela época, a tecnologia era aqueles grandes CPDs, aquelas coisas que a gente via em filmes, aqueles computadores girando, porque tinha aquilo lá mesmo, né, aqueles computadores com aqueles gravadores de fita. E todos aqueles filmes que a gente via eram verdade. O CPD era uma sala sagrada, ninguém entrava, né? Todo refrigerado. Então, o máximo que os usuários tinham eram aqueles terminais remotos, né, com aquela tela verde horrorosa. E aí, quando começou a indústria do PC, a tecnologia realmente começou a ir para a mão das pessoas. Aquela ideia, aquela frase do Bill Gates, famosa, de que algum dia toda casa vai ter um PC, né, na mão das pessoas, era importante, porque era uma revolução que estava começando. O PC ainda era… Você tinha... (risos) Aquela fase dos joguinhos de computador, aqueles joguinhos... Se alguém já jogou “role-playing game” (RPG), que é aquele que você joga no tabuleiro... Aquelas coisas do “Big Bang Theory” (série de tv): “Agora eu sou um mago e você chegou… Você está andando e chega numa encruzilhada, vê uma pedra, uma árvore e um riacho, o que você faz?”, “Pego a pedra”. Essa coisa que você fazia em jogos de tabuleiro, “role-playing games”, os games que tinham pra PC, naquela época, eram assim, escritos. Você navegava no escuro, né? Eu adorava aquilo, passava horas de noite jogando. Então, foi uma fase muito interessante, porque eu fiquei na IDG de 1985 até 1989. Eu peguei a fase da reserva de mercado terminando, peguei toda a fase do nascimento do PC, do começo da coisa pegando mais engate, né, chegando até o indivíduo, até as pessoas. Mas o PC custava uma fortuna, né? Assim, uma máquina que tinha menos memória do que a geladeira conectada, do que a sua televisão conectada, custava quinze mil dólares, quinze mil reais. Era uma fortuna. Não era todo mundo que podia ter, mas era uma indústria que estava nascendo, em vários aspectos. Então, eu fiquei até 1989. Eu fiquei no “Micromundo”, depois eu mudei e fui para a “PC World”. Aliás, foi o contrário. Eu saí da “PC World” e fui pro “Micromundo” e, do “Micromundo”, eu acabei indo pro “Computerworld”, que era aquela publicação mais de indústria, né, de escrever matérias mais de economia, essas coisas todas, de economia, política e indústria. Um monte de coisa chata, pra ser sincera. Não era a minha praia, mesmo. Cara, você tem 25 anos, quer escrever sobre coisas divertidas, né? Gostava muito de escrever, era boa de entrevista, sempre fui, então tinha coisas bacanas. Fiz um monte de fonte, comecei a ter um nome respeitado e aí pintou o convite: “Venha para a ‘Folha de São Paulo’”. Então, em 1989, eu falei: “Já deu. Cansei daqui, do ‘Computerworld’” e aí abriu uma vaga no Caderno de Informática da Folha de São Paulo, que estava, na época, bombando. Você tem que pensar que aquela época começou muita venda, então você comprava computador, monitor, impressora... O mercado de computação pessoal estava florescendo e o Caderno de Informática da “Folha”, que era semanal, saía dessa grossura de anúncio, né? Ganhou-se muito dinheiro, naquela época. E aí, o Paulo Brito, que era, na época, editor do Caderno de Informática, estava precisando contratar uma pessoa. Sugeriram meu nome, passou meu nome e lá fui eu, pra “Folha”. E aí eu fui trabalhar no Caderno, que era semanal, e foi uma experiência genial. Aí foi uma outra coisa. Vamos para o jornal diário. Então, de repente, aí meu pai começou a achar que era alguma coisa [boa] eu ter largado Engenharia para fazer Jornalismo, afinal de contas, estava trabalhando na “Folha de São Paulo”, ohhh. (risos) Então, tinha um pouco disso. Mas aí foi uma outra experiência porque, na “Folha”, quando vai pra lá, apesar de você fazer parte dos suplementos, tem o mesmo ritmo de plantão que você tem no… Que você é jornalista convencional, no Caderno de Economia, na Ilustrada ou seja lá o que for. Então, eu tinha lá o plantão de final de semana, na época que o (risos) Jânio Quadros estava “morre ou não morre”, todo o meu plantão eu estava lá com o obituário do cara na minha frente, esperando só pra publicar. E o medo de apertar o botão e publicar errado, né? Então, foi uma fase interessante, porque, assim, na fase da IDG, a gente ainda trabalhava com máquina de escrever. Olha, eu já escrevi matéria em máquina de telex… Você já usou telex? Nem imagina o que é telex. Não dá, não vai imaginar. (risos) Eu já mandei matéria por telex, ‘rac rac rac’, aquela coisa barulhenta entrando, com carbono entre as folhinhas. Já escrevi em máquina de escrever normal e, aliás, estava contando dos meus avós: quando tinha nove anos, eu falava que eu queria ser cientista. Então, naquela época, eu ganhei um microscópio, que eu tenho até hoje. Ganhei uma máquina de escrever, aquela Olivetti Lettera 22, que eu guardei com muito carinho durante muito tempo. Então, meus avós eram umas figuras. E, às vezes, eu usava - a trouxe comigo, claro, para São Paulo - e escrevia muita coisa em casa, com ela. Mas, era a fase que, na IDG, a gente ainda usava. Depois vieram os computadores, quando eles começaram a modernizar a redação, mas eu escrevi muito texto em máquina de escrever. Na “Folha”, durante esse período, foi um outro período da indústria. Os computadores começaram a florescer, começou a aparecer o tal do “kit multimídia”, então as máquinas não eram mais tela verdinha: já começava a ter tela colorida, começava a ter “games” coloridos. E aí começou toda uma indústria, né, que tinha lá o CD Multimídia, o CD-ROM. E aí começou a indústria de CDs, né? Você está falando de uma outra evolução da tecnologia. Na “Folha”, tive experiências, assim, delirantes. Você sabe que o Plano Collor, aquele que sequestrou dinheiro de todo o mundo, foi decretado no dia do meu aniversário, né? Eu… (risos) Essa é uma das experiências memoráveis da minha vida. A gente trabalhava no Caderno de Informática, então era o Paulo Brito, Angélica Consiglio - que hoje é uma genial empreendedora de uma super empresa, da Planin - eu, o Murilo, que foi meu marido depois - na época, a gente casou, já estava casado e cada um trabalhava em um lugar. Então, era a Angélica, o Murilo - o Paulo Brito já tinha saído -, mas era um bando, né? E aí vai lá a Zélia, decreta, confisca tudo. Eu tinha acabado de sair da IDG [e] estava com todo o meu fundo de garantia guardado. E aí sequestra tudo. Era o dia do meu aniversário. E aí quando teve o decreto, baixou a ordem: “Ninguém sai da redação”, né? “All hands on the deck”. E chama todo o mundo de fora, pra poder trabalhar. (risos) Eu passei meu aniversário naquele ano, né, escrevendo, correndo pra acudir tudo o que precisava, sem grana, porque tinham sequestrado toda a grana e a única coisa divertida do dia é que a Angélica, que é uma fofa, resolveu fazer… Ela fez um bolo de chocolate escondido, guardou dentro do armário onde a gente guardava as anotações, os bloquinhos de anotação, e aí, quando chegou a hora em que estava todo o mundo morrendo de fome, ela foi lá e cantou “Parabéns pra você” na redação e foi o que salvou a gente, naquele dia do Plano Collor. Então, foi uma fase interessante, porque aí você tinha essa coisa do Antivírus, começou a ter que aparecer, porque começou a aparecer o vírus, né? “Tem PC, tem vírus”. Então, começava um outro tipo de tecnologia. Ela começou a ficar mais próxima do ser humano. Ainda não tinha internet, veja bem. Não tínhamos internet. A internet não existia. Existiu as BBSs, aquelas comunicações que você fazia usando modem, aquele que fazia barulhinho. E lá nos Estados Unidos tinha uma tal de America Online e uma tal de CompuServe, que começou a nascer na esteira dessa comunicação. Eu fiquei na “Folha” até 1992. Aí eu saí da “Folha” e recebi um convite pra ir pra Abril, trabalhar como repórter pra Abril, na revista que era a “Info Exame”, uma revista de informática do grupo Abril ligada ao grupo Exame. Aí eu fui trabalhar, meu chefe era o Antônio Machado de Barros, que era uma figura. E tinha uma outra turma. Então, aí eu fui pra revista e fiquei de 1992 até 1997 na Abril, mas aí foi uma outra aventura.
P1 – Mas me conta, então, quais foram as mudanças que você teve, da “Folha de São Paulo” pra “Info Exame”.
