Programa Conte Sua História
Depoimento de Danilo Santos de Miranda
Entrevistada por Karen Worcman e Rosana Miziara
São Paulo, 22/11/2017
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV643_Danilo Santos de Miranda_Parte 1
Transcrito por Mariana Wolff
Revisado por Carolina Margiotte Grohmann
Editado por Rosana Miziara e Carolina Margiotte Grohmann
P/1 – O seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Danilo Santos de Miranda, nascido na Rua do Rosário, na cidade de Campos, no Estado do Rio de Janeiro.
P/1 – Quando?
R – Em 1943, no dia 24 de abril, que significa dizer que eu sou fluminense, também conhecido como papa-goiaba, porque às vezes, me confundem um pouco me chamando, me atribuindo a denominação de carioca nesse entendimento equivocado da cidade do Rio de Janeiro, o patronímico carioca se aplica a cidade do Rio de Janeiro; e fluminense é além da cidade do Rio de janeiro, que também é fluminense, é o Estado do Rio de Janeiro. E o nome popular de quem nasce no Estado do Rio de Janeiro e papa-goiaba, é um nome antigo, assim como tem barriga-verde, tem vários outros nomes parecidos, né? Capixaba…
P/1 – Devia ter muita goiaba… Será que tinha muita…
R – Tinha muita goiaba no norte do Estado do Rio, tanto que Campos é uma cidade famosa por sua goiabada, goiabada cascão de Campos é famosa. No Rio de Janeiro se aprecia muito a goiabada cascão de Campos, além do chuvisco que é um outro doce de Campos também. Famosa a cidade, muito cheia de tradições, histórias antigas, velhas igrejas, uma cidade do século 17, creio. E que já é mais do que… Quase tricentenária, creio.
P/1 – Me conta agora, então, o nome dos seus pais e também dos seus avós? Um pouquinho da origem da sua família.
R – Pois não. O meu pai Afonso Celso de Miranda da cidade da região ali de Campos também, família Miranda com a qual, nós não tivemos tanto contato quanto temos com o lado da minha mãe. Então, eu tenho algumas referências, não conheci, praticamente, meus avós…
P/1 – Não conheceu os avós?
R – Não, o meu avô paterno eu não conheci. Chamava-se Gavinhos, se eu não me engano.
P/1 – Você sabe assim, qual que é a origem…
R – Eles são do interior ali do próprio município, da região. E o nome da minha vó…
P/1 – E o quê que era assim, o quê que o seu pai… Qual é a história…
R – O meu pai era um homem classe média, né, vários irmãos, conheci alguns dos irmãos do meu pai, não muitos, não todos, não conheci profundamente, irmãs e era de uma família de origem rural ali da região, não tinham… Não eram proprietários, eram pessoas que batalhavam, trabalhavam em vários setores diferentes, meu pai tinha uma profissão definida, que ele era dentista, formado nos anos 30 do século passado. Era uma formação que não é tão sofisticada quanto é hoje, creio, mas era dentista.
P/1 – Então, ele e os irmãos tinham formação em universidade?
R – Ele era formado nessa… Eu não sei se era universidade, sabe, Karen, eu acho que esse curso, ele tinha um caráter meio técnico nesse período da história do ensino no Brasil, eu acho. Curiosamente, tinha uma faculdade em Campos que tinha curso de dentista e curso de Farmácia. E a minha mãe era farmacêutica e eles se conheceram nesse curso, meu pai era mais velho do que a minha mãe, mas os dois tinham esse envolvimento com a faculdade, a escola, enfim, que havia lá em Campos nesse período. Então, não tenho detalhes dessa formação deles e do grau, digamos assim, se era terceiro grau, segundo grau, não tenho isso claro.
P/1 – E lá que eles se conheceram?
R – Eu creio que sim, lá que eles se conheceram, era um casal normal, meu pai tinha uma diferença grande com a minha mãe, mas era algo em torno de sete, oito anos a diferença, talvez um pouco mais. E, na realidade, eles se conheceram lá e tem um fato curioso que depois eu volto sobre essa questão da formação, mas a minha mãe então era farmacêutica, meu pai era dono de uma farmácia, era um boticário antigo, né, meu avô Messias, pai da minha mãe era paulista, aqui do interior de São Paulo, ele veio tentar a vida em São Paulo, e aqui talvez tenha se desenvolvido nesse ramo de farmácia, foi para o Rio de Janeiro, se envolveu com a Drogaria Pacheco, que é uma famosa rede de farmácias Pacheco lá em… Tanto que existe uma coisa que eu até consegui registrar uma vez, numa das filiais da Pacheco lá no Catete, na Rua do Catete tinha uma foto de uma diretoria antiga da Pacheco lá dos anos entre 1910 e 20, por aí, nesse período em que o meu avô tava lá, sentado, entre os diretores da Pacheco no Rio de Janeiro. E ele foi designado pela Pacheco, pela diretoria pra ir para Campos, para fundar a Pacheco em Campos e realmente ele criou…
P/1 – Ele fundou a Pacheco em Campos?
R – Ele criou a Pacheco em Campos, mas isso, talvez, não tenha dado certo, não tenho detalhes dessa parte da história, porque mais tarde ele criou uma farmácia própria dele, chamada Farmácia São Salvador, que era a farmácia que o meu avô criou em Campos e que a minha mãe ia trabalhar com ele, foi trabalhar com ele como uma das profissionais lá dentro, entendeu? Meu avô era um homem de manipulação, usava ervas, usava muito esses remédios tradicionais, ele tinha muita habilidade, era muito conhecido em Campos como um grande figura nesse campo, né, Messias. Messias Urbano dos Santos, nascido aqui na região de São João da Boa Vista, interior de São Paulo, numa cidade chamada acho que Vargem Grande, que é do lado.
P/1 – Esse é o pai do seu…
R – Pai da minha mãe.
P/1 – Ah tá!
R – Esse é o pai da minha mãe, esse é o Messias Urbano dos Santos, que vai se casar com Donana que era Ana que virou Donana e no fim, era Dona Donana, mas isso é coisas da família, coisas da tradição local, muito engraçado isso. Ana Souto dos Santos com quem ele se casou, meu avô Messias, pai de Dalva, pai da minha mãe. Então, a minha mãe era a mais velha dessa família que teve dez, 11 filhos, né? Então, o meu pai vem dessa tradição local e encontra então a minha mãe na cidade de Campos, que era uma cidade média, no interior do Rio de Janeiro, mais próxima talvez só litoral, a 30 minutos do litoral, mais ou menos, e que tem o Rio Paraíba como sua fonte de inspiração, de abastecimento de água e tudo mais, então o Rio Paraíba em Campos, tem uma presença muito marcante porque divide a cidade bem no meio. Tem várias pontes que ligam os dois lados, né? E essa é a minha infância, minha infância nesse primeiro período da minha infância é em Campos, meus irmãos, nós somos em quatro, né?
P/1 – Então, quais são os seus irmãos?
R – Dalmir o mais velho, que é de 39. Dalmir é um nome criado pelo meu pai e minha mãe, que é uma referência a Dalva da minha mãe e mir de Miranda, Dalmir. Naquela época era muito curioso isso, e se atribuía, se criava - até hoje se cria -, mas, enfim, mas havia uma particularidade, esse D de Dalva já era uma tradição da família do meu avô e da minha avó maternos…
P/1 – Donana?
R – Não, Donana é Ana, né? Mas os filhos dela: Dalva, Dalie, Dilson, Diná, Delia, tudo, era tudo com D, e depois no final, eles acabaram mudando, mas no início era tudo com D. E então, a minha mãe chamava-se Dalva era a mais velha e então, bom, eles começam a formar a família…
P/1 – Mas era Dalmir, depois veio?
R – Depois vem Dilmar, você inverte as vogais dá Dilmar.
P/1 – Dalmir, Dilmar.
R – Dilmar que tá professor. Dalmir hoje é aposentado, mora no Rio de Janeiro, foi advogado do BNH [Banco Nacional da Habitação], da Caixa Econômica, trabalhou muito tempo… Foi jornalista também com o meu pai. Um detalhe que eu não falei do meu pai, meu pai, além de dentista, era jornalista também na cidade de Campos. Era responsável por um jornal diário. Campos tinha vários diários nesse período e um dos diários, Folha do Povo, meu pai era redator responsável, por muitos anos, meu pai foi jornalista durante muitos anos. Então o Dalmir também foi jornalista, trabalhou em vários veículos no Rio de Janeiro, mas tá aposentado hoje. Dalmir é o mais velho. Depois o Dilmar, como eu disse, né, que é professor, atualmente também aposentado da Universidade Federal do Ceará que, atualmente, está aqui em São Paulo, mas tem uma formação muito ligada a Filosofia, Sociologia, música, História da Música, em particular. O Dilmar. O terceiro sou eu, Danilo.
P/1 – E Danilo, de onde vem?
R – Hein?
P/1 – Danilo já é…?
R – Já é um nome já, digamos, tradicional, mais conhecido, não era muito. Eu sou o Danilo mais velho que eu conheço, entendeu? Devem ter outros Danilos, claro, na época, tinha um grande jogador do Vasco que era Danilo, Danilo Alvim, mas eu não conheci muitos Danilos.
P/1 – Mas o Da é de Dalva também, né?
R – Não, esse Danilo é um nome de origem italiana, eslava, comum, é uma corruptela do Daniel, né? O Daniel que no latim decadente vira Danielos, porque o Daniel é de origem aramaica, o profeta Daniel. No latim, era Daniel também, usava-se Daniel, mas no latim já decadente, tem Danielos e Danielos deu Danilo. Esse é o nome. E comum, mais ou menos; hoje em dia tem muito Danilo, mas na época, eu não me lembrava. Tinha um coleguinha do grupo escolar que era Danilo também. E o quarto é Daniel, o meu irmão mais novo é Daniel.
P/1 – Tudo com D.
R – Tudo D, tudo D.
P/2 – Para continuar a tradição?
R – A tradição foi até o fim. Tivemos uma irmã que teria nascido ali no final dos anos 40, 47, 48, por aí, mas que não sobreviveu. Minha mãe já estava doente e a minha mãe veio a falecer no ano de 50. Eu tinha sete anos. O Dalmir tinha nove, dez anos talvez, o Dalmir. O Dilmar tinha oito, eu tinha sete e o mais novo tinha cinco. Então, a família de quatro, todo mundo morreu muito cedo… E a minha vó Donana, Ana Souto dos Santos, conhecida como Donana, ela que assumiu, de certa maneira, a educação nossa logo em seguida, porque as famílias tradicionais, antigas desse período tinham também muitos filhos, como eu mencionei. E o meu tio mais novo era mais ou menos da mesma idade do meu irmão mais velho, se não fosse o mais novo, eu não me lembro, eu acho que era mais ou menos da mesma idade. Então, pra ela era uma sequência natural ter os netos ali junto, famílias muito próximas, morava todo mundo meio perto, então isso… A gente foi para a casa da minha vó quando minha mãe faleceu.
P/1 – Antes da gente chegar nesse período, vamos falar desse primeiros sete anos. O quê que você lembra um pouco da sua casa? Você tem lembrança desse período?
R – Tenho! Morava na casa…
P/1 – Vamos voltar nessa casa, quantos quartos tinham, descreva um pouquinho pra gente.
R – Olha, era uma casa tradicional, classe média em Campos, hoje, a gente reflete, pra mim era uma casa normal, sem grandes diferenças, uma casa que… Sabe aquelas janelas já na calçada, né, com entrada no portão lateral, uma escadinha que sobe…
P/1 – Uma varanda?
R – Tinha uma varandinha lateral, uma sala, quartos na frente, dois quartos na frente, depois tinha atrás a copa, cozinha mais atrás, um banheiro do lado da copa, assim, lateralmente, você para ir no quarto da frente passa no quarto intermediário, né, isso é uma coisa tradicional, não tinha corredor separando o quarto, né, era tudo meio junto, né?
P/1 – Tinham dois quartos, Danilo?
R – Eu me lembro de dois, pra falar a verdade, talvez…
P/1 – Então como é que vocês se distribuíam nessa casa?
R – As crianças de um lado e o casal no outro, né, não tem muita… Era tudo menino, né, não tinha menina, né? A minha tradição familiar inicial, pelo menos, ausência de menina, né? Só mais tarde que a gente tem muitas primas, muitos primos, família grande, né? Como eu disse, a minha vó tinha muitos filhos e filhas, e muitos primos e primas, então isso juntava na casa da minha vó, pra onde nós fomos logo em seguida, era uma casa maior, tinha mais movimento, mais gente, mais agito, né? Mas a minha casa, quintal, varanda…
P/1 – Tinha um quintal?
R – Tinha quintal, varanda, uma casa antiga lá e eu me lembro que eram várias casas muito parecidas, duas janelas, portão lateral, duas janelas, portão lateral e a porta que dá na sala era uma porta que você entrava lateralmente, né, onde tinha uma varanda e a porta.
P/1 – Que lembranças você tem desse lugar? Vocês dormiam num lugar, os seus pais em outro, vocês almoçavam e jantavam juntos? Tinha empregados?
R – Sim… Não tinha empregada sempre, tinha… A lembrança da minha mãe é rara, é pequena, eu tenho pouca lembrança da minha mãe, porque eu tinha sete anos e ela já ficou doente acho que quando eu tinha cinco anos, por aí, ela já começou a ter problemas de poder continuar administrando tudo, entendeu? Ficou acamada, ela teve um problema nos rins, que na época era meio grave, meio fatal, não era uma época em que havia tantos medicamentos que combatem essas inflamações, tipo nefrite, essas coisas. Minha mãe morreu sofrendo de uma doença nos rins, pelo o que consta, né?
P/1 – Mas você lembra alguma coisa dela?
R – Lembro muito pouco…
P/1 – O que você lembra dela?
R – Eu lembro dela cuidando, dando de comer pra gente, lembro dela na praia, que a gente tinha muito… Tinham algumas praias perto de Campos - que a cidade frequenta muito essas praias nas férias. Me lembro dela na praia cuidando da gente, me lembro dela preparando a gente pra ir para o jardim de infância, que era uma espécie de pré-escola, que já tinha próxima, a gente era levado ao jardim de infância, que é ali próximo da nossas casa, quase na Rua do Rosário, uma casa que tinha muita criança sempre em volta, vizinhos. Me lembro de vários fatos, me lembro, por exemplo, de um fato do Dilmar, um dia ter subido num pé de abiu, que é uma fruta, uma árvore grande, e ficou pendurado lá e não teve jeito de sair, aí eu me lembro que minha mãe tava doente, foi um pouco antes do falecimento dela. E ele subiu no pé de abiu do vizinho e a minha mãe, aflita, foi para lá, levantou, foi ver o que ia fazer, o que não ia, nós estávamos todos metidos nesse rolo, não era só o Dilmar, mas a gente desceu, ele não conseguiu descer. E aí ele ficou meio pendurado lá em cima, precisou chamar, botar colchão no chão, pra ele poder pular lá de cima, foi um agito danado. Isso eu me lembro a minha mãe administrando, brava pra variar, né, nesse momento, claro, e o susto e aquele negócio todo. Eu me lembro de todo mundo preocupado com o Dilmar, dando água doce pra ele pra ficar mais calmo. Isso eu me lembro, foi um ato, um momento meio curioso da vida, mas é muito remoto, muito remoto… Muito…
P/1 – Você lembra dela ser uma pessoa mais pra brava, carinhosa, rígida?
R – Ela era uma pessoa firme, sim, minha mãe era uma pessoa muito firme, uma mulher muito bonita, muito reconhecida…
P/1 – Ela era bonita?
R – É, muito bonita. O meu pai e a minha mãe eram tidos como um casal muito bonito, depois tem fotos deles na rua, eu tenho… Acho que um irmão meu, o Daniel, tem uma foto - ou o Dilmar, não me lembro, tem uma foto deles andando na rua. Algumas fotos antigas que nós temos deles. Era um casal muito especial, segundo dizem, né? Naquela época, as pessoas se vestiam de outra maneira, chapéu, bengala, terno na rua, era uma coisa meio curiosa, um jeito de vestir muito próprio da época, que não corresponde mais. Inclusive Campos é uma cidade quente, é difícil, enfim… Mas o meu pai era um homem muito antenado, muito ligado à política, muito ligado à cultura, muito… Tocava violão, muitos amigos, tinha uma roda grande, era muito conhecido, enfim, era um casal muito especial pelo o que a gente tem sinais, nem é de fatos, é de sinais, coisas que foram comentadas posteriormente. Então era uma família organizada, não era uma classe média alta que tinha muitos recursos, o meu avô perdeu essa farmácia em negócios mais tarde e foi administrar uma outra farmácia. Aliás, primeiro teve uma outra menor e aí foi trabalhar numa outra farmácia também. E quando ele veio a falecer, nos anos 60, ele não tinha mais farmácia, ele já tinha perdido tudo. Ele não foi bem sucedido nos negócios, era um excelente farmacêutico, mas não era um bom administrador de negócios, né? Meu avô Messias. O meu pai nunca teve grandes propriedades, foi sempre funcionário, teve seu consultório odontológico a vida toda, mas nunca foi uma coisa que o tornasse um dentista muito, digamos, bem sucedido financeiramente, nunca foi. Mas família… Agora, havia essa inserção da família nuclear, pai, mãe e filhos, especialmente depois da morte da minha mãe na família da minha vó e do meu vô, era basicamente, uma continuidade e aí, então, essa inserção e uma certa dispersão familiar, por quê? Porque o Dalmir, o mais velho, logo em seguida vai cuidar da vida dele, vai se empregar e vai morar…
P/1 – Muito cedo?
R – Cedo, com 15 anos, 16 anos, ele já vai pra Niterói, vai se virar e vai terminar os cursos universitários dele lá e faz o Liceu da Humanidade de Campos, que é um dos grandes colégios públicos do interior do Estado do Rio de Janeiro, Liceu da Humanidade de Campos, que existe até hoje, famoso Liceu, onde muita gente importante da cidade estudava e tal. Público. Estadual. Dalmir estuda lá e depois vai fazer curso de Direito em Niterói. Isso dispersa um pouco. O Dilmar vai para o seminário no ano de 53, 54, por aí, e eu vou atrás logo em seguida, em 55, então isso eu tinha o quê? Tinha 11, 12 anos. Então não dura muito essa inserção na família, mas quem passa a cuidar da gente diretamente é a minha vó, a grande figura…
P/1 – Mas você consegue lembrar de tipo, esses quatro anos, mais ou menos, antes de você sair?
R – Lembro.
P/1 – Como que era o seu cotidiano? Vocês continuaram nessa casa? Vocês se mudaram?
R – Mudamos para a casa da minha vó…
P/1 – Os quatro?
R – Os quatro, não. Espera um pouco. Não, no início, os quatro, sim. E era uma casa muito maior, tinha mais quartos, aquele monte de cama em cada quarto, onde dormem os rapazes, os meninos aqui, as mulheres… A minha tia, tinha uma tia que ainda estava lá que é a única que ficou, tinha um quarto só dela. Tia Delia, que era solteira.
P/2 – E o seu pai ficou na casa?
R – O meu pai ficou na casa. Meu pai ficou na casa que era dele, da família dele, ele ficou um pouco lá, ele ia toda noite. Eu me lembro disso. Ah, isso é um dado interessante. Meu pai, viúvo, ia toda noite para casa da minha vó.
P/1 – Jantar lá?
R – Jantava lá e ficava à noite com a gente, ouvia o Repórter Esso, a novela, ficava ali com a gente, ele gostava muito de fazer gaiola. Antigamente tinha essa habilidade, eu tinha a habilidade disso, pegar varetas de bambu assim para fazer gaiola, essa coisa…
P/1 – Aí fazia isso com você?
R – Fazia conosco, tocava violão com a gente. Meu pai tinha essa aproximação muito forte com a gente. Eu, Daniel e o Dilmar, logo em seguida, o Dilmar vai para Friburgo e eu vou dois anos depois.
P/1 – Danilo, só antes, você tem lembrança também, tipo, vocês ficaram órfãos.
R – Ficamos órfãos. Isso era marcante.
[Falas simultâneas]
R – Era uma coisa que me dava um pouco de noção de uma certa exclusividade. Às vezes, até um certo privilégio, porque havia uma atenção especial com a gente. Qualquer lugar que você ia: “Esses meninos aí, tal…”, era uma coisa muito curiosa porque a sociedade dá uma atenção… Tinha muita vinculação com a igreja católica, Igreja Nossa Senhora do Terço, onde minha vó era alta autoridade lá, ela frequentava, ela era presidente da Associação das Mais Cristãs, ela se envolvia em tudo que era atividade de festas, quermesses, reuniões e atividades voltadas para os pobres e não sei o quê, tudo isso… A casa era muito frequentada, muita gente ia lá para pedir, ela tinha uma espécie de estoque de coisas que essa associação da igreja promovia, algumas campanhas, gêneros, roupas, não sei o que lá, me lembro que tinha um lugar que as pessoas iam lá buscar, lá em casa. Minha vó que distribuía, tinha todo um esquema de administrar esse processo, além da igreja também, da Igreja Nossa Senhora do Terço, que a gente frequentava. E a igreja tinha muita, muita atividade comunitária, era um período que era isso… Parece que permanente, você tinha sempre ou quermesse ou festa não sei de quê ou atividades… Então isso era muito frequente, muito frequente, então nós íamos muito, eu em particular, era muito envolvido nisso, na cruzada eucarística, depois na associação dos jovens e não fiquei muito tempo porque eu fui para o seminário - e o Dilmar já tinha ido. O Dalmir nunca ligou muito, não. O Dalmir não frequentava. Daniel menos, mas o Daniel tem um outro capítulo aí que é o segundo casamento do meu pai. E o único que se aproxima mais da minha madrasta, né, Tita Glória, que era a pessoa que veio a casar-se com o meu pai posteriormente é o Daniel. Daniel vai morar com o papai e com a Tita e nós vamos para o seminário, então ninguém fica na casa.
P/1 – Ele casou quanto tempo depois?
R – Ele casou uns quatro, cinco anos depois, eu acho.
P/1 – Ninguém reagiu? Foi ok?
R – Não, foi normal, tudo ok. Fomos na festa, foi tudo muito… Éramos todos bem tratados, imagina, nós éramos os… Era a atração da festa. A gente sempre teve muita habilidade em algumas coisas: cantar, dançar, fazer um outro… Entendeu? A gente era meio exibido nesse período, eu me lembro que na igreja…
P/1 – E esse lado de cantar, de fazer essas atividades veio via igreja?
R – Veio família, igreja, amiguinhos, grupo escolar, tudo, né? Meu pai, tudo isso. A gente formava uma espécie de um coralzinho. Os quatro cantando. Meu pai falava muito… Como é que é? Os Quatro Sujeitinhos Atrevidos era o nome do grupo, que…
P/1 – Como que chamava?
R – Os Quatro Sujeitinhos Atrevidos. Éramos nós quatro. Cantávamos as músicas do Dorival Caymmi: O Vento, Peguei um ita no norte, me lembro de algumas músicas, Sabiá na Gaiola, cantávamos um monte de coisas. Isso era atraente. Havia uma atenção especial com a gente pelo fato da gente ter perdido… A família era muito conhecida na cidade, eu me lembro que quando a minha mãe morreu, várias pessoas no dia da morte dela, ela morreu poucos dias antes do meu aniversário de sete, ela morreu no dia 22 de abril, foi enterrada no dia 23 e eu fiz aniversário no 24.
P/1 – Nossa!
R – Foi. Não teve festa, claro. Não teve nada. Mas as pessoas ficavam muito condoídas, muito preocupadas com isso, aquela coisa toda.
P/1 – Você lembra desse dia?
R – Eu me lembro de um médico, Doutor Mário Goulart, se eu não me engano, chamava ele. Ele e a mulher dele me pegaram nesse dia da morte da minha… E me levaram para a casa deles, para tirar a criança daquele ambiente preparatório ali para o enterro, para o velório. Naquele tempo, se fazia tudo em casa, né, para o velório e enterro. Eu não me lembro de ter frequentado o enterro da minha mãe. E outra família fez a mesma coisa com o Daniel, outra fez com o Dilmar, talvez com o Dalmir não tenham feito, não me lembro. Enfim, foi: “Tira as crianças”. Tinha isso um pouco: “Tira as crianças do quarto, da casa, tira”, porque morre em casa, faz velório em casa, faz toda a cerimônia em casa, não tem lugar para fazer, vem o padre, vem tudo, mas não tem uma instituição como tem hoje que cuida disso, que vai lá. É a família que resolve tudo. Então, eu me lembro disso, eu me lembro desse casal que me botou no carro e me levou pra casa deles.
P/1 – E você se lembra se você pensou: “Minha mãe morreu”. Você lembra disso?
R – É claro! Você não realiza isso de uma maneira muito plena, com sete anos. Você sabe que tem uma perda, mas a minha mãe já estava afastada da gente nesse período, dois anos, quase. Ela não morreu em casa nossa, morreu na casa da minha vó, que ela já estava na casa da minha vó, ela morreu lá, entendeu? Na casa da Donana, na casa de toda família, cuidando dela e tal. Então foi muito traumático, mas a gente não tem a dimensão desse trauma, nem na época e nem hoje. A gente sabe que foi, mas é muita coisa, aquela penalização pela criança: “Puxa vida, o quê que vai ser desses meninos? O quê que vai ser dessas crianças agora? Meu Deus!”, isso apareceu muito fortemente, eu me lembro que naquele ano já tinha esse negócio de dia das mães, que era logo em seguida, abril, maio. E a minha vó Donana era organizadora da festa das mães, porque ela era presidente da Associação das Mulheres Cristãs e tinha uma cerimônia, uma festa, uma comemoração no auditório da rádio, era importante, um auditório importante, músicos, uma festa pras mães. E eu não tenho certeza se foi no mesmo ano ou se foi no ano seguinte, que isso durou bastante, acho que foi um ou dois anos depois, essa mesma festa, não tenho na cabeça se no ano 50, quando a minha mãe morreu, a minha vó se envolveu na festa, isso eu não tenho na cabeça, mas as posteriores, sim, ela continuava na mesma função. E numa delas eu fui e eu me lembro que a grande questão, não sei se o Daniel tava junto, Dilmar, Daniel e eu era o fato da gente não ter mãe e estar lá na comemoração do dia das mães. Isso era marcante, era uma coisa que fixava muito: “Órfão, não tem mãe! Meu Deus, como vai ser?”, mas por outro lado, a minha vó era muito, muito presente. Donana era uma pessoa de uma personalidade muito abrangente, muito forte.
P/1 – Como era isso assim, no dia a dia de vocês?
R – Tudo!
P/1 – Ela…
R – Tomava conta de tudo, botava tudo na ordem. Famílias antigas, minha tia Delia, mais nova que a minha mãe, bem mais nova que a minha mãe…
P/2 – A que morava lá?
R – Que morava lá, solteira, solteira, tava namorando nesse período, acho, mas era solteira, ela era uma espécie de auxiliar educativa da minha vó, né? “Bota-se o braço… Tira o cotovelo da mesa, não faz barulho para mastigar, criança não fala agora, espera”, entendeu? Aquela coisa da mesa, tudo… A gente teve uma educação muito controlada e quem verbalizava mais do que a minha vó era tia Delia, a Delia era firmíssima. Nossa, esse negócio de cotovelo na mesa, criança fazer bagunça na mesa na hora de almoçar e jantar, querer se servir correndo, comer rápido, sair da mesa sem terminar, atitudes de criança, né? Era ela. Elas. Então não teve essa interrupção no processo de passagem cultural efetiva do comportamento. Teve sim, ausência afetiva, isso sim. Não deu nem pra ser muito construída, com sete…
P/1 – Mas elas botavam vocês na cama? Alguém ia…
R – Claro, claro, claro! Menorzinho sim, mas depois cada um se vira, né? Cada um se vira. Cidade pequena, criança na rua ou dentro de casa, não tem diferença. Não tinha problemas de segurança: “Olha o carro passando, olha não sei o que lá”, não, cidade pequena. Minha bisavó, mãe da Donana, morava perto, era viva. Minha vovó Cota que a gente chamava, minha bisa. Conheci, conheci minha bisa. Ela morava perto e tinha uma tia, irmã de Donana, Marieta, tia Marieta que morava com a minha bisavó, ali pertinho. Recado, levar coisa, tem até histórias muito engraçadas porque a comunicação, como diria, o intercâmbio (risos) de coisas, mantimentos, recados, não tinha telefone nesse tempo ainda, não tinha. Campos não tinha telefone, tinha telefone no resto dos lugares, lá não tinha telefone. Não tinha meios de comunicação e havia um intercâmbio muito grande. Então quem é que levava? Não tinha motoboy, né? Quem que levava? Era menos de um quarteirão, né? Minha casa estava numa rua aqui, tinha uma travessa dessa rua e a minha bisavó morava naquela outra lá, então você tinha que atravessar duas ruas que passava um carro a cada três horas, muito bem. Então, era um lugar tranquilo! Então eu, com sete anos, até menos, era um desses mensageiros de levar sal, arroz, trazer de lá pra cá, buscar não sei o que, levar um bilhete, trazer não sei o que lá. E tem uma história engraçada: quando eu tinha entre cinco, seis anos, já estava na minha vó, antes da minha mãe falecer, a gente já tava na minha vó, ou pelo menos ficava lá mais tempo do que em casa. Em casa foi muito pouco tempo para falar a verdade, naquela casa da Rua do Rosário, onde nós nascemos. Essa história se conta na família até hoje, eu já era meio preguiçoso e não queria saber muito de fazer essas tarefas todas, queria ficar lá brincando, jogando bulica, que é bolinha de gude ou alguma coisa assim, né? E um dia, a minha vó me pediu para levar: “Vai lá na casa da sua vó Cota e leva isso, isso, isso”, aí eu peguei o saco, sei lá o que, uns pacotes para ir levar. Aí, quando eu tava saindo, a minha vó teria dito: “E diz pra ela que amanhã não sei o que vai acontecer tal coisa, assim, assado”. E aí, eu meio que choramingando disse: “Eu já tô carregando um monte de coisa, você ainda quer que eu dê mais um recado? Não vai caber” (risos) Essa brincadeira até hoje a turma conta, a tia Delia contava, contou isso pra Cléo, pra minha mulher, engraçado, porque foi uma maneira de dizer assim: “Poxa, eu já tô carregando um monte de coisa e você ainda tá querendo que eu…”, virou uma brincadeira, mas era uma casa muito gostosa, tinha frutas, tinha goiabeira, tinha carambola no quintal, a gente subia, pegava, tinha muita…
P/2 – Quais eram as brincadeiras?
