Projeto Medley
Depoimento de Maya Shneider
Entrevistada por Fernanda Regina
Local São Paulo
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Camila Inês Schmitt Rossi
[00:00:01]
P/1 – Oi! Fala o seu nome completo, data e local de nascimento.
[00:00:08]
R – Meu nome é Maya Shneider, nasci dia 26/07/78 em São Paulo, capital.
[00:00:15]
P/1 – Quais os nomes dos seus pais?
[00:00:16]
R – Minha mãe chamava-se Valéria Aparecida da Costa Resende, meu pai chamava-se Jorge Luís Resende.
[00:00:26]
P/1 – E o que eles faziam?
[00:00:29]
R – Meu pai era taxista e a minha mãe era secretária num escritório de advocacia dentro do OAB de São Paulo.
[00:00:36]
P/1 – Você tem irmãos?
[00:00:38]
R – Tenho, tenho quatro irmãos. Um mais velho do que eu, o Victor Benedito Resende; mais dois irmãos mais novos, que é o Jorge Luís Resende Junior e a Jamília Aparecida Resende. Mas eu não tenho contato com os meus irmãos nos dias de hoje.
[00:00:57]
P/1 – Como era a sua casa de infância, você lembra?
[00:01:02]
R – Lembro (risos). Sim, claro. Ah, eu tive uma infância, normal, normal dentro do que era possível, eu dentro da minha visão do que era ser normal. Na minha infância (porque a minha irmã chegou no começo da minha adolescência), mas na minha infância eu tinha os meus irmãos, nós éramos muito unidos. Então nós brincávamos de todas as atividades, até as que eu odiava (tipo futebol, enfim, empinar pipa), mas eu gostava dessa recreação de estar junto, de participar, de estar com eles. Nós estudávamos, então eu gostava desse momento de ir pra escola e às vezes eu conseguia até auxiliar os meus irmãos com algumas coisas. Eu tive uma infância tranquila dentro do que era permitido pra mim naquele momento. Eu tinha uma família... eu tinha uma família que a minha mãe me amava, ela desempenhou bem esses dois papéis. Eu sempre tive um pai ausente, né, mas a minha mãe tentou de todas as formas suprir esse papel. E os meus irmãos também desempenharam de certa forma, até um determinado momento, esse amor, esse carinho. Então eu fui muito feliz na minha infância, não posso questionar muito.
[00:02:45]
P/1 – Você falou que odiava futebol, mas quais eram as suas brincadeiras favoritas?
[00:02:49]
R – Então, eu gostava de fazer... eu gostava quando a gente brincava de fazer casa na árvore, eu gostava de correr atrás de balão, eu gostava de andar de skate, muito de andar de bicicleta. Eu jogava futebol, mas eu não gostava muito, eu jogava mais pelos meus irmãos e os meninos da rua. Eu não gostava de empinar pipa também porque eu sempre me cortava com aquela linha, o cortante, enfim. Mas as outras atividades eu gostava. O que eu mais gostava era de andar de bicicleta mesmo porque a gente tinha uma bicicleta que tinha a possibilidade de sempre levar alguém na garupa então era muito legal, porque... eu sempre gostei das atividades que eu podia compartilhar com as outras pessoas. E das que eu mais gostava, a bicicleta era uma delas.
[00:03:48]
P/1 – Você falou da sua mãe, como era a sua relação com ela? Se você lembra de alguma história da infância que te marcou.
[00:03:54]
R – Ah, eu lembro várias histórias, principalmente a minha mãe pra mim foi e é como a maioria das mães são pros filhos, né, e a minha mãe foi tudo pra mim. Foi minha mãe, minha amiga, minha inimiga, e foi meu pai, foi minha irmã, foi a mulher que me ensinou muitas coisas, aliás todas as coisas, né, e também é por ela que eu sou a mulher que eu sou hoje, mas também é por ela que eu sou a pessoa que eu sou hoje. Eu tive uma relação com a minha mãe assim que foi muito ímpar, sabe, e foi limpa e foi linda, durou o tempo que teve que durar, porque, como diziam os ensinamentos, é os deuses que sabem quando é a hora da partida. A melhor história que eu tenho... porque assim, eu guardo pra mim a melhor história e tento absorver apenas o que foi bom. A minha melhor história com a minha mãe foi que, quando eu tinha dezessete anos, a minha mãe sempre foi louca pela Alcione e pelo Jorge Aragão e ela nunca tinha ido num show desses cantores. E eu lembro que um mês antes do meu aniversário em junho eu consegui um par de ingressos pro show da Alcione no Moinho de Santo Antônio, que é uma casa de show que nem tem mais aqui, não existe mais em São Paulo, enfim. E foi o primeiro e o último show que eu assisti com a minha mãe. E foi um dos momentos mais emocionantes da minha vida, porque eu consegui os ingressos num lugar bem privilegiado, estávamos nós duas, e a Alcione veio, cumprimentou e cantou uma das músicas que a minha mãe mais adorava, que chama-se A Cigana. Enfim... foi maravilhoso. Então é um dos momentos mais marcantes pra mim. Eu vou ao show da Alcione de vez em quando e sempre me emociono porque me traz essa lembrança maravilhosa.
[00:06:35]
P/1 – E com os seus irmãos tem alguma história na infância, com algum, que você queira relatar?
[00:06:39]
R – Eu tenho a minha melhor história com os meus irmãos foi quando eu tinha treze anos e eu realmente entendi quem eu era e como eu era e uma das coisas que a minha mãe sempre me ensinou e que eu sempre tive comigo era jamais mentir, principalmente pras pessoas que eu amava, pras pessoas que eu amo. E aí eu tive uma conversa muito aberta com a minha mãe, que foi aonde eu realmente disse pra ela como eu me sentia, como eu me identificava e num gesto de proteção ela pediu pra que eu não contasse para o meu pai. Mas eu precisava contar pros meus irmãos e aí eu contei pra eles e esse foi o momento mais emocionante, eu me senti mais amado na vida, foi quando eles viraram pra mim e falaram assim “você pode ser quem você quiser, como você quiser. Nós vamos te amar de qualquer jeito. Você é meu irmão”, e me deram um abraço. E foi engraçado, porque eu contei pros dois no mesmo tempo e foi espontâneo dos dois dizer a mesma coisa. Essa é a lembrança mais bonita que eu tenho dos meus irmãos.
[00:08:05]
P/1 – Você pode contar como foi essa conversa, o que você falou, dar mais detalhes?
[00:08:10]
R – (risos) Posso sim, claro. Ah, eu já tava num... inclusive, eu tenho que ressaltar uma história que é muito rápida, mas assim, eu me identifiquei com nove anos, que eu tive a certeza de que eu era uma mulher trans e que eu gostava do sexo oposto, no caso eu gostava dos meninos, e que eu não me identificava com o meu corpo. Isso eu tinha nove anos. Aí eu contei pra minha mãe, nós mantemos um segredo por um período, e eu frequentava um psicólogo porque a minha mãe achava que era conflito da idade, aquela história que os antigos tinham de acreditarem nesses vieses inconscientes ou que a criança quando está entrando na fase da pré-adolescência, saindo da fase infantil pra fase adolescente, ela tem esse conflito de gênero. E por mais jovens que os meus pais eram, porque os meus pais faleceram com cinquenta e seis anos, mas pra época ainda era um assunto que não se era muito comentado, não se era conversado. Você não tinha instruções como você tem hoje, você não tinha as informações que você tem hoje. Então a minha mãe se preocupou com o pouco que ela conhecia, e o que ela acreditava e o que o meu pai pregava, e a preocupação dela era me manter. E lógico né, como a maioria das pessoas achava que era uma insanidade, então eu frequentei um psicólogo durante dois anos. E aí, mesmo com essa frequência, com esses estudos, com essas análises, depois de dois anos a conclusão que o analista chegou é de que realmente eu sempre fui uma pessoa normal e que eu não tinha nada além de uma descoberta que era a identificação do meu gênero. E aí a minha mãe quis e a minha família precisava fazer um trabalho de conscientização e de aceitação. E nós mantivemos esse segredo durante um período e eu comecei a minha transição hormonal, porque eu achei que eu precisava associar o meu corpo mais próximo daquilo com que eu me identificava. E então eu passei a (muito por conta, vamos dizer assim), eu comecei a tomar uns hormônios, eu ia na farmácia, comprava, enfim. Dois anos se passaram, aí eu já tava pra completar treze anos, e eu senti a necessidade de... porque eu não suportava mais a ideia de que eu tava mudando, eu tava me transformando, mas tinha algo por trás daquilo e aí veio essa história. Então eu sentei com os meninos, lembro que na casa que nós morávamos tinha uma varanda e a gente tinha uma... esqueci o nome... um balanço de tecido, que eu esqueci o nome agora, mas era mais ou menos isso, um balanço. E aí eu sentei com eles ali e falei pra eles assim “olha irmãos, eu vou contar uma coisa pra vocês, mas eu vou entender muito bem se... a posição de vocês. Eu só quero que vocês compreendam e tenham certeza de que eu vou continuar amando vocês, mas eu preciso ser quem eu sou, e pra me amar e pra continuar me amando, pra continuar me aceitando, eu preciso contar uma coisa que vai me libertar pra eu chegar aonde eu quero chegar”. E aí eu contei pra eles, falei “olha, eu não me vejo...” e aí eu comecei a contar a história, e aí eu fui direto, falei “eu não me vejo como vocês. Eu nasci um menino, mas eu não sou um menino. Eu não me vejo um menino e eu to me tratando para fisicamente não ser mais um menino, então daqui um tempo eu não vou ser mais irmão de vocês, eu vou ser a irmã de vocês”. E aí a grosso modo tive que falar da maneira como todo mundo entende e falei pra eles “eu só peço uma coisa pra vocês”, foi a última coisa que eu disse, “existem milhares de pessoa como eu lá fora, e se vocês não querem que o mundo não agrida o irmão de vocês, então não agridam o irmão dos outros, não agridam os amigos dos outros, porque eu sou como eles”. E aí foi onde eles me olharam e, a gente já tava chorando, enfim. E foi onde eles falaram “olha, você pode ser quem você é, você pode ser como você é, a gente te ama do mesmo jeito”. Essa é mais ou menos a história.
[00:13:55]
P/1 – Eu queria saber como você se sentia na época e como foi até chegar o seu entendimento de quem você era, tão nova, né, com treze anos.