R – Ah, várias. Bom, vamos lá. Eu já estava casada. Na “Folha”, contei várias histórias, né, acabei... Um tempo, eu tive uma briga com o Matinas Suzuki, na “Folha”, porque (risos) eles resolveram mudar a forma como avaliavam os jornalistas. Porque você tinha avaliações que eram semestrais, se eu não me engano, e você preenchia lá uma folhinha, então você publicava a sua matéria. Na época, pensa o seguinte: tinha um negócio chamado “text-up”. Então, como é que funcionavam os jornais naquela época? Você escrevia no terminal, mandava lá para uma central, que imprimia umas folhas, assim, feitas num papel filme e aí o pessoal do “text-up” colava - literalmente, cortava com estilete, colava - [e] montava o jornal em grandes folhas que, depois, eram transformadas nas lâminas e que eram impressas. Você não tinha nenhum [arquivo] PDF, não existia nada disso. Então, uma coisa que você tinha que tomar muito cuidado era de imprimir direito, pra não errar. Então, eu… A gente fazia o seguinte: uma força-tarefa. Terminava de fechar o Caderno terça-feira de manhãzinha, porque o Caderno rodava à noite, para sair na quarta-feira. Aí o Paulo falava o seguinte: “Desce todo o mundo lá pro ‘text-up’, gruda nos caras e checa pra ver se não saiu nenhum erro”. Eu cansei de transformar ‘c’ em ‘ç’, porque tinha esquecido o “cedilha”. Ia lá com o estilete pequenininho e cortava, assim, um pedacinho do rabinho do ‘c’, escrevia e montava e só saía de lá… Os caras queriam matar a gente, né, mas saía de lá. E quando o Matinas mudou aquele negócio lá, ele… Eu falei assim: “Pô, mas ele está rebaixando os jornalistas de suplementos, né? Sacanagem isso aí”. Foi na época do “Folhão”, a briga da “Folha” com o “Estadão” e tal. Aí eu não tive dúvida. Eu fui lá e pedi uma audiência na sala do Matinas. (risos) Cheguei lá, do alto dos meus vinte e poucos anos, né, falei: “Ó, não concordo. Você está rebaixando os jornalistas (da igreja batista do berço?). Eu sou tão capaz quanto qualquer outro jornalista, de fazer qualquer coisa. Faço plantão, faço tudo”. Ele falou: “Não é bem assim, tal, ‘não sei o quê’”. Eu sei que saí de lá brava, ele não me convenceu. E dois dias depois, fui convidada a ser secretária assistente de redação. Então, a minha petulância (risos) rendeu alguma coisa, mas rendeu uma loucura, também. Por causa do peso do trabalho, chegou uma hora que eu tive uma crise de labirintite e fui parar no hospital, porque era “punk”. Era um negócio complicadíssimo. No fim, eu falei: “Ó, quero voltar pro meu cantinho lá, não tem problema nenhum, prefiro escrever sobre tecnologia do que ficar aqui mexendo nesse dia a dia”. Então, o ritmo da “Folha” era muito intenso. Imagina um jornal diário... Por mais que você fosse um caderno semanal, tinha um ritmo de jornal diário muito intenso. Era uma outra experiência: tudo muito mais rápido, as coisas eram mais curtas. Quando eu mudei pra Abril, você está falando do ‘long forms’, de textos mais elaborados, com mais tempo pra produzir [e] as matérias [eram] mais elaboradas. Então, eu tinha a chance de contar histórias melhores, né? E o foco da “Info Exame” era o mesmo foco de cobrir a indústria, mas do ponto de vista do uso pessoal do computador. Não tinha… Então tinha teste… Tinha o Machadinho, que era o cara que fazia teste. Então, foi a fase em que toda a publicação voltada pra computador pessoal fazia teste de “software” e de “hardware”. Então, tinha o Machadinho, a Angélica foi pra lá também. Tinha o Machadinho, o Ramalho, que fazia os testes. Então, foi uma experiência diferente. Quando eu cheguei, em agosto de 1992… Não, agosto de 1989, eu acho. Eu cheguei lá, já estava casada e tinha entrado - (risos) essa é uma das experiências engraçadas da minha carreira - na fila de adoção, porque eu não posso ter filhos. Tive um problema com 25 anos, eu tive que tirar o útero. Então, eu não posso ter filhos e a gente entrou na fila de adoção, para adotar o meu filho, né? Durou um ano e quando eu fui pra lá, eu já estava na fila. E a Angélica falava assim: “Sil, quando vem?”. E eu falei: “Não sei. Vamos esperar, uma hora chega”. E aí o Gabriel nasceu em dezembro… Novembro de 1992. E eu fui uns quinze dias… Na semana em que ele nasceu... Porque, na verdade, eu peguei o Gabi, me avisaram em dezembro, só, mas naquela semana eu fui pra Las Vegas porque tinha uma feira super famosa, chamada Comdex, que durava uma semana inteira, [uma] loucura, e todos os hotéis de Las Vegas [estavam] lotados. A indústria de computadores de multimídia estava bombando, era um ‘negócio de maluco’. A gente ia pra lá, as empresas convidavam você [a ir] pros Estados Unidos. A cada meia hora alguém convidava. Quando eu voltei, da Comdex, a gente fez um texto super bacana e aí, quando chegou dezembro, me ligaram pra avisar que o Gabriel estava lá, se eu queria buscar o Gabriel. Falei: “Quero”, né? E aí foi assim: o Marco, que era o chefe da gente, Marco Simões, que foi diretor de “marketing” da Coca-Cola, depois, muito tempo. Eu cheguei pro Marco e falei: “Marco, eu preciso falar com você”. E o Marco é uma pessoa doce demais, super tranquila. Ele falou: “Pois não”. E eu falei: “É o seguinte. eu vou precisar faltar amanhã e depois, porque eu tenho que pegar meu filho”. Ele olhava pra mim e pra minha barriga, olhava pra mim, olhava pra minha barriga e não estava entendendo nada do que estava acontecendo. Aí eu expliquei tudo e fui lá buscar o Gabriel. Então, essa foi uma fase na Abril em que eu cheguei e, logo que cheguei, fui responsável por fazer uma matéria grande, mais longa, que acabou ganhando um prêmio de jornalismo, da Sucesu. Aí o Machado ficou todo feliz, porque tinha dado [a] contratação certa, então tinha um certo espaço. Lá a gente começou a olhar pro cenário e foi onde eu cresci mais, profissionalmente. Costumo dizer que foi onde eu fiz, sei lá, o MBA “ongoing”, né? O Machado começou a me dar coisa, começou a gerar uma área especial, de especiais da “Info Exame”, sobre diferentes temas, então a gente foi fazer vários especiais. Fez um especial que a gente chamou da “Information Highway”, a superestrada da informação. Tem um cara - na época, era um especial voltado pro uso de tecnologia nas empresas, era o começo da entrada dos PCs e da transformação mais acentuada da tecnologia dentro dos negócios - chamado Larry Ellison, que é presidente da Oracle e ele começou a lançar a ideia da ‘Biblioteca de Alexandria’ da “Information Highway”, que a internet estava começando, né? Então, pensa o seguinte: em 1992, começou a ter acesso, a gente usava… Eu usava a America Online, usava… Fazia ligação [e] quando queria acessar alguma coisa, usava lá o CD da America Online, tinha uma conta na America Online e na CompuServe, e a gente usava o telefone, fazia uma ligação internacional pra conectar com as coisas. Então, era uma coisa que estava nascendo, a discussão do que era essa tal dessa internet, que uns chamavam de “Information Highway”, outros chamavam de ‘não sei o quê’. E eu falei: “Pô, então vamos fazer”. Cheguei pro pessoal da Oracle e falei assim: “Vamos provar, então, que essa ‘Information Highway’ funciona. Eu quero uma entrevista com o Larry Ellison”. Aí, meu, era mais ou menos como pedir uma entrevista com o papa. Eu entrevistei o Bill Gates três vezes na minha vida, quando ele ainda não era ‘o’ Bill Gates, né, ele era um cara super ‘chinfrim’, que vinha pra cá pra Microsoft de vez em quando, mas eu o entrevistei pelo menos três vezes na minha vida. E aí eu falei: “Não, eu quero uma entrevista com o Larry Ellison”. E eu queria fazer uma entrevista remota. Queria fazer usando videoconferência, pra gente provar que essa tal de “Information Highway” realmente encurta distâncias. O pessoal da Oracle adorou e aí, assim: hoje, isso que a gente está fazendo aqui não tem custo nenhum. Estamos usando o Zoom (a entrevista foi feita pelo programa), estamos usando o computador, a internet, está tudo certo. Você imagina que, pra eu gastar meia hora com o Larry Ellison, o custo dessa “call”, que foi bancado pela Oracle… Obviamente, porque ela queria, achou a ideia genial e topou, né, ajudar a fazer. O Larry Ellison topou dar entrevista pra mim. Eu tinha… Sempre fui uma jornalista super respeitada, ele topou dar a entrevista. E aí eu fui num escritório da Embratel, que ficava aqui no alto de Pinheiros (bairro de São Paulo), numa sala enorme de videoconferência, que é um telão que você precisa de milhões de conexões pra fazer. O custo de meia hora de bate-papo, desse que nós estamos fazendo aqui agora, era de quinze mil dólares. E o “delay”, esse atraso entre eu falar e você me ouvir, era de quase uns dez segundos, vamos dizer. Não chegava a dez, mas o tempo suficiente para você achar que a pessoa não está te ouvindo. Aí vem o Larry Ellison e eu toda apavorada. E eu comecei a testar, então eu testava o “delay”. Eu ficava na frente da câmera e dava um pulinho. Quando eu já estava no chão, eu me via na tela ainda lá no ar, assim, e descia, pra você ter uma ideia do tamanho do “delay”. Aí veio o Larry Ellison e eu faço a entrevista com ele sobre a “Information Highway”, a “Super Highway”, a ‘Biblioteca de Alexandria’ e tudo na ‘nuvem’, porque naquela época a tese dele era essa, né? A Oracle podia ter pegado o barco mais rápido, né, podia estar liderando muito mais, hoje, a computação de ‘nuvem’. E aí eu falava, fazia a entrevista com ele. Ele falava, eu prestava atenção, respondia, levava alguns segundos, não sabia se tinha dado certo ou se não tinha dado certo. Aí eu contei uma piadinha e o cara sério, eu falei: “Ah, meu Deus, estraguei minha entrevista”. De repente, ele: “Ha, ha, ha, ha!”. Era o bendito do “delay”, que levava lá uns cinco segundos. Então, esses especiais foram bacanas, venderam bem. Eram especiais de “one shot”. E aí a gente fez um chamado “Home PC”, que era a ideia de fazer o computador dentro de casa, o computador para a família. E o Machado olhou pra mim e falou assim: “Faz um Home PC” e foi um baita sucesso. A revista vendeu pra burro, foi ótimo. Foi um especial lindo de morrer, fantástico! E ele falou: “Vamos transformar [isso] numa revista e você vai ser a editora”. Então, eu digo que foi meu MBA, porque eu saí… Comecei como repórter na Abril, fui pra editora assistente dentro da Abril, depois virei editora de especiais e, de repente, eu era a dona de uma revista. Aquilo, pra mim, assim, tem duas coisas que foram geniais. Primeiro, que eu acho que a diferença enorme que faz na vida da gente um chefe que olha pra você e fala: “Vai, que você é capaz”. Ou qualquer pessoa que diga isso. Eu costumo falar que, no meu caso, fui abençoada várias vezes. Meus pais, quando eu disse que queria ser cientista, ninguém falou que eu não podia. Quando falei que queria fazer uma universidade, ninguém falou que eu não podia. Quando falei que queria trabalhar no que eu quisesse, ninguém falou que não podia. Hoje, a gente está tentando dizer pras meninas: “Seja o que você quiser. Lugar de mulher é onde ela quiser”. Isso eu tive a bênção, né, de ter recebido da minha família lá, desde o começo. E isso, eu martelo muito isso pras pessoas. Aquele ditado de que, pra você criar uma criança, precisa de uma vila, né? Aquele ditado africano é verdadeiro, porque você precisa… As influências vêm desde o começo. E eu tive essa sorte de ter o Machado como chefe, que era um cara super chato, berrava na sala, tinha hora que ele gritava: “Fulano!” da sala dele e era ‘nego’ entrando debaixo da mesa, mas comigo ele era um lorde, né? E aí o Machado chegou pra mim e falou: “Faz”. Eu falei: “Gente, como é que eu vou fazer uma revista?”