R – Brincadeira típica de moleque de rua: correr atrás de caminhão de cana pra tirar a cana dos caminhões, isso mais tarde, né, porque garotinho, não. Eu me lembro que isso era um hábito muito grande em Campos. Campos é uma cidade com uma produção de açúcar naquela época intensíssima, então as indústrias de açúcar estão muitas em volta da cidade e a produção de cana é imensa, era imensa na cidade toda, em volta da cidade, os canaviais, como tem aqui em São Paulo, naquele época era cheio, cheio, cheio. E lá era famosa, é um município que tinha a maior produção de açúcar no Brasil naquele período. Bom, e os caminhões cruzavam a cidade carregando cana de um lado para outro. Porque, às vezes, a plantação é aqui, mas a usina tá lá, então cruzava muito a cidade. Uma das diversões mais frequentes da molecada na cidade era correr atrás de caminhão, puxar cana pra tirar a cana que tava no caminhão pra você chupar a cana. Muito frequente e perigosa, né? Mas os caminhões não eram tão rápidos e as ruas também não eram tão perigosas assim. Mas não deixou de ter alguns acidentes, eu acho. Eu fiz muito isso, jogava bola, tinha brincadeiras de caráter meio cultural, me lembro que a gente promovia muito teatrinho, showzinho, cobrava ingresso do vizinho para assistir, eu era muito metido nesse negócio já de fazer… A gente chamava de sketches, né, umas historinhas que a gente inventava, representava, gostava muito de cantar, gostava muito de jogar bola, enfim, era muito divertido esse momento na Rua Cesar Tinoco que chamava a ruazinha que nós morávamos, onde minha vó e o meu avô viviam. Então, uma vida bem típica, né, colégio, escola já, eu ia para o grupo escolar, primeiro, escola pública, onde eu fui alfabetizado. Fui alfabetizado no grupo escolar, professora ____00:43:12____, professora que me fez aprender a ler e a escrever. No Grupo Escola XV de Novembro. Depois, já no meio do primário, eu fui para um colégio privado de um padre parente da família, chamado Padre Rosário. Padre Rosário tinha um colégio que existe até hoje em Campos, chamado Colégio Eucarístico e aí, minha vó, minha tia conseguiu nos matricular no…
P/1 – Os quatro?
R – Não, o Dalmir já estava mais na frente, já tava no Liceu acho. E eu fui para o Colégio Eucarístico, onde eu terminei o primário no Colégio Eucarístico lá em Campos. Um colégio privado, mas teve ali uma facilidade, uma bolsa que a minha vó conseguiu, sei lá, então eu tive um pedaço num colégio público, o jardim de infância… Fui no jardim de infância público, depois no colégio público, a primeira fase do meu primário e depois no final, eu fui para o Colégio Eucarístico que era um colégio privado, que tinha maior facilidade, era mais perto de casa, enfim, tinha maior condições. E a minha vó conseguiu com o Padre Rosário, que era primo da família, primo dela.
P/1 – Antes então da gente chegar nesse cenário, tem duas ou três coisas que eu queria te perguntar. Um é que vocês nasceram, assim, bem no meio da Guerra, né?
R – Olha, não era marcante isso pra nós, na minha memória. Era marcante na cidade, estudando depois, eu sei que realmente ali havia privações, havia racionamentos, havia dificuldades de abastecimento na cidade. Eu sou de 43, plena Guerra. Segundo alguns, um dos piores anos da Guerra, tá certo que a bomba atômica vem só em 46, mas de qualquer forma, já tava bravo o negócio na Europa em 43. Então, eu tô num período bravo e o Brasil manda os pracinhas mais tarde, acho que manda em 44, acho, né? Mas já devia estar em fase de discussão, de escolher quem vai e quem não vai. E eu tive tios que poderiam ter ido, não foram. Devia ser uma questão nas famílias no Brasil inteiro nesse ano de “quem vai, quem não vai?” O Brasil mandou muita gente pra Itália, mandou muita gente pra Itália. E todo mundo que tivesse nessa idade aí, corria o risco de ir. Então havia privações, sim, mas a cidade de Campos, diferente do que acontecia no Brasil todo, era uma cidade muito próspera nesse período. Sempre foi, é uma cidade até hoje com uma certa prosperidade. Foi importante, foi muito mais importante até no passado do que é hoje, no ponto de vista da sua contribuição econômica, financeira, desde o tempo do Império, fala-se que Campos rivalizou no século 19, no início, até com São Paulo, por quê? Porque era uma cidade que era mais ou menos do mesmo tamanho. São Paulo não era muito maior que Campos nesse período, naquele período, obviamente, e tinha uma elite na cidade, na produção agrícola muito forte que financiava grande parte das despesas da corte do Rio de Janeiro. Então tinha uma certa força política.
P/1 – Uma ascendência, né?
R – Uma certa ascendência e isso gerou… Depois caiu, mas foi, por exemplo, a primeira cidade do Brasil a ter luz elétrica na rua, até hoje é isso, 1800 e pouco, o Imperador foi lá duas ou três vezes, o imperador Dom Pedro II. Tem algumas histórias importantes da cidade, uma elite rural, forte na região, se produzia muito, o café teria nascido inicialmente naquela região e teria vindo, depois, percorrendo pelo Rio de Janeiro, subindo, chegando até São Paulo e hoje tá lá pro lado de Minas e Paraná, né?
P/1 – Espírito Santo…
R – Também Espírito Santo. Essa coisa do açúcar era muito poderoso nesse tempo, uma cidade sempre com tradições muito fortes, inclusive no campo cultural. No campo cultural, tinha vários veículos de imprensa diários, tinha… Meu pai trabalhou muito tempo nessa Folha do Povo, que era diária. Hoje em dia eu tenho impressão que só tem um diário em Campos e o restante são jornais que uma vez por semana… Também mudou muito a coisa da imprensa pelo país afora, aliás, pelo mundo afora. Eles tinham orgulho de dizer que tem duas Academias de Letras. É verdade.
P/1 – Então falando dessa parte de cultura na sua vida, o quê que você lia? Você lia?
R – Olha, a gente tinha muita coisa pra ler, eu me lembro do Tesouro da Juventude, que era uma coisa importantíssima, muito curioso, porque dava uma enciclopédia vastíssima, tipo uma Barsa na época, né? Tinha tudo que você quisesse saber e tinha a coleção inteira, então a gente procurava, lia, eu me lembro muito de Seleções, a famosa Seleções do Reader’s Digest, lembra? Que acho que existe até hoje, não? Eu acho que não existe mais.
P/2 –Seleções existe.
R – Existe? Então, aquilo era fantástico! Era uma coisa… Muita historinha, a gente lia muito. Livros, Monteiro Lobato, eu li Monteiro Lobato, muita historinha de… A escola já incentivava a leitura e a família incentivava a leitura.
P/1 – A família sua incentivava?
R – Incentivava a leitura, o canto, a apreciação da música, teatro, até teatro, eu fiz teatro.
P/2 – Mas isso o seu pai, a sua vó?
R – Isso era meio tradição da família toda. Meu pai era mais da música, do canto, da música popular, tocando violão, cantando com a gente, entendeu? Mas em casa, publicações várias, né, sobretudo essas publicações mais de fusão de informação, de enciclopédica, famoso Tesouro da Juventude, eu me lembro que eu devorava aquilo. E a escola, né, a escola tinha uma certa orientação forte no sentido de fazer a gente ler Monteiro Lobato, outras publicações. Eu lembro que mais tarde, eu comecei a ler coisas mais próprias de jovem, Júlio Verne, aventuras famosas…
P/1 – Tem alguma livro que foi marcante, que você lembra, na sua vida?
R – Não. Olha, livros marcantes na minha vida… Eu não me lembro, não, assim, forte, não. Mais tarde eu li muito, mas já pré-adolescente, adolescente, sim, tipo toda coleção do… Tinha um herói de um autor alemão chamado… Como é que ele chamava, meu Deus? Histórias de índios na América, o mini Itu, eu lia tanto aquilo, achava aquilo extraordinário. Tinha Júlio Verne, sim, famosos… Aquelas aventuras dos submarinos náuticos, tinha muita… mais tarde, coisas mais sofisticadas um pouco do Conan Doyle. Eu lia muito, mas sempre fui muito incentivado a ler como… Era muito distribuído, não havia uma publicação que me… Eu gostava muito de ler, realmente, era coisas assim, mais divulgação, mais tipo Seleções,Tesouro da Juventude, eu me lembro que a gente acabava com aquela coleção, lá.
P/1 – E o futebol era importante?
R – Jogava futebol, futebol sempre foi importante…
P/1 – Mas você é fluminense?
R – Fluminense. Família…
P/1 – Já era fluminense naquela época?
R – Não, aí é curioso. Sim, família toda fluminense, meus irmãos, meu pai… Minha mãe, dizem que ela era Flamengo e a família da minha mãe é tudo Flamengo, meus tios, tudo Flamengo, mas o meu pai era fluminense, então a gente… Todo mundo, meus irmãos todos, somos todos fluminenses até hoje. E é uma marca forte na família, que segue, vê resultado, até hoje se liga quando tá mal ou quando tá bem, fala...
P/1 – Vocês iam no jogo? Escutavam pelo rádio?
R – Tentava. Ouvia no rádio, o meu pai adorava ouvir jogo no rádio. Eu me lembro que ele ia dormir à noite, quando tinha jogo, punha aquele radinho de pilha e ficava ouvindo e a gente lá. Quando começou a ter rádio de pilha, que foi mais tarde isso, né, no início era aquele rádio de válvula, mesmo, que mais fazia barulho do que se ouvia, mas a gente ouvia muito a Rádio nacional, era muito presente, muito forte. Muito forte! Teatro, minha tia Delia, ela tinha uma tradição na cidade de ser ponto. Sabe o que é ponto, né? Ponto é aquela pessoa que fica soprando para todos…
P/1 – Ah, ser ponto?
R – É, fica dentro de uma caixinha, na frente do palco. Minha tia Delia era ponto conhecido em Campos, era famosa, me levava para os ensaios, umas peças que eu não entendia nada, ficava lá vendo os ensaios, ela era ponto. Era ponto, tia Delia foi ponto. Nunca representou nada, era ponto. E hoje tem, né? Você viu no Rei da Vela tinha um ponto no palco, o ponto dentro do palco, lá sentado, de vez em quando, a pessoa levantar, andar e tal. O ponto ficava escondido numa espécie de uma… Sabe esse retorno que tem hoje? Parecia um retorno, que é hoje um retorno, era uma casinha, um buraquinho ali que a pessoa ficava na frente ali dizendo para os atores… E lá em Campos tinha esse negócio do teatro que a minha tia Delia era ponto. Havia também teatro infantil, eu participei, o Trianon de Campos era um teatro antigo, que não existe mais, foi derrubado, virou agência de banco, eu representei naquele palco uma história de João e Maria, era o macacão que ia pra lá e pra cá, no fundo do palco, uma coisa assim. Então, era uma coisa interessante isso na cidade. A cidade sempre teve muito agito, muita atividade, sabe, uma vida muito própria. A cidade de Campos e as famílias, naturalmente, que fazem a cidade, né, porque a cidade em si, isso é próprio das famílias, as famílias tradicionais, é uma cidade com famílias muito tradicionais, era uma cidade com famílias muito tradicionais, muito arraigadas, muito orgulhosas da própria cidade. Isso é curioso. Recentemente, há duas semanas atrás, eu voltei lá para receber um prêmio que eles me atribuíram, o jornal local e a gente nota até hoje, é uma cidade muito orgulhosa de si mesma.
P/1 – Até hoje?
R – Até hoje. E lá, naquele tempo, acho que era mais ainda. Então tinha uma vida muito própria e mais do que isso, como é uma cidade que não tem nenhuma próxima do mesmo porte, era um município muito grande, uma cidade muito… A cidade mais próxima de Campos em termos de peso e de importância é o Rio de Janeiro e Niterói, que para os campistas, na época, falo isso de brincadeira, obviamente, né, que era a capital do Estado, Niterói era capital do Estado. Para os campistas, não era considerada, era como se fosse um bairro do Rio de Janeiro. Para os campistas, Niterói não tinha nenhum significado. A cidade mais importante do Estado não era Niterói, era Campos. E tinham até pretensão, alguns velhos campistas, de que um dia se criasse o Estado da Paraíba do Sul e que Campos fosse a capital do Estado. Foi uma capitania hereditária que deu certo, né? na história brasileira, uma das únicas capitanias hereditárias que deu certo, uma das únicas que deu certo foi a Paraíba do Sul, que era sediada em Campos, que era próspera, única que realmente funcionou bem no século 17, nas capitanias hereditárias. Então essa tradição é forte em Campos até hoje. Até aquela época, pelo menos, né? Suas igrejas, seu patrimônio histórico, não cuidam de nada, tá tudo caindo aos pedaços, mas na época, essa igreja, por exemplo, do Terço, que era a igreja frequentada pela família, próxima, onde a minha vó tinha uma atuação importante, onde havia lá uns padres holandeses que eram muito dinâmicos, tinham uma atuação intensa na cidade, eu passei lá recentemente, tá praticamente abandonada, tá uma igreja caindo aos pedaços do lado de fora, nem entrei, nem sei se pode entrar. E como aquela tem outras em situação parecida. Sem falar de igrejas que já foram derrubadas, né? Que estavam em algum lugar que hoje deve ter algum edifício, algum shopping, alguma coisa, entendeu? Então, na realidade, essa cidade é muito ciosa das suas tradições, das suas histórias, dos seus hábitos, dos seus costumes, das suas festas, do seu carnaval, que era o carnaval típico da cidade, né? Com coxo na rua, com blocos na rua, com coisa muito intensa e tudo isso a gente tava metido nisso, minha família sempre muito atuante. Meus tios eram membros de todo clube local, tem dois clubes importantes, Automóvel Clube e Saldanha da Gama, são dois clubes fortes, esportivos e sociais, eram. Tudo eu falo “eram” porque eu tenho tudo na memória, de lá pra cá, as coisas mudaram, provavelmente não têm a mesma força que tinham antes. Suas faculdades, suas escolas, tem lá universidade importante do norte fluminense agora, na época, não tinha universidade em Campos. Na minha época não tinha, tinha alguma faculdade, algum curso isolado, mas universidade não, agora tem várias universidades lá. Então eu, na realidade, estava inserido nesse ambiente. Mas com a ida pra Friburgo, atraído por uma possibilidade de estudos, a coisa do seminário também foi colocado, mas era uma coisa menos importante para uma criança de dez, 11 anos de idade, que era o meu caso. E Dilmar também foi mais ou menos com essa idade ou talvez até menos, antes de mim, não dá para dizer que era uma resolução definitiva estabelecida, o quero ser padre: “Quero fazer o seminário para me tornar padre”, era uma coisa que fazia parte de uma evolução natural pelo fato da gente estar muito envolvido na igreja, estar envolvido nas ações todas, ali, ligadas à religião e que fazia sentido. E também fazia sentido uma outra coisa, que era mudar, sair…
P/1 – Você queria sair?
R – Sair daquele lugar, que é muito legal, era confortável e tal, mas era uma alternativa que aparecia como algo muito seguro, muito legal, muito atraente, muito atraente.
P/1 – Não tinha relação com o…
R – Não! Profundo, não. Tinha algum, mas não era tão profundo. Havia a possibilidade de você ir para um lugar confortável, onde você podia estudar, você ter uma infra muito legal, do ponto de vista da sua educação, da sua diversão, do seu prazer, da satisfação, das suas amizades, dos seus encontros e tudo que você tivesse à sua disposição de maneira bastante segura, era uma coisa que te oferecia muita segurança e te oferecia, também, algo que você desejava ter, que era uma vida… Estudar? Nem era uma coisa tão importante para você com dez, 11 anos: “Eu quero estudar muito!”, não, mas brincar muito, se divertir muito, aproveitar muito num lugar muito agradável. E o incentivo familiar, né, aí minha vó, tios nem tanto, mas a minha vó…
P/1 – Seu pai?
R – Meu pai menos. Nunca foi muito assim…
P/1 – A sua vó foi a pessoa que…
R – A vovó Donana, a vovó Donana. E o fato do meu irmão mais velho ter ido primeiro, né? O Dilmar foi e eu disse: “Poxa, eu vou atrás, claro. Super legal”. Nós éramos muito unidos, somos até hoje a nosso modo.
P/1 – E o Dalmir?
R – Dalmir a essa altura já tava em Niterói.
P/1 – Então, foi assim, o Dalmir já tinha ido embora, o Dilmar tinha ido para o seminário e você o seguiu?
R – Eu fiquei, fui atrás e o Daniel foi morar com o meu pai e a minha madrasta, na outra casa, noutro lugar, noutro bairro da cidade e foi cuidar da vida dele, entendeu? Foi terminar o ginásio, o Liceu e, posteriormente, entrou na faculdade de Medicina em Vitória, onde ele veio fazer o curso de Medicina, entendeu? Não tinha Medicina em Campos nesse tempo, eu acho. Depois disso, teve, mas naquela época, não tinha. Então a família toda se dispersou, nós quatro nos dispersamos e é curioso uma coisa muito interessante, observar aqui, todos os quatro, nós quatro tivemos oportunidade de formação razoável, e eu diria bastante sólida no caso do Dilmar, minha, Dalmir e Daniel também, cada um numa profissão. Dalmir como advogado, Dilmar como professor, eu com a minha carreira de sociólogo, de administrador e aqui e Daniel como médico. Todos com carreira universitária e todos reconhecidos. É uma evolução da família, por quê? Porque os meus tios todos, irmãos da minha mãe, são os mais próximos, eu não tô falando dos meus tios parentes do meu pai, que eu confesso que eu não tinha muita ligação. Meus tios do lado da minha mãe, nenhum tem formação superior, nenhum!
P/1 – Então foi uma mudança, mesmo?
R – Foi uma mudança, uma evolução… Poderiam ter tido? Poderiam, mas não em Campos, porque não tinha curso superior em Campos efetivo.
P/1 – Então, essa valorização dessa educação veio da onde?
R – Meu pai achou muito importante, sempre, é uma pessoa que valorizou isso sempre, né? Mas as oportunidades favoráveis à saída. O Dalmir fez curso de Direito fora de Campos, nós fizemos cursos superiores fora de Campos, o Dilmar e eu e o Daniel também foi fazer o curso superior dele de Medicina, tá certo que em Campos, depois, teve um curso também de Medicina, mas foi em Vitória, Espírito Santo. Então houve uma natural dispersão que rendeu um resultado mais oportuno, né? A minha tradição, os meus primos, acho que são poucos os que têm formação superior, que não era um valor na cidade, porque você se empregava muito rapidamente, o sonho de todo mundo era se empregar, primos, parentes, gente se empregar num serviço público, no Banco do Brasil ou em algum lugar, entendeu?
P/1 – Caixa Econômica?
R – Até hoje tem gente que pensa assim, no interior então, isso é fortíssimo! No Exército, tem gente que entra no Exército e nunca foi um valor muito grande lá, não, mas tem gente que pensa assim, né?
P/1 – Banco do Brasil, né?
R – Banco do Brasil era um concurso prestigiadíssimo! E um concurso público qualquer que garantisse para as pessoas uma renda, uma permanência num emprego razoável. Pouca mentalidade nossa, bem voltada a esse mundo burocrático, né, como uma tradição da nossa formação. Então isso atraía também lá muita gente e tios, primos, muita gente entrou nesse esquema. Então Campos tem a sua importância nessa primeira fase, mas de certa maneira, contraditoriamente, a evolução natural exigia sair de Campos. Dalmir sai de uma forma direta, vai pra Niterói se virar, nós dois saímos via seminário, Daniel vai mais tarde fazer o curso e continua em Campos até hoje, Daniel tá lá até hoje como médico da cidade e trabalha em vários lugares, enfim, tem sua vidinha lá.
P/1 – Então agora, Danilo, o que a gente vai fazer, a gente vai contigo para o seminário. Se você quiser dar uma paradinha…
PAUSA
P/1 – Danilo e o seu avô?
R – Vovô Messias. Então, vovô Messias era um paulista do interior, nascido em Vargem Grande. Vargem Grande, quando ele nasceu, no final do século 19, não sei exatamente quando era parte da cidade de São João da Boa Vista. Hoje é um município à parte. Eu digo isso porque a gente já tentou algum documento, alguma informação de cartório, porque ele chegou em Campos nos anos dez, 11 do século 20 sozinho e lá constituiu família. Ele não tinha parentes, não tinha ninguém, sozinho. De forma que a gente não tem uma clareza dessa origem. O meu Santos é dele: Messias Urbano dos Santos, Danilo Santos de Miranda. O Santos que eu tenho é dele e é dessa origem que eu mencionei, como eu disse, ele teve uma passagem por São Paulo, se envolveu com essa formação no mundo da farmácia e posteriormente foi pra Campos pra iniciar uma operação da Drogaria Pacheco lá na região e, mais tarde, fez a carreira dele, casou-se lá e constituiu família. E eu, realmente, não tenho indicação clara desse Santos de Vargem Grande, São João da Boa Vista, o quê que rendeu isso. Temos algumas suspeitas de algumas pessoas que poderiam ter a mesma origem, a mesma família, mas não é uma coisa taxativa, ainda, ou quem sabe, um dia a gente consiga uma informação mais precisa. Mas era um homem muito bem dotado, conhecia muito bem o ofício, era reconhecido na cidade toda como alguém que dominava essa habilidade de lidar com ervas, com remédios, e teve toda uma trajetória produzindo muito, ele tinha habilidades não só no campo dos remédios, mas em alguns campos, eu me lembro que na família, na época de algumas frutas, ele gostava de juntar muita fruta e fazer um licor, fazer algum preparo especial, eu me lembro que ele preparava um licor de laranja em casa que era uma delícia que ele distribuía. E ele sabia fazer não apenas o preparo, o cozimento da laranja para fazer o licor de laranja, aquele trabalho todo, como fazia uma embalagem, aquelas embalagens antigas que você pega um papelzinho, põe na ponta da garrafa e faz uma espécie de um fechamento dobrando, plissando assim, lateralmente, o papel especial e depois fecha com uma espécie de um fio, né, e que fica vedado, né? Eu lembro que aquilo se produzia quase industrialmente em casa porque ele dava para muitas pessoas, aquilo era uma coisa que se preparava para amigos, era uma coisa que ele distribuía, não era vendido, era um coisa que não tinha nada a ver com a farmácia. E outras habilidades dele, era uma pessoa muito reconhecida, muita gente ia atrás para buscar remédio. Para várias coisas ele era muito conhecido e muito respeitado. Muito respeitado. E ele tinha algum envolvimento com a loja maçônica, eu não tenho detalhes completos sobre isso, porque sempre foi cercado de um certo segredo na família, porque minha vó muito religiosa, meu avô, loja maçônica, antigamente isso era quase que conflitante. Mas ele, lá pelas tantas, não sei também porque cargas d’água se rompeu, saiu fora da questão da loja maçônica. Há quem diga que por causa disso, ele fracassou nos negócios, entendeu? Eu não tenho elementos para julgar isso e nunca pesquisei profundamente para dizer: “Não, é isso que aconteceu, é por isso, isso, por isso”, não tenho elementos para isso, mas há uma… Na família, há quem diga que isso teria acontecido em função do rompimento e eu não posso afirmar isso categoricamente, mas é curioso, porque depois disso, realmente, ele não se ergueu nunca mais.
P/2 – E como é que ele era com vocês?
R – Muito firme, muito simpático, muito agradável, gostava de brincar com a gente, mas era uma pessoa, ao mesmo tempo, bastante séria, bastante… Mas tinha momentos, né? Muito respeitado. Era na época em que o vovô tá aí, cuidado, vovô, vovô… Vô Messias, não pode sentar na mesa, criança tem que se comportar de um jeito mais adequado, o vô Messias não era um homem alto, era um homem baixo, né, mais baixo do que Donana, o casal era bem diferente nesse aspecto. Ele tinha as feições de uma pessoa típica do interior com uma descendência, eu diria, quase que índia também. Ele tinha o cabelo bem preto, mesmo mais velho, preto, custou a ter cabelo branco, eu não me lembro dele com cabelo branco, olha que coisa! Baixinho, bastante cabelo, coisa que também uma pessoa mais idosa é mais raro, né, e moreno, bem moreno, cabelo liso, preto, lembra mesma a figura de um índio, ele devia ter alguma descendência aí pelo interiorzão de São Paulo, típico brasileiro. Aliás, para mim, é uma coisa que… Aí, aproveitando a marca que trouxe pra mim tudo isso, eu me sinto muito brasileiro mesmo, entendeu? Porque a minha descendência… Meu pai também teria tido negro e índio na sua ascendência, meu pai Afonso.
P/1 – Ele era moreno?
R – Moreno, moreno. Era moreno. Então, eu tenho muito claro que as três raízes brasileiras estão presentes no meu sangue, eu tenho isso. Nunca fiz exame de DNA pra saber, mas eu tenho essa desconfiança. Mesmo que eu não tivesse, culturalmente eu tenho, porque a nossa raiz, essa coisa da música do Chico é muito forte pra mim, né? Essa do “Meu pai era paulista, meu avô pernambucano, meu bisavô mineiro…”, vai juntando uma força muito grande, não é que eu desvalorizo o local onde eu nasci, não, tenho muito orgulho de Campos, estive lá recentemente e fui homenageado e pra mim foi muito importante e a base do meu discurso foi mais ou menos a seguinte: “Ninguém é alguém se não é reconhecido na sua aldeia”, um pouco baseado no Fernando Pessoa. Pra mim, isso é fundamental, então eu tenho muito orgulho da minha aldeia, do rio que passa na minha aldeia, que aliás eu cito isso lá, que é o rio mais importante do mundo para mim, não é o texto como diz Fernando Pessoa, é o rio que passa na minha aldeia que não é o mais belo, mas pra mim é o mais belo. Então, essa brincadeira, esse jogo de valorização da sua origem, então pra mim, isso é muito forte. Mas, por outro lado, eu acho que a nossa formação é muito rica, muito própria, isso da gente ter sangue branco, sangue negro, sangue índio, nos valoriza e nos enriquece num mundo onde essas coisas estão sendo muito questionadas, onde as diferenças estão sendo colocadas de maneira muito forte. E de maneira excludente como: o que eu sou é bom, o que você é, é ruim, isso tá colocado no mundo de hoje. Então, quem mistura tem mais valor nesse sentido da origem, não que é mais do que os outros, ninguém é mais do que ninguém, mas tem, na origem, o argumento que combate essa diferença, que combate essa desconsideração pela diferença, quem tem essas possibilidades todas e eu tenho muito presente, cada vez mais, o mundo tem que ser mais partilhado por todos, com direitos iguais para todo mundo e com igualdade absoluta entre todo mundo. Então pra mim, isso está representado, efetivamente, na sua formação quase que biológica além da formação cultural, acho fundamenta. Mas, enfim, é isso, o meu velho avô Messias que eu conheci bastante presente, em casa, enfrentando os problemas, com dificuldades financeiras no fim da vida, tendo que enfrentar toda a família, a formação da família toda. A família acrescida, porque nós fomos uma continuidade, nós acabamos onerando um pouco também a própria família, se bem que nós saímos, mas de qualquer forma, éramos mais gente em casa, né? Mais gente, mais boca pra comer, né? E o vovô Messias estava ali, segurando tudo, com vovó Donana.
P/1 – Sua vó não trabalhava, né?