[00:14:08]
R – Então, é que assim, eu resgatando as minhas memórias, eu me identifico, sempre me identifiquei como uma figura do sexo feminino, eu sempre estive desse lado. Eu lembro de todas as minhas lembranças e sempre foram voltadas pra esse feminismo. Então eu lembro de histórias, por exemplo, simples, eu ia cortar o cabelo, eu não queria cortar o cabelo baixinho, careca, como o meu pai pedia pro cabelereiro fazer, eu não queria o corte militar daquela época, eu queria o cabelo curtinho das meninas e das jovens que eu via nas revistas, que eu via na TV ou que eu via nas ruas. E eu ia na banca de jornal com os meus irmãos comprar uma história em quadrinhos, mas eu queria uma revista de fofocas, eu queria uma revista feminista tipo Marie Claire, Cláudia, as revistas da época. Eu não queria os Marveis, Os incríveis, eu não queria essas revistinhas de luta, de nada. A gente ia jogar um vídeo game, eu sempre queria o personagem feminino da história. Então várias coisas me levavam pro feminismo e eu me identificava. Eu olhava o concurso de miss e às vezes eu queria ser uma delas. Eu passava numa loja e eu via um sapato e eu adorava e eu fazia a minha mãe comprar pra ela usar, porque eu não podia (claro que de vez em quando, quando ela não tava, quando não tinha ninguém em casa, eu usava escondido). Eu tinha a brincadeira da toalha na cabeça, quantas vezes eu não apanhei porque eu fui encontrada com a toalha na cabeça, quantos makes da minha mãe eu não quebrei, sabe. Então sempre fez parte de mim, eu sempre fui feminina. Quando eu chegava da escola, eu sempre ficava com a minha mãe na cozinha, quando eu tava em casa eu ajudava minha mãe a arrumar a casa, fazia as atividades do lar. Eu nunca tava... por exemplo, o meu pai quando chegava do trabalho, eu nunca ia com meu pai jogar bola, por exemplo, com os amigos dele, eu preferia ficar com a minha mãe. Então eu sempre tive... e aí como eu comecei a identificar que alguma coisa tava... que pra mim era normal, mas... porque assim, as pessoas comentam, né, e os comentários começam a vir dentro da sua própria casa. Então o meu pai reclamava muito, que eu era esquisito, que eu falava... que eu gesticulava muito, que eu falava fino demais e que eu só gostava dessas atividades. Eu fazia tricô com sete anos (risos). Então, por mais que eu tivesse um convívio com os meninos e que tivesse alguns momentos, eu gostava de chamar as minhas amigas pra brincar de chá na minha casa e eu achava isso normal, e o meu pai brigava. Então tinham esses rompantes. E aí, quando eu comecei a entender melhor que alguma coisa tava fora do eixo, eu fui buscar saber. E foi aonde eu me identifiquei. E aí a preocupação era porque eu tinha uma educação que na verdade era baseada no medo, porque o meu pai empunha, que era o conhecimento que ele tinha, que pra ele também foi... ele foi criado dessa maneira. Então, pra você ter uma ideia, o meu pai tratava os gays como pederastas. Era assim que o meu pai falava. E meu pai falava que se ele tivesse um filho pederasta em casa ele matava, do mesmo jeito que ele pôs no mundo, ele tirava. Eu tive medo até um certo ponto, até o dia que eu contei (risos) quem eu era e como eu era, mas a minha mãe tinha medo. E ela tentou ser, e ela foi muito protetora por conta disso. Tanto que quando eu descobri quem eu era e como eu era, a primeira coisa que ela fez foi, a primeira atitude que ela teve foi “jamais fala isso com o seu pai”. E a segunda preocupação foi “calma, vamos descobrir se isso é dessa maneira como você vê”. Pro entendimento dela precisava se aprofundar, precisava de um especialista pra dizer... e graças a Deus eu tive sorte de encontrar um analista que virou pra ela e disse “mãe, você ta enganada, o seu filho não tem nada”. Mas eu conheci muitos casos em que foi o contrário, o analista falou pra mãe da minha amiga que, realmente, ela estava com problemas, ela precisava se tratar, etc etc. Então eu posso dizer que fui privilegiada nesse sentido, do analista realmente dizer pra minha mãe que realmente não era nada, era apenas uma identificação de gênero, e que a gente precisava fazer um trabalho em família pra que essa aceitação fosse possível. E foi, limitada... foi, por causa de outras circunstâncias. Mas eu não sofri essa opressão de ser expulsa de casa, porque eu não me permiti, essa que é a verdade.
[00:20:17]
P/1 – Eu queria saber se você tinha referências de mulheres trans nessa época.
[00:20:22]
R – Então, referência de mulheres trans na minha época, diretamente eu não tinha, eu fui ter depois. Eu tinha referência de mulheres, porque assim, quando eu me identifiquei mesmo e que eu assumi essa postura, e aí realmente, eu já tinha treze anos, falei “tá vendo, mãe, eu não tenho problemas, é o mundo que tem problemas de não me aceitar como eu sou, então assim, a partir de hoje eu vou ser essa pessoa que eu quero ser e que eu sou”, e a minha mãe virou pra mim e falou assim “filho, vai ser igual a música do Lulu Santos, o mundo lá fora num instante te devora, e você não pode esquecer de duas vertentes, você é uma mulher negra, e agora você se identifica uma mulher trans. Como que vai ser a vida pra você? Você não vai ter. E eu não quero ver a minha filha vendendo o corpo na praça da Luz por dez reais”. E eu falei pra ela assim “mãe, eu jamais vou vender meu corpo por dez reais, e outra, eu jamais vou trabalhar na praça da Luz”. Mas, por um lado, ela tinha razão. Porque eu estava me preparando pra enfrentar um mundo, mas eu me esqueci que existem vários mundos e que o mais importante deles é o mundo corporativo, é o mundo empresarial. Porque já é difícil pra uma pessoa negra atuar no mercado de trabalho, imagina pra uma mulher negra e trans. Mas eu não tinha me dado conta disso. Eu fui me dar conta disso depois. Tanto que, eu comecei a trabalhar com quinze anos, eu saí de casa com os treze, justamente por conta disso. Na verdade saí depois com uma discussão com o meu pai, e aí eu saí de casa, porque eu preferi sair do que ele pedir pra que eu saísse. E aí com quinze anos eu começo a trabalhar e a minha transição hormonal continuou, de uma forma um pouco errada, porque era clandestina, porque não eram todas as farmácias que vendiam os hormônios, eu não tinha o acompanhamento porque não tinha um endocrinologista ainda na época, tanto que eu ganhei sérias complicações com hormônios, mas era o que eu tinha no momento pra chegar próximo, ou para ter o começo do que eu queria ser. Mas, desculpa, assim... era o início e eu não tinha uma referência. Quando eu comecei a frequentar os guetos LGBTs, que foi ali na região do Centro, próximo do Largo do Arouche, ali na rua Vieira de Carvalho, aí eu fui ter algumas referências trans, mas a maioria delas... porque depois eu fui entender algumas histórias. Mas aquele momento pra mim eram pessoas que eu também julgava agressivas, que eu também julgava que eram vulgares, e eu não queria ser como elas, mas eram as referências que eu tinha. Então eu tentava absorver o melhor delas pra não chegar muito próximo do que elas eram. Tem duas figuras ilustres que muitas pessoas conhecem, uma delas está até hoje atuante, é bem famosa inclusive, que é a Silvetty Montilla, que é uma drag queen, ela não é nem uma transexual, é uma grag, mas foi uma referência pra mim porque foi através de alguns shows da Silvetty, foi através de ter conhecido a Silvetty, que eu fui me identificando mais com esse ser feminino e se aproximando dessas histórias, pra hoje ter a minha. E a outra foi uma cafetina que me ajudou muito, me ensinou muitas coisas. A única aproximação que eu tive com ela foi dessa vivência de estar junto, de participar, e que me ensinou muitas coisas e até hoje percebo, e acho que sou um pouco militante, e se eu tenho esse lado militante devo muito a ela. E hoje eu percebo que a história de vida dela e a história militância dela, se não fosse pela história dela e de outras que vieram antes dela, eu talvez não estivesse aqui e muitas não estariam, que era a Cris Negão, que muitas conheceram ali no centro da cidade, que era uma travesti, que todo mundo identificava como uma criatura perigosa, agressiva, mas comigo ela era maravilhosa. Inclusive, ela me protegeu muito no centro da cidade. Eu vivi muito na região do centro, aprendi muito por causa da Cris Negrão. Então, a partir dos meus quinze anos eu começo a ter essa referência. A referência mais próxima de trans que eu tenho foi a Cris Negrão e a Andreia de Maio, porque através das casas da Andreia de Maio eu comecei a conviver melhor com o universo trans, mas foi a Cris Negrão que me ensinou muita coisa. Inclusive... eu acho até maravilhoso falar da Cris porque a Cris teve, e hoje eu entendo perfeitamente, ela sempre teve essa postura de brava, de perigosa, de durona, mas foi através desse comportamento que abriu portas e margens para muitas outras, inclusive pra mim. Como eu sempre tive essa posição dentro de casa, por meu pai ser essa pessoa agressiva, explosiva, eu sempre desejei que por pior que a situação me fosse... eu jamais seria agressiva. Tanto que até hoje eu não sei brigar, não sei bater, eu sou a primeira a correr, eu tiro o salto e corro. E se alguém levanta a mão pra me bater, eu ainda dou a outra face pra bater, quase igual Jesus, é mais ou menos isso. E a Cris enfatizou tudo isso que eu sempre preguei pra mim, porque, muitas vezes ela brigava por mim, inclusive, porque eu chegava e se as outras meninas queriam brigar ou arrumar confusão comigo, com a Cris Negão, ninguém arrumava confusão comigo, ela não permitia. E se ela não estivesse, ela já deixava o recado “não mexe com ela”, ela até me chamava de ‘minha filha’, pra você ter uma ideia.
[00:27:45]
P/1 – Ali, mais nova, na adolescência, eu queria saber como é que foi a sua adolescência junto com o tratamento hormonal, as modificações que você sentia. Como era esse momento?