. “Vamos fazer”. Eu sabia o que era… E aí foi um outro aprendizado: como é que você gera uma revista, como é que você lida com a área comercial, como é que monta? E aí eu comecei a passar por uma fase em que eu já não era mais só jornalista, era gestora de alguma coisa. Continuava com o espírito jornalístico, né, continuava pensando as pautas, mas eu tinha que fazer discussão com o Comercial, tinha que preparar o “budget” e uma série de coisas. Mas foi uma experiência genial. Primeiro que a gente juntou uma equipe de pessoas maravilhosas, pra escrever. A gente fez coisas geniais, como, por exemplo, ter uma equipe de crianças escrevendo “reviews” (resenhas) sobre “games” (jogos). E até hoje eu conheço alguns que cresceram, se formaram, viraram médicos. Aquelas coisas divertidas. (risos) Mas foi uma fase muito interessante e bacana em que eu assumi uma publicação, né? Mas aí acabei saindo. Acabei saindo em 1997, saí… Teve lá alguns cortes, enfim, entrei em atrito com algumas coisas e acabei saindo. O Machado saiu. Naquela época, vivenciei coisas muito legais na Abril. Aí começou, a internet começou a pegar fogo de verdade. Nasceu o BOL, que era o Brasil Online. Nasceu o UOL. Aí o Roberto Civita, ao invés de abraçar a internet, preferiu abraçar a MTV, mega, hiper, super, “blaster” erro, que custou à Abril. A Abril nunca conseguiu abraçar a tecnologia digital como deveria e acabou fazendo essa parceria. Eu estava… Vi nascer o BOL, essa parceria toda foi dentro da Exame, porque foi ideia do Machado esse projeto todo. O Murilo, meu ex-marido, fazia parte da turma que foi até Boston conversar com umas pessoas. Enfim, teve um grupo de pessoas que estavam envolvidas com isso, que a gente conhece até hoje. Então, foi uma fase assim: “Vamos fazer alguma coisa genial”, e o espelho sempre foi a America Online. A America Online tinha estabelecido um modelo de estar “on-line” nos Estados Unidos [e para isso], precisava do CD. Você era um “walled garden” praticamente, né? E a gente, a ideia era reproduzir isso aqui. Enfim, quando o Machado saiu, por milhões de conflitos, eles começaram a mudar todas as equipes. E, quando você tem um cargo de confiança, a primeira coisa que faz é ‘puf’: você acaba mudando. Então, eu saí da Abril. O Murilo também saiu. O Murilo foi trabalhar numa empresa chamada Intermídia, como diretor de redação, e eu falei: “Bom, não sei o que eu vou fazer”, né? Eu saí, o Ney Kruel, que era da IDG, me ligou e falou: “Vem trabalhar na IDG de novo”. Eu falei: “Ah, mas pra fazer o quê?”. Ele falou: “Ah, o que você quiser”. Falei: “Tá bom, então quero fazer internet”, “Nossa, que massa”. E aí, naquela época, a internet, assim, eu ‘vendi’ minha alma pro diabo e não pedi de volta. Eu costumo brincar com isso, porque, assim, a internet é uma coisa que encanta demais. Tecnologia é uma coisa que me encanta muito, porque cada hora é uma coisa diferente: ela muda e muda a vida das pessoas. A internet era um negócio absolutamente enlouquecedor, né? Então, eu falei: “Não, eu quero fazer internet”. E ele falou: “Tá bom. Ótimo. Eu tenho um negócio aqui chamado ‘IDG Now!’, que eu preciso que alguém crie”. O “IDG Now!” era uma ideia de ter uma publicação unicamente “on-line”, numa época em que ninguém falava disso direito aqui no Brasil, né? Isso não tinha. Os moldes de uma empresa, de uma publicação que tinha nascido nos Estados Unidos, chamada Cnet, e a ideia era montar uma redação à parte. Falei: “Tá bom, eu topo” e fui pra lá. Tirei férias. Praticamente, eu fui demitida na época do meu aniversário e aí tinha programado de viajar com o Gabi e com meu marido. A gente foi, voltei e assumi. E a gente começou a criar o que era o “IDG Now!”, [que] se tornou na marca mais importante, “on-line”, de publicações de tecnologia. O meu segundo filho, né? O primeiro é o Gabriel, o segundo é o “IDG Now!” e agora, a terceira é a “The Shift”. E ele… A gente fez um negócio genial: a gente editava, praticamente, o Html. Não tinha essa coisa de Wordpress, esquece. Isso não existia. Essas coisinhas de ficar publicando página bonitinha, “template”, não [existia]. Você fazia o Html no braço, né? Vamos lá: “Welcome to the jungle”, né? Era a internet ‘selva’, ainda. (risos) Você tem que pensar nisso. Modem ainda fazia barulho, aquele ‘pim pim pim’ lá, aquelas coisas todas que… O Hotmail, antes de você chegar nele. E aí a internet estava começando a nascer no Brasil via “browser”, via Internet Explorer e Netscape. E, nos Estados Unidos, ela ainda tinha… A America Online ainda reinava. Ainda era uma área muito grande. Então, o americano nasceu, se conectou “on-line” pela America Online. O brasileiro já nasceu conectado via UOL, BOL, ZAZ, Terra e todas essas pessoas que foram pioneiras, aí, nesse mercado, então já nasceu no “browser”. Isso foi um ponto super importante, quando veio a America Online pro Brasil. Mas, de qualquer forma, eu fui pra lá, a gente começou a montar e aí, praticamente, éramos eu, o Paulo Amaral e o Fábio lá, dentro de uma salinha pequenininha, escrevendo, praticamente escovando “bit” pra montar o bendito do “site” lá da “IDG Now!” e a gente tinha uma coisa que era sensacional: dava furo o tempo inteiro, no pessoal da imprensa. Então, o “IDG Now!” era a área mais odiada da IDG. Porque aí eu voltei pra IDG, né? O convite do Ney foi para eu voltar para a IDG. Era a área mais odiada da IDG, porque a gente escrevia tudo primeiro, a gente não guardava nada para imprimir. Não tinha papel impresso e o pessoal do impresso endeusava aquela coisa. Então, a gente dava furo o tempo inteiro. Começou a ganhar fama. E a Microsoft ia lançar um produto chamado “Internet Explorer 4”, que tinha uma coisa que era uma barra de canais, então era a tecnologia do “push”. Ou seja, aquilo que a gente está acostumado a ver hoje, que o “site” manda coisas pra você, te manda… Não tinha essa coisa do “push” e “pull”. Então, era a tecnologia de “push”. Aí, o Osvaldo Barbosa, que era o diretor da Microsoft dessa área, chegou pra mim e pro Ney e falou: “Olha, eu queria que o ‘IDG Now!’ fosse uma das pecinhas, das barrinhas, da barra brasileira do Internet Explorer 4”. Eu falei: “Meu Deus, a gente tirou, ganhou na loteria”. Porque você imagina, naquela barra tinha assim: logo do Bradesco; logo do Itaú; o UOL; o Terra que, na verdade, acho que era ZAZ ainda; duas ou três coisas e eu, de gaiata, com o “IDG Now!”. Então, o que a gente pegou… Porque o Osvaldo adorava: a gente estava fazendo um trabalho super inédito, ninguém estava fazendo isso, nem a IDG nos Estados Unidos. O Ney chegou pra mim e falou assim: “Começa a fazer”. E eu já tinha feito o tal do MBA, de como gerir alguma coisa, falei: “Mas qual é o ‘budget’?”. Ele falou: “Não, vai fazendo”. Eu falei: “Mas como assim, Ney, ‘vai fazendo’?”, “Vai fazendo. A hora que não tiver, eu te aviso”. Eu falei: “Cara…”, “Não, não, vai fazendo”. E os americanos ficaram malucos, queriam matar o Ney, que eles falavam: “Que diabo ficar investindo nesse negócio de internet, né, onde já se viu uma coisa dessa?”. É assim, essas coisas que acontecem na sua vida, que você é abençoado, né? Cavalo que passa arreado, você pula nele. Acho que a minha carreira toda foi assim, de “pula no cavalo arreado, porque eu sei que ele está indo para um lugar onde eu acho que faz sentido”. E fui pulando. Eu sei que a gente fez o “IDG Now!”. A gente virava a noite trabalhando. E, graças a Deus, eu tinha a minha sogra maravilhosa, Dona Maria querida, que infelizmente já faleceu, que ficava com o Gabriel porque, na Abril, por exemplo, eu virava a madrugada quando era fechamento. O Murilo trabalhava na “Veja”, você faz ideia? Era uma zona. Tinha lá um grupo de mulheres da “Veja” que eram as ‘viúvas da Veja’, porque a gente via o marido na quinta-feira e só via depois, de volta, no sábado, né, porque era os fechamentos. Então, a gente virava a noite fazendo e o que a gente tinha que fazer era o seguinte: o Internet Explorer estava em versão alfa. Ou seja, aquilo que assim, é meio “draft” ainda, meio… Está começando a ganhar forma. O cara que desenvolvia a barra ficava na Irlanda. Então, para a gente fazer reunião com o cara da Microsoft na Irlanda, eram os horários da Irlanda, que não eram os mesmos do Brasil. Imagina o fuso horário de quatro horas. E o Fábio, lá, entrava em contato com o cara, sei lá, de manhã, de noite. Eram uns horários doidos e a gente conseguiu. E o que aconteceu? Eu brinco que o Bill Gates trabalhou pra mim, porque, quando o "IDG Now!" estreou na barrinha, aquele "push" fez com que a gente saltasse de tráfego. Então, a gente ganhou uma visibilidade que não ganharia. Mais ou menos como se fosse um “influencer” de agora, assim: aparece lá no Instagram e ganha milhões de seguidores, né? A gente conseguiu mais ou menos isso. Então, ele cresceu muito rápido e foi ganhando corpo. A qualidade dele foi ganhando um impacto, né? E isso foi em 1997. Em 1999, o "IDG Now!" estava a pleno vapor. Eu consegui construir uma estratégia para a gente gerar receita, né, de publicidade digital. Porque, na época, você pensa: ninguém acreditava que a internet ia fazer alguma diferença para as publicações impressas. E foi aí que a mídia se ferrou, porque não entendeu o que estava acontecendo. Eu tinha entendido, era uma das pessoas. E não só eu, não é privilégio meu, mas um grupo de pessoas entendeu que tinha um caminho ali. Então, eu fui construindo a equipe de vendas. Aí tinha uma empresa que chamava Dart, que fazia… Ela publicava e auditava, né, e media os anúncios que iam nas páginas - aqueles "banners" - por trás. É um "engine", né, um motorzinho, que fica medindo clique e gera um relatório. E aí eu dei, resolvi dar uma de louca, porque quando eu quis usar aquilo, ninguém usava o Dart ainda. Eu liguei para um indiano, que ficava em Nova Iorque (EUA) e falei: “Olha, é o seguinte: eu sei que a IDG tem um acordo com você aí e eu queria trazer o Dart aqui, pra fazer a entrega dos meus 'banners' aqui no 'IDG Now!'”. O indiano, que era uma figura, falou: “Tá bom. Eu vou até aí e monto esse negócio pra você”. E eu falei pro Ney: “Posso estender o acordo da IDG aqui pro Brasil?”