R – Não, só em casa. Ela tinha muita atividade, muita atividade fora. Ela era uma pessoa muito antenada, muito ligada a muita coisa, mas trabalhar, não, trabalhar não havia esse tipo de hábito na época. Eu me lembro que Campos é uma cidade pequena em comparação com São Paulo, obviamente, mas ela circulava a cidade toda. Campos tinha bonde, né? É uma das poucas cidades do interior fora das capitais que tinha bonde elétrico, desde o início do século 20, que é o que eu disse, que uma cidade sempre muito prosperam, tinha bonde espalhado na cidade toda. Uns bondinhos, pequenininhos e tal, mas que circulava a cidade toda. Abertos, alguns abertos, outros fechados e minha vó andava… E nós tínhamos um quinto elemento na família, que era o Dick, que era D também, o cachorro que vem conosco, Damir, Dilmar, Danilo, Daniel e Dick. Dick era o cachorrinho. E o Dick era de casa, lá, meu pai, minha mãe, na Rua do Rosário. Com a morte da minha mãe, o Dick vai conosco, é da família, vai junto. E o Dick se fixa mesmo nas pessoas da casa e a minha vó passa a ser a dona do Dick. O Dick ia onde a minha vó estivesse na cidade, ia atrás, subia em bonde, se virava na cidade, as pessoas sabiam que o Dick tava atrás da Donana. Era famoso o Dick, era o cachorrinho da família. Não sei que fim teve o Dick depois. Acho que depois que eu fui para o seminário, ele deve ter ficado doente depois de algum tempo e não tivemos mais notícias do Dick. Mas, enfim, é isso aí: a família era muito envolvida em tudo na cidade, na vida religiosa, cultural, social, escolar, todos estudavam na escola. Nós tínhamos um colégio imenso que era pertinho de casa que tinha a banda mais forte da cidade, a banda de desfile chamada… Hoje é a Escola Federal de Campo, eu acho, mas na época era Escola de Aprendizes e Artífices. A gente falava aprendiz e artífices, né, aprendizes e artífices, que era uma escola profissional muito forte na cidade, que era uma coisa muito antiga na cidade também. E tinha os desfiles de Sete de Setembro e essa escola era muito poderosa, era muito forte e ela saía ali na frente quase da nossa casa, na rua onde a minha vó morava. Do lado, tinha uma banda de música que ensaiava quase toda noite, eu me lembro, esse barulho de banda ensaiando (risos) é muito frequente na minha cabeça até hoje. A cidade tinha várias bandas, uma coisa antiga, tinha três ou quatro bandas e uma delas era ali do lado, a Banda dos Operários. Enfim, a cidade tinha uma vida intensa, muito social, muito poderosa e a família tava sempre muito envolvida em tudo. Pra mim, portanto, era o normal, isso era o normal. Então, você tem na cabeça uma crença até os sete, oito, nove, entre sete e dez anos a ideia de que o mundo é aquilo e dali é que você tem notícias de algumas outras coisas fora daquele mundo, mas até você abrir, você descobrir o que tem fora, demora um pouco. E aí é muito importante toda a experiência que a gente tem posteriormente. A coisa do seminário me abriu, me abriu outra cortina que tava fechada.
P/1 – Então vamos lá, você chegou no seminário.
R – Cheguei.
P/1 – Você lembra desse dia?
R – 1955, janeiro de 55. Lembro.
P/1 – Onde que ficava esse seminário?
R – Esse seminário fica no Colégio dos Jesuítas, Nova Friburgo, chama Chateaux, porque o nome do colégio lá é na cidade Friburgo…
P/1 – O nome do colégio é?
R – Colégio Anchieta.
P/1 – Colégio Anchieta.
R – Popularmente o Chateaux. Um castelão no alto, construção do final do século 19, imponente, tá lá até hoje.
P/1 – Vocês moravam lá? Você chegou para morar lá?
R – Eu cheguei para morar lá, tinha… Para você ter uma ideia, a frente do colégio é uma construção, como eu disse, imponente, antiga, dos jesuítas, tem acho que 21 palmeiras imperiais na frente, de fora a fora. Impressionante, um coisa imponente, né? Muito imponente. Fica num elevado, no alto do morro da cidade, que a propriedade toda ali era do colégio, toda, até o alto do morro atrás, Morro da Cruz, é uma instituição muito imponente e poderosa da cidade de Friburgo. Claro que tinham, outras coisas na cidade, não era a única coisa que tinha lá, mas era sem dúvida nenhuma, a mais significativa e importante como colégio e como seminário lá dentro, Escola Apostólica, que eles chamam, que era o seminário dos jesuítas.
P/1 – Você tinha um colégio no centro da cidade…
R – Não, o colégio, ele faz parte da cidade e ele atendia a população da cidade, como colégio e uma parte lá dentro era o seminário e os alunos desse seminário estudavam nesse colégio.
P/1 – Você consegue lembrar, assim, o primeiro e o segundo… O quê que pum! cheguei lá?
R – Olha, muita novidade, garotada se entusiasma, muita garotada chegando, muita gente de São Paulo, de Minas, do Rio, gente chegando de todas as partes, formando aquele grupo que é o grupo novo e foi curioso porque os padres não me deixaram entrar logo e fazer o exame de admissão pra entrar no ginásio, porque eu tava pronto. Achava que tava pronto, mas eles desconfiaram que talvez eu não estivesse, talvez não confiassem muito ou sondaram, ou devia ter sei lá, alguém para ter dado alguma informação. Em resumo, eu não fiz o curso, não fiz o exame de admissão em janeiro ainda pra poder entrar em março no primeiro ano do ginásio, que seria o normal.
P/1 – O quê que você fez?
R – Simplesmente os padres disseram pra mim: “Você vai fazer o curso de admissão”, antigamente tinha um negócio chamado curso de admissão, que é uma espécie de quinto ano primário, o curso de admissão. Isso em janeiro. Eu com 11 anos, menos que 11 anos, em plena perspectiva de aproveitar tudo aquilo: futebol, molecada, férias, piscina, um monte de coisa pela frente. Falei: “Ótimo, não tem problema, eu faço o curso de admissão”, na mesma hora. Não ia ter que fazer exame, estudar, terminar ali, parar tudo para poder… Achei ótimo, fiz o curso de admissão…
P/1 – Durou um ano?
R – Demorou um ano, eu fiz o curso de admissão inteiro, fui muito bem e logo fiz exame…
P/1 – E era muito diferente as aulas?
R – Outro ambiente, outro… Primeiro, isolamento total, você tinha um ritmo de vida de um colégio interno, não era muito diferente.
P/1 – Me conta como era?
R – Um colégio interno, você tinha hora pra ir na missa de manhã, você tinha a hora do café da manhã, você tinha a hora pra estudar, tinha classe de estudos, almoçar, voltar para as classes de estudo, tinha a hora do recreio, hora de estudar de novo, hora de se preparar no fim da tarde para o jantar, jantava, voltava, estudava mais um pouco e se preparava para dormir. Tudo junto, tudo coletivo, o que significa dizer o seguinte: você sai de uma vida isolada da família onde você administra ou é administrado da forma familiar e vai para uma forma coletiva, profissionalizada, onde tem um padre, que chamava Padre Prefeito, fica o tempo todo te orientando, indo pra lá, para cá, você vai pra lá, vai pra cá, sua vida passa a ser dependente do coletivo. A partir dos 11 anos de idade, minha vida passou a ser dependente do coletivo. Tinha coisas muito legais, mas tinha as desvantagens de uma vida diferente daquela que serve para autonomia que te orienta para autonomia.
P/1 – O quê que você sentiu, assim? Qual era…
R – Eu achei legal, na hora eu achei ótimo, tudo muito bom, eu sou um cara, até hoje, muito adaptável a todas as circunstâncias, tinham alguns problemas, obviamente, mas eram coisas…
P/1 – Tipo o quê?
R – Tinha saudades de casa, sentia vontade de estar junto com os meus amigos na cidade, tinha vontade de enfim, ter a minha cama, de arrumar do jeito que eu queria, claro, da minha vida anterior, mas não era tão significativo, para falar a verdade, porque eu comecei a construir ali também um jeito de viver próprio, né?
P/1 – E você encontrava com o seu irmão?
R – Raramente. O Dilmar já tava… Porque aí eu atrasei um ano e o Dilmar já tava mais na frente, ele ficou nos maiores, eu fiquei nos menores, eram dois grupos separados, praticamente, se encontrava, claro, mas era mais raro, mais diferente. Mais especial, os padres não incentivavam muito esse negócio de irmão ficar junto, de se encontrar porque ali é o coletivo que prevalece. É uma visão meio comunitária, onde…
P/1 – Kibutz.
R – Kibutz, partido comunista, seminário jesuíta, tudo meio parecido, esse esquema, o coletivo prevalece, minha querida, não tem conversa, onde a sua vida passa a ser meio controlada pelo todo e não por você individualmente. Aliás, na formação, o combate ao individualismo, a solução puramente apropriada para uma pessoa, tudo isso é combatido, né, isso é parte do processo educativo numa situação como essa. Isso vale para todo tipo de internação com vantagens e desvantagens, né, essa isolamento de família, esse contato, essa falta de contato com pessoas de todas as características, de outro sexo, você não tinha meninas…
P/1 – Só meninos?
R – Só meninos.
P/1 – Só professor, também?
R – Só professor.
P/1 – Não tinha mulher?
R – Não tinha mulher dando aula.
P/1 – E aí? Vocês estão lá em plena pré-adolescência, como que era essa?
R – Corta-se, toma chazinho, faz alguma coisa, baixa a bola, meu!
P/1 – Mas se conversava sobre isso?
R – Ah, não era discutido abertamente. Essa educação é uma educação que esconde debaixo do tapete, essas coisas mais íntimas do ser humano, sente falta, claro. Eu que já não tinha mãe, já não tinha irmã, não tinha… Mulher pra mim era só depois da adolescência que eu vou descobrir o quê que é mulher e primas e conhecidas…
P/1 – Mas nesse momento você tava achando que você ia virar padre?
R – Ah! Achava, aí achava normal. Achava que isso daí fazia parte de tudo. Não tinha esse apelo, não tinha essa visão da diversidade, diversidade era aquela ali: neguinho de São Paulo, neguinho do Rio, neguinho de Minas, uns jeitos diferentes, aproximação com uns, menos com outros, típica, normal. Muito controle, os padres de olho em tudo, muito atentos a tudo. Uma formação muito cuidadosa.
P/1 – Mas tinha, por exemplo, violência entre os meninos?
R – Raramente, uma vez só eu me lembro…
P/1 – Vocês apanhavam?
R – Não, nunca apanhávamos, nunca! Me lembro que uma vez, mais tarde, quando já era um pouco mais velho, teve um desentendimento lá, o cara começou a querer dar porrada no outro, mas isso foi tão raro, tão pequeno. A gente jogava bola, a gente ia brincar de… Tinha muito esforço físico nas atividades, você gastava muita energia. Isso é estratégia, gastava-se muita energia, você não parava, você ou tava jogando bola, ou você tava brincando, ou você tava estudando, tudo muito… É um sistema muito bem pensado pra esse controle das suas emoções, dos seus instintos, das suas perspectivas, claro, tinha orientação, tinha muita conversa individualmente para cada um, mas havia, claro, algumas dificuldades também do ponto de vista da formação. Se havia alguma coisa, tipo, algum menino atraído por outro, isso passava batido, ou os padres tratavam de uma outra forma, nunca tive nenhuma informação detalhada sobre alguma coisa que pudesse ter acontecido.
P/1 – Não tinha isso dos meninos…
R – Não, não tinha.
P/1 – Não tinha?
R – Não tinha. Se tivesse, não aparecia.
P/1 – Nem com os padres também?
R – Também não, nunca teve.
P/1 – Mas tudo isso que a gente escuta?
R – Não lá. Lá não. É verdade, isso existe, essa coisa da presença de atrações, ligações com a questão da pedofilia na Igreja, esse negócio todo que se fala hoje em dia, lá dentro não se observava isso. Não era uma coisa relevante no dia a dia. E se tinha devia ser muito bem camuflada, da qual eu nunca fui objeto da atenção deles. Nunca. Então, eu não tenho isso como um fato relevante. Muita atividade em todos os campos. Para você ter uma ideia lá, eu tinha além do estudo, que eu levava a sério, razoavelmente, não era brilhante…
P/2 – O que vocês estudavam?
R – Curso normal de uma escola, História, geografia, matemática, Inglês, Francês…
P/1 – Latim?
R – Latim, grego mais tarde, curso normal. Tinham alunos externos, hein?
P/1 – Religião, você tinha aula de Religião?
R – Tinha também, tinha também. E eu era um aluno razoável, não era brilhante, mas era um dos melhores da classe, não era o… Estudava muito. Agora, muita atividade esportiva, intensiva atividade esportiva, muita atividade cultural, teatro, música, participava de coral, era membro da banda, fazia parte de tudo. Tinha escotismo entre os alunos, que a gente também participava, eu não participei, mas tinha quem participasse. Trabalhos, se trabalhava muito. Trabalho o quê que era? Você ter, por exemplo, um pedacinho do jardim que era o seu canteiro. Você era responsável por aquilo, você plantava, você colhia, você via… Jardim, não horta, jardim. Então, você tinha uma, duas vezes por semana que você ia lá cuidar do seu jardim, todo mundo tinha o seu pedaço. Era uma coisa muito própria, você tinha festas importantes, onde o trabalho da comunidade era muito forte, da comunidade escolar, por exemplo, dia de Corpus Christi que é um dia famoso na história lá do Colégio Anchieta, o campo de futebol todo que não era de grama, era terra, mas era muito grande era transformado num tapete: areia, tinta e pó, essa coisa toda onde se fazia desenhos, onde se… Coisa religiosa, obviamente, e você subia no morro em frente e via aquilo tudo em perspectiva, era uma coisa muito legal os tapetes do Colégio Anchieta. E nós fazíamos aquilo. Claro, tinham os carinhas que eram mais… Os mais velhos desenhavam, tinha o padre que era especialista em desenho, que criava não sei o que lá, a gente ia lá carregar areia, botar no chão e era uma coisa sofisticada, vinham visitas da cidade no dia de Corpus Christi pra ver o tapete. E o tapete era usado na hora da procissão que se passava em cima com o santíssimo sacramento, era parte da coisa e depois se refazia tudo, deixava lá uns dias, naturalmente que se chovesse ia tudo embora. Mas então, era um período de pouca chuva. Tapetes famosos, tinha muito campeonato, muito jogo contra… Os internos contra externos, nós éramos internos, né, contra os externos, contra colégio de fora. Havia um colégio importantíssimo da Fundação Getúlio Vargas chamado Colégio Nova Friburgo, era uma experiência que a Fundação Getúlio Vargas fez, um colégio interno em Friburgo que era chamado… Colégio Nova Friburgo, que era no outro lugar, parecido com o Colégio Anchieta, mas mais pra frente um pouquinho, era conhecido como acho que era Cascatinha o nome do espaço, enfim, a gente jogava contra… Que também era um colégio interno só de meninos, da Fundação Getúlio Vargas.
P/1 – Danilo, você tava longe de Campo, quer dizer, chegava no domingo, o que você fazia?
R – Domingo a gente tinha atividade o tempo todo, tinha missa de manhã, tinha recreio, tinha estudo…
P/1 – Vocês nunca iam pra cidade?
R – Raramente. Ia pra cidade de vez em quando, sim, raramente, mas ia. Mais tarde, quando mais adolescente, a gente ia mais. Pra quê? Pra algum trabalho social, tinha o morro lá perto que a gente dava uma espécie de assistência, ia lá conversar com todo mundo, reunir as pessoas numa espécie de catequese religiosa, atividades culturais numa comunidade lá perto, numa espécie de uma favela. A gente ia em Friburgo, distribuir coisas, enfim, tinha um atividade, sim. Mas era mais raro. E aí a gente tinha intercâmbio com outros colégios, tinha um colégio de freiras, perto, que as meninas… Aí, a gente começava a ter contato com as meninas, também fazendo algum tipo de trabalho, mas muito superficial, muito rapidinho. Eu tive um episódio muito complicado que me atrasou mais um ano, você vê que eu dancei nessa, duas vezes. E no ano de 57, no período de férias, os padres tinham uma propriedade próxima de Friburgo, num lugar chamado Monnerat perto de Duas Barras e Friburgo, uma casa de férias enorme, muito grande onde a gente ia também passar férias lá. Um período das férias se passava em casa, eu ia pra Campos, no caso, as pessoas iam cada um para a sua cidade, mas outro período, a gente passava junto, era parte do programa um período de férias juntos e ia para Monnerat, dez, 15, 20 dias lá. E lá, jogando, participando de jogos de campo, jogos de grupos que prendem, enfim, brincadeiras meio de escoteiros e que você faz uma espécie de competição, de dois grupos, um se esconde, os outros vão atrás e se pegam entre si e prendem e tem um jeito de prender. Havia uma tirazinha que você punha no outro e prendia. Enfim, nessas brincadeiras, no campo, solto no campo, boi, vaca, plantações, a gente estava no campo. E eu com 13, 14 anos, um pouco depois, eu caí no barranco e quebrei o braço, horrível, né, braço quebrado! Aquilo me forçou a voltar, puseram no lugar, mas foi um serviço meia boca, né? Aí, aquilo colou, o meu braço ficou meio esquisito e eu fui jogar bola, quebrou de novo. Não tinha sido bem feito e aí também, mais uma vez, fizeram um serviço meio mal feito e o padre ficou preocupado e ligou para o meu pai. Ligou para om meu pai e disse: “Olha, aconteceu o seguinte, ele quebrou o braço duas vezes já, nós estamos preocupados e acho que vai ser necessário levar para algum hospital mais completo, o serviço aqui não foi bem feito”; e o meu pai, muito ligado a muitos médicos em Campos, a Santa Casa, no hospital consultou um amigo dele, Doutor Fernando Alvarenga, um médico lá de Campos: “Traz ele pra cá, nós vamos ver isso aí”. Aí no início do ano de 57, ou alguns anos depois, tanto que eu já tava lá, eu tava dois anos em meio, por aí, eu fui pra Campos, eu me lembro que eu desci com o braço quebrado de trem até Niterói e o meu pai me esperou na estação em Niterói e de Niterói, fomos para Campos de trem. Isso foi muito marcante pra mim, isso foi um momento muito especial…
P/1 – Viajar sozinho…
R – Viajar sozinho, meu pai esperando em Niterói e eu na dúvida se eu ia achar o meu pai ou não, claro que tava tudo combinado, bonitinho, mas a gente sempre fica… né? Eu me lembro que eu cheguei em Niterói preocupado, é uma viagem curta de Friburgo a Niterói e o meu pai tava lá me esperando, foi um momento muito especial da minha vida, tanto que escrevi isso num texto que uma vez eu publiquei num livro sobre o pai, que um amigo meu fez, o Luiz, fez um livro sobre experiências com o pai e eu contei essa história. Realmente, foi muito marcante. Meu pai tava lá me esperando na estação em Niterói, fomos pra Campos e lá eu fiz uma intervenção cirúrgica muito complicada na época, onde o médico refez todo o trabalho e eu tenho marcas no braço até hoje, né, dessa operação quando eu tinha 13 pra 14 anos. E depois voltei, continuei e perdi um ano nessa brincadeira, novamente acabei perdendo mais um ano naquela brincadeira. Já tinha perdido um, perdi mais um. Mas não teve problema nenhum na minha formação, continuei sendo o aluno de sempre, mas aí, eu já tinha mais cuidado quando jogava bola, a partir desse momento.
P/1 – Você tinha quantos anos, Danilo?
R – Treze, 14 anos.
P/2 – Você voltava pra casa de quanto em quanto tempo?
R – Uma vez por ano.
P/2 – Uma vez por ano?
R – Só! Não era colégio interno, propriamente, era um seminário, era essa mistura entre colégio interno e seminário, entendeu? Como seminário, era uma vez por ano, tinha parte das férias junto com todo mundo.
P/2 – Tinha um período que vocês rezavam?
R – O tempo todo! Rezava de manhã, de tarde e de noite. Você reza quando acorda, vai na missa, reza, depois da missa, você vai pra refeição, reza na refeição. Você reza antes da aula, você reza antes do estudo, só não reza antes do jogo.
P/1 – Reza antes de dormir…
R – Reza antes de dormir, reza o tempo todo, coletivamente.
P/1 – Danilo, o quê que isso…
R – Foi marcante, foi um jeito de disciplina, organização de vida, que eu, particularmente, não guardei tanto, mas o metido de você fazer coisas organizadas, pra mim, foi importante. “Ah, mas isso não é importante”, não era importante e agora, não é mesmo, mas pra mim foi interessante ter uma metodologia, um jeito de fazer, que isso vai me ajudar a vida toda. Até na prática, tem músicas que eu canto, cantava para as minhas filhas e canto para os meus netos que era dessa época, né?
P/1 – Tipo o quê?
R – Ah, tem uma famosa que eu canto que é sobre… Como que era? [cantando] “Vem te calma sobre a terra, desce à noite, foge a luz”, para dormir, né? “Vem agora despedir-me, boa noite, meu Jesus”. Isso a gente cantava no colégio, todo mundo junto e tal. Uma coisa assim, antes de dormir, uma coisa para… Os padres são muito inteligentes nesse aspecto de por volta das oito e meia, oito e pouco, o recreio barulhento, música, correria, ele vai se tornando mais lento, ele vai sendo mais… Pra você ter uma noite tranquila. Isso significa que quando você termina, você vai… Tem uma música como essa que você canta, todo mundo junto. Você vai dormir, não é que você tá serenata, tudo, mas você vai dormir com a bola mais abaixada, entendeu? E não agitado, excitado. Essa metodologia, até hoje eu sinto falta, às vezes, em casa que eu quero fazer minhas netas dormirem, enfim, tentar baixar a bola, hoje não tem jeito isso mais, mas na época funcionava. Era importante. Eu me lembro que eu, mais tarde, quando era mais adulto ou mais no fim da adolescência, eu acompanhava os menores nas férias, às vezes, como um monitor, para dar um exemplo, e passava lá como espécie de auxiliar para brincadeira, uma espécie de animador para atividades, para dar cavalo nos moleques mais novos, para ajudar no jogo de futebol, para orientar na piscina, pra isso, pra aquilo, uma espécie de monitor ali, né? Os mais velhos já no colegial iam com os mais novos pra essas férias. E eu me lembro de um episódio interessante que o padre, o responsável prefeito que chamava por esse grupo de jovem, que chamava a gente pra ir, eu e mais um outro e tal. E eu me lembro que quando estava para acabar, tipo um dia antes, dois dias antes, eu já ficava meio excitado, porque eu queria voltar, então já transmitia isso de preparar as coisas, de guardar as roupas, de guardar papel, livro, as coisas, botar na mala, já ir preparando tudo. Eu me lembro que o padre… Como é que ele chamava? Virou pra mim e falou: “Não, não faça isso. Não prepare dessa maneira para que aproveitem até o fim. Porque se você começa nesse momento, dois, três dias antes a baixar a bola – não foi essa expressão que ele usou, obviamente – diminuindo a atividade, você já termina as férias das crianças. Então é para terminar no dia que é para terminar, então não tem nada de preparar nada antes, você não tem que estar pondo as coisas, guardando antes de fechar”, isso vale também para a questão da noite, na hora de dormir, aí é o contrário, de você preparar as pessoas para dormir, você preparar as pessoas para o que vem depois, entendeu? Isso é muito interessante, isso é uma filosofia, um processo educativo muito curioso que os jesuítas empreendem de maneira muito estudada, eu diria, coisa muito antiga, muita experiência educacional. Então, nesse sentido, sempre foi uma metodologia muito forte essa de, uma outra metodologia. Isso mais na frente um pouco, quando eu já entrei no noviciado, quando eu terminei Friburgo e vim para Itaici, aqui, perto de São Paulo, perto de Indaiatuba pro noviciado, que a iniciação efetiva no mundo religioso dos jesuítas, você é treinado a meditar. O que é meditar? Você esvaziar a cabeça, relaxar o corpo, ter um pensamento, refletir sobre ele, ter uma metodologia com esse pensamento, buscar elementos que vão fortalecer, elementos que vão ameaçar, elementos que vão prever o futuro com relação aquele pensamento, com relação à questão religiosa, vale pra tudo, vale pra vida, vale pra qualquer coisa. Então, isso é meditar tem a ver com princípios fundamentais para o ser humano refletir sobre as coisas, meditar é isso.
P/1 – Mas como era? Vocês meditavam todo dia?
R – Lá não, nesse período de Friburgo, não. Isso é mais tarde, quando eu termino, faço o clássico, um clássico muito puxado…
P/1 – Você fez um clássico em…
R – Lá em Friburgo, eu fiz o ginásio completo naquela época, completei o ginásio, me formei no ginásio e continuei lá. Fiz o clássico, primeiro, segundo e terceiro colegial. Clássico, clássico com muita informação de científico, também, com muita Química, Física, Biologia, mas era clássico, por quê? Porque tinha História, Latim, Grego, e toda parte humanista muito forte também…
P/1 – Filosofia?
R – Filosofia. Então era muito forte, muita Literatura, muita leitura, muito cinema, muita Arte, esse é um período muito, muito interessante, eu tive muita atividade nesse campo, porque os padres jesuítas… como eu era seminarista e estudante, eles queriam e querem sempre que os futuros jesuítas sejam os melhores em tudo, então tem que estudar tudo. Tem que estudar muita Filosofia, muita Matemática nesse período, então não tem conversa, você fazia um clássico e científico ao mesmo tempo. Muito puxado, muito puxado.
P/1 – Você estudava muito, então?
R – Estudava muito, muito, muito. Estudava Matemática em nível muito elevado, eu me lembro que era discutir um problema durante uma semana, entendeu? Eram questões que duravam dias, né, onde você ia buscando hipóteses e criando soluções e aplicando possibilidades e acertando aqui, errando ali, ia começando de novo, era um trabalho científico de formação mental, fortíssimo no clássico. Científico, mesmo. Latim a mesma coisa: latim, você pegava uma frase inteira, dissecava aquela frase, vendo tudo que tava naquela frase de regência, de complementação, de possibilidades, era quase Matemática aplicada à língua.
P/1 – E você gostava disso?
R – Achava maravilhoso!
P/1 – Você teve algum padre que foi especialmente importante?
R – Alguns padres muito…O Padre Barros, por exemplo, era um padre extraordinário que me orientou na Literatura e Cinema. Cinema. Eu me lembro que ele me fazia… Primeiro, filme, né, ele gostava de Cinema, Cinema novo. Então eu me lembro de ter visto, por exemplo, várias vezes, Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos. Aquele filme ficou dissecado, eu tinha detalhes daquele filme todo na cabeça e tinha uma paixão, li o livro, Graciliano Ramos e vi o filme. E o Padre Barros é que cuidava disso tudo. E no fim, ele me fez, fazia toda classe, claro, escrever alguma coisa, mas que não tinha nada a ver com aquilo, mas de uma maneira muito própria. Eu me lembro de ter escrito uma crônica sobre um amigo que eu conhecia e que me era muito caro para quem eu escrevia uma carta e que… Mas era escrito com uma leveza, ele nos fazia ler muito alguns cronistas importantes da época, que tinha um peso no JB, importantíssimo, tinha o caderno B ou era o caderno 2? Caderno B do JB, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Rubem Braga. A gente lia todos os dias uma crônica dele, então a gente tinha uma leveza, porque eles escreviam maravilhosamente e de uma leveza enorme. Então aquilo, pra mim, com 16, 17 anos, aquilo era uma coisa extraordinária e para o Padre Barros eu escrevi essa crônica, essa história desse amigo e esse fato de uma maneira muito leve, eu me lembro que ele ficou encantado com aquilo porque eu tava imitando os caras, Paulo…
P/1 – Murilo Mendes…
R – Não, Paulo. Paulo… não, eu confundo…
P/1 – Paulo Mendes da Rocha, não, Murilo Mendes.
R – Não, tem Murilo Mendes, mas tem Paulo Mendes Campos. Murilo Mendes eu não tinha… Paulo Mendes Campos. Era um dos cariocas típicos…
P/1 – Mineiros.
R – Mineiros, mas com espírito carioca, tipo Ruy Castro, ou seja, eles consideravam todos cariocas, mas todos vindo de Minas, mas que tinham aquele jeito carioca de ser, que eu tinha uma adoração e o JB, o caderno B do JB era de uma riqueza, eu guardava pilhas e pilhas, conseguia, porque não era muito fácil conseguir, que não era pra gente que chegava o jornal, chegava lá para a comunidade, ei ia lá, surrupiava e guardava o Caderno B, né? Que era o caderno cultural do JB, né? Fortíssimo, era uma coisa que me orientou muito na vida, do ponto de vista de informação mais no campo da literatura, do cinema, nas artes em geral.
P/1 – Nós estamos falando de 60 e?
R – Sessenta e pouco, né, antes do Golpe. Minha fase nesse período foi riquíssima, porque eu tinha também uma vinculação política já despertando para esse mundo da política. Tem vários fatos curiosos: primeiro, nós criamos no colégio uma academia de letras, Academia Anchieta de Letras, Academia do Colégio Anchieta, não me lembro o nome, acho que Academia de Letras, que eu era o criador, animador, primeiro presidente, primeiro acadêmico empossado (risos), fiz um trabalho sobre Anchieta, sobre a vida dele, a importância dele, o que significava e trabalhava muito a ideia do fato dele ser um jesuíta, padre, católico, preocupado com a educação do índio e a formação do índio e ter feito teatro e de ter usado o teatro como um meio de propagar a religião, eu achava aquilo importante na época e voltado para os índios numa linguagem própria dos índios. E tinha feito, também, o primeiro dicionário e gramática da língua Tupi. Anchieta foi muito importante nesse sentido e fez o poema dele todo em latim, mas ele dominava latim, português e tupi e fazia essa mistura toda. Ele era um homem muito versado, realmente. Virou santo, agora ele é santo, na época não era, aí virou santo, é São José de Anchieta. Sabe por quê? Ele já era venerável, jesuíta, ele é o autor do relatório sobre São Paulo que deu origem a primeira certidão de nascimento de São Paulo foi ele que escreveu como noviço, ele fazia parte da equipe e o nome do colégio, Colégio Anchieta, né? Os jesuítas têm o Colégio Anchieta de Friburgo, tem um outro Colégio Anchieta, se eu não me engano, no Rio Grande do Sul e um outro lá para cima, não sei se na Bahia, ou em Pernambuco. Tem o Nóbrega em Pernambuco, Santo Inácio famoso no Rio de Janeiro, aqui o São Luiz. Tudo santo jesuíta. Formação igual, dessa turma toda. Eu representei uma peça do Jabor que era aluno do Santo Inácio nos anos 60 lá no Colégio Anchieta, ele era aluno do Santo Inácio e a peça chegou pra gente, era a história de um menino rebelde, bagunceiro, que tinha uma irmã, mas que a irmã não aparece em cena, claro, não tinha mulher, não tinha mãe, a mãe já morreu, a irmã tá longe (risos), eu fazia o papel de um menino meio revoltado que pega uma hora um revólver e faz roleta russa na cabeça, umas coisas muito… Era uma peça do Jabor, eu até já contei isso pra ele uma vez, ele: “Poxa, a única vez que foi representada uma peça minha”, lá no Colégio Anchieta. Eu tô falando tudo isso porque Anchieta era muito importante. Ah, eu falei por quê que ele virou santo? Não. Ah, ele tem uma – entre aspas – suspeita na comunidade católica, na época, e isso era grave de ser descendente de judeu, ter uma descendência judaica, o que não quer dizer absolutamente nada, ele podia ser santo do mesmo jeito, mas no Vaticano, seguraram… O Papa Francisco, chegando lá, agora, há pouco tempo, é o primeiro jesuíta que vira Papa, é o primeiro, chegou lá e disse: “Não, José de Anchieta tem que ser santo já”, nomeou, não quis nem saber, mandou… Virou santo. Não tem esse papo de ser, ter alguma descendência…
P/1 – E assim, politicamente, você tava falando politicamente, como que era a sua formação política na época?