[00:27:59]
R – Olha... era engraçado, porque assim. Você tem algumas mudanças, principalmente quando você está no começo da adolescência, então, por exemplo, os pelos, as feições, você começa a ficar com algumas feições, alguns traços mais afeminados, os hormônios te proporcionam isso. Um pouco do corpo também sofrem essas mudanças. Mas aí, tinha alguns recursos, por mais que você tenha essas feições, essas mudanças, você ainda consegue até um determinado momento, você consegue escondê-las, porque é isso, por mais que você ganhe essas feições, você precisa aperfeiçoalizá-las, e dar mais forma e tal. E na adolescência você... é uma fase muito delicada porque quando você se identifica e aí você vai pro mundo, é justamente aquilo que a minha mãe falava e a música do Lulu Santos pregava, o mundo te devora. Em São Paulo é assim, né. São Paulo é maravilhoso, porque acolhe todo mundo, mas o mundo, e algumas coisas... você só tem uma oportunidade na vida e São Paulo é muito isso. Se você, você tem escolhas, mas dependendo da escolha que você fizer, você vai sofrer a vida inteira. E aí era justamente isso. Por uma série de questões, inclusive a falta de instrução e informação das pessoas, você acaba descobrindo que por mais que você saiba quem você é e como você é, você sabia que naquele momento praquela época, você não podia chegar já batendo o pé, porque era agressivo pras pessoas, você ia acabar sofrendo muito mais, porque você já sofria, porque infelizmente o mundo, até hoje é assim, embora um pouco menor, mas sempre foi assim, você já sofria o preconceito por causa da questão racial, aí as pessoas já associavam, juntavam tudo, você tem a pele de cor escura, porque você é delicado, as pessoas até se preocupavam porque eu fazia... eu usava cores no caderno. Então, eu tentei até onde eu pude. Porque tem um momento também em que você fala assim “chega cara, eu preciso fazer alguma coisa. Se ninguém faz nada por mim, eu tenho que fazer”. Mas aí eu já tava na fase da adolescência pra fase adulta, já. Mas na adolescência tem esse conflito, porque os amiguinhos... é engraçado que assim, pra você ver como que eu sou, como era pra ser, né. Você é sempre bem aceito no universo feminino. Claro que tem uma ou duas que vai virar o nariz, torcer, mas a maioria te acolhe. No universo masculino, já é diferente. É os meninos que começam a te xingar, te ofender, é os meninos que são os primeiros a ter preconceitos, e são eles que motivam os outros. É o professor que... esse posicionamento vendo a cultura patriarcal, então assim, é o professor que sempre incentiva os outros alunos a te tratarem de uma forma errada. A professora, por mais repulsa que ela tenha, ela tem um cuidado. Ela tem pelo menos esse jogo de... hoje eu nem me lembro a palavra correta pra conseguir te colocar, mas ela tem essa preocupação. Ela pode até dizer que você não é bem-vinda, mas ela tem uma maneira mais sutil de expor esse ponto de vista dela. E a figura do homem, do professor em si, ele já não, ele já impõe daquela forma que você não é bem-vindo, e ele incentiva os outros alunos a te afirmar que você não é bem-vindo naquele lugar. E isso na adolescência é muito marcante porque, no meu caso, eu já era uma pessoa sozinha, porque eu só via a minha mãe nos finais de semana e uma vez por semana que ela ia me visitar. Então eu estudava e depois de um tempo eu comecei a trabalhar e aí não tinha contato com outras pessoas, e aí nos finais de semana minhas referências eram essas quando eu podia ir pro Centro, enfim. Então a única coisa que eu tinha era os amigos, e eu não queria perde-los, era os amiguinhos da escola, e então eu precisava, eu tive que aprender esse joguinho do esconder, do esconder não, do omitir alguns fatos pra sobreviver, pra viver, e então eu até que não sofri muito na adolescência por conta da minha transexualidade, por essa omissão. Eu tinha duas amigas, que até hoje são minhas amigas, por coincidência, que sempre souberam. Mas, na verdade duas amigas não, eu tinha uma amiga e um amigo. Por coincidência eu já gostava desse rapaz e, lógico, a gente teve um romance, enfim, nesse momento eu tive essa abertura de dizer pra ele que eu não me identificava, e ele super me apoiou. E eu tinha uma amiga, tenho uma amiga, que desde os meus seis anos eu a conheço e aí eu até fiz eles namorarem, e ela sempre soube, no conhecimento dela, então quando eu consegui abertamente conversar com ela, tudo bem também e até hoje conversamos normal. Hoje todo mundo já, principalmente o pessoal daquela época, enfim, todo mundo, já tem uma aceitação melhor, porque tem também esclarecimento e conhecimento, e porque também as pessoas que ficaram, gostaram de mim como pessoa, independente do que o meu físico apresenta, e é isso que pra mim importa. Então teve um sentimento, teve um carinho, teve a intenção, que a gente conservou.
[00:35:47]
P/1 – Sobre a transição hormonal, eu queria saber se traz risco à saúde e se você teve algum efeito colateral.
[00:35:58]
R – (risos) Sim, claro. Hoje você até tem um leve acompanhamento, porque existe uma unidade de saúde, que é ali na região da Santa Cecília, que é onde você tem o acompanhamento de um endócrino. É uma pena que só exista essa unidade, existe um número muito grande de transexuais, ainda mais a nova geração que já nasce com... isso é bom, mas não conseguem ter esse acompanhamento porque o número de pessoas é muito grande e o número de profissionais é muito pequeno. Quando eu comecei a minha transição hormonal, eu não tinha nenhum... o que eu tinha era assim, tinha umas pessoas que falavam assim “toma esse hormônio, toma aquele, esse dá esse efeito, esse não dá”. Todos dão efeitos colaterais que não são legais. Eu ganhei osteoporose por ter tomado os hormônios errados. Eu já tinha anemia, e aí eu fiquei com... eu já tinha anemia falciforme devido a outras questões. Eu fiquei com osteoporose... enfim, porque eu sou cheia de doencinhas crônicas, mas enfim, agora eu não lembro nem... desculpe, agora eu não vou lembrar nome, enfim, gastrite, que eu não ia lembrar, mas tudo bem. Porque o hormônio tem a troca da testosterona pela progesterona, tudo bem, mas existem outros conflitos internos com alguns órgãos e a gente não tem esse conhecimento, então em excesso, causam essas reações, e causam essas consequências. E tem casos até mais graves. Eu parei de tomar os... eu comecei com onze anos e parei com dezessete, por conta dessas doenças que eu ganhei devido ao uso indevido de hormônios. Eu tive enfraquecimento nos ossos, que é uma doença muito mais comum em mulheres, porque quer queira, quer não, a minha estrutura física ainda é masculina. Os meus órgãos internos são masculinos, a minha carga óssea é masculina, isso a gente não muda, essa estética. Mas devido ao uso indevido de hormônios, eu ganhei essas consequências. Eu tive gastrite, eu tenho gastrite hoje, devido também ao uso indevido de hormônios. Eu tomei vários hormônios né. Ciclo vinte e um, a Cestagenona, eu posso te dizer vários. Estes eram os que eu mais tomava, mas eu tomei muitos outros. E tive sérias complicações e eu precisei interromper a minha reposição hormonal por conta dessas misturas, porque você precisa fazer a troca, quer dizer, não é que você precisa mas, enfim, quando você identifica que é essa a necessidade, você precisa saber também das consequências que geram e até onde você pode ir com elas. Mesmo porque, a reposição hormonal é uma coisa contínua, é igual diabetes, que você não pode deixar de tomar, seja insulina, e aí você, são comprimidos constantes, e são diários, e você não pode deixar de sobrepor, de toma-los, enfim. E até os anos 2000, isso era muito desregrado, você não tinha informação, você não tinha acessibilidade. Os clínicos responsáveis não queriam ser responsáveis, porque sabiam das consequências ou por justamente, ou pela falta de informação, ou pelo conhecimento que tinham de achar que não era legal, ou não era possível. Cada um tem seu conceito em relação a esse tipo de tratamento. Mas dão consequências desagradáveis, infelizmente.
[00:40:54]
P/1 – Quais cuidados você tinha com a sua saúde mental?
[00:40:59]
R – Então, os cuidados que eu tinha com a minha saúde mental, que eu acho que é o que eu tenho até hoje, primeiro é de me conscientizar de que sou essa pessoa, mas que tudo bem também, não sou... sou uma obra da natureza sim. E que milhares de pessoas não vão gostar de mim. Mas quem precisa gostar de mim sou eu mesma. Então eu tinha que tratar isso diariamente? Preciso. Por uma série de questões, que pra mim, porque assim, por mais bonita que você seja, por mais feminina que você seja ou não ‘seje’, você não é perfeita. Sempre vai ter alguém, ou sempre vai ter alguma coisa, enfim, as pessoas sempre vão achar ou vão procurar um motivo pra ofender você, pra xingar você, pra humilhar você. E eu não esqueço de quem eu sou, e eu não esqueço como eu sou, e isso tem que estar bem esclarecido pra mim, porque eu sei que lá fora eu vou ter que matar dez leões por dia, e vai ser todos os dias, como é, e tudo bem pra mim também. Então, eu preciso manter o máximo de sanidade que eu puder, que não é fácil pra ninguém? Não é fácil pra ninguém. Já começa por aí. Nem sempre você vai ter um suporte. Hoje eu tenho. Tenho amigos que me apoiam. Porque a gente tem uns momentos de bad trip e tal, e eu tenho amigos que estão lá pra falar assim “não, Maya, por favor”, pra me dar um up, pra me levantar. Sabe... às vezes do nada acontece. Eu sempre, olha... nos meus piores momentos eu sempre encontro uma pessoa, pra você ver como o feminismo tá na minha vida, não porque eu quero, mas eu sempre encontro uma pessoa, e é sempre uma mulher, geralmente uma senhora, que me para do nada e aí ela fala pra mim “olha...”. Mesmo as evangélicas, e tudo bem pra mim também. O que eu acho mais legal é assim... o que eu acho fantástico, é o ser humano, algumas pessoas ainda têm esse carinho, porque isso é como eu identifico, tem esse carinho, essa preocupação, de chamar o próximo que ela nunca viu, que ela não conhece, e aí ela tem uma palavra de carinho pra dar praquele próximo. Por mais que as vezes não é aquilo que eu quero ouvir, mas depois eu fico filtrando, e às vezes, e eu chego à conclusão que, assim, nem sempre aquilo que a gente quer ouvir é o que a gente tem que ouvir. E o melhor de tudo é que sempre as pessoas têm uma palavra de carinho, uma palavra de conforto pra mim, sabe. Desde que... tudo bem pra mim também, desde que ela me olhe e fale “olha, Deus te ama, Deus tem um propósito na sua vida”. É legal lembrar que isso é verdade, porque isso é uma verdade. Às vezes uma criança olha pra mim na rua e fala “nossa, como você é linda”. E tem dias que eu to me sentindo a pior do rolê, sabe... tem, todo dia. Você é xingada, o ônibus não para pra você, o táxi quando vê que é você cancela a corrida... tem uma série de situações que acontecem. Quando você chega no seu final de semana, se você juntar o que te aconteceu de legal e o que te aconteceu de não tão bom assim, às vezes você quer apertar a tecla do F, mas a gente procura filtra tudo isso, pruma coisa positiva. Então eu procuro, eu tenho que também ser esse alicerce pra mim mesma. Então eu vou buscar num livro, vou buscar num filme, sei lá, numa comida que eu vou fazer. Mas o melhor de tudo é buscar dentro de mim, sabe, é buscar dentro das coisas que eu gosto, e eu me gosto. E eu preciso levar isso pro mundo e levar isso pra mim também.