. Ele falou: “Bora lá. Faz”, e a gente trouxe. O indiano veio e ficou uma semana, ensinou pro Fábio como é que montava tudo. A gente instalou os "slots" e aí a Solange, que era a vendedora de publicidade, que era uma maluca também, que adorava entrar, embarcar numas coisas doidas, a gente bolou como é que ia ser essa estratégia de venda, está tudo certo. E eu peguei o selinho do Dart, que era um selinho vermelhinho, e falei: “Quer saber? Eu vou dizer que a gente é auditado. Vai ser a primeira vez que uma mídia digital aqui no Brasil vai dizer que ela consegue comprovar os números de venda de "banner" pro anunciante”. E aí eu tasquei a bolinha lá do “auditado”: “Somos auditados”. Aquilo fez um barulho, que o pessoal do Uol queria me matar. Tinha um monte de gente querendo me matar, (risos) porque a gente acabou criando um problema. Porque eu falava assim: “Você pode confiar nos nossos números, porque os 'banners' que a gente vai entregar, se eu disser pra você que eu entreguei mil ‘impressions’ (número de vezes que um anúncio é exibido em um "site") eu vou ter, realmente entregue mil ‘impressions’. Tá aqui, auditado pelos americanos”. Então, tinha essas coisas malucas. O "IDG Now!" avançou, por conta disso. Quando chegou em 1999, acho que entre junho e julho de 1999, apareceu um negócio, a iniciativa da America Online de vir para a América Latina. Então, nasceu o Latinoamerica, que foi uma fusão, uma "joint venture" entre o grupo America Online, dos Estados Unidos, e o grupo Cisneros, da Venezuela, um grupo de mídia grandão. E aí os caras vieram pro Brasil, né? Não só pro Brasil, mas para a Argentina, pro México e tal. Montaram lá uma mega operação. Você tem que pensar que nós estamos em 1999: pré bolha. Se todo o mundo se lembrar o que foi a “bolha" da internet, quando todas as ações começaram a valorizar demais, depois caíram de menos, estourou, quebrou empresa e tal, então a gente estava num momento de muita efervescência. Pensa que a Amazon tinha nascido. Pensa que o Paypal estava quase nascendo, um pouquinho depois. O eBay. Você tem um… Essas empresas enormes que vocês veem agora, né, nasceram lá pra trás. Então, era um momento de profunda efervescência. Foi uma fase absolutamente fascinante. Eu tinha uma paixão absurda pela America Online, porque foi onde eu comecei a usar. E sei que aparece um cara lá, o Eduardo Cisneros, um jovem herdeiro lá dos Cisneros, e ele foi visitar a IDG, porque eles queriam inserir os CDs - porque para você instalar a America Online, você precisava do tal do CD - na "PC World". O Claudinei, que, na época, era o diretor de redação lá, geral, liga pra mim e fala assim: “Vem aqui, porque eu não entendo nada disso e preciso de alguém que entenda, pra fazer reunião com esse cara”. Eu falei: “Tá bom. Eu vou aí”. Fui lá e cheia de opinião, né? E o Eduardo Cisneros - tadinho, é um fofo - chega e começa a explicar o que era, que eles queriam botar CD e eu falei: “Mas como é que vocês vão fazer o projeto?”. Ele disse assim: “Eu não posso contar tudo”. E eu: “Ah, mas me conta, como é que vai ser isso? Como é que vai ser aquilo?”, jornalista trabalhando, né? Eu ficava perguntando que nem uma condenada: “E como é que faz isso? Como é que faz aquilo?”. E aí eu falei assim: “Mas cara, você não pode entrar com CD, porque o Brasil entrou na internet de um jeito diferente. O Brasil já está no 'browser'”, “Não, vai dar tudo certo, você vai ver. A gente vai distribuir milhares de CDs e vai dar tudo certo”. Falei: “Não vai dar certo”, mas, enfim... Aí, o que aconteceu? Queria marcar uma reunião, eles marcaram uma segunda reunião para combinar esse (impédio?), né, essa distribuição de CDs junto com a “PC World”, e lá vou eu pro escritório que eles montaram, um escritório enorme, naquele [Hotel] Renaissance ali, perto da [Avenida] Paulista. Aquele hotel grandão, praticamente virou um "headquarters", né, tinha americano voando para tudo quanto era lado. Eu fui ter reunião com eles lá e aí tô lá conversando e, de repente, vêm quatro, né, viram pra mim e falam assim: “Ah, a gente queria te propor pra você trabalhar na America Online como diretora de redação, diretora editorial, diretora de conteúdo”. (risos) E aí vai aquela… Né, você fala: “Meu Deus, o que aconteceu?”. E aí foi a fase… Foi um susto. Eu falei: “Tá bom, vamos com calma. Faz assim, vamos terminar. Eu vim aqui para uma reunião da IDG. Termina a reunião. Marca outra reunião e eu vou lá conversar com você sobre isso”. (risos) E eu fui, tive que fazer entrevista com um monte de gringo. Era uma novela, era um vir pra cá, vir pra lá, minha chefe ficava lá em Dulles (EUA), lá na sede da America Online, que era a Alyne. Enfim, eu sei que me contrataram. Aí eu cheguei lá pra IDG e falei: “Ó, desculpa aí, mas eu vou ser diretora de conteúdo da America Online no Brasil”. E foi assim: em agosto de 1999, de mala e cuia, eu vou lá ser diretora de conteúdo da America Online Brasil. Que, olha, se você me perguntar de todas as experiências que eu tive na minha carreira, essa talvez tenha sido a mais maluca, né, de todos os aspectos, porque eu acabei virando… Eu fui para o "C-Level" (executivos com a hierarquia mais alta de uma companhia). De repente, você pega uma jornalista, daquelas que só quer escrever e bota ela no "board" (conselho de uma empresa), né? E lá fui eu, tomar conta de uma equipe de umas sessenta pessoas, que era a minha equipe, de um monte de jornalistas geniais. Embaixo de mim ficava toda a área de tecnologia, da parte de tecnologia dos produtos e a parte de produção de conteúdo. Então, de uma hora pra outra, eu tinha uma equipe de sessenta pessoas. A maioria [com] 24, 25 anos. Eu, na época, estava com 38? Nem sei. Preciso fazer conta, aqui. (risos) Acho que eu não tinha quarenta, ainda. Mas a molecada, assim, tinha 22, 23, 24, né? Isso foi em 1999, eu sou de 1962, é só fazer a conta: 37 [anos]. E aí eu fui lá, assumir uma operação dessa. Então, sentar no "board", com pessoas que estavam mais acostumadas a sentar lá. Mas foi assim, como gestão, a melhor experiência da minha vida. Tinha pessoas fantásticas. Nunca vi uma diretoria sem essa noção de puxar tapete, sabe? Quando todo o mundo só vai para um lado, está todo o mundo remando pro mesmo lado. E uma equipe de conteúdo que era muito engraçada. Era época de… Os salários todos, era pré-bolha, então você contratava gente de conteúdo a preço de ouro. E teve um dia... As pessoas de RH eram ótimas também, e eu lá, tentando desenhar o que é isso, né, o que é tudo isso. E aí teve um dia que começou um cochicho, porque a molecada lá estava reclamando que eles não tinham vaga… Isso depois de ter passado por algumas coisas, o escritório ser lá em Santo André (SP), falei: “Vocês estão malucos que eu vou levar esses jornalistas tudo pra Santo André”, “Não, não tem lugar aqui ainda, depois vai ter”, aí peguei uma enchente em Santo André… Enfim, todas as ideias malucas que você pode imaginar. Mas aí, quando a gente está de volta, né, nos edifícios que ficam ali perto do Shopping Morumbi - que, aliás, o condomínio se chama América. A gente estava lá, o escritório super bonitinho, super bacana e tem lá uma certa rebelião dos moleques lá de vinte e poucos anos, reclamando do porquê que eles tinham que parar longe o carro e vir andando até o escritório, enquanto que as outras pessoas tinham estacionamento embaixo, no subsolo. Aí eu não aguentei, foi o dia. Eu subi em cima de um armário, chamei toda a redação e comecei a fazer um discurso daqueles assim: “Vocês têm ideia do que estão falando?”. E aí dei uma bronca, falei: “Vocês estão ganhando mais dinheiro do que jornalistas levaram dez anos pra ganhar! Vocês não têm noção! Um bando de ‘spoiled kid' (crianças mimadas) e 'não sei o quê"”. Eu tô lá fazendo o maior discurso, eles todos me olhando, assim, assustados, aí abre a porta do meu andar, entra a Luciana Nardini, que era uma das gerentes de RH, que tinha ficado responsável pela minha área. Eu sou super amiga até hoje, a Lu é uma fofa de pessoa. Ela me conta, fala assim: “Sil, quando eu cheguei lá e você estava em cima do armário, gritando com aqueles moleques todos, com aquela molecada toda, eu quase voltei pra trás e pedi demissão. Onde foi que eu [me] amarrei…”, era o primeiro dia dela. Mas, enfim, a experiência da America Online foi muito legal. Eu fiquei de noventa e… Desculpa, de 1999 até 2004, final de 2003. E foi uma fase que você está construindo praticamente uma "startup", né? E não deu certo pelos motivos que a gente cansou de avisar que não daria, né? Então, enquanto o departamento de "marketing" tinha lá vinte milhões de dólares pra gastar distribuindo CD, eu tinha quinhentos mil dólares pra fazer conteúdo. E eu falava: “Gente, o que eu vou fazer com quinhentos mil dólares, se eu tô brigando contra a Folha, o Globo, o Estadão…”, né? Todo mundo tinha… O IG, que inventou, estava com internet grátis, aquelas coisas todas. Então, você tinha um universo ali muito maluco. Esse período, eu fiquei mais distante da tecnologia pura, essa que eu comecei, na minha carreira, a fazer, mas, obviamente, continuava acompanhando tudo isso. Mas foi a melhor fase da minha vida, pra ser absolutamente sincera, porque era muito divertido. Coisas fantásticas aconteceram. Teve o ataque às torres gêmeas, foi, justamente, [quando] eu estava lá na AOL. E eu estava - me lembro até hoje, porque eram dois andares o prédio - na sala do Milton, que era o COO (diretor operacional) da AOL, discutindo uma coisa e aí o Milton atendeu o telefone, era a nossa assessoria de imprensa, avisando pra ele que tinha acontecido um negócio assim, né, porque lembra que um dos aviões era… Caiu ali perto de Dulles. Foi aquele que saiu de Dulles e caiu em cima do Pentágono. E aí o Milton atende, fala: “Ah, tá bom”. Desligou o telefone e falou: “É, parece que um avião bateu numa das torres do 'World Trade Center'”, mas, é sem noção? Um avião bate na torre e o cara age assim? Eu dei um pulo na cadeira, não esperei nem o elevador. Eu desci. No que eu desci pra redação, pra preparar todo o mundo pra encrenca que ia dar, pra gente botar a notícia no ar e todas aquelas coisas, eu vejo toda a minha equipe olhando para as televisões - porque a gente tinha várias espalhadas, né, pela redação - no momento em que o segundo avião estava batendo na torre. Olha, aquele dia foi um dia muito maluco, porque… Bom, aquele e os dias que se seguiram, né? Primeiro, porque a gente não sabia o que fazer. Pensa que tinha certas coisas que a gente tinha limitações tecnológicas ainda, né? Você não tinha… Pensa, não tinha… O telefone celular era um tijolo ainda, naquela época, né? Você não tinha internet banda larga, tinha algumas coisas. A gente tinha, porque tinha cabo, para poder trabalhar dentro do escritório, né, de fibra, mas era uma coisa exclusiva. E aí tinha algumas mulheres da AOL que estavam fazendo uma visita aqui no Brasil e elas estavam desesperadas, porque ninguém conseguia falar com ninguém. E a grande salvação daquele período foi exatamente os meios "on-line", né? Em que as pessoas conseguiram finalmente falar via ICQ, via Messenger, né, que, na época, você tinha os “messengers” (programa para troca de mensagens) e o mais conhecido era o ICQ. E eu me lembro de estar falando com o executivo da AOL, lá nos Estados Unidos. Conversando com ele, sabendo como que estava indo tudo e ele falou: “Estão mandando a gente pra casa, pra sair de perto do aeroporto, que fica perto do aeroporto de Dulles, na Virginia”. E eu conversando com ele e, de repente, ele fala: “'Oh, my God', a torre está caindo”. Eu desliguei o telefone, corri e a torre estava, né, escorregando. Então, tem… Foram dias malucos. Tinha uma revista que chamava Yahoo… O Yahoo era um mecanismo de busca que desapareceu, né, ao longo desse período todo, depois foi sucedido pelo Google e tudo, mas o Yahoo tinha uma revista impressa. Uma coisa meio "nonsense" (sem noção) numa época de internet, mas tinha revista impressa convivendo com internet. Eram os tempos de começo. Vai entender, né? Ele publicava umas listas de 'URLs’, de sites que você podia visitar. Imagina assim: tentar traduzir a internet numas Páginas Amarelas? Não tem, cara. Não existe, mas [existia] e era bacana. Eu me lembro da capa da Yahoo, toda preta, com uma coisa escrita: “Are you there?” e com o loguinho, o simbolozinho do Messenger. Porque a única coisa que as pessoas conseguiam fazer era se falar, deu "blackout" geral. Então, essa fase da AOL foi uma fase muito legal, em que eu mexi com a tecnologia, assim, a internet na sua plenitude. Pensar em entregar conteúdo "on-line" pras pessoas e porquê que isso fazia a diferença. Foi divertido demais.