R – Era muito de esquerda na época, mas…
P/1 – Com os jesuítas?
R – É, por incrível que pareça, porque nos jesuítas, você tem extrema direita, extrema esquerda e tudo no meio, a dos jesuítas era uma ordem muito grande, então tem de tudo. Então tinha gente progressista nos jesuítas, mas tinha gente de direita, também, mas não tinha TFP [Tradição, Família e Propriedade], também, extrema. E de esquerda, tinha sobretudo no pensamento, grandes professores, grandes criadores, o grande inspirador da AP, da Ação Popular, era um padre jesuíta, Padre Henrique de Lima Vaz que foi o meu professor, quer dizer, ele não chegou a ser meu professor, mas era um orientador do colégio, tava até junto ali com a gente. Foi assistir a minha fala quando eu me formei, Padre Henrique de Lima Vaz, uma figura. Padre Vaz muito conhecido aí no meio de esquerda dos anos 60 no Brasil, como pensador, ele não era um homem de ação, era um homem de pensamento. Então, os jesuítas tinham também um papel importante e lá, a gente sacou logo que reforma de base era importante, governo Jânio tinha que continuar…
P/1 – Vocês já discutiam isso?
R – Já discutíamos. Nós fundamos um grêmio estudantil também no colégio, eu fundei o Grêmio Estudantil Anchieta, além da Academia de Letras, Grêmio Estudantil Anchieta, fundamos na cidade de Friburgo, PENF, (risos) Parlamento Estudantil de Nova Friburgo, participamos de um grande encontro secundarista, naquele tempo era secundarista em Niterói, descemos, o padre permitiu, nós descemos, fomos a Niterói de trem para participar do congresso secundarista em Niterói, onde se apresentaram alguns jovens do CPC de Niterói, sabe quem eram? O futuro MPB4, os quatro se apresentaram nesse congresso, que eles são mais ou menos da minha idade, ou eram, um faleceu, o outro saiu, só tem dois da equipe antiga. Eles eram jovens, também, acho que já universitários, eu não me lembro se eles eram universitários ou secundaristas, estavam juntos lá, então a gente tava muito envolvido nessa discussão toda.
P/1 – Nós estamos falando do quê? Sessenta e…?
R – Sessenta e dois, 63.
P/1 – E aí, toda aquela…
R – E aí, aquela agitação no país grande, no pré golpe.
P/1 – Vocês percebiam tudo isso?
R – Tudo bem. Aí, quando eu venho para o colégio… Termino lá e aí entro no noviciado, aí que você define: “Quero, realmente, entrar na ordem dos jesuítas”.
P/1 – E você fez essa…
R – Fiz essa opção, botei batina, tem foto aí que às vezes - apareceu recentemente numa revista no Valor ou na Isto É? Na Exame. Uma foto que alguém pôs lá, eu de batina jovenzinho.
P/1 – Você botou uma batina e?
R – Botei batina, virei noviço, frequentava, cantava… Muito mais rigorosa, então aí sim, treino da meditação mais profundo, estudo muito mais… Mas nesse período de dois anos, você tá ali apenas pra meditar, testar, estuda muito pouco. Estudar mesmo, muito pouco, você vai estudar mesmo mais na frente. Ali são dois anos de reflexão, você faz os exercícios espirituais Inácio Loyola, passa um mês em silêncio, você vai fazer provações, você vai trabalhar em hospital, você vai fazer peregrinação sem dinheiro, na rua, nas estradas, você vai trabalhar como operário durante um período, acordando de madrugada, trabalhando até de noite, em plantação, numa construção, tudo isso eu fiz, isso noviciado. Noviciado é um período de formação, em que você entra na Companhia de Jesus e você é provado, você faz as provações, você vê realmente se você tá a fim. Ali, o mais duro é trabalhar em hospital e em enfermaria de indigentes e eu fiz isso em Santa Casa de Piracicaba.
P/1 – Itaici é pertinho de Piracicaba?
R – Pertinho.
P/1 – E você vai trabalhar, você faz o quê?
R – Limpar chão, dar de comer para as pessoas, levar pessoa de um lado pra outro na enfermaria de indigente.
P/1 – E é duro, por quê?
R – É duro primeiro porque você não tá acostumado, você nunca se meteu nisso, limpar sujeira do chão, né? Você se coloca na posição de uma pessoa que pensa só no outro, você não… Você se esquece de si mesmo, você mergulha numa realidade altruísta absoluta e total, é quase que um treinamento: você nunca pensou nisso, meu filho, agora você vai ter que… Mas isso não me revoltou em momento algum. Fui fazer peregrinação…
P/1 – Peregrinação, tipo o quê? Você saía…
R – Saía a pé, na rua, na estrada, pede carona junto com mais um companheiro, vai, pede comida, vai para outro lugar e tem um percurso a fazer num período de 15, 20 dias, sei lá. Ou de um mês, e não tem um tostão no bolso, não tem nada. Nada, é só você.
P/1 – E quando vocês voltavam, vocês tinham que discutir isso?
R – Claro, isso era uma provação, era você experimentar essa realidade de mendicância, quase. Tem um atenuante forte. Naquele período, tinha.
P/1 – Que era?
R – Você tá de batina preta, dois caras andando na rua… Na rua, não, na estrada, numa região que tá meio acostumada uma vez por ano ver esse povo andando na rua, andando na estrada. Em tudo quanto é lugar tem hospital, tem igreja, tem freira, tem colégio, tem padres, tem toda uma estrutura, digamos, secreta não, mas aparente que te suporta na hora do vamos ver. Não conseguir comer, três horas da tarde: “Tô morrendo de fome, não tem jeito! Até agora, tô andando na estrada!”; primeira igrejinha que você vê, você já tá garantido, você vai lá, alguém vai te dar comida, alguém vai te ajudar. Até mesmo em lugares em que não tem isso, por exemplo. Eu me lembro que eu saí de Itaici, fui na direção de Campinas, depois fui na direção de Piracicaba, tudo estrada, a pé, podia pegar carona depois de algum tempo, depois que você andasse, sei lá, três horas ou quatro horas, você podia pegar carona pra chegar em algum lugar, então você tinha uma regrinha entre vocês, entre as pessoas para poder… Eu me lembro de ter chegado numa casa que era um japonês, uma família japonesa que nem entendia direito o que eu falava, mas que me deu comida, me tratou muito bem, eu e o meu companheiro na época que era o Fernando Soares, um colega, nós dois juntos… Depois, ele adoeceu perto de Piracicaba e aí eu tive que arrumar na Prefeitura da cidade uma ambulância para trazê-lo para Itaici de volta, porque ele tava morrendo de febre.
P/1 – E aí, você continuou sozinho?
R – Não, aí eu fui encaixado em outro grupo que estava mais em outro lugar, me mandaram lá para a direção de Botucatu, outro lugar. E foi ótimo, sempre a maior tranquilidade. Então existiu uma infra, digamos, subterrânea que te dá suporte pra isso, sem problemas. Hospital não, hospital era pesado, hospital… Operário era divertido, operariado que a gente chamava, acordar de madrugada, tomar café com os colhedores do operário de construção, carregar tijolo, assentar tijolo na parede, fazer trabalho, mesmo, braçal, experiência, um mês você faz aquilo e os exercícios espirituais sim, esses exercícios espirituais que é uma invenção, uma criação de meditação e reflexão, que Inácio Loyola inventou e que todo jesuíta é obrigado a fazer, um mês de silêncio absoluto. Você ouve falas e reflete e reza e lê e vê missa e ouve falas e lê, e medita, e medita, e medita… Então você aprende a meditar, você aprende o exercício da meditação como algo inerente a sua vida e você passa a incorporar isso para o resto da sua vida. Até hoje eu faço meditação, não com os fundamentos e com aquele conteúdo, mas com as coisas que eu tenho que fazer, com as perspectivas que eu tenho pela frente: o que eu vou fazer do ponto de vista profissional, do ponto de vista pessoal, ponto de vista familiar. Mas meditar é um exercício quase que… É uma coisa que você acostuma a tal ponto que antes de dormir, pra pegar no sono, é normal que você mergulhe num pensamento. Quando você acorda de manhã cedo, é normal que venha a sua cabeça algumas questões e você vai incorporando aquilo. E no dia a dia, na medida do possível, numa viagem, num momento em que você tem uma certa tranquilidade, aquilo volta, é relaxamento e reflexão, fundamentalmente. Não é a reflexão… Eu não entendo de meditação, por exemplo, budista que é importantíssimo, é fundamental, mas tem a ver com esse esvaziamento e relaxamento, também. E a partir daí, todo um processo em que você deixa o seu corpo trazer naturalmente trazer as coisas para você. Nessa meditação que eu desenvolvi, você provoca algum tipo de reflexão, você esvazia e preenche novamente. No caso do Budismo, eu acho que você esvazia só e deixa vim naturalmente.
P/1 – Mas você faz isso com respiração? Isso você aprendeu também?
R – Também. A respiração ajuda nesse momento, aí o exercício da respiração colabora pra você fazer o relaxamento. E para você esvaziar, para você sentir o peso do corpo onde você tá, que essa é uma maneira de você ter esse esvaziamento. E pensando nisso…
P/1 – Mas aí, uma questão religiosa?
R – Naquela época, sim.
P/1 – Era isso?
R – Sim, era isso, fundamentalmente.
P/1 – Tipo o quê? Só curiosidade.
R – Por quê?
P/1 – Não, o que, por exemplo…
R – Ah, seu pecado, sua responsabilidade, sua relação com Deus, a sua visão de Cristo, as relações que você tem com o Divino, quais são as questões que estão te incomodando.
P/1 – É pra você?
R – Pra você, você, você, você… Agora, você tem o coletivo, estão todos fazendo isso, não estamos dividindo com os outros, mas cada um você sabe que você tá participando de um processo, de uma energia comum naquele momento. Isso é importante. Tem um fato curioso do ponto de vista político. Exercícios espirituais, 30 dias, março de 64, acontece tudo no fim de março no Brasil e eu tô em exercício espiritual, não tô sabendo de nada, zero. Nem ouço nada, não ouço notícia, não ouço informação, não ouço barulho, não ouço fogos de artifício, não ouço nada, nada! Zero. Lugar muito silencioso, muito tranquilo. Durante esses exercícios, tem dois ou três momentos de um intervalo de horas em que você junta todo mundo e pode falar e encontrar outros que não estão no mesmo momento, estão mais adiantados ou estão mais atrasados. Então isso acontece no meio e no meio, ali pelo dia primeiro de abril, dois de abril, sei lá o que, alguém me fala: “Olha, aconteceu uma revolução!” “Revolução?”, e eu já tava todo envolvido em discussões sobre reforma de base, continuação do Governo Jango, ameaça que o Governo Jango sofria dos militares, o discurso famoso lá no Rio de Janeiro que aparecia o Cabo Anselmo, o Serra, não sei o que, que dói discutido naquele famoso… Não lembro, na greve dos sargentos que tinha sido no início de março, se não me engano, ou final de fevereiro, não me lembro quando foi. Enfim, eu tinha notícias daquilo, que a gente ouvia notícias, não tinha televisão, mas a gente tinha noticias, rádio, tal, a gente sabia ou jornal. Mas nesse período, eu entrei nos tais exercícios espirituais e teve aquele intervalo, aí me contaram isso que foi muito engraçado, Didero, chama Didero, “Olha Danilo, aconteceu isso, isso, isso” “Por quê que foi isso?”, aí eu perguntei: “Escuta, mas quem é que tá na frente disso?” “Porque Ademar de Barros com General não sei que de São Paulo, não sei quem Magalhães Pinto com General não sei quem em Minas e Carlos Lacerda com não sei quem no Rio”, aí eu falei: “Espera um pouco. Isso aí não é revolução, não. Isso é a contrarrevolução”, eu não chamei de golpe, porque eu não tinha os elementos, ainda, mas era contra… Ou seja, pra mim, a revolução era uma revolução operária, democrática, sindicalista quando muito, proveniente das camadas populares e não revolução que viesse com os militares por trás. Mas quando eu ouvi aquilo, eu falei: “Não, não, isso não é revolução”. Aí foi a maior discussão, tinha gente que achava que: “Não, é isso mesmo, vai consertar o país” “Ih, isso aí não vai consertar coisa nenhuma, na mão dessa turma…”
P/1 – Você já tinha essa clareza?
R – Clareza, já era muito envolvido. Eu disse: “Não, não, não, isso aí não vai dar certo de jeito… Carlos Lacerda? Ademar de Barros? Magalhães Pinto?”, os três, Amauri Crua que era comandante de São Paulo, o General Mourão Pinto que era o comandante no Rio, eu não sei quem era em Minas, mas falei: “Isso não é revolução, coisa nenhuma, isso aí é contra revolução, isso aí é para tirar o Jango, mesmo, só. O Jango é que de alguma forma poderia fazer alguma coisa, se fosse uma revolução para apoiar o Jango, um golpe para tornar o Jango mais forte, tudo bem, mas era para tirar, não era para pôr. E o Jango já tava lá por conta da substituição do Jânio, né?, que tinha caído e tinha renunciado na tentativa de dar um golpe, né, e não deu certo. Essa é a história do Brasil. Mas eu me lembro disso lá em Itaici, de batina, no meio de todo mundo. “É” “Não é”, eu e mais dois ou três só que defendíamos o fato de que não era revolução, coisíssima nenhuma, né? E mais tarde que a gente percebeu que foi um belíssimo golpe que teve restrições de liberdade, teve problemas muito mais graves e isso a gente não tinha noticias naquele momento. Recessão de liberdade, prisão de gente, perseguição. Tá certo que a primeira tentativa desse grupo era de uma primeira mexida, mas a coisa se acirrou posteriormente, virando um golpe militar, mesmo, que num primeiro momento era um golpe com apoio, uma tentativa de políticos com apoio de militares. Depois vira uma coisa militar mesmo para valer na história brasileira, mas enfim, nesse momento, eu já tava envolvido muito com essa coisa da política.
P/1 – Então você já tava em 64, no segundo ano em Itaici ou primeiro?
R – Primeiro. Eu tinha entrado lá no final de 63, início de 64.
P/1 – Aí você ficou 64 e 65 lá?
R – É, 64 e 65. Em 66, 67 fiz curso de Filosofia…
P/1 – Lá?
R – Começou lá, mas depois eu vim para São Paulo e no final de 67, eu continuei em Filosofia, mas saí e entrei numa empresa no final do ano chamada Mazapa em 67.
P/2 – Daí você continuava lá e fazia Filosofia aqui?
R – Não. Lá eu não tava mais. Lá acabou lá, aí eu vim para a comunidade dos jesuítas aqui na Anhanguera.
P/1 – Fazer universidade?
R – Fazer universidade. Aqui tinha faculdade de Filosofia e aí eu entrei na Filosofia pra fazer o curso de Filosofia.
P/1 – Danilo, e o que te fez desistir dessa vida?
R – O fato de que a percepção clara de que não era pra mim, que eu não tinha interesse em continuar porque eu percebi que eu podia fazer uma ação mais abrangente, mais ampla do ponto de vista profissional, político, cultural fora. Eu percebi que ali eu não ia ter condições de…
P/1 – Mas como assim?
R – Tive decepções lá dentro, percebi que havia um jogo, alguns interesses, alguma coisa tipo manutenção pura e simples. Eu tinha a vida resolvida do ponto de vista material: não tinha problema, eu tinha voto de pobreza, pobreza, castidade e obediência, são os três votos que todos fazem, né? E nos jesuítas, isso tem um valor especial, principalmente a obediência, até mais forte. Pobreza porque você não tem nada, nada é seu, é tudo comum.
P/1 – Você não ganhava? Não tinha dinheiro?
R – Não. Você tira quando você precisa. Do cigarro à roupa, você vai lá e pega, alguém te entrega, tem uma dispensa simples com o que há de mais popular, mais barato, não é uma coisa luxuosa, mas você tem tudo, alimentos, você tem tudo, estudo, você tem tudo, roupa, você tem tudo, até o cigarro, que eu fumava nesse tempo, tinha cigarro à disposição. Então, do ponto de vista material, sim, mas do ponto de vista humano, eu sentia falta de uma vida mais aberta, mais completa, mais participante, mais envolvida. Eu comecei a ter ainda como jesuíta muita atividade fora, porque isso nesse momento havia uma transição. Eu tô falando de um período em que a igreja católica sofreu uma modificação muito grande, que foi o Concílio Vaticano Segundo, com o João XXIII, e outros. Nesse momento, há uma alteração na Igreja, uma mudança de mentalidade, um jeito de entender a ação religiosa muito mais comprometida com a verdade, com a pobreza, com a transformação do ser humano, com a melhoria da vida. Esse caráter social ganha uma dimensão muito forte.
P/1 – Na Igreja?
R – Na religião de modo geral, na Igreja em particular.
P/1 – Mas isso foi recebido pelos jesuítas como?
R – Pois é. Ah, tem de tudo, mas no geral, os jesuítas assumem esse papel, alguns mais rapidamente, outros menos rapidamente, mas assumem esse papel de ter um compromisso com a transformação da sociedade efetivo.
P/1 – E com as outras ordens, você se relacionava?
R – Menos.
P/1 – Dominicanos, franciscanos?
R – Menos, menos. Eu tinha alguma relação, sim, mas menos. Dominicanos estavam numa fase diferente, estavam muito mais envolvidos no campo político do que os jesuítas, né? Sempre tiveram aqui no Brasil.
P/1 – Fizeram as comunidades eclesiásticas de base…
R – Também tiveram envolvidos.
P/1 – Eram Dominicanos?
R – Eu não sei, eu acho que sim. Eram mais os dominicanos, sim. Os dominicanos, especialmente os dominicanos do convento de Perdizes eram muito vinculados a uma visão completamente política muito antes dos jesuítas. Mas os jesuítas também…
P/1 – Vocês comentavam isso?
R – Não, era meio natural. Meio natural. Tinha… olha, eu conheci o Betto, o Frei Betto que é frei, não é padre, é frei quando eu estava em Friburgo e ele era membro da Comissão Nacional de Estudantes Secundaristas da JEC – Juventude Estudantil Católica – e eu era seminarista lá em Friburgo no colegial. Tivemos reuniões pra organização da JEC em Friburgo, não foi muito pra frente, não rendeu muito. Mas eu tive contatos com o Betto nesse tempo. Ele era leigo, não era seminarista e nem pretendia ser nada, eu era seminarista jesuíta, depois eu fiz noviciado, mais tarde eu soube que o Betto tinha entrado nos dominicanos e eu acabei saindo e eu até brinco com ele de vez em quando que eu acabei saindo, sou leigo e ele é religioso, ele é dominicano. Então, os dominicanos sempre tiveram e o Betto era um deles, o Tito, conheci o Tito, que foi vítima, digamos, de uma depressão profunda e acabou se matando na França no trilho de um metrô, de um trem, sei lá o quê, Tito, cearense. Quando eu estava já em Itaici, não já tava aqui, eu já tava aqui em São Paulo fazendo Filosofia, eu era membro de uma espécie de Comissão Nacional de Estudantes de Teologia e Filosofia, seminaristas, né, como jesuíta, já como jesuíta e aí encontrava o Tito em reuniões lá no Convênio São Bento, onde tinham os vínculos com a UNE nesse tempo.
P/1 – Mas, Danilo, essa parte assim, vamos dizer, espiritual, você tinha conflito?
R – Não.
P/1 – Seu coração… “Deus não tá no meu coração”?
R – Não, não, isso não. Eu nunca deixei de acreditar em Deus por causa disso, tenho minhas questões hoje muito mais profundas sobre a questão, não sou ateu, mas também não sou um crente, digamos, assumido de maneira plena e total. Tenho muito essa visão da transcendência de algo que tá acima disso tudo, muito mais do que propriamente uma organização muito clara dessa presença de um Deus com essas características assim, pintado desse jeito, dessa maneira, com toda essa informação que foi passada e todas as tradições religiosas, todas elas. Não tenho isso tão claro, mais. mas tenho a presença de um ser, de alguma divindade ou de algo que tá acima do natural.
P/1 – Então não foi essa dúvida que te fez sair?
R – Não, não foi de jeito nenhum. Foi mesmo uma inserção na sociedade. E não era também por razões de mulher, podia ser, né, “Me apaixonei, vou sair”, o que é justo. Também não foi. Eu vim a me envolver com mulheres muito depois disso. Namorar e casar.
P/1 – Você não tinha interesse?
R – Não é que não interessava, eu tinha uma… Isso fazia parte do meu universo, eu dava aula, eu tinha um monte de aluna, a essa altura eu já tava dando aula pra um monte de gente, conhecia muita gente, a gente gostava de estar junto, tinha atração por uma ou por outra, mas não era uma coisa que me definia, uma decisão na minha vida, não, agora eu quero fazer isso, eu quero me apaixonar, quero me envolver com fulana e a minha vida acabou e eu tô ali só… Não, não cheguei nesse ponto. A racionalidade jesuítica é quase que o imperativo que define muito o jeito de ser das pessoas. Essa é uma coisa muito trabalhada, não quero dizer que isso seja bom ou ruim, eu não tô querendo botar nem valor a favor e nem contra, mas é muito pesado isso. Então a gente é muito formado nessa perspectiva racional, até exagerada, eu diria, né, aí eu tenho até uma certa crítica. O emocional vem naturalmente, porque o emocional está presente, mas ele vem muito controlado, ele vem de uma maneira muito subalterna, eu diria, então é até uma falha na minha relação, no meu jeito de ser, o meu modo, eu sou hiper racional, lógico, é ou não é, não tem… E essa é um pouco o tributo que eu pago a minha formação, que tem a ver com os jesuítas, tem a ver com outros grupos, digamos não religiosos necessariamente, mas de formação, até partidos políticos, modo de entender as coisas, tanto que comparo às vezes determinadas formas disciplinares de partidos políticos com a forma disciplinar dos jesuítas, são tidos como muito rígidos nessa formação, nessa fidelidade a princípios racionais, entendeu? Exagerado, eu diria. Então isso, de alguma forma, tem um substrato, eu posso até tentar vencer, ultrapassar, mudar, combater, mas ele tá muito presente. Isso tem a ver com o início, com a formação, com o modo de ver as coisas. Isso vale para todo mundo da Companhia de Jesus, os jesuítas são muito racionais, muito…
P/1 – Quando você decidiu sair, o que você fez? “Eu vou sair”, não tem uma…?
R – Não, então nesse momento em que a Igreja Católica tava vivendo esse drama todo, isso valia para todos, valia, inclusive, para os jesuítas também. Por exemplo, o meu mestre noviço, o mestre noviço é um cara que é o responsável por essa garotada que entra lá com 18, 19, 20, 21 anos, entre 18 e 21 anos, por aí. Mais com 19, até 20, 21 anos, o cara que recebe, é um padre mais experiente, é um padre vivido, um padre que tem uma vida espiritual intensa, é um padre que orienta cada um deles. Então o meu era João Bosco Penido Burnier. É um padre tradicional, uma visão muito tradicional, tanto da Companhia de Jesus quanto da igreja, quanto do comportamento, como de tudo. A minha turma era uma turma grande, muita gente com esse pensamento mais atualizado da nova Igreja, questionamentos sobre a questão da obediência, do funcionamento da Igreja, da vinculação com a hierarquia, com a disciplina, mas com uma visão muito integrada nessa nova perspectiva de igreja dos pobres voltada para a transformação da sociedade, se vinculando com outras forças que pudesse mudar a sociedade. Então tudo isso tava muito presente, então havia um certo conflito ali, mas que a gente superou, ele foi até o fim. Mas ele percebeu, ele mesmo, depois da nossa turma, que era muito forte, muito grande, uma turma… Saíram todos, praticamente, não ficou ninguém nos jesuítas da nossa turma. Foram saindo no decorrer do… Ele ficou mais um tempinho, mas pediu para sair desse cargo, ele foi trabalhar com os índios no Mato Grosso e foi martirizado, ele se tornou um mártir porque ele foi defender uns posseiros, ou alguém que tava lá nas terras contra guerrilheiros, contra proprietários, contra não sei o que lá, e tomou um tiro na cabeça. Padre João Bosco Penido Burnier. Uma família até tradicional de Minas, ou de Juiz de Fora, que tinha, inclusive, um parente que era militar da Aeronáutica ou da Marinha, repressor que teve problemas, inclusive, na Ditadura de matar gente, tal. Parente dele, primo, sei lá o que, mas o Padre João Bosco Penido Burnier se tornou um mártir da causa da mudança social e era um homem que… Isso para dizer que havia um momento de muita contradição, muita gente nesse momento acabou saindo, porque queria buscar um outro caminho, buscar uma perspectiva nova, entendeu? Eu não tinha claro o que eu ia fazer: vou entrar no Sesc [Serviço Social do Comércio], não, nem sabia o que era Sesc, não tinha a menor ideia. “Ah, eu vou trabalhar como professor”, era uma hipótese. Eu fiquei em São Paulo, sabia que tinha que ficar em são Paulo, porque São Paulo que era o centro da criação, da elaboração…
P/1 – Já naquele momento?
R – Naquele momento.
P/2 – Você já tinha vindo pra cá outras vezes?
R – Eu estava em São Paulo.
P/2 – Mas vocês vinham pra cá?
R – De Friburgo, eu vim para São Paulo, vim pra Itaici, primeiro, e depois aqui para a Anhanguera, para o início da estrada Anhanguera, onde tem lá uma faculdade dos jesuítas, tinha, agora não tem mais. E dali, que eu comecei a me envolver, teve o Congresso de Ibiúna que eu quase fui, acabei não indo, porque eu era presidente do Centro Acadêmico da faculdade daqui também, mesmo com os jesuítas, tinham alunos de fora também, como Friburgo, eu virei presidente do Centro Acadêmico da faculdade, entendeu? Então tinha toda uma participação nessas reuniões e quase fui pra Ibiúna, acabou não dando certo, eu não pude ir e lá pras tantas, eu comecei a observar algumas coisas que não era a vida que eu queria, entendeu, não era do meu interesse continuar, claramente, pelas características que eu tava vendo ali. Eu tava me envolvendo com algumas coisas políticas na época, aí eu fui, procurei emprego, achei emprego, comecei a trabalhar, mesmo quando tava lá ainda. Aí depois, saí, continuei no emprego e depois, prestei concurso…
P/2 – Que emprego?
R – Eu fui numa agência de empregos procurar emprego. Um rapaz que me recomendou. E lá, eles me empregaram lá mesmo, porque acharam que eu tinha jeito para entrevistar as pessoas e comparar o que as empresas pediam com o candidato que tava na minha frente e aí eu comecei a trabalhar nesse campo de entrevistador e selecionador de pessoal para as agências de empregos chamada Mazapa lá na Praça da República e ali, já 68, né, 68 bravo, né, eu tô falando do início das manifestações do AI-5 [Ato Institucional Número Cinco], ajudei a virar carro na Praça da República e botar fogo em carro, fazer passeata…
P/2 – Mas você entrou em alguma organização?
R – Não entrei em organização nenhuma. Fui atraído por várias, mas não entrei em nenhuma. Tinha muita ligação com o povo da AP, Partido Comunista depois, mas nunca entrei nem em um e nem em outro. Tinha ligações, isso sim, mas não…
P/1 – E você morava sozinho?
R – Morava numa pensão. Numa pensão lá nas Perdizes. Na Rua Ministro Godoi, tinha um quarto na pensão e enfim, tinham todas as minhas coisas guardadas lá, e trabalhava já na Mazapa, pegava o Penha–Lapa que era o famoso ônibus que atravessava a cidade, né, de fora a fora, passava na Praça da República e eu ficava ali na Praça da República. Na época das passeatas, participei de várias. Fim de tarde, passeata era depois do expediente, então eu podia ir, às cinco horas, eu saía e participava, enfim, tinha todo um esquema, cheguei a ser levado uma vez para uma verificação, não fui preso, verificação, levaram todo mundo, puseram no caminhão, levaram pro DOPS [Departamento de Ordem Política e Social], ficamos lá aguardando, depois fizeram uma triagem e me mandaram embora.
P/1 – E aí, a sua relação com a Igreja?
R – Foi se diluindo, foi desfazendo. Os padres jesuítas me ofereceram na época duas coisas: eu poderia trabalhar no Colégio São Luiz.
P/1 – Como professor?