[00:45:52]
P/1 – E o que você gostava de fazer na adolescência.
[00:46:00]
R – Ah, eu gostava de muitas coisas. Eu gostava de ouvir música, eu gostava de ouvir, ouvir não, eu gostava de ver o concurso de Miss Brasil, e Miss Universo, Miss Mundo. Mas o que eu mais gostava mesmo, era de ver os desfiles da escola de samba, só pra ver as rainhas de carnaval e, modéstia à parte, é um dos meus sonhos. Hoje sou passista de uma escola de samba, mas o meu sonho é ser rainha de carnaval, um dos, né. E é o que eu mais gostava, não via a hora. Nossa, quando chegava domingo, que era um dos dias que eu mais tinha problemas, inclusive, porque eu nunca sambei, por exemplo, como um passista homem. E eu lembro de histórias, um momento na verdade, que a minha mãe me escondia no banheiro pra eu sambar, porque o meu pai me batia, lógico, porque tava lá no meio dos amigos dele, enfim, e um dos filhos sambando igual uma mulher, não, não era legal, principalmente pra ele. Então sempre acabava nesse desfecho. Então pra evitar isso, o que que a minha mãe fazia? A minha mãe me levava pra dentro do banheiro, porque quando começavam os ensaios e tal, a bateria tava tocando, tava todo mundo, e os banheiros ficavam vazios. Então, era engraçado que assim... a preocupação era tanta que a gente ia pro banheiro, ela me colocava dentro de um dos box, e eu sambava. Em quanto o samba não acabava, ela falava “pode ficar aí filho, fica à vontade, samba, dança, faz o que você quiser”. Ela não via, de certa forma, e se entrasse alguém no banheiro também não via, mas era o meu momento, era a minha diversão assim, na verdade. E eu sempre amei samba, assim, tal. E era uma das coisas que eu gostava de fazer.
[00:48:01]
P/1 – Você mencionou que começou a trabalhar nova. Como foi o seu primeiro emprego?
[00:48:06]
R – Ai, o meu primeiro emprego foi... não foi dos melhores (risos), como todo mundo. Eu comecei, eu era office boy, eu trabalhava pra uma editora que era aqui no Ipiranga. Mas eu tinha um chefe bem bacana, que era o Seu Carlos, que inclusive ele, como eu era de menor, ele foi muito bacana, assim, então ele me contratou, em regime CLT, a minha mãe teve que me emancipar, pra ele me registrar tudo direitinho. É... eu fiquei dois anos nessa empresa e logo depois eu fui trabalhar numa loja do shopping. A primeira loja foi a Fatoo, no shopping Ibirapuera. E aí, lógico, aí você começa... eu mudei de horário, tal,aí você começa a descobrir um outro universo. Aí você começa a descobrir a noite, começa a descobrir uma série de coisas, as periferias e tal. E a minha identificação também vem junto a isso, né. Aí eu mudei dessa loja, que era um pouco mais street wear, e aí pra uma loja mais fashion, assim e tal, aonde eu tinha um gerente, que era o Sérgio, que era essa pessoa, hoje ele é não binário, mas na época ele era super moderno e tal e aí tinha a preocupação, então é muito engraçado... mas tudo bem. Então as pessoas identificavam que quando você era muito moderno, era um desses fashionistas, era a onda da era clubber, então era clubber. Mas hoje eu tenho uma outra visão do que é ser clubber. E eu era, eu sempre fui esse ser andrógino. Não, antes eu era mais, hoje eu sou feminina. Eu era muito andrógena. Então eu usava quilti, eu podia colocar um cabelo, eu sempre tinha um acessório feminino, podia usar uma make, era legal pra ir num clube, era legal pra sair na noite, às vezes era até legal pra trabalhar na loja que eu trabalhava. Só não era legal ir na escola, mas tudo bem. Então teve esses rompantes, né. Mas o trabalho sempre teve presente. E era legal que assim, ou não tão legal, porque assim. Enquanto eu tinha essa dupla vivência, vamos dizer assim, porque eu podia ser quem eu queria ser quando eu queria ser, pra sociedade, pra mim eu era uma pessoa só. Pro mercado formal de trabalho, e até hoje é assim, se bem que hoje você vê pessoas trans trabalhando em multinacionais, em empresas grandes, mas a gente tem uma séria questão aí, que eu posso comentar depois. Mas naquela época, na minha, era assim, você não podia ser uma pessoa afeminada demais, senão você não tinha trabalho. E você... e tinha a questão também racial, então, é... pra eu me manter, durante um tempo, e sempre foi assim. Então, assim, até os meus dezessete anos, que foi onde eu fiz a minha primeira cirurgia, que foi onde eu pus os meus próteses, enfim, eu tinha essa dupla vivência, de dia eu era uma pessoa, de noite... de dia eu era garoto, e de noite eu era maya schineider e eu tive que manter isso por muito tempo. E aí depois, quando você assume a sua identidade de gênero e assume o seu físico de identidade, essas questões pesam, principalmente as profissionais, porque aí você se vê, que aí você vê que realmente, você não tem uma formação, você não tem uma estrutura patriarcal, você também não uma estrutura financeira, porque a gente não nasce rica, enfim, algumas pessoas sim, mas a maioria não, no meu caso não. Então ir pro mercado de trabalho é difícil, foi difícil e é até hoje. Então aí você entende porque muitas procuram o mercado informal. Por essa não aceitação e por falta de opção, muitas por falta de instrução também. Hoje você consegue ir pro mercado de trabalho, mas você sabe que ou você não vai passar da vaga temporária, ou você vai ser operadora de telemarketing a vida inteira e é isso, ou você faz o melhor, como muitas fazem, mas aí depende do histórico, da vivência, e do sentimento e do posicionamento de cada uma. Mas a maioria, principalmente essas que hoje estão em cargos de liderança, você vê que tem empregos de destaque, mas se você for ver o histórico delas, elas ingressaram e se preocuparam em manter uma carreira e uma estabilidade profissional e depois se preocuparam com a sua identidade física. Eu tenho vários exemplos, o meu maior exemplo... não, não é o maior... mas o exemplo mais próximo, que é a minha amiga, é Melissa Cassimiro, que hoje trabalha na empresa Assentri, ela é advogada da Assentri há mais de dez anos. E ela fez a transição dela há dois anos. Então ela começou a transição dela tem dois anos, né. Mas ela já tinha uma outra vivência, um outro conhecimento, então entrou essa questão também de se preocupar com isso, que é importante também. Você precisa se preocupar com essa questão da sua formação profissional, da sua formação acadêmica. Que foram coisas que na época eu não tive. Eu não tive essa preocupação. Eu me baseei muito tempo da minha vida na questão pessoa. Eu fui até um pouco egoísta. Fui egoísta e fui má comigo mesma, porque eu me preocupei, pra você ver aonde a falta de instrução nos leva, eu tinha, e o pouco de conhecimento que eu tinha, de instrução que eu tive pra época, e eu não me atentei aos outros detalhes que também são importantes na nossa vida, que são justamente essa questão. Não sei se eu tinha, eu acredito, me conhecendo como sou, que eu não teria feito diferente. Mas eu tinha me preparado melhor, porque os choques de realidade, é forte. Quando você se depara com o mercado formal de trabalho, e aí você não é inclusa, e você não é aceita, e você não é bem-vinda. É torturante, é maçante, e te restam... E o pior a saber, porque assim, existem várias alternativas, se eu fosse tratada como uma pessoa normal, como sou, não é assim que me veem. Então, pras mulheres trans e homens trans... assim... quando a gente se depara com essa situação, as alternativas são poucas também. E aí que você entende porque muitas vão pro mercado informal. É claro que existem várias questões, de ter chegado naquele tipo de profissionalização, mas oitenta por cento das histórias é porque não tiveram oportunidades. E é isso. Você precisa sobreviver, você precisa se manter. E aí, eu pensei “não vou roubar, não vou matar não vou nada, enfim”, mas assim, também não vou entrar no mercado de trabalho. Teve momentos da minha vida que eu fui, não vou dizer que não fui pra esse mercado informal, fui também, mas eu não fui aceita (risos). Isso é uma outra história também, mas tive que partir por esse mercado que também por um período consegui me manter, que eu consegui fazer algumas coisas, que me deu base para muitos outros posicionamentos, outras histórias. Porque tudo é a vivência na vida da gente, que também me deu a certeza de falar assim “não, esse daí é uma profissão que eu não quero pra mim”. Mas eu só pude dizer com ênfase e certeza depois que eu estive. Mas também porque caí nesse universo, caí nesse lugar de “não tenho saída, nem tenho alternativa”. Porque se você não tem pai, se você não tem mãe, não tem padrinhos mágicos, não tem renda, você vai tirar dinheiro da onde? Não é uma semente que planta no vaso. Você precisa trabalhar, você precisa se manter, precisa comer. As pessoas não tão preocupadas... você tem amigos, mas que também têm sua vida, também têm alimentação. Família, não sei... Família é assim, quando você tem pai e mãe, você tem família. Tudo que vem depois, os irmãos, os tios e as tias, que são os agregados, são segmentados. E aí assim, pelo menos a minha é assim, e a de muitas meninas que eu conheço também hoje é, se você tem algo a acrescentar que eles acreditem que você acrescente, você é bem-vinda, quando você não tem, você não é. Essa é a minha maior decepção familiar. Porque, por mais que eu tive lá na adolescência aquela fase linda com os meus irmãos, logo em seguida, depois, veio a fase que não é legal, que é a que se mantém até hoje, que é a do distanciamento. Porque é aquilo assim, você é aceita, né, politicamente falando, você é aceita mas não é inclusa, e isso já acontece na família. A família te aceita desde que você não apareça, desde que você não veja, desde que você nem use o nome da família, é isso também. Eu não tenho mais contato com os meus irmãos hoje. Eu ligo, eu mando recado. Eu vejo meu irmão, eu vejo os meus irmãos. Se eu não for ver, se eu não for falar, se eu não me aproximar, eu sou apenas mais uma figuração. E é isso. Eu não fui no casamento, eu não to no álbum da família, eu não vi os meus sobrinhos nascerem, eu não to na última foto da ceia do natal. Enfim. Essa é a família que Deus me deu. Podia ser pior, tem histórias piores. Porque a família é o alicerce, a família é a primeira a te rejeitar. E pode ter certeza, não tem histórias em que a família... na vida de uma trans, a família sempre vai ser a primeira. É bem aquela história, a verdade é essa, a mãe é a única pessoa, ela é a primeira a te dar um tapa na cara, mas ela jamais vai te abandonar. Claro que tem exceções, mas geralmente não. 99,9% das vezes, a mãe sempre tá do lado dos filhos, ele pode ser o pior do universo, pra ela é filho dela e ela não abandona. Ela xinga, ela bate, mas ela sempre vai estar lá. Quando você perde a sua mãe você perde metade da sua referência, porque você tem a sua pessoal, e aí você perde a sua família. Mas você ganha outras. Você perde as de sangue, mas você ganha as de coração. Você ganha pessoas que você encontra na sua vida. Porque o universo te proporciona isso, você encontra pessoas na sua vida, não que eles vão fazer esse papel, porque na vida de ninguém, ninguém é substituível, mas supre. E todo carinho é muito bem-vindo, toda forma de amor é muito bem-vinda. Você encontra na