P1 – Deixa eu dar uma pausa, digamos assim, na sua trajetória profissional e te perguntar uma coisa…
R – Claro.
P1 – Você sente - do momento em que você começou lá na IDG, até esse momento em que a gente chegou, em que você estava na AOL - que existia uma certa separação de gênero, no sentido de que: “Não, tecnologia é negócio de homem”? Você teve alguma resistência, nesse sentido?
R – Olha, é claro que tinha. Mas é uma coisa… Eu costumo explicar pras pessoas… Tinha, sim, mas primeiro que não nas minhas equipes, né, não nas minhas equipes. Eu nunca… A gente tinha… Não tinha… Era uma equipe diversa. Você não tinha questão de gênero e raça. Eu contratava quem era competente. Então, assim, eu tinha de tudo na equipe. Mas tinha, tinha uma separação. O que aconteceu foi que o PC… Até todo o mundo que assistiu aquele filme da “Hidden Figures” ("Estrelas Além do Tempo") lá, das três mulheres da NASA, né, das quatro mulheres da NASA, o termo “computer” era ligado a mulheres que faziam computação, que computavam dados, né? Até o nascimento do PC, tecnologia era uma coisa de mulher. As mulheres eram as melhores programadoras. Elas é que dominavam os computadores. Tinha uma quantidade enorme de mulheres trabalhando com computação. Quando veio o PC, a indústria de mídia, a indústria de "marketing", na verdade, começou a veicular o PC, o computador pessoal, para meninos. E aí começou a criar uma cisão meio ridícula, que perdurou. Então, sim, de fato, se você fosse na área de tecnologia, 95% do pessoal da tecnologia eram homens, na área que cuidava de rede, por exemplo. Tinha. Continua tendo. Vamos combinar que o Vale do Silício (EUA) é o lugar mais machista da face da Terra. O "Silicon Valley" está se debatendo com o fato de que ele não é um ambiente diverso, ele não é… Existe um racismo sistêmico, endêmico, ali, funcionando. Não é diverso, não é inclusivo e tem, ainda, muito que entregar, pra ser. Isso vai de Google a Facebook, passando por Microsoft e quem você quiser, mas, especialmente, Vale do Silício. É, sabe, jogo de menino. Então, isso, por exemplo, empreender… E aí eu tenho isso claramente. Depois, quando eu assumi a IDG, porque você, como gestora de uma empresa, diretora de uma empresa, presidente de uma empresa, quando você vai sentar numa mesa que só tem homens e tem que discutir números, claramente vê a diferença. Então, não é uma diferença só do uso, por exemplo, de “programador” ou “programadora”, mas é também toda ela, passa por tudo. A tecnologia, por incrível que pareça, deveria liderar a diversidade e não lidera. Ela ainda está devendo muito. Mas eu passei por fases complicadas. Agora, a gente não tinha isso na IDG, por incrível que pareça, porque eram outras cabeças fazendo isso. Aliás, na IDG não, na America Online não tinha isso. A minha equipe, acho que era meio a meio. Tinha metade mulheres, metade homens. Era uma equipe super diversa, todas as pessoas que você pode imaginar. Naquela época, você não tinha discussão de LGBT, essas coisas, tudo, mas pra mim tanto fazia. As pessoas estavam ali, eram pessoas e pronto. Então, eu nunca tive isso. E é engraçado, porque essa coisa da mulher, eu já conversei com várias mulheres que passaram pela mesma experiência que eu, de assumir uma área, de tocar alguma coisa, de fazer e elas tiveram experiências diversas, né? Teve aquelas que tiveram uma dificuldade grande. Eu acho que a questão do protagonismo, do protagonismo feminino na área de negócios… Eu nunca parei pra pensar se eu tinha que perguntar se podia. Mas, de novo, a gente volta pra aquele pedaço de quando eu tinha nove anos, eu falei que queria ser cientista e ninguém disse que eu não podia. Pelo contrário, ganhei um microscópio de um, uma máquina de escrever do outro, um monte de livro do outro e meu pai… Assim, nunca em casa alguém disse: “Não, você não pode fazer faculdade. Não, você não pode ser engenheira. Não, você não pode…”. Então, eu nunca questionei. Eu meio que andei… Sabe aquela coisa dos antônimos, assim? Eu não conseguia enxergar isso, porque pra mim esse negócio não existia. Eu quero e pronto acabou, vou lá e brigo. Mas tem. Tem e, quando eu olho pra trás e vejo as discussões, quando a gente tinha as discussões na America Online, o presidente era homem, tinha aquela coisa da última palavra. A gente tinha certas brigas que sabia que a coisa não ia andar. Então, teve um machismo. Tem um machismo, assim, latente, né? Mas, mais do que isso, tem uma negação a espaços. Então, hoje, por exemplo, quando você pega as mulheres que empreendem na área de "startups" de tecnologia, representam, sei lá, quatro por cento. Não, são vinte… São dezesseis por cento, mais ou menos, da área toda de empreendedores, mas elas conseguem pegar no máximo quatro por cento de todo o dinheiro que circula, né, pelos VCs, para colocar grana em "startups". Eu passei por isso, quando a gente estava apertado na IDG, então é aquela história: quando você vai numa reunião, se você é homem empreendendo, o pessoal que está ouvindo o seu “pitch” (apresentação para venda de produto ou ideia) vai perguntar para você: “Quanto você vai gastar, para crescer? Quanto você vai crescer? Qual vai ser sua iniciativa daqui? Qual vai ser o investimento máximo?”. Para uma mulher, ele vai perguntar assim: “Quais são os riscos? Quanto dinheiro você acha que vai perder? O que vai acontecer, se der errado?”, as perguntas são completamente diferentes. E isso é, então, complicado. Não é fácil. A tecnologia, por incrível que pareça, deveria ser muito mais evoluída e não é. Nesse ponto, ela é muito ruim. E o Vale do Silício é ruim, mesmo. É o “Clube do Bolinha” rebaixado. Vai ficar pra posteridade essa história, tudo bem? (risos)
P1 – Tudo bem, sem problemas. É isso que a gente quer, que você comente, mesmo.
R – (risos) Tá bom, está tudo certo.
P1 – E me conta, então, depois dessa experiência da AOL, qual foi o próximo passo?
R – Tá, então, eu saí da AOL no finalzinho... Deixa eu ver uma coisa, que eu tenho que fazer umas contas aqui... No início de 2003, acho que foi. E aí eu saí, né, bom, enfim. Teve lá um monte de coisa, eu acabei entrando em conflito com o "marketing" inteiro, com o novo presidente lá da AOL, que mudou de presidente três ou quatro vezes e aí acabei sendo demitida. Saí e falei: “Bom, o que eu vou fazer?” Ao mesmo tempo que eu saí, me separei. Então, foram dois problemas ao mesmo tempo. Meu filho estava com seis anos e pouquinho. Não, seis não. Foi um pouquinho mais velho, quase dez. Eu me separei e falei: “Bom, o que eu vou fazer?”. Aí, um amigo, o André Breitman, que mora no Rio, que é o herdeiro da Editora Delta, me liga e fala: “Eu tô com uma ideia muito maluca e queria, já que você saiu da AOL, ver se você topava. Eu quero fazer uma internet pra crianças, protegida, reproduzindo um negócio chamado ‘Mundo da Criança’”. Eu não sei se você sabe o que é “Mundo da Criança”, mas o “Mundo da Criança” é uma coleção… São aquelas coisas que você fala assim: “Nossa, mas alguém escreveu o enredo direitinho, né? Como é que eu fui usar o Mundo…”, foi a primeira coleção que os meus pais tinham. Para você ter uma ideia de como é que era a coisa dos meus pais comigo, na época que eu era pequena, tinha vendedor de enciclopédia que batia na porta para vender a Barsa, para vender a Enciclopédia Britânica, pra vender conhecimento, aquele negócio, aqueles livros coloridinhos lá. Minha mãe e meu pai gastaram uma grana pra me comprar uma coleção chamada “O Mundo da Criança”, que era uma coleção que era tradução, publicada pela Editora Delta, de uma coleção que foi inventada lá nos anos sessenta, por uma editora de Chicago (EUA) chamada "World Book", que tinha o objetivo de… Então, eram... Acho que são dezesseis ou dezessete livros, cada um deles dedicado a um tema. Então, tem histórias do mundo todo, poesia do mundo todo, livros… Um sobre ciência, outro só sobre animais, enfim. É assim, era um mundo. Imagina um mundo. E a ideia era que ela era desenhada pra fazer com que, pra estimular as crianças a olharem pro mundo de forma diversa. Pra estimular a diversidade, a tolerância, a aceitação de outras culturas e a aceitação de que o mundo é diverso sim, tem gente que pensa de um jeito e tem gente que pensa do outro. Então, ele trazia culturas, histórias de todos os países que você pode imaginar, lendas de todos os países. Era uma ideia muito maluca. (risos) Eu me entusiasmo, de vez em quando. Era um negócio maravilhoso. Então, eu passei uma boa parte da minha infância, assim, tipo, entre os seis e os oito anos, lendo esse negócio, devorando. E aí o André me liga e fala assim: “Eu quero fazer o Mundo da Criança versão digital”. E eu falei: “Cara, como assim”, né? E ele bolou um jeito de produzir animações usando Flash, usando… Ele tinha ilustradores maravilhosos e a ideia era criar uma espécie de um mundo, um universo, cheio de planetinhas, cada planetinha era uma publicação e a gente ia criar histórias, ia criar roteiros semanais e você assinava pro seu filho, seu filho se 'logava' naquilo, ele ficava protegido: não estava navegando pra fora, não estava sendo atacado por pornografia, nem "hackers", nem qualquer coisa. E o foco era reproduzir o mesmo princípio: diversidade. Era uma coisa voltada para crianças de zero a doze anos, né? E aí eu falei: “Nossa, cara, que máximo!”