R – Como professor, como auxiliar de ensino, como prefeito que eles tem na escala, escala de padres, como alguém na área de Educação. Também tinha colegas que foram todos para a PUC, prestaram algum concurso, davam aula na PUC, completaram a sua formação, mestrado, doutorado, naquela época não era tão exigido isso, era uma coisa que eu podia, eventualmente ter feito, também, carreira acadêmica ou no colégio. Eu achei tudo muito próximo da Igreja, eu tava meio… Tanto um como o outro. Outra coisa que os padres me ofereceram é que naquele início começou a pintar minhas manchas brancas na mão, aí o padre falou: “Nós vamos oferecer para você o tratamento disso até enquanto você quiser”, falei: “Não, muito obrigado”, me virei e nunca mais liguei pra isso, como não ligo até hoje, mas enfim, cheguei a fazer alguns tratamentos, mas não foi uma coisa que se tornou relevante na minha vida, né? No período, foi até um pouco relevante, cheguei uma vez até fazer um tratamento, mas enfim… Os padres me ofereceram, mas eu não quis, eu achei que eu ia ter que me virar sozinho. E descobri São Paulo, eu tinha muitas alunas e alunos, mais alunas lá no Instituto Anhanguera e todas querendo… Me envolvi até depois com uma delas, mas depois. Não foi pra frente e tudo bem. Mas muitas alunas, era tudo mulher, só tinha mulher, tinha muitos colegas… Só tinha mulher, mas era mulher, tempo de festival da Record, Roda Viva, cantando pela rua, brincando e tinha ao mesmo tempo, participação política e dava aula lá. Isso tudo, eu tava lá no seminário, ainda. Tava no seminário, 66, 67, Elis Regina, esse negócio todo. Quando saí, rompi, mas continuei ligado a esse povo todo e esse povo todo me dava muito apoio, muita proteção, eu me lembro quando eu saí em 67, final de 67, em abril de 68, eu fiz aniversário, não me lembro quantos anos, sei lá, 22, 23 anos, não me lembro, aí elas se organizaram e me fizeram uma festa surpresa lá na Lapa, porque o Instituto Anhanguera é lá na Lapa, fica lá na Rua Albion, lá na Lapa, me convidaram pra ir lá na casa de uma delas, filha do Doutor Mario Jesus, que era um famoso advogado de presos políticos, de operários, as filhas dele que organizaram pra mim, como é que elas chamavam? Aí, eu fui lá, era uma festa que tinham feito pra mim por causa do meu aniversário. Morava numa pensão nas perdizes. Naquela época também que eu vim a conhecer um grupo grande também através delas e da PUC, porque era tudo perto da PUC, do Morte e Vida Severina, que o pessoal de teatro, com quem eu me envolvi um pouco, fui assistir algumas vezes, foram para Nancy fazer uma representação, era coisa bem política, já tava… Morte e Vida Severina veio logo depois do Golpe e foi muito importante para a formação, me envolvia muito… Ia muito a teatro, ver coisas rolando no teatro, shows, espetáculos. A música de protesto estava ganhando uma dimensão, estava muito envolvido com isso, também. Chico Buarque eu vim a conhecer nesse período, pessoalmente até, estive na casa dele, inclusive, na Rua Bauru, depois do espetáculo da Morte e Vida Severina, todo mundo foi pra casa dele para beber, ouvir música, conversar e eu me lembro de ter ido lá também. Isso no tempo que ele era meio estudante de Arquitetura e tava ali meio que compondo, o negócio dele era compor. Eu ouvi, por exemplo, algumas músicas dele antes delas se tornarem… Olê , Olá, por exemplo, eu ouvi ele cantando lá antes de se tornar uma música conhecida. Enfim, músicas de protesto estavam muito forte já nesse período, né? Então havia essa mentalidade, a gente não sabia direito para que lado que ia, tinha uma participação política não muito organizada, embora me convidassem, mas eu nunca me envolvi, tinha que me manter, né, então eu tinha que ter emprego.
P/2 – Trabalhava na agência, ainda?
R – Trabalhava na agência, de janeiro, dezembro, janeiro de 67 até junho, julho de 68, quando eu prestei o concurso para o Sesc. Em novembro de 68, o Sesc me chamou e eu entrei dia primeiro de novembro de 68.
P/2 – Era concurso pra quê?
R – Pra orientador social, era um nome infeliz, mas era isso, é a mesma coisa que animador cultural, hoje. Alguém que tinha um trabalho ligado à atividade cultural, atividade esportiva, atividade comunitária, social, dava curso, dava aula, animava em comunidades, se envolvia com isso e era um pouco, cá entre nós, muito próximo daquilo que eu imaginava fazer na vida.
P/1 – Você já imaginava isso?
R – Eu nem sabia que imaginava, mas era isso, ou seja, porque na realidade, tinha um compromisso social, cultural, comunitário e ainda ganhava pra isso.
P/1 – Você sabia o que era o Sesc?
R – Não tinha noções claras, não. É o seguinte, quando eu estava nos jesuítas como noviço, a casa de férias dos jesuítas ficava na praia de Boracéia, tá lá até hoje, São Luiz, e nas férias nossas lá de Itaici, dois, três anos, sei lá, nos períodos que tinha folga, nós vínhamos para essa casa de férias na praia e passava em frente da colônia de férias do Sesc, então via aquilo lá, mas não tinha o mínimo vínculo, nenhum, nenhum.
P/1 – E por que você foi fazer esse concurso?
R – Ah bom, primeiro porque eu ganhava dois salários mínimos e alguma coisa como isso, sei lá, era uma coisa pequena e tinha uma participação até razoável. Não ganhava mal, pra mim, sozinho, dava. Era uma coisa sem grandes perspectivas, pagava pensão, tinha uma vida razoável, já namorava…
P/1 – Namorava a Cleo?
R – Não, a Cleo só vim a conhecer mais tarde. Mas tinha um padrão de cinema, teatro, comprava umas coisinhas, tinha muito gasto com roupa, enfim, uma vida tranquila. Mas um colega chegou um dia, na minha agência lá, na Mazapa, um colega que tinha estudado comigo: “Você não viu esse anúncio aqui?”, ele não sabia que era o Sesc: “Estão pedindo gente que não precisa ter experiência, que pode ter isso, pode ter aquilo, formação”, eu já tinha terminado Filosofia, tava terminando acho que Ciências Sociais, eu não me lembro, que eu fiz depois, aí ele falou: “Você não quer participar então também?”, eu falei: “Deixa aí que eu vou ver” e mandei, naquele tempo você mandava uma correspondência, mandava carta para o jornal e me chamaram. Aí quem me chamou foi o Sesc. Tinha milhares de candidatos, fui lá e eu vi um monte… O ginásio lotado de gente fazendo prova, aí eu fiz a prova, era uma prova que exigia conhecimentos gerais. Não era nada específico, questões políticas, questões sociais, questões culturais, questões esportivas, questões de política internacional, questões… Eu respondi, eu era bem informado, respondi bem, fui bem. Tinha questões ideológicas, eu percebi claramente, mas eu não escondi: “O que você acha do monopólio do petróleo?” “O que você acha do programa de educação de base?”, falei tudo, não tinha receio nenhum, botei o que eu pensava. Naquele tempo não ia dizer: “Não, eu acho que é perigoso”, nada disso, botei tudo. Se me chamarem, tudo bem. Respondi e me chamaram algumas semanas depois para uma entrevista, uma banca, tinham quatro pessoas na minha frente: “Escuta, isso que você escreveu aqui sobre o monopólio do petróleo, sobre educação de base, tal, como é que é?”, e eu dizia: “Não, eu penso isso, penso aquilo, acho isso, acho aquilo”, uma conversa sem compromisso, claro que eu queria, se eu tava lá… Ah, o convite tinha quando foi o anúncio, um salário que era três vezes ou quatro vezes mais do que eu ganhava, era bem melhor com possibilidade de viajar, tinha que ser uma pessoa disponível para circular pelo Estado, enfim, as condições eram favoráveis, eu achava legal e aí eu prestei o concurso. Então eu fiz essa entrevista, não tinha certeza se me chamariam ou não. Me chamaram, aí eu fiz um monte de testes de personalidade, esses testes psicológicos, essas coisas todas, onde você contava também a sua vida nesse teste, lá pelas tantas, registrou tudo. Eu nunca tinha certeza se iam me chamar ou não, achava que podia não ser chamado. Foram me chamando, me chamando nas diversas etapas, até que um dia me chamaram pra aprovar, me aprovaram. Éramos uns dez, 11 no total.
P/1 – Que ficaram?
R – Que ficamos. E no concurso, né?
P/1 – Prestava concurso?
R – Foi um concurso que eu imaginava, no fundo, no fundo, que eu não passaria para a etapa seguinte, porque já tinha noção dessa questão política, do momento… E era uma instituição que eu sabia que tinha vínculos empresariais, é uma instituição do status quo, do que é estabelecido. E eu tenho a impressão que ali já nasce, de alguma forma, essa instituição que realiza o que realiza hoje, um trabalho vinculado a essa perspectiva da mudança social, porque as pessoas que estavam ali antes de mim e que eram as pessoas que estavam, digamos, me verificando, me testando, me sentindo. São pessoas ou eram pessoas e alguns ainda são, alguns faleceram, com essa mesma perspectiva, com essa mesma visão da instituição que tem essas características que tem hoje, que tem essa origem que casa, que junta. Então, a minha conclusão sobre isso é que eu tive na vida sempre um grande favorecimento das coisas que me aconteceram, embora eu tenha tido momentos delicados e trágicos como a morte da minha mãe muito pequeno, as dificuldades para poder, digamos, me situar no mundo sem muita consciência, hoje é uma análise que eu faço a partir desse ponto de vista que eu tenho agora e não do ponto de vista que eu tinha naquele momento. Mas se a vida me puniu naquele momento, me trouxe um aspecto um pouco provador, um pouco difícil para o ser humano enfrentar sem a mãe, acho que isso é uma marca forte para o ser humano, independente de onde esteja, com quem esteja, em que época que esteja. Especialmente na primeira infância, primeiro momento da vida, né? Por outro lado, as coisas que vieram se desenrolar a partir desse momento me foram sempre muito favoráveis, as oportunidades que eu tive na educação, na formação, na vida familiar, nas oportunidades que tive posteriormente na própria escola e na sequência e mais tarde, na adolescência, na vida adulta, no início da vida adulta e chegando num lugar, numa situação em que princípios acumulados no decorrer desse processo tiveram, de alguma forma, abrigo num encarreiramento pessoal e profissional, de alguma forma, não vou dizer que é pleno e total, porque nós não somos somente nós mesmos, isoladamente, nós não somos indivíduos isolados, nós somos integrados numa vida social, mas naquilo que foi possível, na contribuição efetiva que eu sempre imaginava poder prestar no momento em que a consciência do mundo, das coisas, do outro estiveram muito forte na minha realidade, no meu dia a dia, de alguma forma, conseguiram se concretizar ou conseguiram encontrar caminhos na vida profissional, que eu não sei se eu teria em qualquer tipo de ação, talvez tivesse também, sei lá, se fosse professor universitário, se eu fosse um escritor, se eu fosse um jornalista, se eu fosse trabalhar… Sempre nesse campo meio das ações humanas, né, das humanidades digamos assim. Eu não me vejo em outro campo, não me vejo como um cientista, poderia até ser um, mas teria também um componente humano, mas no campo do social, provavelmente, no campo das atividades e das ações e das ciências sociais, da Antropologia ou coisa parecida. Mas talvez ali, eu pudesse também ter… Teve uma professora de Antropologia, quando eu fiz o curso de Ciências Sociais que me dizia que eu devia aprofundar no campo da Antropologia, que eu devia fazer pesquisas, circular pelo Brasil e me internar numa tribo indígena, trabalhar um tempo, mas na realidade, isso não chegou a… Mas ela tentou me estimular, a professora Carmen. Mas eu confesso que dificilmente eu teria uma ação tão abrangente quanto eu vim a ter, posteriormente, depois que eu entrei na instituição, nesses campos todos onde eu atuo hoje, podendo atingir um público e realizar uma ação que tem conteúdo, que tem mensagens, não por mim, pelo o que elas representam em si mesmas, né? E eu me sinto aí um veículo, um instrumento, uma pessoa com conteúdo, que junta tudo isso de uma maneira muito adequada. Então, eu me sinto muito privilegiado, realmente, muito beneficiado pela vida nesse sentido de poder ter aproveitado essas oportunidades todas e ter juntado não só um conteúdo de formação efetivo que me foi dado a partir desde a minha infância, e ao mesmo tempo, ter na vida adulta e já bem madura poder usar tudo isso, dispor disso de alguma forma ou de apontar esses caminhos de uma forma muito clara. Pra mim, tá muito legal. Tá bom?
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Programa Conte Sua História
Depoimento de Danilo Santos de Miranda
Entrevistada por Karen Worcman e Rosana Miziara
São Paulo, 27/11/2017
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV643_Danilo Santos de Miranda_Parte 2
Transcrito por Mariana Wolff
Revisado por Carolina Margiotte Grohmann
Editado por Rosana Miziara e Carolina Margiotte Grohmann
P/1 – Danilo, quando a gente parou, a gente tava falando da sua entrada no Sesc.
R – Exatamente. O percurso anterior todo até chegar…
P/1 – Isso, aí você também fez uma espécie de um resumo…
R – É verdade.
P/1 – Do quê que aquela educação tinha servido pra você e aí, antes, eu queria que você conseguisse me contar assim, o que você lembra, assim, quando você chegou no Sesc…
R – No Sesc, né?
P/1 – O quê que você entendeu…
R – Foi um momento curioso, porque eu tive que entender um pouco o que era aquela instituição, o que é essa instituição. E naturalmente, hoje eu tenho uma visão dela quase 50 anos depois…
P/1 – É, por isso que eu queria fazer essa volta com você.
R – Com uma outra perspectiva, muito mais aprofundada de dentro, das suas intimidades mais delicadas e profundas. Então, naquele primeiro momento, me parecia um belíssimo emprego, que permitia, de alguma forma, realizar pelo menos parcialmente ou talvez superficialmente aquilo que de alguma forma tinha me motivado na vida até aquele momento. Pela formação, pelas sei lá, vínculo familiar, depois na escola, no Colégio dos Jesuítas, lá no Colégio Anchieta de Nova Friburgo, mais tarde, entrando na Companhia de Jesus como um jesuíta, fazendo votos jesuítas e depois pedindo dispensa desses votos porque depois, quando eu sai, você tem que ser dispensado pelas autoridades eclesiásticas para poder ter uma vida tranquila. É um detalhe importante, não tem valor civil, mas tem valor religioso, moral. Mas depois desse conjunto de ações para as quais você estava, de alguma forma, preparado, a ideia do serviço do outro, essa perspectiva de que você tem que contribuir de alguma forma para construir uma sociedade melhor, do jeito que for, seja como profissional, seja como político, seja como religioso, seja como for, não importa, pai de família, não importa, mas que você tenha essa perspectiva introjetada na sua formação, no seu modo de agir, na sua perspectiva, quase no seu compromisso pessoal consigo mesmo, independente de outros compromissos com uma proposta política, com uma religião, com Deus ou com o que seja, entendeu, mas você tem esse compromisso, fundamentalmente, consigo mesmo, você deseja de alguma forma continuar a permanecer nessa perspectiva, né? Mesmo que você mude de caminho, você vai para outro lado, você abandona um determinado caminho, mas você quer manter essa ideia, esse conteúdo essencial. Curiosamente, eu vislumbrei naquilo que estavam me oferecendo, naquilo que estava sendo dito que era o escopo, o objetivo da instituição, do ponto de vista do desenvolvimento comunitário, a relação com as pessoas, melhorando a relação das pessoas consigo mesmas, com o seu trabalho, com suas famílias, com a sociedade de modo geral, que era o que era colocado como objetivo daquele trabalho que estava sendo oferecido, eu achava aquilo extraordinário porque eu digo: “Poxa, eu saí, tenho que batalhar na vida para conseguir um emprego e tem essa oportunidade de prestar um concurso para uma organização”, uma instituição que eu não conhecia muito bem, mas que tinha essa ideia colocada ali na descrição do cargo que pretendia ser ocupado.
P/1 – Como assim? Quando você foi, você tinha…
R – O anúncio dizia: pessoas com capacidade de entendimento, que tinha boa facilidade de relação que poderia desenvolver um trabalho, para um trabalho comunitário no interior de São Paulo.
P/1 – Era isso?
R – Era isso, isso era o escopo, isso era… Então, claro que não era profundo e não tinha uma análise sociocultural, filosófica profunda para entender o quê que era aquilo, mas a ideia global, o início daquele anúncio, digo: “Mas o quê que é isso, né?”, normalmente, os outros anúncios eram simplesmente para você ocupar um cargo ou de auxiliar, ou de gerência, ou de alguma coisa que não tinha nada a ver. Naquele tempo, nos anos 60, 70, a forma mais eficaz de se recrutar pessoas para o trabalho era anúncios nos jornais e os jornais tinham centenas, milhares de anúncios todos os dias, pelo menos no fim de semana, era uma coisa… Tinha um caderno imenso nos principais jornais só de anúncios de emprego. Então era uma coisa imensa, mas geralmente, procurando pessoas para cargos digamos definidos no mercado. E esse diferenciava um pouco, porque tinha esse chamamento comunitário de envolvimento, não exigia, por exemplo, grande experiência, grande traquejo já profissional, era uma coisa bem interessada em verificar potencial, capacidade, é base, informação, coisa assim, mais genérica para ver tendência, ver se eram pessoas, tanto que atraía muito ex-seminaristas, foram atraídos nessa ocasião. Eu me lembro que no grupo no qual eu entrei, tinha muitos ex-seminaristas, gente com algum tipo de ação política já, gente que tinham, portanto, essa chaminha…
P/1 – Do comunitário.
R – Do comunitário, do serviço do altruísmo, da perspectiva de fazer alguma coisa além em proporções variadas. É claro, não se tratava todo mundo de um grupo de pessoas todas otimamente bem intencionadas, não é isso, não tô querendo classificar dessa forma, mas havia em grande parte, pessoas que tinham essa chaminha, essa perspectiva nas suas formações, parecidas com a minha, muitos colegas, muitos colegas eram… Até hoje, alguns dos colegas remanescentes que nesses 50 anos depois estão por aí, ainda, em alguns cargos do Sesc, existem poucos, mas existem alguns, são ex-seminaristas, né? Nós temos alguns casos ainda - e ex-seminaristas por quê? Porque tinham essa coisa de uma formação, de uma perspectiva do serviço, essa possibilidade de uma… Então isso foi uma das coisas que mais me impressionou num primeiro momento. Segundo, não se tratava de receber o cargo e sair por aí. Teve um treinamento, um preparo, uma tentativa de passar informação e eu me lembro que eu entrei no dia primeiro de novembro de 1968, e eu só fui trabalhar, efetivamente, no campo em março de 69. Esse período todo nós ficamos dezembro, janeiro, fevereiro em treinamento, em formação, conhecendo…
P/1 – O quê que era esse treinamento?
R – Muita informação sobre questões humanas, questões de conhecimento das relações, sobre a questão da ação comunitária. Para você ter uma ideia, nós tivemos um brilhante treinamento em dinâmica de grupo com o Lauro de Oliveira Lima, que era um grande nome da questão da dinâmica de grupo. Treinava a gente…
P/1 – Então, [falas simultâneas] tinha esse…
R – Tinha essa perspectiva. Tivemos treinamento sobre ações culturais, sobre música, sobre teatro, sobre cinema, sobre literatura nesse período, claro, palestras, muito exercício comunitário de relações, uma espécie de dramatização, caso você chegue numa comunidade, como você faz para poder mobilizá-la, quem você chama, como você organiza esse… Tudo isso de maneira dramatizada. Era um treinamento muito, muito sofisticado. Tinha iniciação ao que eu poderia chamar de psicologia social, de como lidar com as pessoas e com isso poder de alguma forma convencê-las daquilo que você tá falando. Havia toda uma perspectiva de preparar esse grupo que tava entrando naquele momento para junto com os que já estavam trabalhar no interior. Então, em março, nós saímos cada um inserido numa equipe pequena de três pessoas…
P/1 – O quê que era efetivamente, então, esse trabalho que você tinha que fazer, quer dizer, você treinou três meses, eram quantas pessoas com você?
R – Éramos, na realidade, uma parte do treinamento foi exclusivo para os novos que estavam entrando…
P/1 – Quantos que entraram?
R – Dez, 12, que aí, conhecer as unidades, visitar as unidades, ver como que funcionava as unidades também nesse período, exclusivo para esses dez, 12 que entraram, não me lembro, acho que eram uns 12, um pouco mais de dez. E depois, a segunda parte, junto com todos os demais que já estavam em campo, que saíram do campo e vieram pra um treinamento junto com todo mundo. Nesse treinamento junto com todo mundo é que teve dinâmica de grupo, que teve bastante coisa mais de peso, com mais importância, com mais significado, né? Na realidade, quando você saía pra campo, eu fui para algumas cidades do interior de São Paulo, um roteiro já estabelecido, éramos várias equipes, cada equipe com três, um responsável mais antigo, mais experiente, um médio que já tava com alguma experiência nas não era tão antigo e o novíssimo como nós, como eu.
P/1 – Então por exemplo, você saiu com duas pessoas…
R – Com duas pessoas.
P/1 – E o quê que você foi fazer? Pra onde você foi?
R – Eu fui participar dessa equipe pra fazer o trabalho que eles realizavam, exatamente, subordinado ou vinculado a uma proposta. Essas equipes iam muito bem equipadas, nós tínhamos um carro, uma perua com todos os equipamentos necessários para essa ação.
P/1 – E qual era a ação?
R – Esse equipamento era, basicamente, livros no campo da ação cultural, da ação comunitária, algumas coisas ligadas a literatura, mas pouco, filmes, alguns filmes…
P/2 – Tudo dentro desse carro?
R – Tudo dentro desse carro. Um projetor de 16 milímetros, uma série de materiais esportivos, redes, bolas, camisas, muita apostila com o material dos cursos que a gente ia dar, na área de relações humanas do trabalho, relações públicas, noções de administração e noções de ação cultural, tudo isso, apostilas com material todo, você era preparado, treinado para poder desenvolver aqueles conteúdos todos, né? Tudo isso dentro do carro, que mais? Tinha jogos de salão, jogos sei lá, xadrez, dama, essas coisas que mobilizam pequenas comunidades, pequenos grupos de jovens. Uma vitrola, na época, com alguns LPs, na época, a gente tinha LP, para fazer atividades de animação, enfim, era uma vitrola, não era uma coisa muito grande, mas era, enfim, tinham vários equipamentos importantes…
P/2 – Era uma unidade móvel?
R – Uma unidade móvel, aquilo ia no carro, você tinha aquilo, chegava na cidade, você mantinha um contato com, digamos, lideranças da cidade.
P/1 – Então antes vocês tinham que contatar alguém ou vocês chegavam lá…
R – Tinha já uma expectativa… Você chegava meio que sem aviso, mas como já tinham passado no ano anterior, ou anos anteriores uma equipe como essa, o trabalho começou anos atrás, eu tô falando do ano de 1969, mas o Sesc já tinha as unidades móveis já desde os anos 60 iniciado em algumas cidades, havia já uma certo buchicho, uma certa informação de que os jovens, os meninos do Sesc iam passar a qualquer momento.
P/1 – Daí, qual foi a primeira cidade que você foi, você lembra?
R – Foi Bebedouro.
P/1 – Bebedouro?
R – Bebedouro. Chegamos em Bebedouro, o chefe da equipe que era o Vasques, colega que era responsável, Vasques , Erivelto e eu. O Vasquez…
P/1 – Vasquez, Erivelto e você?
R – É, éramos nós três.
P/1 – Aí, que lindo!
R – Foi a primeira equipe. A primeira equipe que eu entrei.
P/1 – Quer dizer, o Vasques…
R – [Falas simultâneas] Vasquez Pereira, já falecido, meu colega, ex-seminarista e jesuíta como eu, e Erivelto que também já se aposentou do Sesc, Erivelto Busto Garcia.
P/1 – Então, Vasquez era o antigo?
R – É, era o mais antigo. O mais antigo era o Vasquez, então ele era o chefe da equipe. O Erivelto e eu que era o mais novo. Então chegamos em Bebedouro, eu me lembro que fomos fazer visitas, eu fui acompanhando com eles, as lideranças da cidade, até o prefeito se houvesse disponibilidade, mas nem sempre havia. Mas quem eram as autoridades? O juiz, o pároco, procurador de Justiça, o presidente do clube, o diretor da escola, enfim, as pessoas que tinham influência na cidade, o presidente do sindicato do comércio lá ou da associação comercial, entendeu? Eles nos ajudavam ao quê? Localizar um espaço pra gente instalar, pra dar curso e nós íamos às escolas, íamos nas empresas mobilizar aí um tiro de guerra, para mobilizar a comunidade jovem, sobretudo, a garotada.
P/1 – O foco era esse?
R – O foco era esse. Pra quê? Duas grandes ações que nós fazíamos: uma, no campo cultural, uma espécie de ação cultural ampla, uma olimpíada cultural, uma festa qualquer ligada à música, teatro, dança, alguma coisa que a gente pudesse fazer, dependendo da cidade, da locação, do que era disponível na cidade, das pessoas. Era uma coisa voltada para a comunidade. Não se tratava de trazer ninguém de fora, era uma coisa pra comunidade, uma mobilização da comunidade. E no campo esportivo, um de nós se especializava mais, no nosso caso, era o próprio Vasquez que era o que se orientava mais nessa perspectiva da atividade física, atividade esportiva. Fazia uma tabela, convidava as pessoas, as diversas equipes de colégios, ou de empresas, ou de grupos da cidade, de times, enfim, pra fazer uma grande olimpíada que envolvia, basicamente, o que tem de esporte: futebol, futebol de salão, vôlei, basquete, natação, corrida, uma coisa nessa ótica, organizava isso e tinha toda uma estrutura para isso. Bom, e no campo cultural, mobilizava-se as pessoas para uma atividade, um curso, um curso na área de literatura, um curso na área de música, um curso na área ou de relações públicas, ou de relações humanas no trabalho…
P/1 – E vocês é que davam?
R – Nós é que dávamos, nós tínhamos preparo pra isso. E tinha as apostilas, a gente seguia, distribuía e discutia, orientava, mas no fundo, no fundo, o que a gente pretendia com esses mecanismos todos era mobilizar a comunidade para que se organizasse, para que fizesse junto conosco uma ação mais ampla, seja no campo da atividade física, seja no campo da atividade cultural, entendeu?
P/2 – Quem que idealizava isso: “Vai ser essa atividade física”?
R – Nós três decidíamos o que fazer.
P/2 – Mas tinha alguma diretriz?
R – Havia uma diretriz que já estava dada antes, ou seja, quando esse treinamento foi feito lá atrás, quando se conceberam as unidades móveis com o trabalho comunitário no interior, se pretendia usar essa metodologia, foi uma metodologia muito importante para o interior de São Paulo e isso durou um bom tempo, durou uns 12, 15 anos, talvez.
P/1 – Teve alguém responsável por esse [falas simultâneas]
R – A unidade… A equipe dirigente do Sesc, o diretor da Divisão de Orientação Social, que era o Renato Requixa que vem mais tarde ser o diretor do Departamento Nacional e Regional do Sesc, né, que inclusive era o diretor antes de eu assumir. Era uma resposta, vai, a uma ação que o Sesc, depois claro eu percebi os meandros, os fundamentos disso. Na época, eu não tinha condição de saber disso com exatidão, entendeu? Não só porque era muito novo, mas não tinha penetração, conhecimento e condições de poder entender por quê que o Sesc fazia isso. O Sesc já era uma instituição conhecida, mas não era tão forte, tão conhecida e não tinha ainda, digamos, espalhado proposta institucional no Estado. Aí, vale a pena entender um pouco o quê que é o Sesc, né? Quando o Sesc foi criado em 46, ele foi criado de uma maneira a responder uma necessidade do Brasil, da classe trabalhadora, empresariada, claro também junto da sociedade brasileira naquele momento, no pós-guerra, Brasil se organizando novamente, tentando se organizar, se democratizar, Brasil depois da Segunda Guerra Mundial tentou, Getúlio saiu que era um ditador, veio uma eleição direta pra presidente que o Dutra foi eleito, se fez uma Constituição nova. É nesse clima que o Sesc é criado em 46. Nós estamos falando 20 e tantos anos depois, e até aquele momento, os S, os quatro S originais que é o Sesc, o Sesi [Serviço Social da Indústria], o Senai [Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial] e o Senac [Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial] são os quatro originais, todos da década de 40. O Sesi já era mais conhecido, a indústria tinha muito mais presença e força do que o comércio nesse sentido. O Senai e o Senac também eram conhecidos, porque eram escolas de formação profissional, mas o Sesc, talvez, dos quatro fosse o menos presente no ideário, na cabeça das pessoas, né? Então, se pensou nessa tentativa de tornar o Sesc mais atuante e mais presente na comunidade. O Sesc, através das suas unidades presentes, físicas, estava presente pouco em São Paulo e em algumas poucas cidades do interior, onde tinha uma extravasão, atendia pessoas, mas era pouco, era muito pouco. Então, a tentativa foi no sentido de descobrir uma fórmula de estar presente, de manifestar a sua presença sem fixar uma unidade, sem ter fisicamente uma unidade em cada cidade e a unidade móvel…
P/1 – É uma estratégia…
R – Veio nessa perspectiva, nessa estratégia. Isso do ponto de vista, digamos assim, estrutural, infraestrutural dessa presença material. E o conteúdo disso, o quê que é? O quê que você oferece? Então aí vem essa perspectiva da mobilização da comunidade em torno de quem? Dela mesma, é um pensamento que tinha uma certa influência, já, na cabeça das pessoas que estavam na época dirigindo o Sesc, ou seja, já que nós não podemos, vamos despertar nas pessoas um interesse para que elas mobilizem, para que elas se transformem, para que elas melhorem as suas vidas através de quem? Delas mesmas. E oferecendo um pouco, não muito, mas oferecendo essa passagem, oferecendo a nossa unidade de Bertioga para as férias dos trabalhadores que mal era conhecido no interior e o interior é talvez a principal região que emite, que manda gente para Bertioga até hoje, né? E era nesse momento que se tornou mais conhecido. O Sesc teve uma presença grande e, ao mesmo tempo, houve a estratégia nesses anos posteriores todos de implantar unidades fixas nas principais cidades.