vida pessoas que vão querer acabar você, mas você encontra também na sua vida pessoas que vão amar você, que vão acolher você, vão abraçar você. E eu sou muito privilegiada de ter essas pessoas, porque eu as tenho. Então hoje eu digo que eu tenho uma família, que é a minha família da minha religião, pra você ter uma ideia a minha madrinha de santo me chama de filha, ela me chama de filhota na verdade. Inclusive hoje de manhã antes de vir pra cá eu estava falando com ela e ela falou uma coisa muito legal “você sabe que a mamãe te ama”, e eu disse “poxa, que legal, eu também te amo muito”. Essa palavra que é muito difícil e que as pessoas não têm o costume de usar com as outras é muito importante, e ela tem um peso, e ela tem muita importância na vida das pessoas. Quantas pessoas ouvem que são amadas? Muito poucas. Olha o momento que a gente ta passando, a vida das pessoas como se transformou. E aí você se depara com um bom dia de uma pessoa que tem um carinho, que não te vê há muito tempo, e você é surpreendido por essa frase. E faz sentido. Muda tudo. Você pode passar o pior dia do universo, nada vai te derrubar, sabe por que? Porque alguém lá no começo do seu dia lembrou a você que você é amada. Eu sinto falta, eu procuro os meus irmãos, eu gosto de conversar com eles, eu gosto de saber como eles estão, mas eu sou tratada como se eu fosse a amiga, a vizinha que bate na sua porta e pede uma xícara de açúcar e não é bem-vinda. Os tios, tias, primos e primas idem, igual. Mas é legal, quando você faz um evento e posta nas redes sociais ou quando você fez uma viagem, quando é positivo, aí você é lembrada, aí a família lembra que você existe, que você é legal, que você é a sobrinha, que você é a irmã, que você é isso ou aquilo. Quando você não ta no top 5, a família meu amor... Aí entram os amigos, aí entram os agregados. Porque esses sim, nos seus piores momentos, quando você saí de casa todos os dias procurando trabalho e todas as portas se fecham, quando falta alguma coisa e você não tem a quem pedir socorro. Quando você simplesmente quer um abraço, aí entram os amigos, entra essa família que o universo te proporciona. Eu venho de matrizes africanas, falando um pouco da minha religiosidade, porque eu também gosto de contar esse ponto, mas não só pela aceitação, eu venho por essa união. Eu cresci religiosamente dentro de um conceito católico que eu nunca acreditei, então eu busquei também o máximo de identificação da minha religiosidade, não só com o que eu acreditava, mas também com o que os meus ancestrais traziam de informações. E aí eu me deparei com essa religião das matrizes africanas enfim, e me aprofundei nos estudos, no conhecimento, e existe uma coisa que é fundamental pra mim e que existe dentro desse matriarcado que é a união. Independente de como eles desenvolvem e de como é tratado essa comunidade, existe uma coisa que eles pregam muito forte que é de dentro da religiosidade que é família. Lá todo mundo é tratado como irmãos. Por mais que existam (por que a família é assim, né)... sempre vai existir uma briguinha, alguém não vai se entender com alguém, e tudo bem também, mas o importante é que no final todos têm que estar bem, vamos fazer as pazes, vamos se amar, vamos se respeitar. E hoje eu tenho essa família que é minha, que é a família de santo, mas que é a minha família. Eu tenho duas irmãs, que nem são minhas irmãs de santo, e a gente se trata como irmãos e irmãs, eu tenho duas amigas que eu amo muito, que eu adoro, uma é a Renata Prado, que é minha irmãzona assim, que é filha de santo da minha mãe, que me liga, sabe, pra perguntar se eu to bem, que me escreve, que fala que sente saudades. Ontem mesmo ligou e falou “poxa irmã, que saudades. Queria tanto te dar um abraço mas agora a gente não pode, mas sinta-se abraçada, olha, não esqueci de você”. E a outra por coincidência também de chama Melissa, enfim, e ela me escreve todos os dias não, mas escreve sempre, se preocupa. Eu tenho um amigo que é um fofo, que eu até brinquei, ele é um anjo, que é o Rafael Pagoto. O Rafa é mega incrível na minha vida, é fundamental, porque o Rafa é realmente o meu alicerce. Eu falo que ele é meu anjo porque parece que ele sente quando eu não to legal, e ele dá um jeito de me procurar. Eu posso ficar sem celular, eu posso ficar sem rede social, ele me acha. E é sempre essa pessoa, o Rafa é o amigo que não me julga, eu posso contar tudo pro Rafael, ele sempre vai me dar uma palavra de conforto, de carinho, ele sempre vai olhar o lado positivo da situação, ele nunca vai me questionar, e pra ele eu nunca vou to errada, por mais errada que eu esteja. Ele sempre tenta ver a situação de uma forma, porque ele entende e ele sabe que o universo já me massacra, já me condena, já me castiga, então que eu não preciso mais disso. O Rafa compreende que as coisas são difíceis e que é muito difícil pra mim e não é por vitimismo meu, não é por mimimi, é por uma série de outras questões que infelizmente me afetam, e tudo bem, mas a gente tem que desconstruir isso. E que o caminho não é me julgar, me condenar, e nem achar que eu sou mais uma coitadinha no mundo, porque não sou.
[01:10:23]
P/1 – Eu queria saber quando você saiu da casa dos seus pais.
[01:10:28]
R – Então, eu saí da casa dos meus pais com treze anos, justamente por aquele conceito de que, eu achava que eu tava me enchendo, porque eu tava escondendo um fato que era importante pra mim e pra eles, e ao mesmo tempo esses conflitos, de que por um lado tinha o posicionamento machista do meu pai, do outro lado tinha a defesa da minha mãe, e às vezes os dois se guerreavam, brigavam. E eu identifico que tudo aquilo era por minha causa, então eu saio porque eu, e realmente foi, que eu via que era assim, eles eram felizes quando eu não estava, e porque quando eu tava começavam as brigas, a discussão, às vezes as agressões. Como eu queria muito ver a minha mãe feliz, e a minha família também, eu precisava tomar uma atitude. Então eu saio de casa. E é lógico que a minha mãe faz aquela cena, chora, esperneia, bate no meu pai, diz que a culpa dele, mas eu saio mesmo assim. Eu fui emancipada pelos meus pais e eu tenho um compromisso com eles de todo final de semana estar com eles. Mas eu começo a namorar, óbvio, claro, que era aquele garoto que eu disse, que pra ajudar ainda mais, era japonês, porque meu pai também era racista, não vou dizer que não. Meu pai não gostava de branco, meu pai não gostava de japonês. Pra você ter uma ideia, o meu pai era tão xucro no pensamento dele, que ele era taxista, mas no táxi dele, se tivesse um cliente oriental ele não parava. E ele ainda reclamava, enfim... E como eu sempre fui tudo aquilo que o meu pai foi contra... Chegou um momento que eu realmente não consigo mais manter o segredo, e aí era um domingo, uma festa, e eu cheguei no auge, tava a família lá toda reunida, e o meu pai fez uma brincadeira que eu não gostei, e eu achei muito ofensiva, e aí eu disse alto e em bom tom na frente de todo mundo, quem eu era, como eu era e que o meu namorado era japonês. O meu pai me bateu, foi uma baixaria, acabou com a festa, a minha mãe desmaiou... Depois daí, todo mundo já sabia mesmo, jogou tudo no ventilador, aí enfim. Por consequências da vida, com 17 anos, a minha mãe falece, a minha mãe tinha a diabetes, como eu também tenho, e aí a minha mãe teve uma infecção nos pulmões e teve que fazer uma cirurgia de última hora, e aí no meio da cirurgia ela teve insuficiência respiratória e ela veio a falecer. Lógico que eu enlouqueci né, mas enlouqueci mais depois. Na missa de sétimo dia eu fui, eu já não morava mais lá na casa da minha família, mas aí o meu pai teve o ímpeto de me pedir, na frente de todo mundo, ao final da missa, que eu não procurasse mais, que eu não fosse mais na casa dele, falou o textinho dele lá, mas deixou bem claro que a partir daquele momento eu não era mais filha dele. E eu falei pra ele assim “tudo bem, é um pedido seu, vou te respeitar, porque eu te respeito. Mas se um dia você quiser me procurar, me ligar e conversar, eu vou estar aí”. E aí eu fui pra casa, aí eu me desesperei, aí eu realmente caí em mim que o mundo caiu, como diz a Nara Leão. Eu fiquei um período em casa, aí eu perdi trabalho, parei de trabalhar, parei de estudar, eu fiquei quase uns noventa dias em casa, eu não saía na rua nem pra comprar cigarro, eu parecia um bicho das cavernas. E foi a última vez que um dos irmãos veio falar comigo, minto, foi a penúltima vez, a última foi quando eu voltei. Aí eles foram lá em casa, ficaram lá, fizeram todo um trabalho de psicologia com a pessoa, enfim, aí eu resolvo sair de casa e aí eu vendi tudo que eu tinha, e eu falei pra eles assim “eu vou, mas quando eu voltar eu nunca mais vou ser essa pessoa que eu sou hoje, fisicamente principalmente”. E aí eu vou pra Portugal, fico quatro meses em Portugal, e quando eu volto eu já volto determinada. Aí eu pego, vou no Doutor Paulino, que é uma clínica aqui em São Paulo, e faço a minha primeira cirurgia, que é a correção mamária, quando eu ponho as minhas próteses. E aí, quando eu me apresento para os meus irmãos, eu já era essa mulher que eu sou hoje, e aí foi um choque pra todo mundo. Porque a família sempre acha que a gente está com algum problema, é temporário, é conflito da adolescência, que é uma fase, que vai passar e ninguém entende, ou na verdade hoje já até entende, mas as pessoas procuram não entender a realidade, que é uma questão de identificação. E não é porque eu quero, porque se eu quisesse ia ter nascido uma mulher de verdade, não ia ter nascido um menino pra depois nascer uma mulher. Eu já tinha facilitado o meu caminho, por uma série de questões. E aí tem essa transição, eu já tava com esses problemas hormonais e etc, e aí depois que o meu alicerce de vida terrestre realmente vai prum outro plano e eu me vejo sem saída, eu fui realmente buscar aquilo que eu realmente desejava, que era a minha identificação física, e aí como toda trans, como toda mulher, achava que só ter um cabelo não era o suficiente, eu precisava de algo mais, e eu só não fui muito mais além por medo, e por questões financeiras, mas o mais importante era essa questão, e aí eu fui atrás. E eu tive muito privilégio da maioria das meninas, de ter ido em uma clínica, de ter sido muito legal, tudo direitinho, e a minha prótese era uma prótese definitiva, porque a base dela é de algas, não é uma base temporária, porque a maioria das próteses duram alguns anos e depois você tem que trocar, a minha não, não tem essa necessidade (inclusive tem até certificado que eu emoldurei na parede, parece um troféu). Mas eu busquei isso e então, eu sempre me preocupando com essa estética, com esse físico. E eu não me arrependo. Por mais que seja difícil, eu me olho todos os dias no espelho, me vejo, e a única coisa que eu penso é que é idiotice da outra pessoa de não me aceitar, ou de deixar de me contratar, ou deixar de fazer um trabalho, desde que você tenha qualificação, desde que você tenha instrução, não tem nada que te impeça. Mas eu tive essa preocupação de construir essa identidade física, e hoje eu to batalhando (até os dias atuais) pra essa construção do profissional.