. E ele falou: “Você quer cuidar do conteúdo?.” Eu falei: “Pô, está aí. Nunca parei pra escrever pra criança, mas por que não?”, e eu adoro livro de criança, sempre adorei livro de criança. O Gabriel tinha pilhas de livros de criança, porque com ele eu comprava mais livros que ele. Então, eu adoro brinquedo, tenho um problema sério. Não é à toa que o bichinho foi mimado, mas é divertidíssimo. E aí eu falei: “Pô, que legal. Acho que topo”. Então, a gente bolou, eram quatro conteúdos toda semana e eu ficava criando os roteiros, criando as histórias, procurando as atividades, porque tinha um dos mundinhos que você fazia atividades fora do computador. Então, era sempre um "print" assim: “Como fazer corrida de barquinhos de gelo”. Então, você ensinava a criança a fazer um barquinho com gelo, né? Pega o gelo, enche as forminhas, põe uma bandeirinha, tal e não sei o que, depois tira, põe numa superfície lisinha, começa a assoprar e os barquinhos vão. Então, a ideia era combinar o computador, por exemplo, e o uso também fora do computador, né? Criar uma coisa extremamente saudável. E trazer todas aquelas lendas, aquelas histórias de tudo quanto é lugar do mundo pro meio digital. E aí eu chamei a Cláudia, né, a Cacau, que tinha trabalhado comigo na AOL e que estava aqui e falei: “Cara, você topa trabalhar comigo?”, “Topo”. E a gente montou um escritório pequenininho aqui. Eu ia toda semana pro Rio [de Janeiro], porque a Delta ficava no Rio. Pegava o avião e ia pra lá, sentava com o pessoal, com a equipe de desenvolvimento, discutia as pautas, discutia os roteiros, pensava como é que ia ser a coisa, voltava pra São Paulo e 'tascava' escrever coisa pra criança. Então, eu fiquei mais ou menos um ano fazendo esse projeto da Delta e foi uma das coisas mais geniais que eu fiz. Aí a gente produziu o livro, um livro de verdade, então tem o livro. Tenho quatro ou cinco livros pra criança que estão publicados, por incrível que pareça não tenho os benditos dos livros, mas foi uma fase muito boa, porque eu estava assim: me recuperando de ter saído da AOL, que era uma coisa que eu adorava. Estava me recuperando do fim do casamento, que, depois de quinze anos, foi uma 'pancada'. E aí estava lá, com um filho pequeno, querendo trabalhar de casa, para poder dar atenção pra ele e tudo convergiu. Então, eu fiquei um ano escrevendo coisa pra criança, fazendo projetos. Até que, de repente, um "headhunter" (responsável por buscar os melhores profissionais do mercado para uma empresa) me liga e fala: “Ó, tem uma empresa aí que tá procurando alguém com os seus ‘skills’ (habilidades) e a sua experiência de tecnologia”. E eu falei: “Vamos lá ver o que é”. E aí era a Burson-Marsteller, que é uma empresa de RP (Relações Públicas), de assessoria de imprensa americana, que estava aqui e estava procurando uma pessoa para gerenciar uma área deles, ali, de tecnologia, que tinha uns clientes meio grandões. E eu nunca tinha trabalhado em assessoria, mas estava num momento em que estava precisando começar a pensar em grana. O salário era bacana, eu tinha uma experiência muito boa, falei: “Bom, tá bom”. E aí fiz lá as entrevistas todas, passei nas entrevistas, aquele monte de “headhunter” e de pergunta, né? Passei nas entrevistas e eu fiquei, fui lá. E aí o meu chefe, que era o Ramiro, uma das pessoas mais geniais... Eu tive, toda a minha vida, uma bênção de ter chefes muito legais, aqueles que ou te dão, te colocam no protagonismo, te falam: “Vai lá e faz, que eu sei que você consegue”, ou dividem com você tudo que eles conhecem. O Ramiro é uma dessas pessoas. Então, assim, eu só tenho gratidão pelas pessoas que passaram pela minha vida. O Ramiro é um cara que é filho de mãe chilena e pai americano, foi secretário de senador em Washington (EUA), conhece toda a parte de gestão de risco, conhece Washington de ponta-cabeça e estava gerenciando a Burson aqui. E aí eu tinha conversas maravilhosas com o Ramiro, porque fui aprender a fazer - tinha uma equipe genial, tinha pessoas ótimas fazendo -, porque eu não fazia a menor ideia de como fazer RP e falei: “Tá bom, vamos lá, né, ver o que é que vira”. Eu fiquei exatos seis meses só, lá. Porque aí o Ney Kruel, que tinha sido lá o meu chefe - aquele que inventou a IDG Now! lá atrás, na IDG -, me liga e fala assim: “Acabei de indicar seu nome pra presidente da IDG no Brasil”. Falei: “Você está louco?”. Aí (risos) ele falou: “Não, por quê? É fácil”. Falei: “Que fácil? Você quer que eu vá ser CEO, que eu vá ser presidente da operação? Por quê?”. Ele falou: “Porque os caras tão no maior espeto. Botaram um cara lá que não entende nada de internet, os números estão todos indo pra baixo, [e] você é a pessoa que mais conhece a IDG, que mais entende de internet. Pelo amor de Deus, vai lá, aceita o convite”. Falei: “Caramba, tá bom”. Aí ele me indicou, o pessoal da IDG nos Estados Unidos, de Boston, me ligou, conversamos por telefone. E aí marcam de eu pegar um avião e ir pra Boston, pra fazer a entrevista direto com o Pat e com o resto do “board” lá, da IDG, no final de semana de “Thanksgiving”. Então, assim, literalmente, você imagina... (risos) Isso foi [no] final do ano, era novembro. Um frio do cão. Um frio daqueles da orelha cair, assim. Eu lá em Boston, cheguei, me botaram num hotel na frente, praticamente, do prédio da IDG. Eu andando na cidade, acho que era a única idiota da cidade inteira, que o resto das pessoas, "Thanksgiving", estava todo o mundo com a família, né? Americano ama "Thanksgiving". Então, o Dia de Ação de Graças é mais importante que o Natal. E eu lá, andando, que nem uma tonta, no Starbucks, achando tudo sensacional. Na segunda-feira, eu fiz a entrevista com o Pat. Conversamos, ele me perguntou lá quais são as três coisas que eu faria. Contei lá pra ele. Eu me lembro de ter feito uma entrevista com o diretor de RH, lá da IDG, o vice-presidente de RH, e ele falou assim: “Olha, você tem todos os ‘skills’ pro cargo, mas vai sofrer pra burro, porque vai ter que lidar com a área comercial e isso aí vai te deixar enlouquecida”. E eu falei: “É, provavelmente”. Porque o lado jornalista não gosta de lidar com essa área. E aí acabaram me contratando. Então, de uma hora pra outra. Eu fiquei só seis meses e me lembro de ter chegado pro Ramiro e falar: “Cara, eu tô indo”. E ele falou: “Como assim? Só se for pra ser uma coisa muito boa, porque eu não queria que você saísse”, “Tô indo pra assumir a IDG”. Ele falou: “Tá bom”. E aí eu assumi a operação aqui da IDG no Brasil, aquela que eu tinha sido estagiária lá pra trás, né, uma… Eu entrei e saí da IDG três vezes na minha vida, né? Entrei e saí na… Assumi a operação, o David Hill, que era o diretor da divisão internacional, veio pra cá. Ninguém sabia que era eu. Eu conhecia a maior parte dos jornalistas que trabalhavam lá e eram colegas e tudo, que conheço de muito tempo. E eu fui pra lá, me apresentaram e eu falei: “Olha”... O que estava acontecendo na IDG naquela época? O ‘tsunami’ da queda de receita da mídia estava pegando. A IDG, que tinha dito pro Ney: “Você é um maluco, não bota dinheiro nesse negócio chamado ‘IDG Now!’”, agora estava acelerando na direção da internet. Só que a IDG, no Brasil, estava na mão de uma pessoa que não tinha esses “skills”. Primeiro, que não tinha “skills” jornalísticos. Segundo, que não estava entendendo o que era pra fazer. E aí, assim, você tinha uma operação que tinha oitenta por cento da sua receita concentrada em uma única publicação, que era o “Computerworld” e que era em papel. Ou seja, era a receita para o desastre completo, a tempestade perfeita. Então, eu tinha que virar tudo de ponta cabeça. Eu tinha que acelerar o "IDG Now!", que estava lá, firme e forte, com uma puta audiência, mas sem muita receita, tinha que botar as coisas pra andar, tinha que modernizar tudo, tinha que ver o negócio da equipe comercial. Enfim, eu falei: “Tudo que eu não sei fazer, vou aprender agora”. Aprendi uma parte e vou ter que fazer no “ongoing”, né? E aí resolvi fazer o seguinte: eu peguei uma prancha de surfe do meu filho e levei pro escritório comigo. E aí entro eu pra ser apresentada pra toda a equipe, com uma prancha de surfe, né? ‘Finquei’ a prancha e ficou todo o mundo me olhando assustado. E falei: “Olha, é o seguinte: tem um ‘tsunami’ vindo aí pra bater na praia, tá? Geralmente, o que acontece nos Estados Unidos, leva dois anos pra acontecer aqui. Então, a gente tem dois anos pra tomar uma decisão. Ou a gente aprende a nadar, ou a gente morre afogado. Eu não pretendo morrer afogada, está aqui a prancha. A gente vai mudar tudo e vai andar”. E aí foi que eu comecei a fazer a operação toda. A gente reformulou tudo. Bom, cortei o que tinha que cortar, cancelei publicações impressas que não estavam dando dinheiro, fui aprender a fazer umas coisas… Aprendi coisas malucas, fiz coisas (risos) completamente absurdas. Eu tinha que lidar com o conceito de contabilidade [e] nunca tinha parado pra mexer com contabilidade de uma empresa grande. Tem que fazer “due diligence” (diligência prévia) todo ano, tem que fazer relatório e tal, toda aquela coisa. E eu lá, conversando com o cara e o cara da contabilidade me explicando a diferença entre caixa, receita, aquela coisa toda. Chegou uma hora que eu falei assim pra ele: “Cara, eu não aguento essas coisas. Se meu filho virar pra mim e falar que quer ser contador, eu o mato”. Nossa, depois, no dia seguinte, fiquei tão mal. Mas eu fiquei tão mal, falei: “Meu Deus do céu!”. No dia seguinte, eu comprei uma caixa de bombom pro cara e falei: “Você me perdoa. Eu jamais devia ter falado um negócio desse, mas estava muito brava com os números”. Ele falou: “Não, está tudo certo”. Então, assim, eu tive que me acostumar com um monte de coisa e, ao mesmo tempo, pensar como você muda uma operação, pra cobrir, migrar de um modelo totalmente papel, para um modelo onde a maior receita vem do “on-line”. E aí a gente começou a fazer coisas que ninguém estava fazendo, né? Então, no primeiro ano foi… A gente estava com mais ou menos vinte por cento da receita concentrada em "on-line" e dois anos depois, estava com quase cinquenta por cento da receita concentrada no "on-line", crescendo a receita. E aí veio a crise de 2008, né, e vieram os problemas que afetaram toda a mídia, enfim. E aí é uma outra história, que me fez sair da operação.
P1 – E vamos falar um pouquinho, então, sobre a The Shift.
R – Boa.
P1 – Como começou? Como isso surgiu?