P/1 – Já nessa época em que você entrou já…
R – Já, já! Já tinha algum, poucas, né? Em poucas cidades, Santos, Ribeirão, Campinas, mas eram unidades muito pouco eficazes e sem muito equipamento, né, eram casarões alugados que tinham um gabinete odontológico, um trabalho voltado para criança, espécie de creche e trabalho de educação infantil, uma quadra quando podia ter, e um trabalho na comunidade pequeno, não era uma coisa tão presente, tanto que depois que as unidades móveis foram implantadas e ganharam uma dimensão muito importante no trabalho do Sesc, porque além de tudo, era formadora de quadros, né? Formadora de quadros, importantíssima! Depois que isso se consolidou muito fortemente, adaptando-se, ajeitando, melhorando, o Sesc criou uma outra unidade móvel para atuar nos centros fixos, da qual eu participei também. Você ia nas unidades do Sesc já instaladas, eu estive em São Carlos, estive em São José dos Campos, em Campinas, estive em Taubaté, em unidades que você ia, chegava na unidade, tinha um diretor que naquela época se chamava diretor da unidade e você, junto com o diretor, e aí não era uma equipe de três, éramos dois apenas, nós mobilizávamos a comunidade em torno da nossa unidade lá, porque até isso foi necessário para revitalizar e fortalecer. Foi um trabalho de fortalecimento, as unidades móveis trabalharam, tanto essas unidades móveis amplas, como eu mencionei no início, como as unidades, a Unicentro ligada aos centros culturais, centros esportivos, onde havia, tornou o Sesc muito mais forte, muito mais conhecido o interior e até na capital, que teve um trabalho interessante também de unidades móveis em bairros periféricos da capital, também. Então isso foi uma estratégia da instituição de tornar-se mais fortalecida, mais conhecida e nessa perspectiva de uma ação comunitária. Era o grande momento em que se discutia muito essa questão da relação comunitária. Essa tentativa de mobilizar a comunidade, inclusive, tem até uma instituição até hoje chamada de Ação Comunitária, né, que nasceu nesse período, que no fundo, no fundo, ela propõe o seguinte: “Comunidade, você tem condições de mobilizar-se e atingir os seus objetivos”, essa é um pouco a raiz da proposta de uma ação comunitária, claro que se tem metodologia, se tem modo de fazer, tem movimentos, mas é uma coisa que cuida muito desse caráter não paternalista, né, de você não chegar e dizer: “Vocês têm que fazer isso, isso e isso”, não, é uma coisa que você oferece, digamos, um leque de opções e desperta nas pessoas um interesse para que elas mesmas descubram o caminho mais adequado, então isso o Sesc desenvolveu com muita força. E foi nesse Sesc, nesse momento que eu acabo me envolvendo diretamente, quer dizer, eu fui contratado pra entrar na instituição no período em que tava essa exuberância, esse momento forte da instituição se espalhando no Estado todo, né?
P/1 – Antes da gente seguir com você, eu tô intrigada numa coisa. A gente tá falando de 69?
R – Sessenta e oito, 69.
P/1 – E essa metodologia é uma metodologia bem, vamos dizer, moderna, vamos chamar…
R – É bem moderna.
P/1 – Mas já era da igreja também na época ou não?
R – Era. Depois vem as tais… Como que chama?
P/1 – Comunidade Eclesiástica de Base, tudo isso…
R – Isso tudo vem depois.
P/1 – Mas já é uma mentalidade de mobilizar a comunidade em pleno auge da Ditadura?
R – É verdade! Em plena… Mas isso se afastava…
P/1 – Não tinha o sindicato patronal, uma coisa assim? Quem era o diretor? Como ele adota [falas simultâneas] uma política tão…
R – É, isso é uma contradição que aparece, né?
P/1 – O quê que era pra vocês… Porque na Comunidade Eclesiástica de Base é assim: “Precisamos mudar a comunidade para mudar a sociedade”.
R – Claro.
P/1 – Então, é um objetivo claro, sei lá, as ações políticas até armadas, também diziam: “A gente precisa mobilizar para mudar a sociedade”.
R – É, tem até quem chegue lá, né?
P/1 – É. E aí, o Sesc não deixa de ser uma instituição patronal…
R – Uma instituição patronal. Patronal…
P/1 – Então, o quê que era ideologicamente que estava na cabeça de vocês ou de quem coordenava vocês nesse momento?
R – Isso me chamava a atenção, me chamava a atenção, sim, tanto que quando eu participei de todo o processo seletivo, eu mencionei isso, eu achava que eu não tinha passado pra frente porque eu tinha revelado o quê que eu pensava, o quê que eu achava, como eu via as coisas, então eu tinha um pouco essa visão. Mas as pessoas que dirigiam o Sesc, não é que eram pessoas de esquerda, progressistas, tinha até pessoas progressistas, têm até hoje e tem que ter. A questão, pra mim, muito clara depois aprofundando isso e vendo melhor, é perceber o seguinte, é patronal, mas tem um objetivo comunitário, tem objetivo em favor da sociedade e isso para o empresariado, também é importante, na medida em que a empresa ou as empresas, ou o empresário mais atual, moderno que vislumbra uma sociedade melhor, mais organizada percebe duas coisas: primeiro, que é melhor ter as pessoas mais felizes trabalhando, atuando, vivendo, portanto tem uma sociedade melhor, de certa maneira, isso tem gente com o pensamento… Existe, inclusive, uma ideia de uma democracia cristã lá atrás que valorizava muito isso, né? Esse pensamento… Tanto que o Sesc, na minha visão, tem um pouco de compromisso com essa visão lá, inclusive no combate à próprias ideias do comunismo: “Vamos bater o comunismo”, na época, na luta muito clara dos dois campos que se formam depois da Segunda Guerra Mundial oferecendo alguma coisa que interesse para os trabalhadores também, mas que não seja exatamente aquilo. Então, a democracia cristã trabalha um pouco nessa perspectiva e isso influenciou, eu acho que isso é importante dizer, tem empresários com uma visão de uma sociedade melhor, uma sociedade que possa ser mais adequada para o bem-estar de todo mundo e a instituição tem isso lá na sua raiz. Se você pega a Carta da Paz Social que é o fundamento da instituição, ela prega, com muita clareza, a função social da empresa. Isso tá muito claro. Então, tem um fundamento. Fundamento lá, você vai dizer: “Hoje, os empresários não pensam assim”, bom, pode ser, mas naquele tempo pensavam e tem hoje também empresários que têm essa mesma visão. Então, não é que todo mundo empresariado é alguém de extrema direita que quer ver os trabalhadores prejudicados. Não é isso, né? Essa é o primeiro fundamento de tudo isso, mas tem um segundo que é o interesse do empresário de ter uma sociedade onde haja pessoas capazes de consumir, de poder viver de maneira razoável , inclusive porque sem isso, você não tem nem escoamento dos produtos que você produz. Imagine, portanto, uma sociedade de empresários que produzam muito, muito e muito e pra quem? Quem é que vai utilizar se não são as pessoas comuns? E as pessoas comuns, muitas delas, estão trabalhando para eles mesmos, para os empresários. Então eles têm que ser bem tratados, né? Têm que ser bem remunerados, têm que ser bem adequados… Esse é um pensamento, esse é um conflito permanente. Isso do ponto de vista mais de fundamentação dessas ideias. Agora, no fundo, no fundo, as pessoas que estavam dirigindo o Sesc naquele período e continuam, espero até hoje, dirigindo o Sesc são pessoas com uma visão de uma sociedade melhor, pretendem uma sociedade melhor, já pretendiam, né? Embora tenham essa coisa do empresário lá no alto que toma as grandes decisões, mas quem na prática opera o sistema é alguém que tem que ter essa perspectiva de criar um padrão de bem-estar comum para toda uma sociedade. Então, o Sesc assume isso de uma maneira muito tranquila hoje. E assim como os demais, os S, mais ou menos, estão integrados nisso também. Seria até melhor nós imaginarmos que isso pode ajudar, de fato, a transformar a sociedade, mas não é a única forma de transformar a sociedade, é claro. Não temos a ingenuidade de imaginar que o nossos trabalho seja suficiente para isso, mas ele colabora. Ele colabora porque ele trabalha na perspectiva da identidade, do reconhecimento, da valorização, da educação para a autonomia, né, para mim esse é um valor importante que depois, a gente incorporou com muita força no Sesc, essa educação permanente que não é educação regular para a autonomia, porque o quê que interessa educar? Interessa educar, que isso tá no princípio de tudo, para que a pessoa, para que educando aquele que recebe esse processo, que participa desse processo seja capaz de decidir adequadamente de maneira autônoma. E não imposto.
P/2 – Naquele momento, tinha uma preponderância, assim, mais cultura, não cultura no sentido das artes, ou do corpo, da recreação?
R – Tinha. Na realidade, o Sesc desenvolveu nessa questão das opções dessas preponderâncias programáticas, uma trajetória curiosa. Nos anos 40, antes, portanto, da gente entrar, eu entrei em 68, né, mas nos anos 40, quando iniciou, 46 era muito paternalista superficial, assistencialista direto: vamos oferecer, vamos dar alimento, vamos dar saúde, vamos dar atenção, vamos oferecer… Aquela perspectiva do empresário que é proveniente de uma parte da sociedade que pode, oferecendo pra alguém que é o trabalhador, que é uma parte da sociedade que não pode. Então, nós que podemos vamos oferecer para quem não pode, né? Então, nasceu um pouco…
P/1 – Isso nos anos 40?
R – Anos 40, um pouco nessa perspectiva assistencialista, paternalista, resquícios até hoje espalhados por aí, mas esse é o primeiro momento. Num segundo momento, mas veja bem, quando você vê o decreto e vê a Carta da Paz Social, você vê que lá fala de programa de bem-estar social, que era o objetivo, escopo, e nesse programa descrito lá fala de tudo: saúde, educação, transporte, vestuário, habitação, tudo tá lá, como elementos que seriam oferecidos ao trabalhador para que ele pudesse ter um programa, ter um padrão de bem-estar, inclusive, educação regular.
P/1 – Inclusive?
R – inclusive educação regular.
P/1 – Escola, inclusive?
R – Escola, escola. Muito bem, além da cultura. A cultura tá lá jogada como mais um elemento, como se cultura fosse como lazer, como recreação, não tinha predominância, nada tinha predominância ali. Tinha predominância aquilo que era mais evidente. Se você tem uma pessoa com carência excessiva, a primeira coisa que você tem que fazer é dar comida para ela ficar em pé, para ela ter saúde, né? Saúde e comida, condições para ela, claro que você tem que pensar em educação lá na frente, pensar em cultura lá na frente, tem que pensar em saúde, enfim, em tudo, mas num primeiro momento, você tem que fazer com que a pessoa tenha condições de no mínimo, sobreviver. Então, isso naquele primeiro momento predominou um pouco. Nesse período, o Sesc tinha programas de assistência até jurídica, não com relação ao trabalho, mas com relação à família, com relação a problemas pessoais, não havia terapia, propriamente dita, nem esse conceito de terapia era tão forte naqueles anos, provavelmente já era em algum lugar, mas não no dia a dia das pessoas aqui no Brasil. Terapia que eu digo é essa terapia mais psicológica e tal. Mas havia, realmente, um cuidado… Fazia-se concurso de o bebê mais forte, a comerciária mais bonita, concurso de miss comerciária, eram coisas importantes na época que davam o valor a esse… Até hoje, tem um lugar que faz o concurso de miss, infelizmente na minha opinião, porque é uma outra história, mas enfim… A predominância era essa. Aos poucos, vai se percebendo que atividade física é importante, aí o esporte começa a ganhar uma certa dimensão, aí vem a questão do tempo livre como importante, como um momento de criação, de autonomia e aí vem os conceitos de estudos, influências, pessoas de fora, gente que vai para fora, que estuda, que aprofunda, que discute a questão do tempo livre, do lazer como elementos vitais para o ser humano poder desenvolver não só em termos de tempo, mas também em termos de conteúdo, de uma ação. Até que se chega muito mais adiante e isso já mais recente, a essa visão de que cultura não é apenas atividade de diversão ou de arte de espetáculo, cultura tem a ver com todo um processo de desenvolvimento do ser humano que abrange tudo, inclusive a educação regular. É diferente, né? Então, quando a gente vê esses conflitos de cultura e educação, há um certo desentendimento de conceitos, quando você leva o conceito de cultura e abrande o conceito de cultura e amplia o conceito de cultura, ele inclui a educação regular. E se você leva o conceito de educação também a um patamar mais abrangente e mais amplo, educação não regular apenas, mas educação, que nós chamamos de educação complementar ou permanente, educação, ela se confunde esse conceito com o conceito de cultura. Então, pra nós, o grande desenvolvimento do ser humano tá muito vinculado à questão cultural e aí você inclui até atividade física, até a saúde, até a educação regular e todo o restante. Por isso que a cultura ganhou uma dimensão, não só das artes e dos que… É uma expressão… O simbólico, talvez, seja a expressão mais ampla e mais profunda e mais elevada e mais nobre – entre aspas – da cultura, mas não é a única. A cultura tem a ver com a língua que você fala, com a comida que você come, com a roupa que você veste, com a vida que você leva. Cultura no sentido mais profundo, antropológico, muito mais amplo do que simplesmente a questão apenas da arte e do espetáculo. Por isso que ganhou assim, nesses anos… Então, há uma migração, uma apropriação cada vez de conceitos que tornam a ação da instituição muito mais abrangente e muito mais profunda, por isso que você vai numa unidade nova como essa que nós acabamos de inaugurar no interior, é um mix, é um combo, né, é um mix, é uma mistura de ações, mas que tem como objetivo o quê? O bem-estar, a qualidade de vida, a relação das pessoas consigo mesmas e com o outro e com a sociedade a sua volta, incluindo inclusive a questão ambiental, que é parte desse processo também. É muito legal quando a gente percebe essa evolução conceitual que a instituição foi ganhando no decorrer desses anos. Quando eu entrei, não tinha essa…
P/1 – Então, quando você entrou, era esporte, cultura, uma mobilização da comunidade para ela crescer?
R – A mobilização da comunidade.
P/1 – Nós estamos falando do fim dos anos 60…
R – Fim dos anos 60.
P/1 – Só para a gente ter uma linha do tempo, então 40 muito mais paternalista, os 50 já migrou um pouco?
R – O esporte começa a ganhar dimensão importante, mas o esporte enquanto mobilização também, mas no esporte, muito mais restrito ao desenvolvimento físico, menos saúde, menos envolvimento comunitário e mais dar condições para o tempo livre do trabalhador ser bem ocupado com atividades esportivas. O Sesc fazia campeonato de várzea no Estado de São Paulo, cidade de São Paulo, tinha uma atividade intensiva, mas não tinha equipamentos para isso, o Sesc usava equipamentos que estavam à disposição na comunidade. Era muito forte.
P/1 – E aí, nos anos 60, isso foi crescendo? Só pra gente chegar assim, onde você tá. Nos anos 60, houve uma mudança?
R – Houve nos anos 60, 70 tem, a partir desse grupo que dirige o Sesc nesse momento…
P/1 – Que é quem, Danilo?
R – Renato Riquixa, ____00:44:32____, quem mais? O Benedito Caprioglio, José Tavares de Melo, são as pessoas que estão em plena maturidade e são os responsáveis pelo Sesc naquele momento, que fazem o Sesc funcionar desse jeito.
P/1 – E na época, o Sesc era referente ainda a Federação do Comércio?
R – Total. Mas sempre foi, continua…
P/1 – Quem tava na frente?
R – Brasílio Machado Neto e depois, José Papa Junior, que liberava que tudo isso acontecesse, pessoas muito mais voltadas ao lado político da coisa, de manter o poder. Porque a Federação do Comércio é constituída por sindicatos do Estado inteiro, então toda preocupação deles é no sentido de manter esse poder e permanecer com condições como até hoje nós temos, né? Depois, do Papa, foi o Presidente Abram que tá até hoje e é exatamente esse… Prestando serviço e o Abram tem muito mais essa perspectiva de fazer a Federação um grande núcleo de prestação de serviços para os empresários, para a comunidade, mas mais para o empresariado mesmo e para os sindicatos, todos, né? Então, é muito vinculada a essa política sindical patronal. Mas que dá vazão e dava espaço e dava condição para que os operadores do Sesc funcionassem adequadamente, fizessem as coisas andarem. Então criando estruturas, o Sesc, desde 48, por exemplo, criou um programa de férias, uma colônia de férias em Bertioga, que foi exemplar, foi a primeira unidade de férias para o trabalhador do Brasil inteiro. Depois disso, muitas associações, sindicatos, organizações, federações, todo mundo tem o seu programa de férias desenvolvido, mas foi a primeiríssima, do ano de 48. Colônia de férias de Bertioga é fundada em 48 pelo Brasílio Machado Neto. Então quer dizer, ao mesmo tempo que tem essa perspectiva, digamos, de manter, de organizar, mas tem o escopo, o objetivo, a colocação clara de que isso é voltado para prestar um serviço para os trabalhadores.
P/2 – Voltando para você lá em 69, 70, aí você tava nessas unidades móveis, depois você vai pra onde? Como que se dá essa passagem?
R – Eu trabalhei um pouco nas unidades móveis, tanto na unidade móvel desse esquema livre de outras unidades até com unidades móveis em cidades onde havia o Sesc também, né, como eu mencionei, as Unicentro que a gente chamava. Sempre com equipamentos, com equipe pequena mobilizando muito a comunidade, então isso sempre aconteceu. Muito bem, depois disso, eu fui trabalhar já numa unidade fixa que é a unidade do Carmo, hoje. Na época, era o Centro Social Mário França Azevedo, ele não tinha um caráter… Tinha até um caráter cultural também, mas era menor, era mais um restaurante e um trabalho voltado para idoso, trabalho voltado para as empresas, para mobilização de uma ação das empresas, o Centro Social Mário França Azevedo, que hoje em dia, a gente chama de Sesc Carmo, né? E eu fiquei ali alguns anos.
P/1 – Você foi fazer o que lá, Danilo?
R – Eu era membro de uma equipe que trabalhava nesse esquema de atuar nas empresas, de dar cursos nas empresas, de fazer matrícula nas empresas, organizar seminários sobre essa temática toda de administração de bem-estar social, de ação do Sesc pelo interior, mas da unidade, fixado na unidade. Havia uma ideia de querer juntar algumas ações do interior centralizadas aqui em São Paulo no Centro Mário França. Então, eu já tinha um certo vínculo com a direção geral de orientação social que ficava na sede no Sesc, né? O Doutor Amin que era o diretor da Divisão de Orientação Social, ele que coordenava um pouco o nosso trabalho lá na unidade, já.
P/1 – O Centro era?
R – Era na Rua do Carmo. Centro Social Mário França Azevedo.
P/1 – Esse que você trabalhava, o Centro do Sesc na época?
R – Ah, era na Rua Doutor Vila Nova, lá era a sede do Sesc, lá junto com o Senac. O Senac com dois ou três andares embaixo e o Sesc em cima. Era tudo no mesmo lugar. Então, isso vai de 71, dois anos, a 73, até 73. Em 73, eu fazia esse trabalho, organizava seminário, tinha um trabalho grande nas unidades nas empresas do centro de São Paulo, é uma unidade com um vínculo muito forte com as empresas. Muita matrícula, muita gente envolvida, muita gente atuando na… Era um centro antigo, o Centro Social Mário França Azevedo, esse da Rua do Carmo é o segundo ou terceiro, segunda sede do Sesc, né, dos anos 40, é bem antigo, um prédio antigo, foi adquirido pelo Sesc e transformado numa unidade do Sesc e tinha o grande… O forte lá era um grande restaurante para os trabalhadores, que tá até hoje funciona. Muito importante para atender os trabalhadores do centro de São Paulo, principalmente, da região da Praça da Sé, muito forte, né? Era o mais significativo lá que a gente tinha que administrar esse processo também, mas além disso, um trabalho grande voltado… Tinham dois setores: um setor de orientação social que era esse que ia atuar nas empresas, tinha uma ação grande voltada para idoso, tinha uma ação forte na organização de seminários e debates sobre administração de empresas com gente da GV, com gente… A gente tinha que ter uma mobilização grande, organizando seminário em São Paulo e até fora de São Paulo, era uma grande atuação que a gente tinha nesse campo. Muito bem, e havia outro setor que cuidava da parte que chamava Recreação e Cultura, que cuidava de cursos na área de cultura, de tirar fotografia, teatros, música, era um outro setor, do qual eu não cuidava. Eu cuidava da parte do setor de orientação social, que era esse que eu mencionei primeiro. Fiquei ali dois anos até 73. Em 73, o Doutor Amin, que era o diretor da Divisão de Orientação Social, na sede que orientava as unidades móveis, todo o trabalho nos centros, que era, enfim, diretor de divisão que chamava, né? Ele é convidado pelo presidente a assumir a direção geral do Senac. O Senac vivia, naquele momento, um certo drama de ter um jeito muito antigo de administrar. O Sesc já tava um pouco mais mobilizado, tinha essa equipe grande de dirigentes que dava assim, um caráter bastante atual e moderno à ação do Sesc, mas o Senac tava um pouco ultrapassado, eu diria, né? Eram escolas técnicas de aprendizagem na área comercial e o presidente achou por bem naquele momento dar uma mexida no Senac. Aí, convidou uma pessoa do Sesc pra assumir o Senac, o diretor dessa divisão e ao (corte no áudio) ele pensou, claro e resolveu assumir, aceitar o convite e levar com ele algumas pessoas, especialmente duas num primeiro momento, uma foi uma pessoa ligada a essa parte mais de ensino, propriamente dito, essa parte mais de estrutura educacional, porque o Senac, basicamente, é uma instituição ligada ao ensino técnico de formação profissional e ele viu nessa pessoa, um colega, o Décio Zanirato, a condição de ser alguém desse campo, mais da parte pedagógica, mesmo, e uma outra pessoa que ele queria para mobilizar essa coisa das empresas, essa coisa da administração de pessoas, a questão dos chamados recursos humanos na época, administração desse quadro de funcionários todos para rever todo esse quadro, para rever como isso funcionava no Senac e o quê que isso devia sofrer de modificação. Então, ele me chama junto com o Décio e juntos, nós vamos assumir o Senac. Ele assume como diretor geral, eu assumo como responsável por toda essa parte de administração e o Décio vai para a parte técnica de ensino. Isso foi no início de… Em janeiro de 73. Então, eu abandono, de uma certa maneira, o meu compromisso naquele momento com o Sesc, vou para o Senac emprestado, de certa maneira, porque o presidente era o mesmo, então não tinha muita modificação e eu fico no Senac nessa área de administrar mesmo a questão complexa e toda a mudança, a transformação, a modernização e atualização do quadro de funcionários do Senac. Era um quadro bem antigo, né, tinha gente com muito… Nos cargos assim, mais importantes muito antigos, muito antiga, muito velha que tava lá muitos anos, com um modo de agir muito conservador, muito antigo. Então a gente foi, aos poucos, alterando todo esse quadro e fomos trazendo cada vez mais gente do próprio Sesc que veio nos ajudar nesse processo, uns 20 ou 30, eu não me lembro, que vieram assumir gerências ou direções de várias unidades do Senac na época. E aí, houve uma transformação grande no Senac e foi uma fase importante da minha vida, não tanto do ponto de vista do conteúdo, porque embora eu pudesse desenvolver toda uma prática também com relação à formação profissional, mas mais importante do que isso foi de administrar a complexidade de uma grande instituição, do ponto de vista de pessoas, de necessidades, de articulações necessárias para isso. Eu comecei a ter uma postura e uma atitude mais, digamos, vinculadas, a esse processo de administrar pessoas, que para mim é o grande segredo da boa administração de uma instituição, é administrar pessoas, como lidar com as pessoas. E isso foi um período de mais de dez anos, no qual, nesse período, eu fiquei como o vice, o segundo diretor geral do Senac boa parte do tempo por diversas razões.
P/1 – Vocês eram superintendentes, seria isso?
R – Não tinha essa cargo de superintendência, eram os coordenadores que chamavam, se eu não me engano, coordenador. Era um outro cargo, mas era como se eu fosse o vice-diretor do Senac nesse período todo. Assumi várias vezes em períodos longos, não só nas férias, mas também licenças que o diretor geral, Doutor Amin tinha, saía. Ele era uma pessoa muito influente do ponto de vista de modos de fazer, de agir, entendeu, o Amin tinha uma habilidade muito grande, tem ainda, muito atuante.
P/1 – Danilo, nesse momento, quer dizer, uma área bem complexa, né?
R – Total, total.
P/1 – Você tirava o seu modus operandi da onde? Você foi estudar?
R – Fui. Eu fui fazer o IMD [International Institute for Management Development], né, o famoso IMD. O IMD é uma Escola de Administração na Suíça, que hoje é um organismo muito forte, ainda, sediado em Lausanne, na Suíça e quem tem vínculos com a universidade New York University, é uma coisa que os europeus desenvolveram não só lá, mas tem outros, tem o ICAD em Paris, em Genebra tinha uma outra instituição, modos de administrar seguindo padrões americanos na Europa. Os europeus achavam… Depois tiveram uma fase de apreciar mais os japoneses, mas nesse período, eles apreciavam muito o modo americano, então tem várias instituições sediadas na Europa, ou tinha naquele período dos anos 70, eu fui em 75, 76 pra lá. Eles apreciavam muito o modo de agir e o sucesso do modo de administrar americano, digamos assim, o modo de fazer dos americanos, o modo de administração de empresas e importaram isso de uma forma meio que especial e diferente para a Europa. Então eram alunos, na sua grande maioria, da Europa, no caso desse meu curso do IMD em Lausanne, na Suíça, vinculado a Universidade de Lausanne, mas também vinculado a New York University, os professores quase todos eram americanos, todos ingleses, eram um cluster, um nicho inglês, dentro de Lausanne, que é uma cidade franco-saxônico, mas tudo inglês lá dentro e os alunos tinham que falar inglês, desenvolver em inglês, tudo em inglês, inclusive os europeus que frequentavam, suíços, alemães, franceses do norte da Europa, alguns poucos asiáticos e alguns pouquíssimos da América também, América Latina, América do Norte, eu acho que tinha um ou dois, só. Era um grupo pequeno, portanto. E era um curso desenvolvido com muito rigor, era um curso muito forte do IMD, baseado em dois grandes fundamentos: o primeiro fundamento é estudo de caso, onde só trabalhava com estudo de casos, cases study, só! Tudo baseado no estudo, então Marketing, Finanças, Administração de Pessoas, questões estratégicas, tudo baseado em casos, e em grupo, então você participava de um grupo que discutia aquilo e ia pra aula com aquelas conclusões e ali, o professor desenvolvia. Até hoje é assim. Estudo de caso e estudo em grupo. Essa era a metodologia do IMD e muitos na época fizeram, eu fui junto com o Décio, aquele colega que eu mencionei, fomos nós dois os primeiros que fomos para lá. Depois disso, muita gente do Senac e do Sesc também foram…
P/1 – Era um convênio, assim?
R – Quase um convênio. Uns 30 foram. E até no Sesc, quando eu assumi, ainda duas pessoas foram, foi a Maria Luiza e o Olegário foram também. Mas depois disso, isso mudou porque aqui ganhou uma outra condição, no país, né, de responder a isso com outras possibilidades. Aqui, você tem várias instituições que realizam esse projeto de maneira bastante completa também. Então, lá fui eu para a Suíça com a família, passamos lá uma temporada…
P/1 – Você já tinha casado, então?
R – Já tinha casado e tinha duas filhas. Levei todo mundo para lá, ficamos um bom período…
P/1 – Quanto tempo vocês ficaram lá?
R – O curso mesmo, na época, demorou cerca de oito meses, se eu não me engano. Mas eu fiquei mais tempo antes e depois pra poder desenvolver o meu inglês, para poder ficar mais tempo, não com a família o tempo todo, porque depois a família voltou, ainda fiquei mais um pouco, e de lá pra cá, o curso foi ficando cada vez mais compactado, mas quando eu fui era um PED - Programa de Desenvolvimento Executivo.
P/1 – E você já tinha saído do Brasil?
R – Nunca!
P/1 – Então, me conta…
R – Eu tinha ido para o Paraguai, com todo o respeito. Então, eu não tinha saído do Brasil muito bem.
P/1 – Então assim, conta pra gente essa sua chegada em uma escola internacional num lugar diferente…
R – Foi duro, foi difícil. Isso foi em 76…
P/1 – Um ano, mais ou menos, você passou nessa história, né? Um ano, um ano e meio.
R – Eu fui no final, em dezembro, o curso começou no início de janeiro, foi um curso de pleno inverno na Suíça, neve para todo lado, aquelas calçadas escorregando, que você não tinha nem sapato adequado para andar naquilo, é verdade. E você chega lá em Genebra e de Genebra você tinha que pegar um trem para ir para Lausanne, eu lembro que eu sofri um pouco, mas tudo bem, não dominava tão bem a língua nesse período…
P/1 – O quê que você achou daquilo tudo?