[01:19:22]
P/1 – Eu queria saber mais um pouquinho desse tempo em Portugal. Me conta mais um pouquinho?
[01:19:30]
R – O tempo em Portugal, foram quatro meses, mas... foi legal pra essa aceitação. Na época eu já tinha um romance com esse rapaz que é o Roguer, o Schneider, e ele que me leva pra Portugal. Ele e a Patrícia, que foi inclusive a pessoa que cuidou de mim depois que eu operei, eram as únicas pessoas que eu tinha contato, porque o Roguer era a única pessoa que ia na minha casa porque se preocupou comigo, ele e a Patrícia. E ele foi muito legal comigo em tudo, porque eu tava pra ser despejada e ele foi lá, regularizou o meu aluguel, minhas contas de água, luz, etc, a Patrícia ia lá, se preocupava comigo, ficava boa parte do tempo comigo, ela me fazia levantar da cama e tomar banho e me cuidar. Porque eu sempre fui uma pessoa vaidosa, mas depois que eu perdi a minha mãe, o mundo acaba pra você, nossa, eu tinha tudo, porque era a minha vida. Além de eu ter perdido a minha mãe, tava triste, aí o meu pai faz aquela cena toda, e naquele momento, porque ninguém contestou, e aí parece que estava todo mundo de acordo com aquilo que ele disse. E aí você se vê completamente sozinha, abandonada, sem referência. E eu tive essas duas pessoas. E aí quando os meus irmãos decidem ir na minha casa, enfim, me dar um choque de realidade, aí o Roguer fala pra mim assim “eu vou trabalhar uma temporada em Portugal, você não quer vim comigo?”. Aí tem todo aquele trabalho, na época precisava tirar o passaporte pra ir pra Portugal, e ele teve todo esse cuidado comigo. E em Portugal foi maravilhoso pra mim porque era uma outra cultura, e eu tava numa fase tão delicada e parecia que as pessoas sentiam isso, e desde que eu desci do avião, dentro no aeroporto, as pessoas me olhavam e não era o olhar de contestação como tinha aqui, não era um olhar de condenação, então me auto afirmava na pessoa que eu sou de que alguma coisa estava errada no mundo, mas não era eu. Então esses 120 dias que eu passo em Portugal, me auto afirma na pessoa que eu sou. E no físico, enfim. E era gostoso andar nas ruas e as pessoas olharem pra mim, falarem “nossa, a pela dela é escura, que pele linda”, e é engraçado que até as crianças, mesmo naquela época há uns anos atrás, as crianças olhavam pra mim e elas não tinham dúvida de quem eu era. Como existe aqui, que as crianças perguntam, mas porque é uma questão de educação também, os pais que ensinam. Então... as pessoas de idade. É claro às vezes... sempre vai ter dois ou três que não vai se identificar. São outras questões, ou todas as questões juntas, era pouco, diferente daqui que é muito, sabe, eu conheci um vilarejo no Porto (inclusive essa história é muito legal) que tem um quadro parecido, ele lembra um pouco uma Monalisa, mas é mais moderninho, e a figura que ta no quadro, por coincidência, eles também chamam de Maia. E é a figura de uma mulher na representatividade de uma negra. E foi engraçado porque quando eu entrei nesse bar, todo mundo sabia o meu nome e não me conhecia, e depois eu fui perguntar pro dono do bar porque todo mundo me chamava de Maia, e ele me mostrou esse quadro. Então essa viagem pra Portugal me fez ter uma vivência que eu não tive aqui, e me fortaleceu, pra que quando eu voltasse eu me auto afirmasse. Então eu tinha que ter a certeza de que era uma questão cultural, não era uma questão pessoal, então me fortaleceu pra enfrentar esse mercado, pra enfrentar esse mundo, pra enfrentar esse universo, e enfrentar essas pessoas.
[01:24:53]
P/1 – Se você quiser falar, como foi essa paixão, como você conheceu esse seu namorado?
[01:24:58]
R – (risos) Eu conheci ele assim... tem um hotel aqui em São Paulo chamado Deinik, e que existem umas noites, que eram sextas-feiras, que na cobertura desse hotel tem um bar que é o The Wall, e lá aconteciam alguns eventos, algumas festas, e eu fui chamada pra fazer um evento, inclusive era a gravação do clipe do Supla, que era Garota de Berlim. O Roguer é comissário de bordo e ele ficou hospedado nesse hotel. Dependendo da sua profissão ou da empresa que você trabalhava, você ganhava convite para ir em determinados lugares, em determinadas festas, e ele ganhou o convite. Rolou uma festa, a gente ficou lá e foi onde eu o conheci. Toda vez que ele vinha pra São Paulo ou pro Brasil a gente se encontrava, ficava, um romance que durou uns quatro anos. Mas foi assim que a gente se conheceu.
[01:26:16]
P/1 – E aí, como é que seguiu a sua vida depois da volta de Portugal?
[01:26:19]
R – A vida seguiu baseada nessas poucas vivências que eu tinha, no conhecimento também que eu fui adquirindo com o tempo, com a prévia de que eu já tinha, que era de que não ia ser fácil. Eu me tornei uma profissional liberal, uma freelancer, então e conseguia fazer alguns eventos, mas a maioria do tempo, a constante profissional, eu me tornei uma secretária do lar, uma diarista, uma empregada doméstica, como as pessoas gostam de dizer, porque eu precisava me manter e não quis voltar... não é que não quis, eu acredito que não é um trabalho que eu vá desenvolver ou que eu queira desenvolver, porque eu acredito que as pessoas desenvolvem aquilo que elas querem, e acho que a gente pode ser aquilo que a gente quer ser. E eu vi outras maneiras de conseguir um trabalho, mesmo não sendo CLT, mas eu consegui, e não precisei ter essa informalidade, e nem precisei ser cabelereira e nem trabalhar nessa área de estética que é uma hora em que eu não me identifico. Sou uma pessoa vaidosa, mas trabalhar com isso era um segmento ao qual, era um universo que nunca me pertenceu, embora já desenvolvi uma fase. Mas eu volto com essa consciência, mas também volto com essa vontade. Eu tive trabalhos formais mesmo sendo trans? Tive trabalhos formais, mesmo sabendo que era difícil, mesmo as pessoas me apontando, porque a todo momento você é apontada e as pessoas fazem questão. Alguém sempre vai te enfatizar, vai sempre te lembrar que você não é bem-vinda, que o seu lugar não é ali, e N coisas. Mas eu precisava primeiro provar pra mim mesma e provar pras pessoas que essa história está errada, eu preciso mudar essa história. Eu venho já com essa energia. Aí acontecem várias passagens na minha vida profissional, eu faço cursos de dança, tanto que hoje eu sou dançarina, eu to tentando, mas to no caminho, mas eu vou me especializando das coisas que eu me identifico como profissional, vou me aproximando delas, e vou tentando realiza-las da forma que é possível, que é permitido. O mercado é difícil, é concorrido, nós conhecemos vários profissionais completamente qualificados, maravilhosos, mas é difícil, mas não é impossível. E é através desse ponderamento, desse pensamento, dessa afirmação, que eu vou seguindo. Porque eu sei que daqui um tempo, nada melhor do que o tempo, mas eu vou conseguir estar nesse lugar. Eu não quero fazer parte de uma estatística. To construindo a minha história e quero que outras como eu construam, a partir da minha, as suas histórias.
[01:29:52]
P/1 – E hoje em dia, como é a sua rotina?