R – Tá. Então, a The Shift… Bom, se você somar, eu tenho mais de trinta anos de carreira, né, em tecnologia, noventa por cento em tecnologia. Embora no caso da AOL… Quando tivemos todos os problemas da IDG, chegou um momento em que já eu não estava conseguindo segurar mais e falei: “Olha, pessoal, não vai rolar, né? Vou passar a licença para outro grupo”. E aí passei a licença para outro grupo de mídia, que é a IT Mídia. Junto com a Cristina De Luca, que trabalha comigo já há quinze anos, né, desde a época da IDG, a gente começou a pensar: “O que a gente vai fazer? Não dá mais pra fazer IDG, cansei, preciso fazer alguma coisa diferente”. E aí veio a ideia de que, nesse momento que a gente está, a única constante na vida da gente, na vida das empresas, especialmente, é a ruptura. A única constante é a mudança. A gente vive tempos em que a tecnologia está tão acelerada, que a mudança é a única coisa com que você pode contar. E a gente olhou e falou assim: “Se a gente for lançar uma outra publicação, e se a gente fizesse uma ‘startup’? A essa altura do campeonato, fazer uma ‘startup’, vamos ver o que vira”. E a gente foi convencida por um amigo, o (Sveneu?), de que a gente tinha uma marca pessoal muito forte, que valia a pena investir nisso. Então, a gente falou: “Não vamos escrever sobre TI (Tecnologia da Informação). Não vamos escrever sobre transformação digital. Vamos escrever sobre disrupção”. E um dos pontos que a gente chegou à conclusão é que, hoje, o que acontece? Nesse período todo, falando com os CIOs, né, que são os “Chief Information Officers”, né, os caras diretores de tecnologia de empresas de todos os tamanhos, ficou muito claro que o grande problema pras empresas, de fazer a transformação digital, que significa mudar o seu negócio, parar de pensar analógico e pensar digital, mas envolve uma série de coisas no meio do caminho, que a única coisa, que o que mais pegava é não ter noção do todo, é não ter noção do contexto. Então, tem excesso de notícias e muito pouca explicação, muito pouca contextualização do que conecta no quê. E aí, quando a gente começou a discutir sobre isso, falou: “Bom, então a gente não vai fazer ‘hard news’ (notícias mais relevantes). A gente não vai fazer notícia, a gente vai fazer contexto”. E qual é a ideia? Jornalismo tem aquele “quem, como, quando, onde e porquê”. E a gente falou que tem uma última pergunta, que é: “E daí?”, né? (risos) Não é o “e daí” do nosso… É um outro “e daí”. Na época que eu falei não tinha esse “e daí”, tanto que a gente parou de falar, mas, enfim.
P1 – É um “para quê”, né?
R – (risos) É. O “para quê”! Boa. Aí a gente falou assim: “Então, a ideia é que a gente não só responda as cinco, mas responda as próximas três", que são: "O que que isso impacta, por que impacta e quem impacta", de forma que as empresas consigam enxergar os contextos, para tomar decisões de negócios. Para tomar decisões de “como é que migra”. Por que, qual era o princípio? Embora pareça super fechado, corporativo e tal, tem uma questão que é importante. A gente está vivendo um tempo, hoje, em que as "startups" nascem a todo momento. Elas são disruptivas. O Uber disruptou os táxis, assim como o 99, os patinetes, o carro elétrico. Assim como a IA finalmente conseguiu ter poder computacional para florescer, é uma tecnologia dos anos sessenta, né, dos anos cinquenta, mas que agora floresce. Então, assim, tudo… As ideias nascem disruptivas, né, do nada vêm algumas ideias diferentes e tem uma questão importante aí, que é o fato de que tem um pensamento digital por trás. Mas a disrupção tem um problema, que você não sabe de onde ela vem. Ela pode vir de lugares não óbvios. Não é assim: aquele cara, o meu concorrente, ali na frente, que vai fazer alguma coisa pra me tirar do negócio. Não, é um moleque de 25 anos que vai ter uma ideia, porque ele vai entender uma necessidade digital de um consumidor e vai responder pra ela, criando um produto digital que pode ser acessado num celular, né, que é o caso do Uber. O que aconteceu no Uber? No Uber, as pessoas estavam cansadas de esperar um táxi em Nova Iorque, no meio da chuva, em que você chama pelo telefone e não sabe se o táxi vai vir ou não. Enquanto isso, elas podiam ver o aplicativo ali, aquelas 'baratinhas' pretas andando: a hora que a 'baratinha' parasse na frente do bar, ela saía do bar, entrava na 'baratinha' e estava tudo certo, né? Então, é sempre a questão da necessidade. A gente olhou e falou: “Bom, então a gente tem que montar esses contextos, tem que ir mais do que isso: e se a gente criasse uma bola de cristal? E se a gente conseguisse antecipar essas tendências? E se a gente conseguisse dizer pro cara: ‘Olha, o que vai vir ali na frente, vai atrapalhar o seu negócio agora’”. Então, aí nasceu a ideia da The Shift: fazer essa coisa da cobertura do contexto. Conseguir explicar pras pessoas qual é o contexto da disrupção, né, porque ela acontece, da onde está vindo, quais são os elementos que afetam uma empresa de qualquer vertical, mas que pra fazer o que a gente estava fazendo, a gente precisava ter uma base tecnológica. Então, a The Shift, agora, está numa fase que ela está buscando "funding" (fundos), obviamente, pra poder desenvolver o que a gente chama de “Aleph”, que é uma plataforma que consegue antecipar tendências disruptivas. Basicamente, a gente olha para um monte de informações, cruza as informações de umas nuvenzinhas de tendências e o jornalista olha pra aquilo e fala: “Ah! Aqui tem coisa”. Então, a ideia é usar a tecnologia, a inteligência artificial para aumentar a inteligência do jornalista e fazer com que ele consiga entregar mais informação. No "bottom line", a gente quer, com a The Shift, disruptar o modo como as pessoas consomem informação importante pros negócios. Esse é o… E aí tem uma questão importante, que é: ao fazer isso, eu tô garantindo que não só as "startups" vão herdar a Terra, digamos assim. Eu costumo brincar, porque hoje você tem uma "startup" atrás da outra, disruptando essas empresas tradicionais. Mas, se as empresas tradicionais todas quebrarem, se elas não fizerem essa evolução, a gente vai ter desemprego. A gente vai ter um monte de gente perdendo o emprego. A gente vai esquecer de preparar as pessoas. Então, o papel da The Shift nesse momento, a gente enxerga também como um papel social importante. A gente briga muito pela diversidade, pela representatividade de todos os grupos na tecnologia: pela diversidade, equidade e inclusão. A gente discute as questões super importantes: por exemplo, a gente comprou várias bandeiras, né? Uma delas é a preocupação com o algoritmo e o fato do algoritmo ampliar o "bias", né, o viés comportamental. Então, se você não prestar atenção, de repente, vai ser barrado pelo algoritmo por causa do seu endereço. Então, você não vai ganhar um empréstimo, não vai conseguir empréstimo no Banco, porque você, por acaso, mora numa rua que fica perto de uma favela e o algoritmo vai decidir... Porque algum doido que escreveu o algoritmo, botou lá que, se tiver na rua tal, não dá empréstimo pra tal pessoa e você nunca vai saber. Então, a gente acabou olhando pra The Shift também como uma questão importante pra conseguir apoiar as empresas pra fazer essa transformação, mas, principalmente, porque, nesse universo, agora, que a gente está, você precisa capacitar as pessoas para entender que elas vão conviver com robôs, que elas não vão perder o emprego pro robô, mas se elas conseguirem exercitar o pensamento criativo. Você está falando de novas competências, novos "skills", novas formas de trabalhar, que passam longe dessa coisa mecânica, dessa coisa automática, né, operacional e vão muito… Mas isso o robô vai fazer, mesmo. Então, a gente enxerga a The Shift também com esse papel. A gente acha que dá pra fazer. E é isso, tô aqui empreendendo, agora, depois de trinta e tantos anos.
P1 – E o que isso te afetou, digamos assim? Como você acha que ter resolvido empreender e resolvido falar, justamente, sobre uma coisa que falta, digamos assim, que é contexto, é muita informação, mas pouco contexto. O que você acha que mudou na sua atuação profissional, essa ideia?
R – Bom, ela, a ideia, é, de certa forma, uma continuidade de um jeito de olhar, né, porque eu vinha aprendendo isso ao longo do tempo: o que estava faltando no mercado. É um exercício meu, de senso crítico, de olhar pra profissão de jornalismo e falar assim: “Bom, afinal de contas, pra onde a gente vai, né, como jornalista? O que muda com a automação? Porque eu não vou ser substituída por aquele computador, que consegue escrever uma matéria imitando o estilo de qualquer jornalista, porque isso tem mesmo. Pra onde está indo?”. Então, uma parte é isso. A outra parte é ter que olhar e aprender coisas novas. Então, acho que o grande impacto, pra mim, da The Shift, é que eu tô de novo aprendendo. (risos) Agora, eu tenho que entender de linguagem de máquinas, que conseguir entender como é que a gente vai construir um modelo de inteligência artificial que vai conseguir antecipar tendências, como é que eu vou conseguir jogar aquilo que meu cérebro consegue fazer muito bem, para uma máquina criar um modelo. Então, esse exercício do século XXI, talvez, pra mim, seja a maior mudança que está sendo. E a outra mudança, que é difícil é o tal do "bootstrap", né, porque a gente está… A gente não conseguiu levantar "funding". Então, a gente está fazendo tudo puxando o cordão da bota. Eu continuo com dois chapéus, né: de jornalista e de "publisher" (editora), porque tenho que pensar como é que vai trazer a receita, como é que vai gerar receita. Mas acho que tem um ponto importante, que é essa coisa de escrever o contexto, é que não dá mais pra gente viver num mundo em que a gente se contenta com "hard news". Porque, se você não entende o entorno e as coisas estão ficando muito entrelaçadas, elas estão ficando muito complexas, então não dá mais pra pensar um mundo onde a tecnologia está de um lado e as pessoas estão do outro, onde a sustentabilidade está aqui, tem vida própria e as empresas podem continuar fazendo coisas que são completamente insustentáveis. Não dá mais, está tudo se mesclando, porque a gente está falando de um mundo que está quase explodindo: a crise energética, do meio ambiente; e a gente está vivenciando isso agora, né, as enchentes que aumentam, as geleiras que derretem. Então, assim, tudo está muito conectado, né? Acho que a grande experiência, pra mim, é conseguir fazer esse exercício de juntar tudo. E de contar outras histórias, de um jeito diferente, porque a proposta da gente, de contar histórias de um jeito diferente, envolve usar jornalismo de dados, usar a ciência de dados, pra cruzar informação e identificar tendência. Então, acho que, talvez, o maior ponto pra mim seja esse. E ficar sem dinheiro todo dia, é parte do empreendedor. (risos) Mas esse é o outro lado, de enfrentar coisas estranhas que podem acontecer. Faz parte.
P1 – E eu gostaria que você comentasse, digamos... Quando você olha, digamos assim, pra sua carreira agora, vê todas essas áreas e experiências... Você chegou a ganhar dois prêmios, né, da Sucesu-SP, [Melhor Jornalista de Tecnologia]…
R – É.