R – Foi uma experiência… Eu sabia que eu tinha que mergulhar no caminho, digamos assim, mais responsável nesse campo. Uma conclusão interessante, estando lá, aluguei apartamento, eu, minha mulher, minhas filhas, o Décio também alugou apartamento para ele, a mulher, o filho, ficamos mais ou menos perto, mas enfim, vida que leva, vida normal, vida que segue sem grandes diferenças do ponto de vista pessoal, de ter que cuidar de tudo. E estudava muito e era muito exigente as matérias todas, eu tinha uma quantidade de leitura quase que diária e noturna, virava a noite lendo pra poder me preparar para o curso para o dia seguinte, para participar do grupo, para poder fazer o relatório, para poder falar sobre aquilo que eu tava lendo, para mostrar minha conclusão no grupo e depois discutir no grupo com todo mundo. Eu já tinha tido a experiência de fazer Filosofia dura no tempo de seminarista jesuíta, mas lá eu tive uma experiência mais dura ainda em termos de estudo. Eu nunca, digamos, fui tão exigido do ponto de vista intelectual e tal e nessa condição, num país estranho, num clima diferente, numa alimentação diferente, num ambiente diferente, foi um exercício. Tinha 30 e poucos anos naquele período, foi muito importante pra mim ter tido essa experiência interrompendo a minha carreira, digamos, entre Sesc e Senac, naquele tempo eu tava no Senac, então eu passei o ano de 77 quase que todo por conta disso e foi no fim de 76 até final de 77.
P/1 – Mas você se sentia menor perante os colegas europeus?
R – Não, não, não, pelo contrário, eu tinha não olho gordo da minha situação: estou aqui, primeiro porque eu sou muito realista nesse aspecto, né, eu não dominava a língua tão bem quanto a maioria deles, poucos…
P/1 – Era em inglês, tudo?
R – Tudo em inglês. A aula em inglês, comunicação em inglês, escrever em inglês, eu tive dificuldade, claro, porque eu não tinha essa habilidade tão desenvolvida naquele tempo. Fui desenvolvendo ali. Mas tive sensações curiosíssimas, gente de toda parte. E convivendo com pessoas muito diferentes com quais eu convivia aqui! Eu tinha tido já experiências de uma vida comunitária, de uma vida dentro de um internato. Lá não era internato, mas eu passava o dia todo lá, praticamente, mas tinha muita semelhança, estudo junto, almoçar junto, sair junto, fazer junto, tudo muito junto. A família tá lá, mas a Cléo, minha mulher, sofreu um pouco, porque eu não tava presente o tempo todo e foi uma experiência também difícil para ela e para as crianças, mas foi bom, sempre ajuda, né? Mas não nesse sentido de que a gente vivendo no exterior se sente diminuído por alguma razão, não, isso tava muito… Sabia que eu tinha limitações de língua, sobretudo, e de entender aquela realidade, de conviver naquele momento. Mas tinha uma relação muito legal com todo mundo, tinham alguns amigos muito próximos que eram pessoas muito legais também, que gostavam muito da gente, que frequentava, né? Agora tinha de tudo, né? Sobre esse assunto, em particular, eu tenho um fato que sempre me vem à cabeça. Havia uma pessoa que vinha da Inglaterra, mas não era inglês, ele vinha… Era um descendente de alguma família aristocrática de algum país comunista que estava refugiado ou foi morar em Londres, um cara muito alinhado, muito… Andava de bengala, era um aluno, mas muito orgulhoso da sua condição de europeu e de membro de alguma aristocracia europeia, né? E num debate, uma vez, em que se discutia exatamente a questão e expatriados europeus vivendo em algum país tipo latino-americano, africano, distante, para implantar uma empresa, para conviver e tal, era um caso que foi debatido, foi conversado. Eu era o relator do lado, do meu grupo e ele o relator do grupo dele. E quando ele foi apresentar, não sei se ele se distraiu, ou se não percebeu quem éramos nós e qual era a composição, porque eu me lembro que tinha gente da Coreia, um rapaz, tinha dois ou três do Japão, tinha gente da África, mas ingleses da África do Sul, que era inglês, praticamente, tinha gente das Filipinas, o Alberto…
P/1 – Índia?
R – Da Índia não tinha, não… Tinha do Paquistão. A Índia… Paquistão, não, do Irã, tinha alguém do Irã. Uma época em que o Irã não tava tão complicado como chegou a ficar depois. E tinham dois, ou três da América do Sul, nós éramos brasileiros, quatro, e tinha um venezuelano. E na hora do relatório, esse personagem cujo o nome passou, eu não me lembro, ele fez uma referência ao fato que ele tava relatando, ainda a adaptação de um europeu num país x, não me lembro, acho que era no Caribe, ele falou assim: “Nós, europeus, somos ligeiramente superiores, we are lightly superiority”, isso ficou na minha cabeça. Eu na hora reagi, levantei e falei: “O que o senhor falou?”, eu me lembro disso. “Nós somos ligeiramente superior” “O senhor acredita nisso mesmo?”, na mesma hora eu falei e toda a equipe, toda a comunidade, todo o grupo, nós éramos uns 40, 50, na mesma hora ficou do meu lado. “Como você fala uma coisa dessa? Uma batatada dessa?”, o cara foi quase expulso do curso porque ele falou isso: “Nós, europeus…”
P/1 – E ele tipo o quê? Um russo aristocrata?
R – Era polonês, eu acho. Era polonês e vivia na Inglaterra. Mas não era um polonês assim, popular, ele era um nobre polonês, não sei… Mas vivia na Inglaterra, ele já falava daquele jeito inglês diferenciado, né, que o inglês da Inglaterra tem aquele modo próprio de falar. “We are lightly superiority”, eu falei: “Como? O senhor tá enganado, ninguém é superior a ninguém!”
P/1 – E ele?
R – Ele protestou, o professor falou: “Não, o senhor não tem razão! O senhor aguarda, aguarda. Espera”. Mas a classe toda se colocou contra ele, né, até a turma do grupo dele, né? E aí foi muito curioso porque ficou marcado, era conhecido como lightly superiority. “O lightly superiority”, então todo mundo tirava sarro dele, depois. Porque era uma coisa tão absurda, mas era a mentalidade de pessoas como essas: “Nós, europeus…” Ainda mais em países em que a situação é mais precária, difícil, complicada. É uma discussão grave e era a essência da discussão que a gente estava propondo, que não tem isso, né? Tem que ouvir quem tá lá, tem que fazer uma adaptação. Eles têm dificuldade para isso, na prática tem, mas jamais confessam e confessou, se falar isso, daí é pior ainda, né? Então, na realidade não pode, porque isso na realidade significa uma negação dos princípios fundamentais da boa convivência, né? Eu me lembro disso, ele tinha um problema na perna, ele andava com uma bengalinha, coitado, nunca mais ouvi falar nesse povo. Mas enfim, foi uma experiência extraordinária viver em Lausanne. Primeiro, a vida na cidade, embora a gente tivesse esse conflito linguístico, né, que a gente falava fora, tentava falar em francês, e dentro, era só inglês (risos) e uma cidade pequena, que não era tão grande. Depois, eu voltei em Lausanne anos depois, era uma coisa diferente, mudou muito também e tem problemas, a Suíça é um país com problemas do ponto de vista de aceitação dos de fora, especialmente agora. Aliás, a Europa toda vive esse drama.
P/1 – Mas pra vocês, para a Cléo, para suas filhas…
R – Não, não… Sempre a maior atenção, nossa, as crianças iam brincar na rua, a gente… Eu tenho a impressão que também tem um dado curioso nessa história, não sei porque, mas a gente tem um modo de ser nosso que acaba sendo bastante atraente no exterior, né? Parece que tem um charminho brasileiro na parada, eu não sei explicar isso com muita clareza, mas isso vale para tudo. Vale para comentário, vale até para manifestar preocupação com o Brasil: “Puxa vida, estão vivendo lá um drama tão grande. Como é que é essa situação de vocês?”, sabe, as pessoas penalizadas com a gente, mas não com pena no sentido de… Mas lamentando que a gente tem tanta coisa legal, tanto jeito positivo para conviver com os outros e no entanto… Com todos os problemas que nós temos, né, na realidade, nós temos questões muito graves e sérias para superar nesse país, né, e sobretudo da aceitação e da igualdade absoluta, que é a questão central no nosso país sempre, né? Mas nesse período lá, nossa, nós vivemos em vários lugares, depois a gente circulou por vários países da Europa com as crianças, foi muito agradável, foi um período muito bom, muito bom. Agora, pra mim, nesse momento, eu tava em formação ainda, completando um lado que eu ainda não tinha completado, ou seja, não tinha… Eu tinha feito já o curso de Diretor de Recursos Humanos na GV também, no início dos anos 70, fiz também na PUC um curso ligado a Administração de Recursos Humanos. Quando eu fui para o Senac, eu comecei a frequentar mais isso, mais para me envolver na discussão específica do assunto técnico da Administração, questões ligadas a recrutamento, seleção, treinamento, administração pessoal, questão toda de cargos, como desenvolver toda uma forma de administrar pessoas, né, e isso foi sendo aprimorado. Porque uma instituição como a nossa, tanto o Senac como o Sesc, elas têm que ser exemplares nisso, por quê? Porque elas ensinam, elas dão aula e propõem e querem mostrar modelos, querem mostrar caminhos, querem orientar instituições, pessoas. Não tem cabimento não praticarem da melhor forma possível. E isso é uma coisa que tanto no Senac, como depois no Sesc, eu procurei ir buscando, ir desenvolvendo com políticas, ações de demonstrassem, efetivamente, isso. Explicando melhor, não é prática ainda das empresas darem determinado benefício, por exemplo, dar o benefício para os companheiros dos casais que têm do mesmo sexo, hoje em dia é uma prática comum, né? Não tinha legislação clara sobre isso e não tinha orientação clara sobre isso. Nós nos antecipamos no Sesc há muitos anos, dando os mesmos direitos aos companheiros e companheiras dos casais que são do mesmo sexo, o direito de terem assistência médica, direito ao seguro, a tudo que normalmente precisa ter, como se fosse um casal tradicional: todos são tradicionais, mas os casais que são aceitos normalmente pela comunidade. Isso tudo é fruto do quê? Dessa visão da igualdade como elemento fundamental. Isso vale pra tudo, né? Então, você tem que praticar aquilo que você tá oferecendo, tá falando que é importante fazer, que é necessário que seja assim, internamente na instituição, né? Isso vale pra tudo.
P/2 – Aí, você voltou para cá?
R – Voltei no final de 70 e… Não, 60… Tô falando dos anos… 77 eu voltei, continuei no Senac como…
P/2 – E você tinha essa vontade de continuar lá? Você tinha algum desejo?
R – Lá na Suíça?
P/2 – Não aqui quando você voltou.
R – Ah não, eu tava no SENAC sabendo que eu podia desenvolver uma carreira no SENAC atuando nesse campo da Administração mais ampla de pessoas, de modo geral, podendo assumir até mesmo uma posição nova. Mas eu já tava na máxima, acima de mim, só o diretor geral. Tava tocando, normalmente, sem grandes preocupações e sem montar um encarreiramento muito objetivo e claro, deixando, como diria o Zeca Pagodinho, a vida me levar, né?
P/1 – Você tava assim, se sentindo…
R – Tava, sem preocupação. Era bom, um salário bom, tinha uma atitude, uma ação bastante abrangente, tinha prestígio institucional, lidava com muita gente e aí, muito mais tarde, quer dizer, em 83, eu já tinha ficado como diretor geral do Senac algumas vezes, várias vezes, eu fui convidado pelo presidente que foi eleito em 83 para assumir o Sesc e Senac, o Abram Szajman a ser diretor do Sesc, por quê? Aí, tem um fato curioso, primeiro que ele sabia que eu já tinha sido do Sesc antes, estava no Senac, mas tinha sido admitido no Sesc; segundo, teve um fato muito relevante e decisivo: o Abram tem filhos que gostam muito de música, né, tanto o Claudio como o André, são muito ligados à música. Acho que a filha também, não sei, mas os dois adolescentes naquela época, e muito ligados, adoravam Tim Maia, Jorge Ben, essa coisa toda. O Sesc, em 82, cria o Sesc Pompeia, eu não tava no Sesc, eu tava no Senac. Acompanhei, fui na inauguração, em 82 e 83, a inauguração mesmo foi em 83, a festa, lá estava eu, com uma programação intensiva, única em São Paulo, única! Forte. O Sesc, na época, diretor era o Renato Requixa, uma parte das pessoas que administravam eram muito conhecidas minhas e colegas, porque também, dez anos antes, eu tava no Sesc também, né, então era gente da minha turma, da minha geração, do meu grupo que tava no Sesc, que tava administrando o Sesc e que quando inaugurou em… Terminou em 82, inaugurou logo em 83, creio, promoveu, como a gente sempre faz quando inaugura, uma programação bastante forte, bastante intensa e muita coisa. E eu frequentava muito, porque eu sempre nesse período de Senac todo nunca deixei de me envolver em ações de caráter cultural no sentido das artes, tipo espetáculos, teatros, música, dança menos, mas também. Muito presente na cidade e no Sesc, em particular, que já tinha alguma coisa, não era muito, não era tão grande a presença do Sesc nesse campo, mas já tinha muita coisa. E com a inauguração, explode, né, mas muita coisa, muita coisa! Muito curiosamente, muita coisa. Em 83, tinha uma grande festa no Sesc Pompeia, uma espécie de uma noite, não me lembro o nome da noite, mas era uma noite x, uma noite que tinha muito apelo, show do Tim Maia e eu tinha um grupo grande, parte deles, eu tenho até hoje, amigos queridos que frequentam, que nos organizamos e fomos também. Ocupamos uma mesa inteira lá, era um agito bastante interessante, umas 15, 20 pessoas, sei lá, um grupo grande. Nesse dia, o Abram que tava na presidência interina aparece lá, ele, a esposa, os filhos, que eles queriam ver o Tim Maia também. E eu me lembro que o presidente sempre causa, né, um certo embaraço, todo mundo fica preocupado: “Meu Deus, o presidente…”. Um diretor da época lá ficou muito preocupado, a equipe do Sesc local, da unidade ficou muito preocupada com a presença do presidente e eu tinha uma relação boa com o presidente, no Senac o presidente era o mesmo. E eles vieram correndo me pedir ajuda pra receber, ajudar, indicar e amenizar o impacto lá do susto, não sei se eles estavam esperando, não estavam, até hoje eu não sei se estavam esperando ou não, eu acho que não estavam, não. Enfim, tiveram que arrumar um espaço lá para o presidente, uma mesa, um lugar e eu estava cercado de muita gente amiga das diversas áreas culturais, como artistas, arquitetos, gente de televisão, tudo fazia parte desse grupão nosso, né, vários nomes conhecidos e tal. E aí, o diretor lá, na época muito preocupado, me pediu essa ajuda e eu então me envolvi, vários amigos, colegas foram lá conversando com o presidente, tal, parará, mulher dele, os meninos, e vimos o show do Tim Maia e foram embora e tal, parece que ficou um clima legal. Não é que a gente sentou na mesma mesa, mas demos uma ajustada na situação para o diretor. Isso foi num mês, meses depois, o presidente foi eleito, ele era interino, foi eleito efetivo. E quando ele foi eleito efetivo, ele foi formar a equipe dele, né? Me chamou e eu me lembro que na conversa lá para as tantas, porque não tava definido, ele queria que eu ficasse na equipe, mas podia ficar até no próprio Senac se eu quisesse, insistisse ou se a coisa fosse levada às últimas consequências, no próprio Senac ou em algum outro lugar, não era nem pra ser… Eram mais, era um grupo, não foi só eu e mais um para cada… Fram vários, então nesse caso, precisava… E quando ele foi definir, ele chegou pra mim e perguntou: “Você não quer ir assumir o Sesc, já que você gosta dessas coisas aí que o Sesc faz?” “Eu gosto muito das coisas que o Sesc faz, acho importantíssimo, se você quiser, estou à disposição”, foi a minha resposta na ocasião. E aí, ele me convidou para ser diretor do Sesc naquele período, quer dizer, claro, eu já tinha uma história no Sesc, eu tinha vínculos com a temática das coisas que o Sesc fazia e tinha tido esse fato também, então juntou tudo isso e ele acabou me convidando para ser diretor do Sesc. Isso foi no final de 83, início de 84, quando eu assumi em janeiro de 84 a direção regional do Sesc. E de lá pra cá, todo esse processo foi se desenvolvendo, um clima de confiança cada vez maior, o que permite a gente poder fazer um trabalho com consistência, com permanência, com amplitude, né, sustentável, porque na realidade, o importante não é você pura e simplesmente, ter ideias e realizar, é você ter meios de manter essa proposta e tudo isso foi que deu sentido pra gente poder ampliar aquele programa que vinha vindo de implantação de unidades, isso foi desenvolvido cada vez mais…
P/1 – Mas então, assim, eu queria entender isso. Em 84, você já tinha uma visão do que você queria no Sesc,. Quais foram os seus primeiros desafios, como que você: “O quê que eu preciso fazer aqui?”, como é que foi?
R – Eu fui tomar pé da situação, eu não posso dizer pra você que eu tinha uma ideia pronta na cabeça, não. Eu sabia claramente do objetivo da instituição: o quê que ela é, o quê que ela faz, o quê que ela pretende, como ela atua, né? E tem recursos para isso? Tem gente para isso? Tem meios de fazer? Quer dizer, uma coisa é o que você tem na mente, outra coisa são os meios que você tem para atingir, então tudo isso a gente começou a desenvolver o conhecimento. Não posso dizer pra você que no primeiro dia, nos primeiros dias, eu já tinha claramente tudo muito definido, não. Mas eu sabia o escopo geral. E sabia que a destinação da instituição era realmente atingir um público cada vez maior, um crescimento cada vez maior...
P/1 – Essa era a meta pra você?
R – Era a meta e como é até hoje, eu diria que é expandir com boa qualidade, não é simplesmente expandir, mas expandir com boa qualidade, né?
P/1 – O acesso?
R – O acesso. Expandir a oferta e o acesso, né? A oferta também, porque a oferta significa você poder atingir mais gente. E facilitar cada vez mais o acesso a tudo isso que a gente faz para a população especifica, para os trabalhadores da área de comércio, serviços, turismo, que são os que estabeleceram… Que têm uma relação com empresas que mantém, que pagam a conta do Sesc e com a população em geral. E a gente tem conseguido esse tipo de resultado, porque na prática, boa parte da população imagina que o Sesc é universal, é aberto para todo mundo, e na realidade, a gente tem prioridades e tem que seguir essas prioridades. E a prioridade do atendimento são os trabalhadores dessa… E alguns serviços exclusivos pra eles, assistência odontológica, férias em períodos escolares, alguns cursos que a gente tem com a demanda muito grande que a gente tem que reduzir, acaba ficando exclusivo para trabalhadores da área ou os credenciados, aqueles que são trabalhadores com a matrícula de credenciado pleno que dá direito a isso. Eu acho, portanto, que a grande questão é saber qual o papel nosso nessa história e qual a repercussão de tudo isso na sociedade. Então, o Sesc tem esse caráter de trazer um benefício quase que individual, pessoal, seja para quem trabalha, seja para as pessoas membros da comunidade. Você tem ações efetivas que trazem um benefício, mas você com isso, você tá ampliando e trazendo pras pessoas todas da comunidade ou todas aquelas que são atingidas um padrão, um modo de fazer, um modo de agir, um modo de entender as coisas, isso em todos os campos, né, mas o mais importante é a percepção do indivíduo, seja materialmente, fisicamente, saúde, condições materiais, condições físicas pra enfrentar tudo isso que tá aí, seja do ponto de vista do conhecimento, da capacidade de entender o outro, entender a si mesmo, entender a sociedade a sua volta, entender a questão ambiental, e com isso, poder, de alguma forma, despertar: como é que vai resolver? A gente pode entender muito bem e não fazer nada. Mas entender e ser provocado a ter uma atitude positiva com relação a tudo isso. Isso a gente tem colocado como um escopo muito claro. E finalmente, com isso, ter uma perspectiva social, cultural, mais ampla, maior para a sociedade inteira, coisa que não é muito fácil.
P/1 – Danilo, o Sesc cresceu muito nesse período e essa opção bastante única no Brasil pela cultura é uma característica do Sesc São Paulo, né? Queria que você contasse um pouco pra gente as ideias desse período de 84 e como que você foi… Se foi você, como você foi criando essa visão, esse programa, quais foram os principais marcos? Porque deu uma cor muito específica ao Sesc São Paulo. Como foi que você foi inventando, assim, quais foram os grandes marcos, os grandes insights ou desafios para ir dando a cor que o Sesc foi assumindo? Se você conseguisse fazer assim, se colocando naquele momento que é metade dos anos 80, onde toda essa noção aí de cultura era muito diferente no país, não tinha Lei Rouanet…
R – Não tinha Lei Rouanet, não tinha lei nenhuma.
P/1 – Não tinha nada, então assim, chegou lá, o quê que você viu e quais foram os seus primeiros passos e marcos? Você consegue…
R – Olha, vamos ver. Essa evolução toda tem várias fases, algumas fases são bem claras. O país tem questões graves do ponto de vista da sua estrutura, das suas diferenças, das suas questões básicas de convivência dessas diferenças, desses desequilíbrios imensos, né, do ponto de vista social, cultural, econômico. E essas instituições todas e o Sesc, em particular, tem uma missão clara a cumprir. Nós temos uma sociedade complexa e delicada e confusa, enfim, o nosso modelo econômico é um modelo baseado na livre iniciativa, capitalista portanto, tem uma legislação que incentiva de um lado e protege esse tipo de perspectiva, mas nem sempre considera as consequências disso, do ponto de vista social, ambiental, porque o país não tem a maturidade e o desenvolvimento adequado, sobretudo, da própria sociedade. Isso tem a ver com educação e cultura, tem a ver com a nossa capacidade de transmitir, de desenvolver ideias e propostas que façam com que essa sociedade inteira, ou boa parte da sociedade preparada enfrente tudo isso, entenda tudo isso, então nós temos uma perspectiva muito individualista, muito voltada para a defesa de interesses muito reduzidos, o que acaba atrapalhando em todos os níveis, até na amplitude da sociedade, até mesmo nos meios mais populares de ser levado a ter uma visão muito própria, muito exclusiva, pouco ampla. E a sociedade que é regida por esse princípio acaba não evoluindo, não avançando. Temos questões muito graves, onde a educação, educação nesse sentido, assim, educação plena, não essa educação de transmissão de informação, de conhecimento, mas a educação no sentido pleno, aquela educação que leva o indivíduo a se entender melhor, entender melhor o outro, entender a realidade da sua volta, além de desenvolver conhecimento, etc., etc., essa educação falta. Nós temos um sistema avançado, melhor do que antes, mas ainda aquém do que nós precisamos. Nós avançamos, eu acho que a gente tem que ter também consciência de que nós avançamos, a educação hoje é uma educação quase, pelo menos nos seus primeiros anos, universalizada no país, com qualidades questionáveis, mas é uma evolução importante que tem que ser avançada e que tem que ser desenvolvida, pra isso tem toda uma questão, não é nem política no sentido dos cargos de políticos no sentido de partidos de pessoas que estão por aí, mas é político no sentido de interesse público mesmo, ou seja, é uma questão política gravíssima, mas política nesse sentido mais profundo. A instituição criada em 46, e essas instituições todas têm um papel, ela faz parte de um todo, faz parte de um corpo imenso de ações que podem favorecer a própria escola, universidade, Estado, de um modo geral, tem obrigações com relação a isso, e nós somos o quê? Uma parte! Colaboramos com o Estado, outra parte colaboramos com a sociedade, no sentido de desenvolver programas que interessam para a sociedade. Muita coisa. A consciência disso exige que qualquer pessoa inserida nesse meio perceba que ela tá ali prestando um serviço, que ela tem obrigações. Quando eu assumi o Sesc, em 84, eu tinha muita consciência de que um papel eu tinha que desempenhar nessa história: “Eu vou mudar tudo”? Não, não vou mudar nada necessariamente. Eu vou observar, eu vou me inteirar de tudo, eu vou, primeiro, ter uma relação igualitária com todos, primeira coisa que eu fiz quando eu assumi o cargo em 84 foi cumprimentar todos os funcionários que estavam naquele prédio. Naquele dia, não houve oficialidade, não houve nada. O Abram, o nosso presidente, é um homem muito low profile, não gosta do negócio de fazer festa… Não, simplesmente: “Tá aqui a posse, vai lá e se vira”. Então eu fui cumprimentar um por um, falei com todos os funcionários: “Sou o novo diretor”, enfrentando, claro, dificuldades, ajeitando aqui e ali, teve pessoas que tiveram que mudar de cargo, mudar de situação, mas eu, aos poucos, fui me envolvendo diretamente com uma temática que me era mais cara, até, do que aquela com a qual eu estava envolvido no Senac. Por quê? Porque ela tem mais abrangência, ela diz respeito a todo mundo, ela tem a ver com a questão de um projeto civilizatório, um projeto de transformação permanente. Claro que você vinculado a um programa de educação e de formação profissional também está envolvido no projeto civilizatório, mas é de outra abrangência, é de outro nível, é você preparar pessoas para o trabalho, para o rendimento de um trabalho no qual aquela pessoa e a sociedade vão se beneficiar, é diferente. Aqui, nós estamos falando de algo que, claro, vai atuar através de pessoas para a sociedade como um todo. E vale a pena dizer que nesse aspecto, a abrangência do Sesc, a abrangência da proposta do Sesc é muito maior e por isso é que tem uma penetração, uma força, um significado muito forte na sociedade. Isso eu percebia, isso eu percebi com os colegas que comigo, assumiram…
P/1 – Veio alguém especificamente?
R – Não, isso era uma coisa nossa, era uma coisa que foi desenvolvida a partir da própria equipe de ação nossa, ou seja, houve uma alteração na estrutura, eu acumulei nesse período todo anterior, toda uma informação, já tava há 20 anos já envolvido nisso, por aí, quando eu assumi em 84, né? Eu já tava quase 20 anos bastante inteirado tanto de uma entidade quanto de outra e sabia do alcance através da ação que eu vi acontecer, que já era importante, então eu sou um pouco herdeiro também, eu não sou propositor, só, também propositor, sem dúvida, mas herdeiro de uma visão, de uma perspectiva daquelas pessoas que já estavam aí quando eu cheguei. Então eu trabalho muito na perspectiva da continuidade, da valorização daquilo… E Sesc Pompeia, por exemplo, que é uma proposta inovadora, fantástica na cidade, já tava presente, já tava funcionando, já tava… O que nós tentamos foi ampliar, a garantir em primeiro lugar e a ampliar, porque havia ameaças, havia gente que influenciava na época a administração do Abram e minha no sentido de mudar tudo, de não fazer nada na Pompeia, daquele jeito era muito perigoso, lidar com a garotada, com a juventude. Para você ter ideia, um fato relevante. Havia na época, um programa importante em São Paulo chamado Fábrica do Som.
P/1 – Fábrica do?
R – Som. Fábrica do Som era da TV Cultura, coordenado pelo Tadeu Jungle e era gravado, animado e realmente associado ao Sesc Pompeia. Por isso, Fábrica do Som, era na Fábrica da Pompeia. Naquele tempo, a unidade do Sesc Pompeia, era conhecida como a unidade Fábrica da Pompeia, que era fábrica realmente lá, queria muito conservar o nome. A gente até achava muito conveniente esse nome, depois é que a gente teve que por uma questão de rede, manter um nome mais simplificado Sesc Pompeia, que acabou pegando também, mas a ideia original era essa, Fábrica da Pompeia. Fábrica do Som, TV Cultura era a única coisa voltada para a juventude que havia na cidade de São Paulo, única, em termos de programa de televisão e mesmo em termos de proposta efetiva pra garotada, classe média, periferia frequentar. Rock é música jovem, Fábrica do Som, Tadeu Jungle. Era lá. Sesc Pompeia, quando eu assumi tava lá e havia um grande, imenso interesse, molecada subia no muro, no telhado para entrar quando não tinha ingresso, fazia o diabo, era uma invasão, ia pela Barão de Bananal, pela Rua Clélia, a turma entrava, queria entrar de qualquer jeito, demonstrando portanto um enorme e fantástico interesse. Queria porque queria entrar na gravação do programa, era a gravação do programa, depois era mostrado, não era ao vivo, era gravado. Conclusão: na época, logo que eu assumi, algumas semanas, alguns dias depois que eu assumi, a direção da TV Cultura na época me liga querendo uma informação, querendo saber o que a gente achava e propondo acabar com o programa. Isso já revelava um pouco o espírito de que o Sesc Pompeia devia mudar um pouquinho, sofrer alteração, virar alguma outra coisa. Eu falei: “Não, isso é a coisa mais importante que acontece. Da nossa parte, nós não vamos…”, queria, de certa maneira, a proposta da pessoa era a nossa anuência para acabar, eu falei: “Olha, por nós, não. Pelo contrário, acho que tem que manter” “Mas as pessoas sobem…” “A gente tem que controlar, tudo bem, mas isso só mostra interesse, isso quer dizer que é muito mais importante do que se imagina”, a mentalidade era ao contrário, a pessoa achava que isso era uma ameaça à segurança. Conclusão? Consegui manter mais um tempo, mas depois a própria TV Cultura acabou com o programa. Isso pra dizer pra você que logo que eu assumi teve outras pessoas dizendo para o presidente: “Olha, melhor acabar”, teve lá um grande evento ligado ao mundo punk muito curioso, chamaram a polícia, os vizinhos porque juntou muita gente, enfim, a coisa que interessa a grande parte da população ou a grande parte da juventude, sobretudo, tem barulho, e corre um certo risco de incomodar quem tá por perto. Mas isso é parte do nossos processo. Então, eu quero dizer para você exatamente isso, ou seja, havia uma dúvida se naquele momento: o quê que é o Sesc? O quê que isso vai continuar? Que tipo de compromisso é esse com a população, com as diversas faixas etárias, com o velho, com o adulto, com as famílias, com os jovens e com a criança? E o Sesc oferece uma programação intensa e a gente foi diversificando, foi completando…
P/1 – Já tinha o Curumim, tudo isso?