[01:29:57]
R – Hoje em dia devido à pandemia a minha rotina é delicada. Há duas semanas eu to trabalhando em um serviço temporário fazendo uma atividade para um vereador, mas nos últimos sete meses foi muito difícil porque, mesmo trabalhando como diarista, os poucos contatos que eu tinha eu acabei perdendo devido a essa crise. Eu tive o auxílio do governo mas lodo depois ele me foi negado, tanto que eu saio do bairro aonde eu morava pra morar em um outro bairro que é próximo. Eu morava na Vila das Mercedes e eu mudo pro Jardim da Saúde, mas pra uma comunidade, que é o Boqueirão, e fazem nove meses que eu moro nessa comunidade, faz sete meses que eu to casada, entre aspas, enfim, mas ta um pouco delicada porque a minha rotina se perdeu, eu não tenho mais a rotina que eu tinha antes. Eu deixei de fazer muitas atividades, eu deixei de ter trabalhos por conta dessa crise que é mundial, por isso que eu falo que Rafael é um anjo na minha vida porque, se não fosse o Rafael, eu talvez nem lá eu estava, eu estaria na casa de um amigo provavelmente ou, em último caso, em um abrigo. Mas, graças a esse anjo que Deus me colocou na vida, trancos e barrancos dentro da comunidade, mas pelo menos eu tenho um lugar aonde eu posso chamar de minha casa, eu tenho um canto ainda pra chamar de meu. E sou uma privilegiada sem estar num lugar de privilégio, porque hoje eu moro em uma comunidade que acontecem duas situações que pra mim também são novidades, que eu só fui saber depois que eu estive lá, que eu estou lá. Porque uma coisa é você ir na comunidade, outra coisa é você morar na comunidade, porque algumas coisas você só conhece a partir do momento que você convive. E aí morando na comunidade, eu descobri que eu moro em uma comunidade aonde a minoria da comunidade são pessoas negras. Então no beco aonde eu moro, só eu sou negra, não tem mais negros. São 25 mil moradores, mas a maioria da população não são de negros. Só existem três trans na comunidade aonde eu moro. Lógico, como toda a cultura e na periferia não seria diferente, lá eu acho que a gente não é bem-vinda, mas existe pelo menos um respeito, uma padronização porque você é uma moradora e tal, mas isso se conquista e aí entra aquela Cris Negão do passado, daquela vivência, porque você precisa ser um pouco mais energética também, então eu já precisei dar uns gritos, me impor mais, você precisa falar diferente pra que as pessoas entendam, pra que elas passem a te entender e te respeitar. Claro que a gente grita, eu sou essa pessoa, eu grito, eu me posiciono, falo gíria, falo palavrão, e depois eu entro pra minha casa e vou chorar no travesseiro, porque eu sou assim. Mas eu entendo que algumas vezes é necessário você agir dessa forma. Porque as pessoas, da mesma forma que as pessoas te provocam para que você tenha uma atitude agressiva, uma atitude violenta, que elas procuram isso em você, e elas tentam fazer com que você chegue a esse lugar. Nesse lugar da violência ninguém nunca vai conseguir... ta difícil... eu nunca conheci a pessoa que me levasse pra esse lugar. Porque toda vez que eu vejo uma situação de agressividade física ou que eu me encontro numa situação aonde leva à agressividade física, eu lembro de todas as agressões físicas que eu já sofri na minha vida, e eu não consigo transmitir ou passar pras outras pessoas toda a agressividade que eu já tive, que eu já sofri. Eu sou capaz de gritar, de xingar, mas eu não sou capaz de levantar a mão pra ninguém, não tenho esse ímpeto, eu não consigo.
[01:35:31]
P/1 – E como foi esse período de isolamento em relação à sua saúde mental, o que você fez? Como foi esse tempo?
[01:35:46]
R – Olha, é delicado, como é pra todo mundo, porque assim, quando você... tudo que você faz aonde você é obrigado, porque nós somos obrigados a ficar em casa, nós somos obrigados a permanecer, a evitar sair nas ruas, a evitar uma série de situações, então não é legal, eu não acho legal. Mas por outro lado, eu tive um momento pra estar comigo mesma, mais, pra conhecer melhor o meu companheiro, porque a gente ta num romance que é novo ainda, porque tem um ano que eu conheço ele e há sete meses que a gente mora juntos, praticamente quando começou a pandemia, e isso é legal, porque a gente acaba conhecendo melhor os defeitos um do outro, enfim. Eu pude organizar alguns pensamentos, algumas ideias, por outro lado me prejudicou muito porque tudo aquilo que eu não tenho, por exemplo, dentro da minha casa, eu podia buscar no mundo, mas não posso ainda. Não foi bom. É que pra mim não foi bom, mas tem uma questão que foi legal: as pessoas começaram a se amar mais, a se respeitar mais, a valorizar o outro, o amigo, o vizinho, uma pessoa que eles não conheciam muito bem. Serviu pras pessoas se conscientizarem de muitas coisas, criarem outros valores, outros hábitos, outras culturas. Isso é bom, isso foi bom. Mas já chega né, tinha que acabar, mas enfim, a gente precisa ter alguns cuidados.
[01:38:06]
P/1 – Você quer me contar como você se conheceu o seu companheiro atual?
[01:38:10]
R – Ta, conto (risos) Eu conheci o Ruan, tinha uma loja ali na avenida Jabaquara, na região da Saúde. E eu passava lá todos os dias, porque eu sempre morei naquela região, e como acessibilidade pra mim sempre era ou metrô ou os ônibus que fossem pro centro, eu tinha que ir pra lá, e eu o via todos os dias. E eu fazia de propósito, porque eu passava na frente da loja só pra ver ele trabalhando, mas demorou muito tempo pra que pelo menos ele notasse que eu passasse ou que pelo menos eu olhava pra ele... eu tava quase desistindo de ir. Porque tem isso também, a gente enche o saco. Porque assim, é impossível a pessoa não perceber... ainda mais porque ele estava constantemente ali, e eu passava na ida e quando eu voltava eu fazia questão também. Se era dentro do horário que eu sabia que a loja ia estar aberta, eu fazia questão de passar ali. Então eu fiquei nessa vibe, enfim. Aí um dia, ele tava com um amigo dele, isso depois de um mês, e aí eu passei, o amigo fez uma gracinha, e ele falou assim “a, se essa aí for a mulher, eu quero que ela seja a mulher da minha vida”. Aí eu voltei, morrendo de medo, porque um homem enorme, que ele é grande, ele consegue ser maior do que eu, não só em tamanho mas também em largura. Mas aí, enfim, eu voltei, eu pensei “a loja ta aberta, ele ta com o amigo do lado, ele não vai me bater”, e eu voltei. Mas quando eu ia me aproximando, eu não ia parar, mas eu olhei pra ele e ele falou “oi, tudo bem?”, e aí começou, desse “oi tudo bem”, aí rolou um encontro, e geraram outros, logo ele me apresentou pra mãe dele, que é uma criatura, uma pessoa incrível, uma mulher maravilhosa, a Fátima, que me acolheu e me acolhe muito bem, enfim. Às vezes ela briga com ele pra ele não brigar comigo, porque às vezes ele é chato, enfim. E aí quando eles conversam, às vezes ele fala “a minha mãe parece que gosta mais de você do que de mim”. E a gente ta construindo uma relação aí, isso já tem sete meses, não, tem nove, faz sete que a gente ta morando juntos e a relação ficou mais séria.
[01:41:08]
P/1 – E o que você gosta de fazer nas horas vagas?
[01:41:10]
R – Eu gosto de dançar (risos), mas não to podendo porque hoje eu moro em um lugar muito compacto, então a minha maior distração está sendo a leitura, que é outro hobby que eu gosto muito, eu sempre tenho um livro na bolsa, então eu to me dedicando a isso mesmo, porque eu to igual aquela música do Toquinho, que era uma casa que não tinha nada. Tenho os meus livros, graças aos Deuses, e aos meus amigos e às bibliotecas que me cederam antes de fecharem, e eu to me dedicando mais à leitura, principalmente livros que eu já li há muito tempo atrás, eu to relendo novamente porque não tem os amigos pra trocar, não tem biblioteca pra locar, então eu to fazendo esse resgate.
[01:42:13]
P/1 – Tem algum livro que te marcou na sua vida?
[01:42:16]
R – Tem (risos). Eu tenho um livro que me marcou. Que eu me identifiquei muito... agora você me levou pra um lugar que me fez refletir. Tem um livro que eu não vou me lembrar o nome agora, mas a história me marcou muito porque foi através dessa história que eu associei o meu primeiro nome, que hoje é o meu nome. É um livro budista que conta a história de Nitidasa Shonin, e conta a história do buda, que é o Shakiamuni, e ele namora com uma mulher. Aquela história de Romeu e Julieta, mas mais oriental? A namorada de Shakiamuni se chama Maya e aí na história dos dois não tem final feliz, ela acaba morrendo porque existe o conflito das famílias. Na verdade, o pai dela mata ele, e por ele, ela se joga do penhasco, e daí do penhasco que ela se joga, do penhasco não, aonde o corpo dela cai, cria uma nascente e nasce a flor de lotus. Eu achei essa história tão linda, tão maravilhosa. Primeiro, meu nome é Maia por causa dela, eu acho essa história tão maravilhosa, agora eu me lembro do nome do livro, se chama As sátiras de Nitidasa Shonin, volume 1, é o primeiro volume que conta como que ele surgiu, e claro que são sequências, mas esse é o primeiro, que conta de quando ele era um mortal ainda. E aí tem esse romance com a deusa Maia e eu associei a minha pessoa ao nome dela porque me identifiquei muito com a história.
[01:44:34]
P/1 – Que história linda, Maya. Quais os seus sonhos para o futuro?