P1 – ...Em 1991 e em 1992, né?
R – Isso.
P1 – E o Prêmio da Serpro de Jornalismo, em 1994, né?
R – Isso.
P1 – Como você acha que o seu trabalho, digamos assim, se ele fluiu bem? Uma autoavaliação da sua carreira.
R – Tá. Então, eu acho que sim, acho que fluiu bem. Poderia ter fluído de forma diferente, acho que sempre você ficar pensando e falar: “Ah, bom, várias coisas eu teria feito diferente”, mas não ligadas ao jornalismo. Acho que, pra mim, o grande desafio nessa carreira toda, foi ter caminhado e é uma caminhada que nem todos os jornalistas fazem, né? Tem jornalista que é repórter pro resto da vida, porque ama fazer isso. Eu adoro contar história, mas não preciso ser a única a contar história. Eu adoro criar uma situação em que outras pessoas possam contar histórias. Então, quando você constrói um ambiente, como é o caso da The Shift, ou quando eu cuidei da IDG, eu estava criando um ambiente pra ter pessoas super criativas, que pudessem contar histórias e atender um leitor, né? Então, pra mim, assim, o grande foco - e eu sempre disse isso pra todo o mundo, pras minhas equipes, desde a época da AOL -: a única pessoa que interessa para um jornalista, hoje, é o leitor. É para ele que a gente trabalha, né? Pode parecer meio romântico, mas não é. Porque é ele é o que sustenta. O anunciante só vem se tem leitor. Você só vive, se o leitor gosta de você. Então, olhar pro leitor e tentar pensar: “Como é que eu vou atender melhor esse cara?”. Eu acho que, nessa minha trajetória, o que eu fui aprendendo mais é como é que resolvo outros problemas de contar outras histórias que façam sentido, que tenham um impacto e valor para a vida desse sujeito. E é um exercício muito complicado, esse, porque você tem que pensar sempre no olhar do outro, né? Como é que o leitor… o que o leitor precisa? Aquela coisa do lugar de fala, né? (risos) É complicado, porque a gente tem que pensar um pouco como o leitor: o que ele quer, como é que ele está consumindo a informação, né? Então, acho que desse período todo, eu passei a escrever menos, o que é a coisa que eu mais lamento, porque acabo tendo que me ocupar de uma parte da gestão, de uma parte do dia a dia de uma empresa de mídia que tem que viver, ela tem que vender, fazer outro tipo de relações. Então, eu sinto uma falta tremenda, agora, de escrever mais. Então, se me perguntar, aquela pessoa que ganhou aquele monte de prêmio e tal, eu adoraria estar escrevendo mais. Tem dia que eu fico me perdendo, falo: “Ai, eu queria passar a tarde toda olhando isso aqui”. Então, acho que tem esse lado, mas, por outro lado, acho que fiz a diferença na vida de um monte de gente. Na hora em que você consegue criar redações que são amigas até hoje, pessoas que se conhecem até hoje, pessoas que param você e falam assim: “Nossa, você fez uma diferença na minha vida”. Eu fico pensando: “Nossa, fiz mesmo”. Então, eu acho que tem esse aspecto, mas o mais, acho, de tudo, o mais complicado é poder ter menos tempo pra escrever do que eu gostaria.
P1 – Certo. Então, a gente vai se encaminhando pras perguntas finais, Silvia.
R – Tá bom.
P1 – Eu gostaria de perguntar pra você quais são seus sonhos para o futuro.
R – Vixi. (risos) Olha, assim, pessoalmente, né? Eu acho que meu sonho maior é que meu filho seja feliz. Então, eu tenho um filho de 28 anos, que eu quero que seja feliz. Então, o primeiro é esse. Você fica sempre pensando: “Pô, como é que vai ser, né? Vai sobrar mundo? Vai dar certo? Essa pandemia vai acabar antes? O que esse cara vai ser?”. Então, acho que meu sonho mais objetivo, mais perto, é esse. Do meu ponto de vista, eu quero conseguir… (risos) Tenho uma meta: em algum momento, ainda, da minha vida, eu quero morar num farol. Quero ficar um ano morando num farol, eu e meus cachorros, lendo, de preferência no "mailing", né, e aí eu desço todo dia, pego café, a lagosta do dia, volto pra casa, trabalho, escrevo e fico lá com os cachorros. Mas eu acho que o que eu quero é poder fazer alguma coisa com a The Shift mesmo, né, construir alguma coisa diferente. Evoluir para essa situação, em que a gente consiga entregar um outro modelo de jornalismo, que possa apoiar a mídia, para ela continuar crescendo com qualidade. Então, uma das ideias da The Shift é, uma vez que a gente desenhe esse modelo, que a gente possa escalar, replicar e licenciar para outras redações. Então, se tem uma ambição, é essa, de conseguir criar um modelo que consiga prever o futuro de qualquer tipo de mídia e aí as pessoas poderem usar pra qualquer… (inaudível) ...um pouco mais além do fim do mundo, né? Espero que o mundo não acabe tão cedo. (risos)
P1 – E como foi ser mãe? Você disse que foi uma adoção e que você estava sempre na correria…
R – É.
P1 – Como foi isso pra você?
R – Ah, é sempre complicado, né? Porque você, quando você divide… Acho que tem duas coisas. Até a minha separação, a gente dividia o Gabi, quando a gente separou eu acabei virando "single parent" (mãe solteira), mesmo. Durante muito tempo, eu praticamente cuidei do Gabi o tempo todo. Então, a ausência do pai é complicada. Assim, tem… Vou te dar um exemplo de coisas que angustiam, quando você adota uma criança. Agora não mais, mas, na época que eu adotei, não existia licença maternidade pra quem adotasse. Não tinha. Adotou, problema seu. Então, eu adotei o Gabriel [e] a gente foi buscar ele numa sexta-feira, voltamos com ele… Na segunda-feira, eu estava trabalhando. E ele estava com a minha sogra, né, porque a gente optou… Minha sogra, coisa maravilhosa. Arrumou o bichinho lá, era o predileto dela. Então, eu tive que, de uma hora pra outra, virar mãe. Continuar trabalhando, continuar fazendo o que tinha e engolir esse complexo de culpa besta, que toda mãe que trabalha acaba tendo. Assim, tem um lado que, assim: a minha mãe sempre trabalhou. Eu te contei que ela acabou tendo que trabalhar por conta da… Então, eu sempre vi minha mãe trabalhando, independente das circunstâncias. A gente sofreu com isso? Óbvio. Teve um lado da gente ficar meio à margem disso tudo e podia ter sido melhor, mas essa parte ética de você trabalhar, apesar disso tudo - e isso não te faz menos mãe -, é uma coisa que eu consegui passar bem pro Gabriel. Então, as coisas mais difíceis… Eu sei que ele fica todo orgulhoso, fala: “Mãe, você é foda”, aquela coisa toda de filho que é fofinho, né? Mas ele acha que eu trabalho demais e eu fico: “Você quer fazer uma ‘startup’ como, né? Tem que trabalhar pra burro”. Mas eu acho que, assim, o começo do Gabi, da maternidade, foi difícil por causa disso. Eu, de repente, virei mãe, porque não tem a gravidez, você está lá esperando a adoção e tal: 'puf', de repente, você é mãe. Então, teve esse aspecto. O aspecto de você não ter a licença maternidade, que, graças a Deus, agora está disponível pra todo o mundo, né, o que é uma diferença. Então, assim, eu tive que tomar decisões bem complicadas, do tipo: com três meses, o Gabriel foi para uma creche "daycare", o dia inteiro, que era uma super bacana, que a gente sabia qual era, porque entre deixar com a babá e deixá-lo convivendo com outras crianças, eu achava melhor deixá-lo convivendo com outras crianças e não carregar a família. Então, acho que a maternidade é complicada, porque chega uma hora que você fala: “Será que eu acertei? Será que todas as coisas que eu tive que fazer, o tempo que eu não consegui ficar com ele, as viradas de noite, ele tendo que ficar na casa da avó, a ausência e coisas ao longo do caminho, que você acha que tomou a decisão errada”, apesar que quando seu filho faz uma coisa muito legal… Porque filho é assim, né, eles aprendem tudo que a gente fala, mas eles não contam pra você. Eles vão sempre dizer pra você (risos) que está errada, não sei o quê. E aí, de repente, alguém liga pra você e fala assim: “Nossa, seu filho é maravilhoso. Ele fez isso, aquilo outro”. E você fala: “Pô, acertei”, né? Então, acho que eu tenho algumas vantagens sobre o Gabi, que eu brinco que tenho duas vantagens: a minha geração consegue sobreviver sem tecnologia e a dele não, porque a minha tese de fim do mundo é que vai ter uma tempestade solar, os raios solares vão desligar todas as coisas tecnológicas, vão mesmo. Aí a gente não vai ter como viver, porque nada mais consegue funcionar sem tecnologia, e vai ser o fim do mundo, né? E eu falei pra ele, outro dia: “Ó, se eu tiver que me virar sem celular e sem tecnologia, eu consigo. Você, não”. Então, eu tenho essa vantagem. E a outra vantagem que brinco com ele é que eu sei mais de tecnologia que ele. Então, eu consigo 'hackear' mais coisas que ele, por incrível que pareça. Mas eu acho que é isso. A minha angústia não é diferente de todas as mulheres que trabalham. Eu acho que, assim, todas as jornalistas que eu conheço e todas as mulheres da área de tecnologia que dividem, aquelas que arriscam, né, pegar algum protagonismo e ir pra frente, têm as mesmas dúvidas: "Deu certo? Não deu certo? Eu não sei", mas a única coisa que eu acho que não dá pra ficar é com um sentimento de culpa, porque tá errado, né? Não tem fórmula, então vai inventando. Mas, é isso.
P1 – Bom, então vamos pra última pergunta, Silvia: o que você achou de contar a história, a sua história pra gente, hoje?
R – (risos) É, essa é muito engraçada. Eu achei que eu falei demais. (risos) Não, achei muito legal! Eu me vi de novo revisitando um monte de coisas. Quando você olha pra trás, fica… Você fala: “Nossa, eu fiz tanta coisa”, né? Então, acho que foi uma experiência gratificante. Foi bacana revisitar, não sei o que isso pode ajudar a quem for ver os depoimentos, se faz alguma diferença, mas acho que tem um… Teve um lado de… Não chega a ser uma catarse, mas teve um lado, assim, de buscar, juntar tudo e falar: “Nossa, né, quanta coisa que rolou e quanta coisa que deu pra fazer!”. E a boa coisa é que você olha e fala: “Bom, tá bom. Tá ótimo. A história que dá pra contar é essa que eu tô contando, que é a história, né, é uma história da qual eu não me arrependo”. Então, é muito legal isso, né, de você olhar e falar: “Nossa, podia ter feito mais, mas não precisava ter feito nada de menos, né?”. O que eu te contei (risos) são coisas que eu amo ter feito. Então, foi muito bom. Foi uma experiência que eu agradeço. Gratidão, mesmo, pela oportunidade.
P1 – Então, em nome do Museu da Pessoa, também te agradeço muito pela entrevista. Muitíssimo obrigado! Foi uma entrevista incrível! (risos)
R – Ai, que bom! (risos)
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