R – Não, o Curumim nós criamos logo em seguida. Curumim foi criado logo em seguida para criança, havia alguma coisa de recreação, os programas foram consolidados, todos, o próprio Sesc Pompeia tinha algumas propostas que foram alteradas, foram modificadas e foram evoluídas, foram transformadas, eu não diria que fomos nós que criamos tudo isso, não poderia falar de jeito nenhum, não aceito, eu sou o herdeiro, eu digo, eu sou o continuador de um processo e digo isso com a maior naturalidade, sem nenhuma demagogia, acho que isso é normal, claro que as coisas mudaram, o mundo se tornou muito mais complexo e nós acompanhamos essa complexidade enfrentando tudo, não havia rede, não havia internet, não havia o sistema que nós temos hoje, isso tudo foi sendo implantado, desenvolvido, ampliado, melhorado e ao mesmo tempo, foi juntado ou foi estabelecido uma proposta mais, digamos, organizada disso, por que tudo isso é importante? Onde é que tá? Quais os fundamentos disso?
P/1 – Em que momento você conseguiu consolidar essa proposta?
R – Isso no decorrer do processo, né, Karen, não é uma coisa assim, mas nos últimos dez anos, talvez, a gente tenha isso mais arrumado, mais presente, né, de uma maneira mais clara dessa nossa… Desse nosso compromisso e da maneira como cumpri-lo, né, esse nosso modo de agir que é próprio, a gente mais recentemente criou mecanismos para resgatar, juntar tudo isso: centro de memória, publicações, modos de fazer que a gente vai consolidando para deixar isso de uma forma mais organizada e aí, a gente dá conta de que realmente existe uma fundamentação de tudo isso bem sólida, entendeu? Então, pra mim, essa é a questão mais séria, mais grave, né? A solidez de uma proposta como essa, não é uma coisa festiva, não é uma coisa que vem acontecendo por acaso, mas é uma coisa que tem uma consistência e tem compromisso com aquele desenho que eu faço antes de um país que precisa ser transformado e mudado e o empresariado, a sociedade, os trabalhadores, todo mundo tem que estar envolvido nesse processo. Então, o Sesc tá muito integrado nesse modo de enxergar. E não sou eu, Danilo, é uma equipe inteira, são as pessoas que estão nas superintendências, nas gerências, nos cargos todos espalhados. Uma das coisas que me dá maior satisfação é ver, por exemplo, um técnico, muitas vezes, há pouco tempo na casa que dá uma explicação sobre trabalho nosso de uma maneira consistente, arrumada, organizada. Poxa, isso é o que a gente sempre quis, né, porque não é só pelo fato dele expressar aquilo, mas pelo fato dele estar envolvido num processo em que aquilo faz sentido. Não é o simples fato de ter as pessoas aderindo, vestindo a camisa, tal, mas é estar interpretando e realizando dentro de uma perspectiva. Isso é o que pra mim é o mais sólido, é o mais importante, entendeu? E hoje, nós temos uma equipe muito vasta em todos os níveis, em todas as áreas. Ao todo são mais de sete mil e com expansão ainda prevista nos próximos meses e nas áreas específicas, né, você pega, por exemplo, pra ficar bem restrito, o pessoal da alimentação. Alimentação não é simplesmente oferecer comida para as pessoas, né? Alimentação tem um caráter muito mais profundo, não apenas cultural, no sentido amplo, mas é específico no sentido até mesmo da promoção do bem-estar, do desenvolvimento da saúde, da questão da convivência, na questão da valorização de uma cultura local, tem vários fatores. Isso é importante, então o Sesc talvez antes tivesse apenas a perspectiva de fornecer alimentos, hoje em dia não é simplesmente fornecer alimentos, é fornecer alimentos saudáveis, adequados, com valor nutricional, que tenha um caráter educativo, que tenha a ver com a realidade das pessoas, tem todo um componente muito mais sólido, muito mais profundo. Você vai falar com as equipes que lidam com isso, as nutricionistas, os nutricionistas, os programadores, os gestores da parte alimentar nossa, seja no ponto de vista do programa que nós temos de alimentação para o atendimento da instituição, seja no programa de alimentação que a gente tem uma perspectiva social que é a mesa, as pessoas têm isso embutido muito claramente. Então pra mim, isso que é o importante, isso vale para a questão da Odontologia, isso vale para a questão do esporte, isso vale para a questão do idoso, isso vale para a questão da criança, então pra mim, isso é fundamental.
P/1 – Então, Danilo, isso que você fala é muito difícil. Eu acho. Desculpa, você criar…
R – É difícil, mas é um processo.
P/1 – E implantar, né? Então, eu queria que você… Pega um case, já que você fez cases de como é que… Porque isso você tá trabalhando com um monte de gente, isso é a condição de uma visão e aí, vai implantando, né? Então, não sei se você lembra, ou talvez o seu primeiro grande case, ou talvez aquele que ficou, que às vezes, são os que têm mais desafio. Como você foi implantando, escolhe um se você quiser, tipo assim, como você foi implantando isso, a posição da visão, como foi fazer isso se tornar uma postura coletiva.
R – É verdade.
P/1 – Essa é o grande desafio da história, né?
R – É verdade. Eu vou te dar um contraexemplo e um exemplo. O contraexemplo: trabalho com idosos. Quando eu cheguei, já havia uma certa ação, era importante. Era um trabalho que mobilizava, que juntava, tinha muita gente trabalhando, mas havia um caráter meio festivo de alegrar os idosos. Importante? Sim, é importante, tinham encontros e tal… Já havia até, além disso, discussão sobre direitos, sobre estatutos que depois vieram a ter, mas essa coisa do superficial tava muito presente, do festivo. Aí, aos poucos, conversando com as equipes, conversando com as pessoas envolvidas, a gente transita de uma valorização maior nos aspectos de identidade, de valorização do ser humano, de discutir a questão do futuro das pessoas idosas, o idoso também tem futuro, dos seus planos de vida, dando conteúdo um pouco maior para a questão da formação e perdendo um pouco, sem abandonar, obviamente, o lado puramente festivo. Só para dar um exemplo, né? Um outro exemplo muito forte.
P/1 – Isso aí você olhou e…
R – Ah, olhei claramente e falei: “Isso aqui eu gostaria de mudar, isso aqui eu não gostaria de fazer, isso aqui tira por favor, vamos fazer assim, vamos fazer assado”, isso foi aos poucos, nós tínhamos encontros periódicos com todos eles…
P/1 – Queria entender isso, como você fazia isso?
R – Falando diretamente com as equipes: “Vamos lá, vamos conversar, vamos bater…”, baseado em quê? Baseado na verdade, baseado nos dados efetivos que nos envolviam naquele momento.
P/1 – Posso esmiuçar um pouco…
R – Pode.
P/1 – Como uma compreensão. Então assim, você olhava e você viu… Por exemplo, então cheguei e viu o idoso, aí você foi percebendo isso e o quê que você fez? Você chamava: “Vou priorizar isso na minha vida”…
R – Nós tínhamos uma gerência exclusiva para trabalhar com o idoso. E nessa gerência, naturalmente, tinha uma pessoa que foi, digamos, objeto, participou de várias reuniões e ali, a gente ia mudando: “Olha, isso aqui é melhor fazer de outro jeito, isso aqui…”, aos poucos, sem violência, entendeu? Sem: “A partir de amanhã não tem mais festa o idoso em lugar nenhum”, não é isso, mas tinha a festa, teve outras coisas também, tinha manifestações das mais variadas, mas tinha também o lado… Quer dizer, você foi acrescentando o conteúdo, mas sem transformar a coisa numa coisa muito sisuda, desagradável. Por exemplo, os idosos gostam muito de jogar cartas, acho importante, é uma diversão, passatempo, eles tinham isso. Aí você descobre que nesse passar cartas tem uns mais espertinhos que começa a jogar por baixo do pano a dinheiro dentro do Sesc, tinha isso. Aí você vai lá e diz: “Tem que dar um jeito aí, vamos…”, isso aconteceu. Uma outra coisa que pra mim é mais conceitual, olha que coisa interessante, o isolamento, a segregação. A gente entrou um pouco nessa de separar um espaço da unidade pro idoso, pra ele ali ser o rei, desde o Mário França, desde da Rua do Carmo tinha isso, uma sala exclusiva pra eles, onde eles jogavam, onde eles se entendiam, que era o espaço único deles, chave, trancava, era deles. A gente, aos poucos, foi alterando esse processo, integrando-os em todas as atividades da unidade e fazendo-os conviver com todas as demais gerações e aí nós criamos um programa chamado Intergeracional, exatamente, é esse o modelo mais atual, moderno, avançado de lidar com a questão do idoso, é o idoso com a criança, com o jovem, com o adulto, com a família, com todo mundo e também tem momentos em que ele tá sozinho, mas integrado no processo, entendeu? Então essa evolução é alguma coisa que foi nascendo e foi desenvolvendo, isso foi introduzido de uma maneira realmente muito clara e forte, hoje é um pouco o que define o nosso trabalho. Isso tem fundamentação teórica, tem estudiosos, tem tese de mestrado, tem gente...
P/1 – Mas aí, você pegava e via tudo isso, você chamava as pessoas que estavam ali, como que você…
R – Interagia, porque isso também vem de outros e eu vou aceitando, vou respondendo e vou fortalecendo opiniões de alguns e vou dando força para alguns que eu acho adequado, alguém que propõe alguma coisa que eu acho adequado, eu dou força, alguém que propõe alguma coisa que não é adequada, eu não dou força, então esse é um processo normal de gestão, levando em conta todos esses componentes de um trabalho como esse que é exemplar. Em 63, quando o Sesc começou, era o único que fazia isso e fazia pra quem? Fazia pra aposentado, fazia mesmo num clubinho de idosos, uma coisinha pequena e isso marcou e foi o início, mas só que a evolução disso exigiu outras respostas.
P/2 – E foi você que intensificou esse investimento no corpo técnico para se formar lá fora?
R – Exatamente, isso já tinha antes, é bom que se diga, fui para o IMD e muita gente do Sesc também foi. E no Senac, a mesma coisa. A mentalidade nossa com relação ao preparo técnico do nosso pessoal é uma herança que eu tenho e que eu ampliei mais ainda. É verdade. Hoje em dia, todo mundo tem cursos, tem atividades… Antigamente, eram poucos os Doutores… Mestres e Doutores, hoje em dia, tá cheio de Mestres e Doutores no Sesc…
P/1 – Tem um incentivo?
R – Tem um incentivo, o tempo todo. Um outro programa muito forte, esse foi exemplar também, parecido com o do idoso é o do Mesa, o Mesa Brasil. Hoje, Mesa Brasil foi um programa que nós… Esse fui eu, pessoalmente, que desenvolvi desde o início.
P/1 – Como é que foi isso?
R – Isso foi o seguinte: no início dos anos 90, no Brasil se constatou que a questão da fome era muito grave, Betinho voltando do exílio lança uma campanha no Brasil inteiro sobre isso e o Brasil inteiro responde, alguns de uma maneira, outros de outra. Nós respondemos no Sesc São Paulo na mesma hora fazendo algumas ações, fizemos uma vigília musical contra a fome virando à noite, se apresentando lá no Sesc Interlagos, recolhendo alimentos e enfim, tinha muita força no país todo, campanhas desse tipo. Mas eu, na época, pensei: isso é uma campanha, isso vai resolver pontualmente uma situação, a gente precisa criar algum mecanismo, alguma coisa que tenha uma certa permanência, uma coisa que ganhe uma força maior, mais forte, né? No início, pensava de um jeito, mas não tinha muito claro, isso tudo vem de uma maneira muito sem fazer interlocução com os colegas, aí eu descobri por informações que havia em várias partes do mundo, mas especialmente, nos Estados Unidos uma rede de instituições ligadas a essa questão de alimentar, de conseguir alimentos e tal, chamado Food Bank, Banco de Alimentos. E descobri, também, naquela ocasião que eles têm um congresso, uma reunião anual. Então, eu decidi ir ver essa reunião lá nos Estados Unidos, em Atlanta. Na época, até havia um pouco de dificuldade pra obter passagem, o Sesc não tava tão animado, o presidente na época não tinha tão claro. Depois disso, não, mas na época não era tão simples. Eu, através de um mecanismo aí, consegui da VASP uma passagem até Miami e de lá eu banquei o restante. Fui até Miami e de Miami, fui pra Atlanta e participei, era o único estrangeiro. Tinha centenas de pessoas no congresso americano, do Food Bank, Congresso de Food Bank, imenso! E lá eu vi como funcionava isso, os diversos modelos que tinham, como funcionavam, quem eram as pessoas envolvidas, tipo de proposta que tinha, era uma coisa muito séria, muito profissionalizada, muito importante, formulários de como se aderia, como fazia, como funcionava, como administrava. Recolhi tudo aquilo, fui pra Nova York, escolhi o contato lá de uma das entidades, chamada City Harvest em Nova York, fui lá para Nova York com ele e fiz uma observação, um acompanhamento nas ações deles, recolhendo alimentos na cidade de Nova York e juntando e distribuindo nas entidades. Passei dias fazendo esse tipo de percurso com eles, entrei no famoso Word Trade Center pelas garagens, por baixo, indo nos restaurantes do Word Trade Center, recolhendo um monte de coisa com eles, uma organização muito sofisticada essa do City Harvest. E trouxe isso tudo para pensar no Brasil, alguma coisa que tivesse esse tipo de solução, banco de alimentos. E aí, criamos primeiro no Sesc, a minha ideia era criar no Sesc para depois transformar numa coisa independente, forte, fora, mas isso acabou não se realizando desse jeito. Mas na época, nós criamos o Sesc e o tal Mesa São Paulo que consistia em recolher alimentos em restaurantes e lugares onde tinha alguma sobra, primeiro se pensava até em transformar esses alimentos de algum jeito em alguma coisa que pudesse ser utilizada, ou simplesmente, entregar esses alimentos diretamente para quem tinha necessidade. Nasceu uma espécie de um serviço inicial, que era esse Mesa São Paulo, baseado no Sesc do Carmo também, com serviço próprio, com adesão de empresas que forneciam e entidades que recebiam, isso foi crescendo, foi se desenvolvendo, de lá pra cá, o Sesc Nacional assumiu e virou Mesa Brasil, hoje tem de Roraima ao Rio Grande do Sul, em todos os Sesc do Brasil o serviço do Mesa Brasil, que nasceu aqui em 94, se eu não me engano, que a gente começou, depois no ano 2000 e pouco, o Nacional assumiu também, na época do Fome Zero que o Lula inclusive fez um documento sobre essa questão da fome no Brasil, onde ele cita o nosso programa lá, o programa nosso é citado lá como um modelo. E ganhou uma dimensão, hoje os Sesc do Brasil inteiro têm e em São Paulo, continua. E um dos segredos desse programa, primeiro, é a seriedade da instituição em lidar com isso, o que permite que as empresas tenham confiança. Digo isso porque tem muita entidade, organização, empresa que gostaria, mas sabe, não tem muita segurança naquilo que oferece, ou naquilo que aparece muitas vezes. Então a gente tem isso muito garantido, a transparência absoluta, total prestando contas de tudo o que faz e promovendo uma vez por ano, um encontro entre as entidades que são beneficiadas com as empresas que os benefícios dão. E hoje em dia, você tem todo o tipo de empresa que lidam com alimentos em qualquer fase do processo, desde empresas como, sei lá, do mundo rural até empresas que distribuem alimentos como supermercados, etc., etc., enorme o processo! Hoje em dia, são milhares de empresas e milhares de entidades que se beneficiam desse serviço que foi implantado. Esse serviço foi um que iniciou por minha ação pessoal com o Sesc, claro, usando toda a estrutura do Sesc. E por quê que ele é peculiar? Ele é peculiar porque ele é pra gente, ele é universal, ele não é só pra trabalhador do comércio e serviço, esse negócio todo. E por quê que a gente pode fazer isso? Porque você tem um modelo, você lida com o alimento, você lida com educação alimentar, você tem esse processo bem desenvolvido, então você está oferecendo para a comunidade um modelo de atuação nesse campo. De lá pra cá , muitos food banks foram criados aí pelo Brasil a fora. Então, esse modelo é uma invenção, é uma criação, realmente, nossa aqui, do Sesc de São Paulo, nasceu nos anos 90 e se desenvolveu bastante e eu diria, até, que colaborou com a diminuição da fome no Brasil, efetivamente. Não eliminou completamente, porque inclusive, recrudesceu mais recentemente, mas ela diminuiu bastante. Hoje em dia, a educação alimentar é mais importante, às vezes, por um simples fornecimento de alimento, porque muita gente pobre e mal alimentada está obesa, esse é um outro problema. Mas essa é uma outra questão, mas de qualquer forma, faz parte do programa hoje, do Mesa lidar com a questão de educação alimentar, tudo isso tá envolvido nessa perspectiva educativa do nosso trabalho. Então, não é só dar alimento, eu dou um exemplo: havia uma entidade no centro de São Paulo que atendia menores de rua e fazia essa distribuição de alimentos de forma muito precária e de maneira muito selvagem. Nós simplesmente cortamos até eles acertarem e terem um cuidado maior, porque o fornecimento de alimentos não é só uma questão de alimentar o corpo, mas de orientar as pessoas a terem uma vida mais…
P/1 – Então, quer dizer, o programa, ele tem…
R – Tem um caráter educativo.
P/1 – Inclusive das instituições que se beneficiam dos alimentos?
R – Também. Limpeza, uso da manipulação, armazenamento, distribuição, tudo isso faz parte de um processo educativo, então a senhorinha que cuida da creche x da paróquia tal que faz comidinha para as crianças de lá, ela tem que ser orientada de como fazer aquilo de maneira adequada.
P/1 – Isso faz parte do programa?
R – Faz parte do programa.
P/1 – Quer dizer, o Sesc vai lá hoje e…
R – Exatamente! Então, são programas que foram… Eu tô me referindo a programas muito específicos, né, o idoso, mas tem mais, tem coisa ligada por exemplo, à preservação da memória,. O Sesc é uma instituição que tem esse princípio desde a recuperação de uma fábrica antiga transformada numa unidade ou de uma outra fábrica, como é o caso do Belenzinho, ou de algum outro espaço, como é o caso do K.K.K.K. [Kaigai Kogyo Kabushiki Kaisha], que é o centro lá de Registro, então preservar a memória física faz parte, mas mais do que isso: preservar a memória conceitual, a memória programática, o modo de fazer, como fazer, porque fazer, seja do ponto de vista institucional, seja do ponto de vista das entidades que participam desse processo por aí a fora, né? Desde a questão alimentar que eu mencionei, a preservação de outras ideias importantes para o ser humano, a questão ligada à música, ao teatro, à dança, às artes visuais e tudo, né? Isso faz parte de um todo. Alguém me pergunta: “Vocês preferem mais a música moderna ou a música antiga?”, preferimos as duas, não temos nada contra nenhuma e nem outra. Então, a gente procura preservar o que tem valor, independente de ser de um jeito ou de outro.
PAUSA
P/2 – Você, agora, antes da gente sair, você tocou nessa questão de que a memória é um valor pro Sesc no sentido até do registro desse processo, desse desenvolvimento todo das atividades.
R – Exatamente.
P/2 – Então, acho que dentro disso, como é que você vê, quer dizer, deixar registrado esse legado que foi feito até agora e quais as perspectivas que você vê para o futuro seu e do Sesc, de um modo geral?
R – Legal. Eu acho importante registrar sim todo esse processo e isso tem sido feito de várias maneiras, existe um relato, enfim, que aparece na… Toda documentação, toda abordagem que se faz sobre cada atividade, tudo existe um cuidado de relacionar aquela ação, aquele fato, aquela situação com o todo, com a instituição, cada publicação que se faz, cada momento em que se inicia uma nova operação, uma nova unidade, tudo isso tá vinculado a um processo. Então, isso garante, de alguma forma, a ideia de que estamos inseridos no modo de fazer, no modo de agir, no modo… Isso é feito de uma maneira quase que eu diria, espontânea, além de uma área específica que cuida de todo esse recolhimento, dessa guarda e ao mesmo tempo, dessa interpretação de tudo isso, então pra mim, isso é fundamental, a gente ter criado e ter desenvolvido esse processo, esse modo de fazer, falta, talvez, ainda uma metodologia para guardar e ter isso resgatado de uma maneira mais moderna, não o que tá lá, mas aquilo mais pessoal da minha parte, né, talvez uma publicação, alguma coisa que possa trazer isso de uma forma mais completa, com princípios, modos de fazer e resultados, né, acho que isso é fundamental. Uma vinculação, isso é importante, uma vinculação com todas as instituições, organizações como o próprio Museu da Pessoa que são instituições e organizações que realizam essa proposta, que fazem isso de uma forma ou de outra através não apenas de depoimentos, mas de documentação. Então isso vale no nosso esforço de nos manter afinados e vinculados e articulados com organizações que atuam nesse mesmo setor. Isso tem acontecido. Pra mim é importante, pessoalmente, para o futuro que isso registrado ofereça reflexão, ofereça para as pessoas que vierem oportunidades de mergulhar em nesse campo e avançarem, né? Irem adiante. Eu não imagino que a memória sirva apenas para você tomar conhecimento e ter como um espelho, um modo de fazer, mas de você ter uma referência importante, uma referência básica, uma referência que tem, digamos, consistência. E, a partir daí, você criar, você avançar, você ter meios. Por quê? Porque existem outros modos, outras coisas… Na essência, o ser humano é o mesmo, era o mesmo, continua sendo o mesmo e vai ser o mesmo sempre. Mas tudo o que se coloca à disposição do ser humano a sua volta o transforma também, ajuda para que ele perceba melhor determinadas questões, sei lá, a nossa inteligência, ela é estimulada permanentemente. Então, na medida em que você tem mecanismos de estímulo maior ainda (pausa), embora a natureza humana seja a mesma, o homem das cavernas ou do Império Romano e de hoje é outro, né? Os estímulos são outros e o homem que virá daqui a muitos anos, também vai ser outro. Aquilo que oferece em termos de tecnologia, de informação, de conhecimento, de possibilidades a sua volta, tudo isso terá outras características e isso vai fazer com que o ser humano também reaja de uma maneira, mas a essência, aquilo que diz respeito a valores, a modos de enxergar o outro, à perspectiva de futuro, isso permanece. Eu digo isso porque muita coisa que a gente deixa acaba não sendo tão útil, né? Mas aquilo que tá por trás daquilo que a gente deixa permanece, que é essa questão da busca da igualdade absoluta dos seres humanos, que pra mim é a grande luta, a grande questão civilizatória, entendeu? O processo civilizatório visa isso, claro que todo o restante ajuda, facilita, sei lá, ter informação, ter conhecimento de tudo, saber as coisas da melhor forma possível, que já aconteceu, o que acontece hoje, o que pode acontecer no futuro, mas a grande questão tá na evolução do processo civilizatório e pra isso, tudo o que for acumulado é importante ser visto, ser guardado, mas só faz sentido, realmente, na medida em que o ser humano seja capaz de continuar fazendo, produzindo em favor desse processo civilizatório que no fundo, no fundo, é a percepção absoluta da igualdade entre todos. O dia que a gente conseguir isso, civilização tá completa. Eu acho (risos). Muito bom.
P/2 – Danilo, quer dizer, toda essa relação que o Museu tem, continuando agora aí, como Sesc, nesses anos todos e agora esse seu relato da importância da memória, o quê que é pra você, o quê que significou dar um depoimento seu para o Museu da Pessoa?
R – Bom, eu já tive oportunidade de fazer alguns depoimentos. Ainda recentemente, quando eu fui homenageado na minha terra, em Campos, um jornalista, um responsável por uma espécie de um centro de memória local, o Vilmar Rangel, também me convidou para uma conversa semelhante, né, onde eu tive a oportunidade de falar sobre a minha trajetória lá na cidade, fora, minha vida aqui. Anos atrás, eu tive a oportunidade de fazer um longo depoimento também no Museu da Imagem e do Som, aqui em São Paulo. Tá lá guardado, não sei se foi útil para alguma coisa, mas tá lá. Dentro do Sesc, eu já tive oportunidade algumas vezes no próprio Centro de Memória relativo à unidade móvel, relativo ao início do Sesc, alguma coisa semelhante já fizemos. Mas esse é o primeiro que eu faço, assim, mais abrangente, mais completo, que pega todos esses que mencionei, junta de uma maneira mais completa, né? Não apenas pelo tempo, mas pelo fato de pegar desde a infância na minha terra, minha fase pré Friburgo, depois Friburgo, onde eu tive a formação inicial no Colégio dos Jesuítas, no Colégio Anchieta, depois como jesuíta, depois saindo dos jesuítas, entrando no Sesc, o quê que isso significou, quais são… Então houve uma abrangência maior. Eu acho isso fundamental para todo ser humano. Alguns têm isso como uma tradição familiar importante, né, juntar com os mais velhos na família, ouvir os relatos antigos, coisa que talvez se desse mais antigamente de maneira mais frequente, né? Hoje, me parece que é mais raro você ter no âmbito das famílias oportunidade para que os mais velhos relatem, contem as coisas mais antigas, como é que era. Não que as coisas mais antigas fossem melhores, necessariamente, mas é um modo de enxergar, um modo de ver, um modo de agir e um modo de orientar uma vida. Algumas culturas têm isso de maneira mais presente. Então, tudo que diz respeito a relato sobre a memória, a valorização disso como referência importante é muito necessária, é muito da natureza humana, em primeiro lugar, e é muito necessário para quem? Pra todo mundo. Eu não diria que é para os mais jovens, para as crianças, não, é para os mais jovens, para as crianças, mas para os adultos e para nós mesmos. É importante porque a história e a vida humana sobre a terra se dá ou se desenvolve dessa maneira, né? E não se desenvolve apenas com relato dos heróis, dos grandes nomes, dos grandes realizadores, das pessoas famosas que chegam lá, não. É do homem comum, daquele que tá ali no dia a dia, que faz a sua vida uma vida de contribuição efetiva sem nenhuma preocupação em ter o caráter mais famoso ou mais charmoso ou mais importante, né? A vida humana é feita por pessoas comuns, né? Na sua grande, imensa maioria, é claro que aqueles por alguma razão puxam para um lado ou para outro acabam aparecendo de maneira mais efetiva, mas isso não é o frequente do ser humano, o ser humano mais comum é aquele que tá no dia a dia batalhando. Então, o registro disso eu acho extraordinário. Acho extraordinário, por isso eu sempre apreciei muito a proposta do Museu da Pessoa nessa perspectiva. E o Museu da Pessoa trabalha com todos, desde os que têm alguma “celebridade” até aqueles mais comuns, que de alguma forma, desejam registrar o seu depoimento e a sua vida. Essas pessoas são tão importantes quanto aquelas primeiras. Então, pra mim, isso é muito significativo. Eu acho uma proposta extraordinária. E eu fico muito animado com isso, porque bate, casa com aquilo que eu dizia antes, é um processo civilizatório, alguma coisa que valoriza quem? O ser humano, né, o ser humano comum, o ser humano menos comum, mas valoriza todo mundo e eu acho fundamental.
P/1 – Danilo, pra fechar, você olhando a sua vida assim, como você falou que fez um todo, agora assim, qual que é o seu sonho? Você tem uma…
R – Eu costumo dizer o seguinte: eu pretendo ter futuro. Eu tenho uma visão muito objetiva, sei que na minha trajetória de vida, eu já passei da metade faz tempo. Então, isso não me preocupa muito, claro que eu pretendo ficar o máximo possível, o mais tempo possível (risos), mas não fazendo sempre tudo sempre a mesma coisa, pretendo continuar a minha vida… Eu tenho pra mim dois aspectos, um aspecto pessoal de querer, digamos, conviver com as pessoas queridas todas, família, minha mulher, minhas filhas, meus netos, muito família. Aí, nesse momento, a família ganha uma dimensão muito própria. Então, do ponto de vista pessoal, essa convivência, essa satisfação, esse gosto da convivência parece que ele ganha a medida que você vai completando todas nas suas tarefas na vida, vai ganhando uma dimensão cada vez mais forte. Então eu, pra mim, tenho muito esse desejo de uma convivência plena com todo mundo a minha volta, entendeu? Então, do ponto de vista pessoal, é muito nesse plano. Diz: “Não, eu pretendo construir isso, pretendo morar aqui, morar lá, pretendo viajar…”, tudo isso faz parte, mas o mais importante é a convivência mesmo, né? Essa convivência profunda com as minhas relações mais próximas, né? Esse é o primeiro dado. E do ponto de vista social, eu tô inserido numa sociedade na qual eu faço parte, eu tenho que contribuir também, não é que eu contribuo porque eu tenho que contribuir, só, contribuo porque eu acho que é parte de um processo, de uma continuidade natural. Veleidades, imagino ter mais possibilidades de propor, de discutir questões, de participar de encontros, de fóruns, de debates, de reuniões, onde essas questões estejam presentes. Eu acho vital essa questão da convivência, da boa perspectiva de mudança, da transformação… Não da política, eu não pretendo, nunca tive esse desejo da política no sentido organizado, da política no sentido partidário, enfim, disputa, eleição, essa coisa toda, mas da boa política no sentido do interesse público, de estar envolvido em discussão, debate, questões ligadas ao interesse público. Acho que esses dois aspectos da convivência, da satisfação pessoal dela junto com essa perspectiva da boa política, digamos assim, da boa participação no mundo e da contribuição de modo geral, da discussão dos grandes temas me seduzem. Esses dois aspectos. Então, eu pretendo, de alguma forma, organizada ou não, continuar batalhando nesse caminho, coisa que eu já faço hoje, mas que talvez, eu terei mais possibilidades quando tiver completado as minhas tarefas mais diretas e necessárias nessa altura da minha vida. É isso. Muito obrigado a vocês todos.
P/1 – Obrigada.
FINAL DA ENTREVISTA
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