[01:44:39]
R – São vários, eu quero ter uma formação acadêmica concluída, quero ter uma posição no mercado formal de trabalho e, claro, ser a rainha do carnaval, ter a minha casa própria também, são vários sonhos e objetivos. Claro que hoje é mais próximo porque, hoje o mercado ta mais aberto, as pessoas estão mais instruídas, você tem mais acessibilidade a uma série de coisas e informações, então alguns dos meus sonhos se tornam muito reais. Então eu falei no começo, e é verdade, eu tranquei duas faculdades justamente por conta disso, por não ter essa afirmação e esse lugar de ser uma profissional, essa estabilidade financeira, e aí chega um momento da sua vida que você tem que fazer escolhas: ou você vai estudar, ou vai continuar se mantendo, porque pra você, ainda mais pra uma profissional liberal, você não consegue fazer as duas coisas ao mesmo tempo. A gente não vive, ainda não se vive de arte no Brasil, são muito poucos os que vivem com a sua arte, a grande maioria, a gente ainda não ta nesse lugar. Aí quando você não tem uma atividade formal, quando você não tem uma atividade com um vínculo aonde você tem uma história, aonde você tem uma certa profundidade, então não te dá parâmetro para que você possa construir a sua independência financeira e nem fazer planos pra sua instrução. E até tem uma notícia boa que eu posso compartilhar com vocês, que no mês passado eu prestei vestibular pra uma faculdade que abriu cem vagas para mulheres trans, gratuitas, e eu passei nessa universidade, modéstia à parte eu até gabaritei, foi bem legal. Então eu volto pro ensino acadêmico no ano que vem com o conceito que eu não vou ter que me preocupar muito com ele, nessa questão financeira de pagar a mensalidade, já tenho alguns amigos que estão super engajados e querem me fortalecer pra que eu tenha mesmo essa formação acadêmica concluída, então eles querem me dar uma base. O Rafa é um dos que fala “amiga, por favor, o que você precisar, um livro, uma coisa, a gente dá um jeito, a gente compra, a gente faz o que for possível”, mas o mais importante é a gratuidade da bolsa porque, quer queira, quer não, pesa pra gente. Mesmo que você tenha um desconto, mas aí você deixa de fazer alguma coisa, uma luz que você não paga, uma conta que você deixa de pagar, então quando você não tem, fica difícil. Então foi maravilhoso pra mim saber que um dos meus sonhos está muito próximo. E claro que dessa vez eu não vou ter a formação acadêmica dentro do que eu almejo, por enquanto, mas pelo menos eu vou ter essa formação com essa visibilidade de ingressar no mercado formal de trabalho, então eu to querendo agregar duas grandes possibilidades, que é voltar pro mercado formal de trabalho e falar assim ó “ta vendo, eu tenho um curso acadêmico que ta em andamento” e dentro, porque eu vou fazer gestão de RH, eu vejo uma possibilidade de portas abertas aí, porque a maioria das empesas contratam estagiários, estagiárias, então a dificuldade de ingressar e estar dentro torna-se menor.
[01:49:34]
P/1 – É gestão de RH?
[01:49:36]
R – Sim, vou fazer gestão de RH na Faculdade Oswaldo... nossa, esqueci o nome da faculdade, fica no Tatuapé. Eu esqueço o nome de tudo, só não esqueço o meu, porque eu já tenho há anos.
[01:49:51]
P/1 – E as outras duas que você trancou?
[01:49:52]
R – Eu comecei com comunicação social, parei no segundo semestre, e aí o ano passado eu parei no quarto semestre de publicidade, ambas pela faculdade São Judas Tadeu.
[01:50:12]
P/1 – Eu queria saber se você gostaria de acrescentar alguma história que eu não perguntei, que você gostaria de registrar no seu depoimento.
[01:50:22]
R – Não, acho que não, acho que eu contei todas as minhas histórias. Ah, tem uma história que eu acho que eu quero acrescentar. Não sei se serve pra vocês, mas é porque é importante pra mim por dois motivos, né, pra você ver. Uma é alto afirmação de que o feminismo sempre esteve na minha vida, e a outra é porque eu acho uma das histórias muito lindas da minha vida, que é sobre a minha religiosidade. Mesmo frequentando os lugares de matrizes africanas e sempre tendo abertura dos lugares aonde eu fui, eu sempre fui muito bem-vinda, todo mundo acreditava e todo mundo achava que o meu estereótipo e a minha religiosidade era de um orixá aboró, a gente chama aboró quando é homem e iabá quando é mulher, e eu, foi muito engraçado. Quando eu... eu tive condições e achei que fosse o momento, eu fui me iniciar em matrizes africanas, foi muito engraçado e muito lindo ao mesmo tempo, e assim, a gente tinha feito toda a preparação praquele momento e eu ia ser iniciado de um orixá aboró, que é odé, então a gente comprou todas as paramentas, ferramentas, fez as roupas, tudo, e nó começamos, porque é um mês de, vamos chamar de rituais, enfim, é um mês de preparação, então todos os dias você tem uma atividade, uma coisinha pra fazer, enfim, até chegar num momento, na verdade são atos que chama na religião. Aí tem um ato que é quando o orixá se apresenta para o seu sacerdote e acontece algumas coisas que o sacerdote só te diz depois, enfim, mas até aquele momento, é o momento onde ele se apresenta, que a gente chama esse ato de buri de iniciação. E aí aconteceu uma das coisas mais lindas da minha vida e fantásticas que assim, no meu buri de iniciação, quem apareceu foi Iemanjá, tanto que eu sou de... eu sou feita de Iemanjá. E todo mundo achava que eu ia ser feita de odé. Porque tem um ato... esse eu posso até contar. Tem uma oferenda que a gente faz, um sacrifício, que é uma galinha de angola que é cortada na sua cabeça, que a gente chama, a galinha de angola se chama iakikó em iorubá, que é justamente quando o orixá se apresenta, e é nesse momento que ela se apresenta, e é muito lindo, é muito engraçado, porque aí tem que mudar tudo, muda roupa, muda paramenta, muda tudo, né, porque são orixás diferentes. Mas o mais bonito é que, são dois fatos, que Iemanjá é considerada a mãe da maioria dos orixás, ela é mãe da placenta, então ela é mãe, ela é a mulher que na hora que a criança ta nascendo, pra nós né, da cultura, da religião, é ela que ta ali presente. E ela foi a mulher que me aceitou, ela foi lá e disse “ela é minha filha”, enfim e tal. E aí foi um momento lindo assim, sublime pra mim. É claro que rolou a minha preocupação porque eu estava lá dentro e não conseguia sair, então as pessoas que estiveram no lado externo que tiveram toda esse cuidado, esse carinho, essa preocupação, de mudar todo aquele cenário. E aí, na saída do meu orixá, porque como eu não tinha, e o meu orçamento já tinha ido todo, enfim, na saída do meu orixá, que a gente chama de saída um dos atos, que é o momento que ele realmente se apresenta para as pessoas, pros convidados que tão lá, que eu chamo de minha mãe, que é minha mãe de santo, que é a Adriana de Nanã, ela chega com a roupa da saída, ai, desculpa, é que eu fico super emocionada quando eu lembro disso... e a roupa é (choro) maravilhosa, ali, de tudo. E ela e o meu sacerdote não se dão muito bem, eles tem algumas contrariedades, e ela chega na hora desse momento que nós chamamos de rum que, além dela se apresentar, ela diz o nome dela, que é o Ilá, e que é onde se origina a minha dijina, que é como eu sou chamada dentro da casa de santo, e ela chega nesse momento, e aí (choro), aí eles vão lá, trocam ela... porque a roupa que eu tinha era emprestada, era uma série de situações, e Iemanjá ganha esse presente e aí chega na hora do rum e o meu pai vai lá e pede pra ela amadrinhar o meu orixá, né, e era justamente... eu imaginei... era a minha vontade, mas eu não posso pedir, porque tem a hierarquia, é o sacerdote que escolhe a madrinha do orixá. Então eu já sabia que por mais carinho que eu tivesse por ela, meu pai não aceitaria porque tinha essa diferença dos dois. Mas eu achei muito nobre, muito lindo, o meu pai dar, pedir pra ela ser a madrinha, e ela que tira o morocó do meu orixá e então essa é uma história linda e sempre que eu tenho a oportunidade eu gosto de contar pras pessoas. E ela é minha mãe duas vezes porque ela me adotou na vida e ela é madrinha do meu orixá, ela não deixa de ser minha mãe. É essa história.
[01:57:20]
P/1 – Eu adorei. Eu queria saber o que você achou desse projeto de convidar mulheres para falar sobre saúde.
[01:57:26]
R – Eu achei muito legal e achei importante também, porque cai nesse lugar de conscientização, porque até hoje as pessoas, primeiro que as pessoas, muitas não têm o conhecimento de como é, segundo que o número de profissionais que fazem esse acompanhamento ainda é muito pouco, então o número de mulheres, até mesmo os meninos, os homens trans, que conseguem ter acesso a esse acompanhamento, ainda é meio clandestino, então os cuidados precisam ser dobrados. Então é importante esse trabalho de conscientização, para que a gente possa levar pras pessoas essas informações de que é perigoso, de que às vezes não é muito legal, e existem caminhos piores também, enfim, mesmo os medicamentos, muitos estão deixando de ser vendidos sem receita, isso por um lado é muito bom, mas você ainda consegue. Então conscientizar as pessoas dos riscos, dos prós e dos contras, porque tudo tem sempre um lado positivo e um lado negativo, e a gente ta falando de saúde. Porque hoje pode não aparentar, mas amanhã pode te prejudicar muito. Então as pessoas precisam ter um pouco desse conhecimento, um pouco dessa visão de pensar no amanhã, não pensar só no presente, só no momento, porque uma coisa que te faz bem hoje, pode te fazer mal amanhã, e esse pode te fazer mal pode te prejudicar em uma série de questões, que pode impactar inclusive, principalmente na sua vida.
[01:59:42]
P/1 – E o que você achou de contar a sua história no Museu da Pessoa?
[01:59:47]
R – (risos) Ah, eu adorei contar a minha história. Eu sou da área de comunicação, né, eu gosto de falar, e por incrível que pareça, eu gosto da minha história. Eu tenho uma história muito... eu acho que a minha história é uma história bonita. Então eu agradeço o convite. Eu me sinto lisonjeada de verdade de ter a minha história compartilhada com vocês, dessa representatividade. E poucas pessoas conhecem o Museu da Pessoa, então quando a gente fala “a, eu vou lá no Museu da Pessoa, que eu vou dar meu depoimento”, como eu fiz né, falando sobre uma série de coisas e principalmente sobre a minha pessoa, isso me faz sentir inclusa, isso me faz eu me sentir mais viva e me põe no caminho, ou no direcionamento de que o caminho que eu to trilhando é esse e que eu não to errada. Amanhã ou depois, pessoas vão ouvir a minha história, vão ver a minha história, e talvez muitas delas eu provavelmente nem vá conhecer, mas a proximidade que eu vou ter com elas é a minha história, lida ou ouvida e isso é maravilhoso e vocês estão me proporcionando esse momento que é incrível.
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